Decisão da Suprema Corte dos EUA afetará leis sobre aborto pelo mundo


Assim como Roe versus Wade inspirou mudanças em dezenas de países, sua derrubada pode levar a um efeito dominó mundial

Por Carolina Marins
Atualização:

Desde que a Suprema Corte dos Estados Unidos determinou em 1973 que o acesso ao aborto era um direito constitucional, mais de 50 países modificaram suas leis de forma a torná-las menos restritivas. Agora, com a queda da histórica decisão de Roe versus Wade, ativistas temem um efeito dominó, com cada vez mais países restringindo acesso ao aborto e limitando leis mais liberais.

A Corte confirmou sua decisão de derrubar a regra que tornava o aborto uma prerrogativa federal, mais de um mês depois do vazamento do rascunho que apontava a tendência de anulação. Já na época, o vazamento ligou um alerta em ativistas no mundo todo, já que o documento apontava que a maioria apoiava a derrubada da lei.

Segundo dados do Center for Reproductive Rights, que faz o levantamento das legislações de aborto no mundo, há mais de 70 países que permitem o procedimento - apenas com limitações de tempo gestacional. Por outro lado, 24 países proíbem completamente, mesmo em caso de risco para a mulher. Mas nas últimas décadas, mais de 50 países modificaram as suas leis para torná-las mais liberais no tema.

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Influência mundial

Muito antes de Roe versus Wade se tornar uma discussão nos Estados Unidos, alguns países já possuíam leis permissivas ao aborto, a maioria dentro da esfera de influência da antiga União Soviética. Mas com a permissão da corte americana, pouco a pouco, outras legislações foram se inspirando no precedente.

Mulheres em Bogotá, na Colômbia, protestam com faixas, cartazes e bandeiras em defesa do aborto Foto: STRINGER
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“Esse movimento nos EUA é muito importante porque o país se projeta como esse farol mundial, então seu papel é muito importante para divulgar no exterior essa ideia de que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres são importantes e devem ser respeitados”, explica Almudena Cabezas González, professora na Universidad Complutense de Madrid.

“Houve uma ampliação dessas lutas nos anos 60 e 70, e então saiu esta importante decisão dos EUA. Em poucos anos, durante os anos 70 e 80, uma legislação também foi aprovada na Holanda (84), na França (75) e em outros países”, completa. A Tunísia foi o primeiro país muçulmano a liberalizar o aborto, em 1964, mas apenas sob certas condições como saúde e controle populacional. Poucos meses após Roe vs Wade, o país liberou até os 3 meses.

Em 1994, 179 países se comprometeram a prevenir abortos inseguros no âmbito da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento. Desde então, 15 países reformularam as suas leis para liberar quase completamente o aborto, entre eles: Espanha, África do Sul, Uruguai, Nepal, entre outros. E 18 abandonaram leis que rejeitavam o procedimento sob qualquer circunstância, para abrir algumas exceções, sendo a maioria na África.

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O continente africano concentra as maiores mudanças de legislações. Embora a região ainda possua as leis mais restritivas e onde o risco de morrer por um aborto inseguro é o mais alto do mundo, metade dos países que diminuíram as restrições nas suas leis nas últimas décadas estão da África. Em seguida vem a Europa e a América Latina, que vive uma chamada “onda verde” de liberalização.

Países em desenvolvimento em alerta

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Os países em desenvolvimento são responsáveis por 97% dos abortos inseguros no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). É justamente neles, especialmente África e na América Latina, que uma mudança na lei americana poderá causar maior impacto. Ambas as regiões vivem neste momento o processo liberalizante que EUA e Europa viveram nas décadas de 70 e 80.

“Quando o aborto começou a ser legalizado nos EUA e Europa, nós na América Latina estávamos passando por outros processos políticos, sejam ditaduras militares ou guerras civis, especialmente na América Central, o que tornava impossível levantar uma questão como esta”, aponta Cora Fernandez Anderson, professora no Mount Holyoke College em Massasshussets e autora do livro Fighting for Abortion Rights in Latin America: Social Movements, State Allies and Institutions.

A região, ao mesmo tempo que possui uma das leis mais restritivas do mundo na Nicarágua e El Salvador, vive o seu momento mais liberal, impulsionado pelo movimento “Ni Una a Menos”. Somente nos últimos dois anos houve a histórica decisão da Argentina de legalizar o aborto em 2020, a Colômbia liberou o procedimento até às 24 semanas de gestação em fevereiro deste ano e com o Chile, que tinha uma lei altamente restritiva, inserindo a pauta em sua reforma Constitucional.

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Do outro lado do Atlântico, a União Africana adotou em 2003 o Protocolo de Maputo, que garante às mulheres maior autonomia em suas decisões de saúde reprodutiva. Dos 55 países membros da UA, 49 assinaram o protocolo e 42 o ratificaram.

“Sabemos que como tudo o que acontece nos EUA afeta a América Latina, já começa a surgir aqui um discurso que legitima qualquer coisa que se oponha aos direitos reprodutivos”, afirma Anderson. “Se a lei mudar, então será uma legitimação absurda da narrativa antidireitos.”

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E este impacto não se restringe à inspirar legislações mundo afora, mas atinge o financiamento de grupos que lutam por leis mais liberais sobre o aborto. “Já vimos isso com as administrações de Reagan e Trump por exemplo, que tiveram uma ênfase muito mais moralista e religiosa em vez de direitos sociais amplos, e isso teve um grande impacto na posição e financiamento das organizações internacionais que afetam diretamente os direitos de mulheres e outros grupos”, pontua Almudena Cabezas González.

“Em muitas nações africanas, as principais iniciativas de direitos das mulheres estão sendo sustentadas apenas graças ao financiamento recebido do Ocidente”, escreveu a advogada e membro do Aspen Institute, Stephanie Musho em artigo na Al Jazeera em maio. “No Quênia, por exemplo, 95% da ajuda à saúde sexual e reprodutiva vem dos EUA. Portanto, os governos africanos muitas vezes se inspiram nas decisões políticas tomadas em Washington devido à força financeira deste último.”

A preocupação maior, segundo as especialistas, centra nos países que ainda não começaram os seus movimentos de mudança, como na América Central. “Nos países da América Latina que já está em curso, essa revolução feminista é suficientemente forte para sobreviver. Não sei o que vai acontecer em países que ainda não conseguiram experimentar isso, como o Brasil, o Peru ou a Venezuela, por exemplo”, pontua Anderson.

Manifestantes anti-aborto protestam fora da Suprema Corte dos Estados Unidos em 16 de maio Foto: Mariam Zuhaib/AP

Ataques lentos

Com a anulação de Roe versus Wade, o país que deu força ao movimento pró-lei de aborto mundo a fora estará indo na contramão mundial, como mostram os dados do Center for Reproductive Rights. Ainda assim, ativistas e pesquisadores do tema chamam atenção para as barreiras cada vez maiores que se colocam no acesso ao aborto mesmo em países com completa legalização.

“Antes de tirar o direito ao aborto, se vai riscando o aparato institucional que permite sua execução”, explica González. “Se eu não tenho um sistema de saúde pública funcional, como é o caso na Espanha, então é muito fácil que eu não exerça meu direito, mesmo que a lei esteja em vigor.”

Cora Anderson, que estuda as legislações da Argentina, Chile e Uruguai, exemplifica que no primeiro país, mesmo dois anos após a legalização ser aprovada pelo Senado, não houve uma campanha de comunicação sobre como as argentinas podem recorrer ao procedimento. Com isso, muitas ainda buscam os mesmos serviços de ajuda e informação que antes funcionavam na ilegalidade.

Caminhando neste sentido está o Equador, que legalizou o aborto para vítimas de estupro em 2021, e em 2022 a Assembleia Nacional do país estabeleceu as regras, entre elas a de que a mulher necessitava apenas manifestar o interesse. O projeto foi vetado parcialmente pelo presidente Guillermo Lasso, que exigiu regras mais rígidas, como o período máximo de 12 semanas sem exceções, uma queixa criminal pelo estupro e exame médico. Lasso ainda cita a “hipótese de infanticídio” caso a vida do feto fosse viável fora do útero.

“No caso do Equador, embora tenha sido dado um importante passo em termos de garantir o acesso à interrupção voluntária da gravidez em caso de estupro, este procedimento está sujeito ao cumprimento de pré-requisitos que de alguma forma constituem uma barreira ao acesso”, afirma a advogada e ativista pelo direito das mulheres, Desirée Viteri. “Conceitualmente, o acesso ao aborto não é reconhecido como um direito, mas sim como uma exceção e um crime tipificado no Código Penal”.

Já para os ativistas anti-aborto, a derrubada de Roe versus Wade é uma oportunidade para expandir a luta para além da legislação em si, e sim modificar a cultura americana para enxergar um feto como um ser humano. “Será um trabalho diferente”, disse Mallory Carroll, porta-voz da Susan B. Anthony Pro-Life America, uma organização anti-aborto nos EUA ao jornal The New York Times. “Em vez de apenas lutar pelo direito de aprovar leis pró-vida, seremos realmente capazes de aprovar e proteger leis pró-vida”.

“Estamos preparados para não apenas criar um cenário legal para proteger a vida nos níveis federal e estadual, mas também para apoiar uma cultura de vida”, disse ao jornal americano Kristen Waggoner, conselheira geral da Alliance Defending Freedom, que apoia a proibição do estado do Mississippi que desencadeou o caso na Suprema Corte.

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Após o vazamento explosivo de um rascunho da decisão da Suprema Corte para eliminá-lo, o que define o assunto como central nas eleições legislativas de novembro

Desde que a Suprema Corte dos Estados Unidos determinou em 1973 que o acesso ao aborto era um direito constitucional, mais de 50 países modificaram suas leis de forma a torná-las menos restritivas. Agora, com a queda da histórica decisão de Roe versus Wade, ativistas temem um efeito dominó, com cada vez mais países restringindo acesso ao aborto e limitando leis mais liberais.

A Corte confirmou sua decisão de derrubar a regra que tornava o aborto uma prerrogativa federal, mais de um mês depois do vazamento do rascunho que apontava a tendência de anulação. Já na época, o vazamento ligou um alerta em ativistas no mundo todo, já que o documento apontava que a maioria apoiava a derrubada da lei.

Segundo dados do Center for Reproductive Rights, que faz o levantamento das legislações de aborto no mundo, há mais de 70 países que permitem o procedimento - apenas com limitações de tempo gestacional. Por outro lado, 24 países proíbem completamente, mesmo em caso de risco para a mulher. Mas nas últimas décadas, mais de 50 países modificaram as suas leis para torná-las mais liberais no tema.

Influência mundial

Muito antes de Roe versus Wade se tornar uma discussão nos Estados Unidos, alguns países já possuíam leis permissivas ao aborto, a maioria dentro da esfera de influência da antiga União Soviética. Mas com a permissão da corte americana, pouco a pouco, outras legislações foram se inspirando no precedente.

Mulheres em Bogotá, na Colômbia, protestam com faixas, cartazes e bandeiras em defesa do aborto Foto: STRINGER

“Esse movimento nos EUA é muito importante porque o país se projeta como esse farol mundial, então seu papel é muito importante para divulgar no exterior essa ideia de que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres são importantes e devem ser respeitados”, explica Almudena Cabezas González, professora na Universidad Complutense de Madrid.

“Houve uma ampliação dessas lutas nos anos 60 e 70, e então saiu esta importante decisão dos EUA. Em poucos anos, durante os anos 70 e 80, uma legislação também foi aprovada na Holanda (84), na França (75) e em outros países”, completa. A Tunísia foi o primeiro país muçulmano a liberalizar o aborto, em 1964, mas apenas sob certas condições como saúde e controle populacional. Poucos meses após Roe vs Wade, o país liberou até os 3 meses.

Em 1994, 179 países se comprometeram a prevenir abortos inseguros no âmbito da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento. Desde então, 15 países reformularam as suas leis para liberar quase completamente o aborto, entre eles: Espanha, África do Sul, Uruguai, Nepal, entre outros. E 18 abandonaram leis que rejeitavam o procedimento sob qualquer circunstância, para abrir algumas exceções, sendo a maioria na África.

O continente africano concentra as maiores mudanças de legislações. Embora a região ainda possua as leis mais restritivas e onde o risco de morrer por um aborto inseguro é o mais alto do mundo, metade dos países que diminuíram as restrições nas suas leis nas últimas décadas estão da África. Em seguida vem a Europa e a América Latina, que vive uma chamada “onda verde” de liberalização.

Países em desenvolvimento em alerta

Os países em desenvolvimento são responsáveis por 97% dos abortos inseguros no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). É justamente neles, especialmente África e na América Latina, que uma mudança na lei americana poderá causar maior impacto. Ambas as regiões vivem neste momento o processo liberalizante que EUA e Europa viveram nas décadas de 70 e 80.

“Quando o aborto começou a ser legalizado nos EUA e Europa, nós na América Latina estávamos passando por outros processos políticos, sejam ditaduras militares ou guerras civis, especialmente na América Central, o que tornava impossível levantar uma questão como esta”, aponta Cora Fernandez Anderson, professora no Mount Holyoke College em Massasshussets e autora do livro Fighting for Abortion Rights in Latin America: Social Movements, State Allies and Institutions.

A região, ao mesmo tempo que possui uma das leis mais restritivas do mundo na Nicarágua e El Salvador, vive o seu momento mais liberal, impulsionado pelo movimento “Ni Una a Menos”. Somente nos últimos dois anos houve a histórica decisão da Argentina de legalizar o aborto em 2020, a Colômbia liberou o procedimento até às 24 semanas de gestação em fevereiro deste ano e com o Chile, que tinha uma lei altamente restritiva, inserindo a pauta em sua reforma Constitucional.

Do outro lado do Atlântico, a União Africana adotou em 2003 o Protocolo de Maputo, que garante às mulheres maior autonomia em suas decisões de saúde reprodutiva. Dos 55 países membros da UA, 49 assinaram o protocolo e 42 o ratificaram.

“Sabemos que como tudo o que acontece nos EUA afeta a América Latina, já começa a surgir aqui um discurso que legitima qualquer coisa que se oponha aos direitos reprodutivos”, afirma Anderson. “Se a lei mudar, então será uma legitimação absurda da narrativa antidireitos.”

E este impacto não se restringe à inspirar legislações mundo afora, mas atinge o financiamento de grupos que lutam por leis mais liberais sobre o aborto. “Já vimos isso com as administrações de Reagan e Trump por exemplo, que tiveram uma ênfase muito mais moralista e religiosa em vez de direitos sociais amplos, e isso teve um grande impacto na posição e financiamento das organizações internacionais que afetam diretamente os direitos de mulheres e outros grupos”, pontua Almudena Cabezas González.

“Em muitas nações africanas, as principais iniciativas de direitos das mulheres estão sendo sustentadas apenas graças ao financiamento recebido do Ocidente”, escreveu a advogada e membro do Aspen Institute, Stephanie Musho em artigo na Al Jazeera em maio. “No Quênia, por exemplo, 95% da ajuda à saúde sexual e reprodutiva vem dos EUA. Portanto, os governos africanos muitas vezes se inspiram nas decisões políticas tomadas em Washington devido à força financeira deste último.”

A preocupação maior, segundo as especialistas, centra nos países que ainda não começaram os seus movimentos de mudança, como na América Central. “Nos países da América Latina que já está em curso, essa revolução feminista é suficientemente forte para sobreviver. Não sei o que vai acontecer em países que ainda não conseguiram experimentar isso, como o Brasil, o Peru ou a Venezuela, por exemplo”, pontua Anderson.

Manifestantes anti-aborto protestam fora da Suprema Corte dos Estados Unidos em 16 de maio Foto: Mariam Zuhaib/AP

Ataques lentos

Com a anulação de Roe versus Wade, o país que deu força ao movimento pró-lei de aborto mundo a fora estará indo na contramão mundial, como mostram os dados do Center for Reproductive Rights. Ainda assim, ativistas e pesquisadores do tema chamam atenção para as barreiras cada vez maiores que se colocam no acesso ao aborto mesmo em países com completa legalização.

“Antes de tirar o direito ao aborto, se vai riscando o aparato institucional que permite sua execução”, explica González. “Se eu não tenho um sistema de saúde pública funcional, como é o caso na Espanha, então é muito fácil que eu não exerça meu direito, mesmo que a lei esteja em vigor.”

Cora Anderson, que estuda as legislações da Argentina, Chile e Uruguai, exemplifica que no primeiro país, mesmo dois anos após a legalização ser aprovada pelo Senado, não houve uma campanha de comunicação sobre como as argentinas podem recorrer ao procedimento. Com isso, muitas ainda buscam os mesmos serviços de ajuda e informação que antes funcionavam na ilegalidade.

Caminhando neste sentido está o Equador, que legalizou o aborto para vítimas de estupro em 2021, e em 2022 a Assembleia Nacional do país estabeleceu as regras, entre elas a de que a mulher necessitava apenas manifestar o interesse. O projeto foi vetado parcialmente pelo presidente Guillermo Lasso, que exigiu regras mais rígidas, como o período máximo de 12 semanas sem exceções, uma queixa criminal pelo estupro e exame médico. Lasso ainda cita a “hipótese de infanticídio” caso a vida do feto fosse viável fora do útero.

“No caso do Equador, embora tenha sido dado um importante passo em termos de garantir o acesso à interrupção voluntária da gravidez em caso de estupro, este procedimento está sujeito ao cumprimento de pré-requisitos que de alguma forma constituem uma barreira ao acesso”, afirma a advogada e ativista pelo direito das mulheres, Desirée Viteri. “Conceitualmente, o acesso ao aborto não é reconhecido como um direito, mas sim como uma exceção e um crime tipificado no Código Penal”.

Já para os ativistas anti-aborto, a derrubada de Roe versus Wade é uma oportunidade para expandir a luta para além da legislação em si, e sim modificar a cultura americana para enxergar um feto como um ser humano. “Será um trabalho diferente”, disse Mallory Carroll, porta-voz da Susan B. Anthony Pro-Life America, uma organização anti-aborto nos EUA ao jornal The New York Times. “Em vez de apenas lutar pelo direito de aprovar leis pró-vida, seremos realmente capazes de aprovar e proteger leis pró-vida”.

“Estamos preparados para não apenas criar um cenário legal para proteger a vida nos níveis federal e estadual, mas também para apoiar uma cultura de vida”, disse ao jornal americano Kristen Waggoner, conselheira geral da Alliance Defending Freedom, que apoia a proibição do estado do Mississippi que desencadeou o caso na Suprema Corte.

Seu navegador não suporta esse video.

Após o vazamento explosivo de um rascunho da decisão da Suprema Corte para eliminá-lo, o que define o assunto como central nas eleições legislativas de novembro

Desde que a Suprema Corte dos Estados Unidos determinou em 1973 que o acesso ao aborto era um direito constitucional, mais de 50 países modificaram suas leis de forma a torná-las menos restritivas. Agora, com a queda da histórica decisão de Roe versus Wade, ativistas temem um efeito dominó, com cada vez mais países restringindo acesso ao aborto e limitando leis mais liberais.

A Corte confirmou sua decisão de derrubar a regra que tornava o aborto uma prerrogativa federal, mais de um mês depois do vazamento do rascunho que apontava a tendência de anulação. Já na época, o vazamento ligou um alerta em ativistas no mundo todo, já que o documento apontava que a maioria apoiava a derrubada da lei.

Segundo dados do Center for Reproductive Rights, que faz o levantamento das legislações de aborto no mundo, há mais de 70 países que permitem o procedimento - apenas com limitações de tempo gestacional. Por outro lado, 24 países proíbem completamente, mesmo em caso de risco para a mulher. Mas nas últimas décadas, mais de 50 países modificaram as suas leis para torná-las mais liberais no tema.

Influência mundial

Muito antes de Roe versus Wade se tornar uma discussão nos Estados Unidos, alguns países já possuíam leis permissivas ao aborto, a maioria dentro da esfera de influência da antiga União Soviética. Mas com a permissão da corte americana, pouco a pouco, outras legislações foram se inspirando no precedente.

Mulheres em Bogotá, na Colômbia, protestam com faixas, cartazes e bandeiras em defesa do aborto Foto: STRINGER

“Esse movimento nos EUA é muito importante porque o país se projeta como esse farol mundial, então seu papel é muito importante para divulgar no exterior essa ideia de que os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres são importantes e devem ser respeitados”, explica Almudena Cabezas González, professora na Universidad Complutense de Madrid.

“Houve uma ampliação dessas lutas nos anos 60 e 70, e então saiu esta importante decisão dos EUA. Em poucos anos, durante os anos 70 e 80, uma legislação também foi aprovada na Holanda (84), na França (75) e em outros países”, completa. A Tunísia foi o primeiro país muçulmano a liberalizar o aborto, em 1964, mas apenas sob certas condições como saúde e controle populacional. Poucos meses após Roe vs Wade, o país liberou até os 3 meses.

Em 1994, 179 países se comprometeram a prevenir abortos inseguros no âmbito da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento. Desde então, 15 países reformularam as suas leis para liberar quase completamente o aborto, entre eles: Espanha, África do Sul, Uruguai, Nepal, entre outros. E 18 abandonaram leis que rejeitavam o procedimento sob qualquer circunstância, para abrir algumas exceções, sendo a maioria na África.

O continente africano concentra as maiores mudanças de legislações. Embora a região ainda possua as leis mais restritivas e onde o risco de morrer por um aborto inseguro é o mais alto do mundo, metade dos países que diminuíram as restrições nas suas leis nas últimas décadas estão da África. Em seguida vem a Europa e a América Latina, que vive uma chamada “onda verde” de liberalização.

Países em desenvolvimento em alerta

Os países em desenvolvimento são responsáveis por 97% dos abortos inseguros no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). É justamente neles, especialmente África e na América Latina, que uma mudança na lei americana poderá causar maior impacto. Ambas as regiões vivem neste momento o processo liberalizante que EUA e Europa viveram nas décadas de 70 e 80.

“Quando o aborto começou a ser legalizado nos EUA e Europa, nós na América Latina estávamos passando por outros processos políticos, sejam ditaduras militares ou guerras civis, especialmente na América Central, o que tornava impossível levantar uma questão como esta”, aponta Cora Fernandez Anderson, professora no Mount Holyoke College em Massasshussets e autora do livro Fighting for Abortion Rights in Latin America: Social Movements, State Allies and Institutions.

A região, ao mesmo tempo que possui uma das leis mais restritivas do mundo na Nicarágua e El Salvador, vive o seu momento mais liberal, impulsionado pelo movimento “Ni Una a Menos”. Somente nos últimos dois anos houve a histórica decisão da Argentina de legalizar o aborto em 2020, a Colômbia liberou o procedimento até às 24 semanas de gestação em fevereiro deste ano e com o Chile, que tinha uma lei altamente restritiva, inserindo a pauta em sua reforma Constitucional.

Do outro lado do Atlântico, a União Africana adotou em 2003 o Protocolo de Maputo, que garante às mulheres maior autonomia em suas decisões de saúde reprodutiva. Dos 55 países membros da UA, 49 assinaram o protocolo e 42 o ratificaram.

“Sabemos que como tudo o que acontece nos EUA afeta a América Latina, já começa a surgir aqui um discurso que legitima qualquer coisa que se oponha aos direitos reprodutivos”, afirma Anderson. “Se a lei mudar, então será uma legitimação absurda da narrativa antidireitos.”

E este impacto não se restringe à inspirar legislações mundo afora, mas atinge o financiamento de grupos que lutam por leis mais liberais sobre o aborto. “Já vimos isso com as administrações de Reagan e Trump por exemplo, que tiveram uma ênfase muito mais moralista e religiosa em vez de direitos sociais amplos, e isso teve um grande impacto na posição e financiamento das organizações internacionais que afetam diretamente os direitos de mulheres e outros grupos”, pontua Almudena Cabezas González.

“Em muitas nações africanas, as principais iniciativas de direitos das mulheres estão sendo sustentadas apenas graças ao financiamento recebido do Ocidente”, escreveu a advogada e membro do Aspen Institute, Stephanie Musho em artigo na Al Jazeera em maio. “No Quênia, por exemplo, 95% da ajuda à saúde sexual e reprodutiva vem dos EUA. Portanto, os governos africanos muitas vezes se inspiram nas decisões políticas tomadas em Washington devido à força financeira deste último.”

A preocupação maior, segundo as especialistas, centra nos países que ainda não começaram os seus movimentos de mudança, como na América Central. “Nos países da América Latina que já está em curso, essa revolução feminista é suficientemente forte para sobreviver. Não sei o que vai acontecer em países que ainda não conseguiram experimentar isso, como o Brasil, o Peru ou a Venezuela, por exemplo”, pontua Anderson.

Manifestantes anti-aborto protestam fora da Suprema Corte dos Estados Unidos em 16 de maio Foto: Mariam Zuhaib/AP

Ataques lentos

Com a anulação de Roe versus Wade, o país que deu força ao movimento pró-lei de aborto mundo a fora estará indo na contramão mundial, como mostram os dados do Center for Reproductive Rights. Ainda assim, ativistas e pesquisadores do tema chamam atenção para as barreiras cada vez maiores que se colocam no acesso ao aborto mesmo em países com completa legalização.

“Antes de tirar o direito ao aborto, se vai riscando o aparato institucional que permite sua execução”, explica González. “Se eu não tenho um sistema de saúde pública funcional, como é o caso na Espanha, então é muito fácil que eu não exerça meu direito, mesmo que a lei esteja em vigor.”

Cora Anderson, que estuda as legislações da Argentina, Chile e Uruguai, exemplifica que no primeiro país, mesmo dois anos após a legalização ser aprovada pelo Senado, não houve uma campanha de comunicação sobre como as argentinas podem recorrer ao procedimento. Com isso, muitas ainda buscam os mesmos serviços de ajuda e informação que antes funcionavam na ilegalidade.

Caminhando neste sentido está o Equador, que legalizou o aborto para vítimas de estupro em 2021, e em 2022 a Assembleia Nacional do país estabeleceu as regras, entre elas a de que a mulher necessitava apenas manifestar o interesse. O projeto foi vetado parcialmente pelo presidente Guillermo Lasso, que exigiu regras mais rígidas, como o período máximo de 12 semanas sem exceções, uma queixa criminal pelo estupro e exame médico. Lasso ainda cita a “hipótese de infanticídio” caso a vida do feto fosse viável fora do útero.

“No caso do Equador, embora tenha sido dado um importante passo em termos de garantir o acesso à interrupção voluntária da gravidez em caso de estupro, este procedimento está sujeito ao cumprimento de pré-requisitos que de alguma forma constituem uma barreira ao acesso”, afirma a advogada e ativista pelo direito das mulheres, Desirée Viteri. “Conceitualmente, o acesso ao aborto não é reconhecido como um direito, mas sim como uma exceção e um crime tipificado no Código Penal”.

Já para os ativistas anti-aborto, a derrubada de Roe versus Wade é uma oportunidade para expandir a luta para além da legislação em si, e sim modificar a cultura americana para enxergar um feto como um ser humano. “Será um trabalho diferente”, disse Mallory Carroll, porta-voz da Susan B. Anthony Pro-Life America, uma organização anti-aborto nos EUA ao jornal The New York Times. “Em vez de apenas lutar pelo direito de aprovar leis pró-vida, seremos realmente capazes de aprovar e proteger leis pró-vida”.

“Estamos preparados para não apenas criar um cenário legal para proteger a vida nos níveis federal e estadual, mas também para apoiar uma cultura de vida”, disse ao jornal americano Kristen Waggoner, conselheira geral da Alliance Defending Freedom, que apoia a proibição do estado do Mississippi que desencadeou o caso na Suprema Corte.

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