Na eleição em Israel, o Judiciário será julgado; leia análise


Em meados de outubro, o extremista e ascendente Partido Sionista Religioso lançou uma proposta de reforma no poder que batizou de Plano de Lei e Justiça

Por Dahlia Scheindlin

TEL-AVIV — A eleição em Israel, nesta terça-feira, foi vendida como um novo referendo sobre um velho líder: o ex-primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, que responde a processos na Justiça acusado de corrupção e deve fazer mais um retorno à política. Mas o país enfrenta uma preocupação muito mais profunda e inquietante: o Judiciário israelense está em julgamento — e com ele a melhor esperança de Israel para a democracia.

Em meados de outubro, o extremista e ascendente Partido Sionista Religioso lançou uma proposta de reforma no Judiciário que batizou de Plano de Lei e Justiça.

Críticos ficaram escandalizados, porque o plano pretende remover do código penal um crime crucial que consta dos indiciamentos de Netanyahu, “fraude e quebra de confiança”, ao mesmo tempo que fornece uma imunidade substancial para o primeiro-ministro, os ministros de gabinete e os legisladores. A proposta foi chamada de “um plano de resgate para Netanyahu”, que transformaria a corrupção na “religião oficial de Israel”.

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O ex-primeiro-ministro Binyamin Netanyahu e sua mulher, Sara, votam em Jerusalém  Foto: Maya Alleruzzo/AP

As implicações da proposta vão muito além de Netanyahu. Importando uma das maiores falhas do sistema americano, o plano pede um controle mais definitivo da política sobre assuntos judiciais, em contraste ao atual equilíbrio entre políticos, magistrados e advogados — e enfraqueceria a função do procurador-geral.

Mais marcante é a tentativa de suprimir a revisão judicial: O plano pretende dificultar muito para a Suprema Corte derrubar leis que, segundo sua consideração, violem direitos básicos, e o Parlamento poderia quase automaticamente fazer tramitar outra vez alguma legislação derrubada — dissolvendo um condicionante essencial ao poder do governo e da maioria.

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Partidos em Israel vêm e vão, mas esse esforço não é efêmero. Por anos, a direita israelense vem entabulando uma campanha virulenta contra o Judiciário, enquanto o centro e a esquerda se aferram ao ideal de independência do Judiciário. Esses esforços exploram ambiguidades muito mais antigas, até de oposição à lei, em relação a limitações ao governo e valores progressistas que datam dos primeiros anos de Israel.

Israel não possui uma Constituição redigida formalmente. Apesar da Resolução 181 da Assembleia-Geral das Nações Unidas, de 1947, que proveu o apoio internacional para o estabelecimento do Estado israelense no ano seguinte, estipular a elaboração de uma Constituição, a liderança judaica ultraortodoxa de Israel insistiu antes e depois da criação do Estado que a Torá é a Constituição “eterna” de Israel; rabinos-chefes desdenharam da inauguração da Suprema Corte, em 1948.

O fundador de Israel e primeiro premiê do país, David Ben Gurion, também se opôs à Constituição. Além disso, uma Constituição garantidora de direitos humanos teria sido inconveniente para a perpetuação da lei marcial, a restrição ao movimento e o regime de vigilância que controla os cidadãos árabe-palestinos de Israel.

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Justiça desigual

Depois de 1967, à medida que assentamentos israelenses se espalharam nas áreas ocupadas durante a Guerra dos Seis Dias, religiosos e nacionalistas-territorialistas israelenses passaram a considerar a Suprema Corte e até a própria legislação israelense obstáculos para os seus planos. Qualquer derrota para os assentamentos determinada pela Corte gerou animosidades, mesmo que essas decisões fossem limitadas e com frequência rapidamente contornadas pelo triângulo formado pelo governo, o Exército e os colonos — coordenando políticas para manter os assentamentos crescendo. Israel também forjou leis para governar de maneira desigual, colocando colonos sob legislação civil e palestinos sob lei marcial.

Desde o início do Estado de Israel, os legisladores israelenses tentaram diversas vezes aprovar uma carta de direitos, mas fracassaram, bloqueados principalmente pelos partidos religiosos. Somente em 1992 os legisladores aprovaram duas “Leis Básicas” de direitos humanos. Essas leis protegem uma série de direitos, incluindo à vida, à propriedade, às liberdades pessoais, à privacidade e à escolha de um emprego ou profissão.

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Israelenses progressistas agarram-se a essas leis como a tábuas de salvação, apesar delas representarem apenas uma carta de direitos incipiente, prescindindo de garantias explícitas para liberdade de expressão e associação — enquanto nenhuma lei israelense garante explicitamente igualdade entre todos os cidadãos — deixando às cortes o papel de proteger esses direitos por meio de jurisprudências. E a Lei Básica conhecida como Lei da Dignidade Humana e da Liberdade não conta com o mesmo grau de proteção de uma Constituição no sentido de não poder ser facilmente emendada ou derrubada, como teria uma Carta Magna.

Ainda assim, por um período entre os anos 90 e 2000, essas leis desempenhavam uma função em um ethos mais liberal na lei e na sociedade de Israel — exceto pela intensificação da ocupação sobre os palestinos e dos violentos conflitos militares nessas mesmas décadas. Mas um governo de direita mais agressivo chegou ao poder em 2009, liderado por Netanyahu.

Rabino Edelstein, de 100 anos, um líder da comunidade ultraortodoxa, vota em Bnei Brak; para esse segmento, a Torá é a Constituição 'eterna' de Israel  Foto: Avishag Shaar-Yashuv/The New York Times - 1º/11/2022
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O governo logo aprovou uma série de leis iliberais para intimidar a sociedade civil, demonizar oponentes à ocupação e mirar cidadãos árabes. O ápice desse frenesi legislativo iliberal foi a aprovação da lei de “Estado-Nação”, em 2018, que elevou o status dos judeus em relação aos demais cidadãos israelenses.

Partidos de direita também se dedicaram a minar a supervisão da Justiça para proteger sua agenda nacionalista iliberal. Em 2012, políticos do Likud defenderam um projeto de lei para permitir que o Parlamento reinstaure leis derrubadas pela Suprema Corte. A partir de 2015, Ayelet Shaked, então ministra da Justiça e integrante do partido Lar Judaico, mais à direita que o Likud, fez um lobby agressivo, apesar de em grande parte malsucedido, para enfraquecer o Judiciário. Editoriais e institutos de análise de direita iniciaram uma campanha constante para sabotar a credibilidade das autoridades judiciárias. Neste ano, um legislador judeu ultraortodoxo afirmou que gostaria de destruir a Suprema Corte.

Por um tempo, Netanyahu pareceu distante da rixa com o Judiciário. Mas por volta de 2018, à medida que investigações sobre corrupção se aproximaram dele, Netanyahu passou a atacar o que qualificou como casos fabricados, conspirações políticas e investigações “viciadas”. Ele pediu que “investigadores sejam investigados”, e críticos o chamaram de sedicioso. O público de direita ouvia havia anos que o Judiciário roubava seu país; e, naquele momento, acreditou que os tribunais estavam roubando seu primeiro-ministro.

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Confiança na Justiça

O Instituto Democracia Israelense, um grupo de análise apartidário, registrou um declínio vertiginoso na confiança do público na Suprema Corte ao longo da última década, principalmente entre judeus de direita.

Se os partidos que apoiam o bloco de Netanyahu — uma aliança entre partidos de direita, religiosos e ultraortodoxos — vencerem a eleição, como está projetado, o próximo governo pode finalmente ter legitimidade para desmantelar a maioria dos condicionantes e limitações supervisionados pelo Judiciário.

Isso ajudaria Netanyahu não apenas a evitar a lei, mas também a remover os limites para uma agenda plenamente iliberal. O sionismo religioso tem planos elaborados de disseminar o controle do judaísmo sobre a vida pública em Israel, restringir a admissão de imigrantes segundo a Lei do Retorno e reverter tentativas da Suprema Corte de proteger migrantes e solicitantes de asilo vindos de países africanos de deportação ou prisão.

Mas o maior foco da direita é território. O plano jurídico do sionismo religioso declara abertamente o que muitos direitistas querem: O Partido Sionista Religioso deveria reforjar uma lei que o Judiciário derrubou em 2020, legitimando retroativamente assentamentos na Cisjordânia; em outras palavras, fazer a reforma do Judiciário servir à anexação de facto.

Independentemente do que ocorrer nesta terça-feira, os ataques de Israel contra o Judiciário acentuam o ceticismo histórico do país em relação a igualdade, direitos humanos e à própria democracia, levantando dúvidas sobre o futuro desses valores por aqui. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*É cientista política e pesquisadora da Century International e trabalha atualmente em um livro sobre a história da democracia em Israel

TEL-AVIV — A eleição em Israel, nesta terça-feira, foi vendida como um novo referendo sobre um velho líder: o ex-primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, que responde a processos na Justiça acusado de corrupção e deve fazer mais um retorno à política. Mas o país enfrenta uma preocupação muito mais profunda e inquietante: o Judiciário israelense está em julgamento — e com ele a melhor esperança de Israel para a democracia.

Em meados de outubro, o extremista e ascendente Partido Sionista Religioso lançou uma proposta de reforma no Judiciário que batizou de Plano de Lei e Justiça.

Críticos ficaram escandalizados, porque o plano pretende remover do código penal um crime crucial que consta dos indiciamentos de Netanyahu, “fraude e quebra de confiança”, ao mesmo tempo que fornece uma imunidade substancial para o primeiro-ministro, os ministros de gabinete e os legisladores. A proposta foi chamada de “um plano de resgate para Netanyahu”, que transformaria a corrupção na “religião oficial de Israel”.

O ex-primeiro-ministro Binyamin Netanyahu e sua mulher, Sara, votam em Jerusalém  Foto: Maya Alleruzzo/AP

As implicações da proposta vão muito além de Netanyahu. Importando uma das maiores falhas do sistema americano, o plano pede um controle mais definitivo da política sobre assuntos judiciais, em contraste ao atual equilíbrio entre políticos, magistrados e advogados — e enfraqueceria a função do procurador-geral.

Mais marcante é a tentativa de suprimir a revisão judicial: O plano pretende dificultar muito para a Suprema Corte derrubar leis que, segundo sua consideração, violem direitos básicos, e o Parlamento poderia quase automaticamente fazer tramitar outra vez alguma legislação derrubada — dissolvendo um condicionante essencial ao poder do governo e da maioria.

Partidos em Israel vêm e vão, mas esse esforço não é efêmero. Por anos, a direita israelense vem entabulando uma campanha virulenta contra o Judiciário, enquanto o centro e a esquerda se aferram ao ideal de independência do Judiciário. Esses esforços exploram ambiguidades muito mais antigas, até de oposição à lei, em relação a limitações ao governo e valores progressistas que datam dos primeiros anos de Israel.

Israel não possui uma Constituição redigida formalmente. Apesar da Resolução 181 da Assembleia-Geral das Nações Unidas, de 1947, que proveu o apoio internacional para o estabelecimento do Estado israelense no ano seguinte, estipular a elaboração de uma Constituição, a liderança judaica ultraortodoxa de Israel insistiu antes e depois da criação do Estado que a Torá é a Constituição “eterna” de Israel; rabinos-chefes desdenharam da inauguração da Suprema Corte, em 1948.

O fundador de Israel e primeiro premiê do país, David Ben Gurion, também se opôs à Constituição. Além disso, uma Constituição garantidora de direitos humanos teria sido inconveniente para a perpetuação da lei marcial, a restrição ao movimento e o regime de vigilância que controla os cidadãos árabe-palestinos de Israel.

Justiça desigual

Depois de 1967, à medida que assentamentos israelenses se espalharam nas áreas ocupadas durante a Guerra dos Seis Dias, religiosos e nacionalistas-territorialistas israelenses passaram a considerar a Suprema Corte e até a própria legislação israelense obstáculos para os seus planos. Qualquer derrota para os assentamentos determinada pela Corte gerou animosidades, mesmo que essas decisões fossem limitadas e com frequência rapidamente contornadas pelo triângulo formado pelo governo, o Exército e os colonos — coordenando políticas para manter os assentamentos crescendo. Israel também forjou leis para governar de maneira desigual, colocando colonos sob legislação civil e palestinos sob lei marcial.

Desde o início do Estado de Israel, os legisladores israelenses tentaram diversas vezes aprovar uma carta de direitos, mas fracassaram, bloqueados principalmente pelos partidos religiosos. Somente em 1992 os legisladores aprovaram duas “Leis Básicas” de direitos humanos. Essas leis protegem uma série de direitos, incluindo à vida, à propriedade, às liberdades pessoais, à privacidade e à escolha de um emprego ou profissão.

Israelenses progressistas agarram-se a essas leis como a tábuas de salvação, apesar delas representarem apenas uma carta de direitos incipiente, prescindindo de garantias explícitas para liberdade de expressão e associação — enquanto nenhuma lei israelense garante explicitamente igualdade entre todos os cidadãos — deixando às cortes o papel de proteger esses direitos por meio de jurisprudências. E a Lei Básica conhecida como Lei da Dignidade Humana e da Liberdade não conta com o mesmo grau de proteção de uma Constituição no sentido de não poder ser facilmente emendada ou derrubada, como teria uma Carta Magna.

Ainda assim, por um período entre os anos 90 e 2000, essas leis desempenhavam uma função em um ethos mais liberal na lei e na sociedade de Israel — exceto pela intensificação da ocupação sobre os palestinos e dos violentos conflitos militares nessas mesmas décadas. Mas um governo de direita mais agressivo chegou ao poder em 2009, liderado por Netanyahu.

Rabino Edelstein, de 100 anos, um líder da comunidade ultraortodoxa, vota em Bnei Brak; para esse segmento, a Torá é a Constituição 'eterna' de Israel  Foto: Avishag Shaar-Yashuv/The New York Times - 1º/11/2022

O governo logo aprovou uma série de leis iliberais para intimidar a sociedade civil, demonizar oponentes à ocupação e mirar cidadãos árabes. O ápice desse frenesi legislativo iliberal foi a aprovação da lei de “Estado-Nação”, em 2018, que elevou o status dos judeus em relação aos demais cidadãos israelenses.

Partidos de direita também se dedicaram a minar a supervisão da Justiça para proteger sua agenda nacionalista iliberal. Em 2012, políticos do Likud defenderam um projeto de lei para permitir que o Parlamento reinstaure leis derrubadas pela Suprema Corte. A partir de 2015, Ayelet Shaked, então ministra da Justiça e integrante do partido Lar Judaico, mais à direita que o Likud, fez um lobby agressivo, apesar de em grande parte malsucedido, para enfraquecer o Judiciário. Editoriais e institutos de análise de direita iniciaram uma campanha constante para sabotar a credibilidade das autoridades judiciárias. Neste ano, um legislador judeu ultraortodoxo afirmou que gostaria de destruir a Suprema Corte.

Por um tempo, Netanyahu pareceu distante da rixa com o Judiciário. Mas por volta de 2018, à medida que investigações sobre corrupção se aproximaram dele, Netanyahu passou a atacar o que qualificou como casos fabricados, conspirações políticas e investigações “viciadas”. Ele pediu que “investigadores sejam investigados”, e críticos o chamaram de sedicioso. O público de direita ouvia havia anos que o Judiciário roubava seu país; e, naquele momento, acreditou que os tribunais estavam roubando seu primeiro-ministro.

Confiança na Justiça

O Instituto Democracia Israelense, um grupo de análise apartidário, registrou um declínio vertiginoso na confiança do público na Suprema Corte ao longo da última década, principalmente entre judeus de direita.

Se os partidos que apoiam o bloco de Netanyahu — uma aliança entre partidos de direita, religiosos e ultraortodoxos — vencerem a eleição, como está projetado, o próximo governo pode finalmente ter legitimidade para desmantelar a maioria dos condicionantes e limitações supervisionados pelo Judiciário.

Isso ajudaria Netanyahu não apenas a evitar a lei, mas também a remover os limites para uma agenda plenamente iliberal. O sionismo religioso tem planos elaborados de disseminar o controle do judaísmo sobre a vida pública em Israel, restringir a admissão de imigrantes segundo a Lei do Retorno e reverter tentativas da Suprema Corte de proteger migrantes e solicitantes de asilo vindos de países africanos de deportação ou prisão.

Mas o maior foco da direita é território. O plano jurídico do sionismo religioso declara abertamente o que muitos direitistas querem: O Partido Sionista Religioso deveria reforjar uma lei que o Judiciário derrubou em 2020, legitimando retroativamente assentamentos na Cisjordânia; em outras palavras, fazer a reforma do Judiciário servir à anexação de facto.

Independentemente do que ocorrer nesta terça-feira, os ataques de Israel contra o Judiciário acentuam o ceticismo histórico do país em relação a igualdade, direitos humanos e à própria democracia, levantando dúvidas sobre o futuro desses valores por aqui. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*É cientista política e pesquisadora da Century International e trabalha atualmente em um livro sobre a história da democracia em Israel

TEL-AVIV — A eleição em Israel, nesta terça-feira, foi vendida como um novo referendo sobre um velho líder: o ex-primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, que responde a processos na Justiça acusado de corrupção e deve fazer mais um retorno à política. Mas o país enfrenta uma preocupação muito mais profunda e inquietante: o Judiciário israelense está em julgamento — e com ele a melhor esperança de Israel para a democracia.

Em meados de outubro, o extremista e ascendente Partido Sionista Religioso lançou uma proposta de reforma no Judiciário que batizou de Plano de Lei e Justiça.

Críticos ficaram escandalizados, porque o plano pretende remover do código penal um crime crucial que consta dos indiciamentos de Netanyahu, “fraude e quebra de confiança”, ao mesmo tempo que fornece uma imunidade substancial para o primeiro-ministro, os ministros de gabinete e os legisladores. A proposta foi chamada de “um plano de resgate para Netanyahu”, que transformaria a corrupção na “religião oficial de Israel”.

O ex-primeiro-ministro Binyamin Netanyahu e sua mulher, Sara, votam em Jerusalém  Foto: Maya Alleruzzo/AP

As implicações da proposta vão muito além de Netanyahu. Importando uma das maiores falhas do sistema americano, o plano pede um controle mais definitivo da política sobre assuntos judiciais, em contraste ao atual equilíbrio entre políticos, magistrados e advogados — e enfraqueceria a função do procurador-geral.

Mais marcante é a tentativa de suprimir a revisão judicial: O plano pretende dificultar muito para a Suprema Corte derrubar leis que, segundo sua consideração, violem direitos básicos, e o Parlamento poderia quase automaticamente fazer tramitar outra vez alguma legislação derrubada — dissolvendo um condicionante essencial ao poder do governo e da maioria.

Partidos em Israel vêm e vão, mas esse esforço não é efêmero. Por anos, a direita israelense vem entabulando uma campanha virulenta contra o Judiciário, enquanto o centro e a esquerda se aferram ao ideal de independência do Judiciário. Esses esforços exploram ambiguidades muito mais antigas, até de oposição à lei, em relação a limitações ao governo e valores progressistas que datam dos primeiros anos de Israel.

Israel não possui uma Constituição redigida formalmente. Apesar da Resolução 181 da Assembleia-Geral das Nações Unidas, de 1947, que proveu o apoio internacional para o estabelecimento do Estado israelense no ano seguinte, estipular a elaboração de uma Constituição, a liderança judaica ultraortodoxa de Israel insistiu antes e depois da criação do Estado que a Torá é a Constituição “eterna” de Israel; rabinos-chefes desdenharam da inauguração da Suprema Corte, em 1948.

O fundador de Israel e primeiro premiê do país, David Ben Gurion, também se opôs à Constituição. Além disso, uma Constituição garantidora de direitos humanos teria sido inconveniente para a perpetuação da lei marcial, a restrição ao movimento e o regime de vigilância que controla os cidadãos árabe-palestinos de Israel.

Justiça desigual

Depois de 1967, à medida que assentamentos israelenses se espalharam nas áreas ocupadas durante a Guerra dos Seis Dias, religiosos e nacionalistas-territorialistas israelenses passaram a considerar a Suprema Corte e até a própria legislação israelense obstáculos para os seus planos. Qualquer derrota para os assentamentos determinada pela Corte gerou animosidades, mesmo que essas decisões fossem limitadas e com frequência rapidamente contornadas pelo triângulo formado pelo governo, o Exército e os colonos — coordenando políticas para manter os assentamentos crescendo. Israel também forjou leis para governar de maneira desigual, colocando colonos sob legislação civil e palestinos sob lei marcial.

Desde o início do Estado de Israel, os legisladores israelenses tentaram diversas vezes aprovar uma carta de direitos, mas fracassaram, bloqueados principalmente pelos partidos religiosos. Somente em 1992 os legisladores aprovaram duas “Leis Básicas” de direitos humanos. Essas leis protegem uma série de direitos, incluindo à vida, à propriedade, às liberdades pessoais, à privacidade e à escolha de um emprego ou profissão.

Israelenses progressistas agarram-se a essas leis como a tábuas de salvação, apesar delas representarem apenas uma carta de direitos incipiente, prescindindo de garantias explícitas para liberdade de expressão e associação — enquanto nenhuma lei israelense garante explicitamente igualdade entre todos os cidadãos — deixando às cortes o papel de proteger esses direitos por meio de jurisprudências. E a Lei Básica conhecida como Lei da Dignidade Humana e da Liberdade não conta com o mesmo grau de proteção de uma Constituição no sentido de não poder ser facilmente emendada ou derrubada, como teria uma Carta Magna.

Ainda assim, por um período entre os anos 90 e 2000, essas leis desempenhavam uma função em um ethos mais liberal na lei e na sociedade de Israel — exceto pela intensificação da ocupação sobre os palestinos e dos violentos conflitos militares nessas mesmas décadas. Mas um governo de direita mais agressivo chegou ao poder em 2009, liderado por Netanyahu.

Rabino Edelstein, de 100 anos, um líder da comunidade ultraortodoxa, vota em Bnei Brak; para esse segmento, a Torá é a Constituição 'eterna' de Israel  Foto: Avishag Shaar-Yashuv/The New York Times - 1º/11/2022

O governo logo aprovou uma série de leis iliberais para intimidar a sociedade civil, demonizar oponentes à ocupação e mirar cidadãos árabes. O ápice desse frenesi legislativo iliberal foi a aprovação da lei de “Estado-Nação”, em 2018, que elevou o status dos judeus em relação aos demais cidadãos israelenses.

Partidos de direita também se dedicaram a minar a supervisão da Justiça para proteger sua agenda nacionalista iliberal. Em 2012, políticos do Likud defenderam um projeto de lei para permitir que o Parlamento reinstaure leis derrubadas pela Suprema Corte. A partir de 2015, Ayelet Shaked, então ministra da Justiça e integrante do partido Lar Judaico, mais à direita que o Likud, fez um lobby agressivo, apesar de em grande parte malsucedido, para enfraquecer o Judiciário. Editoriais e institutos de análise de direita iniciaram uma campanha constante para sabotar a credibilidade das autoridades judiciárias. Neste ano, um legislador judeu ultraortodoxo afirmou que gostaria de destruir a Suprema Corte.

Por um tempo, Netanyahu pareceu distante da rixa com o Judiciário. Mas por volta de 2018, à medida que investigações sobre corrupção se aproximaram dele, Netanyahu passou a atacar o que qualificou como casos fabricados, conspirações políticas e investigações “viciadas”. Ele pediu que “investigadores sejam investigados”, e críticos o chamaram de sedicioso. O público de direita ouvia havia anos que o Judiciário roubava seu país; e, naquele momento, acreditou que os tribunais estavam roubando seu primeiro-ministro.

Confiança na Justiça

O Instituto Democracia Israelense, um grupo de análise apartidário, registrou um declínio vertiginoso na confiança do público na Suprema Corte ao longo da última década, principalmente entre judeus de direita.

Se os partidos que apoiam o bloco de Netanyahu — uma aliança entre partidos de direita, religiosos e ultraortodoxos — vencerem a eleição, como está projetado, o próximo governo pode finalmente ter legitimidade para desmantelar a maioria dos condicionantes e limitações supervisionados pelo Judiciário.

Isso ajudaria Netanyahu não apenas a evitar a lei, mas também a remover os limites para uma agenda plenamente iliberal. O sionismo religioso tem planos elaborados de disseminar o controle do judaísmo sobre a vida pública em Israel, restringir a admissão de imigrantes segundo a Lei do Retorno e reverter tentativas da Suprema Corte de proteger migrantes e solicitantes de asilo vindos de países africanos de deportação ou prisão.

Mas o maior foco da direita é território. O plano jurídico do sionismo religioso declara abertamente o que muitos direitistas querem: O Partido Sionista Religioso deveria reforjar uma lei que o Judiciário derrubou em 2020, legitimando retroativamente assentamentos na Cisjordânia; em outras palavras, fazer a reforma do Judiciário servir à anexação de facto.

Independentemente do que ocorrer nesta terça-feira, os ataques de Israel contra o Judiciário acentuam o ceticismo histórico do país em relação a igualdade, direitos humanos e à própria democracia, levantando dúvidas sobre o futuro desses valores por aqui. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*É cientista política e pesquisadora da Century International e trabalha atualmente em um livro sobre a história da democracia em Israel

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