Nas semanas antes de a Itália eleger a ultradireitista Giorgia Meloni, a esquerda soou o “alarme da democracia”. A União Europeia se preparou para ver uma aliança com Hungria e Polônia, que desafiam valores cruciais do bloco. Investidores recearam que os mercados pudessem ficar intranquilos.
Entretanto, mais de cem dias desde sua posse, Meloni mostra não ser tão previsível assim. Ela já deixou entrever momentos de cólera nacionalista, suscitando receios de que uma virada autoritária seja iminente. Até agora, porém, vem governando de forma muito menos agressiva e ideológica e mais pragmática.
O caráter ordinário de seus primeiros dias no poder irrita o establishment europeu e seus críticos na Itália, levando-os a sentir alívio, mas também criando uma dúvida em relação a até que ponto a líder incendiária, agora se expressando com mais moderação, deve ser abraçada ou mantida cautelosamente à distância.
Meloni vem acumulando pontos a seu favor. Aprovou um orçamento comedido, acalmando os receios internacionais quanto à capacidade da Itália de pagar os juros de sua dívida. Teve reuniões cordiais com líderes da UE e moderou suas célebres invectivas ásperas contra o bloco, os migrantes e as elites.
Ela vem seguindo o rastro de seu predecessor, Mario Draghi, o “Mr. Europa”, procurando levar adiante seu plano para modernizar o país com bilhões de euros doados pela UE para a recuperação da pandemia.
Enquanto Silvio Berlusconi, seu parceiro de coalizão, virou apologista de Vladimir Putin –culpando o presidente Volodmir Zelenski pela invasão russa de seu próprio país—, a popularidade de Meloni minimizou os danos que poderiam ser provocados por vozes descontroladas de sua coalizão de direita.
Na primeira prova eleitoral encarada por Meloni desde a vitória de sua aliança, em setembro passado, a centro-direita esmagou a esquerda em eleições regionais na segunda-feira.
“Agora precisamos lidar com a realidade”, disse a primeira-ministra nas redes sociais num vídeo chat semanal recente intitulado “Anotações de Giorgia”, explicando por que teve que adiar o cumprimento de uma promessa eleitoral de conceder incentivos fiscais que reduziriam o preço dos combustíveis.
Meloni vem se mostrando “melhor do que prevíamos” em questões econômicas e financeiras, disse o líder de centro-esquerda Enrico Letti, que havia avisado que ela colocaria a democracia italiana em risco.
Letta disse que a primeira-ministra italiana decidiu abrandar sua postura claramente articulada de agressão contra a União Europeia, decidindo “obedecer as regras” e evitando “cometer erros”. “A realidade é que ela é forte”, disse Letta, depois de não ter conseguido barrar a ascensão de Meloni. “Ela está naquele período de lua de mel total, sem uma figura alternativa na maioria e com a oposição dividida.”
Ao ser eleita, Meloni virou a líder do governo italiano mais à direita desde Mussolini. Seu partido, Irmãos da Itália, nasceu dos escombros do experimento fascista fracassado. Na oposição, alinhou-se a líderes de extrema direita que atacam valores democráticos da Europa, como o premiê húngaro, Viktor Orbán.
Desde que chegou ao poder, entretanto, Meloni vem se mostrando menos radical que Orbán no comando da terceira maior economia da zona do euro. Para analistas, a diferença pode estar na moderação induzida pela profunda dependência italiana da Europa para receber bilhões de euros em fundos de assistência e se beneficiar de flexibilidade com sua enorme dívida.
Sua aparente disposição de agir com moderação criou um dilema aos líderes europeus, que precisam decidir se a tratam como a provocadora de migrantes e atiradora de bombas verbais da ultradireita que Meloni foi por décadas ou como a líder mais ou menos responsável que vem sendo nos últimos meses.
Se Meloni for muito bem recebida, há o risco de legitimar correntes ultradireitistas e iliberais da Europa. Se for rechaçada, pode dar a impressão de que é punida por fazer o que lhe pedem, criando um desincentivo perigoso à líder de um país de dimensões suficientes para desestabilizar o bloco e a economia global.
Na semana passada, por exemplo, o presidente francês, Emmanuel Macron, excluiu Meloni de um jantar em Paris com Zelenski e o premiê alemão, Olaf Scholz, num sinal de que a Itália foi rebaixada um degrau em relação à posição que ocupava quando Draghi estava no poder. Mas analistas disseram que Macron também quis evitar a possibilidade de legitimar indiretamente a líder direitista francesa, Marine Le Pen.
Meloni reagiu furiosa, dizendo que a Itália quer mais do que só “tapinhas nas costas”, e alguns analistas interpretaram suas reuniões em Bruxelas na semana passada com líderes da República Tcheca e da Polônia como um aviso velado. Mas na sexta-feira, Meloni, política hábil e perita na política da vitimização, passou um tempo considerável explicando que não se importava em não ter sido convidada a Paris.
Ela pareceu estar tentando falar em nome de boa parte da Europa, dizendo que teria desaconselhado o encontro, mesmo que tivesse sido convidada, pelo fato de haver apenas dois líderes europeus na sala, em vez de todos os 27, correndo o risco de erodir a unidade do bloco e seu apoio público à Ucrânia.
“Não é fácil para qualquer um de nós lidar com a questão da Ucrânia e a opinião pública”, afirmou ela, acrescentando que o encontro não ajudou os líderes a fazerem “a coisa certa”.
Críticos como Letta dizem que ainda há motivos para se preocupar em questões como migração, justiça e direitos de gays e do aborto, apesar de reconhecer que “nada de dramático foi feito até agora”.
“Nada do que Meloni vem fazendo nos leva a pensar que ela está seguindo um rumo fascista”, disse Giovanni Orsina, diretor da escola de ciência política da Universidade Luiss Guido Carli, em Roma.
Comentando jocosamente que o establishment europeu reagiu à eleição de Meloni “como se alguém tivesse morrido”, o deputado Andrea de Bertoldi, do Irmãos da Itália, disse que seu governo só surpreende quem não a conhecia ou não acompanhou a normalização da direita italiana nos últimos 30 anos.
Segundo ele, o medo foi provocado por adversários políticos de Meloni, embora ele tenha admitido que ela talvez tenha soado um pouco diferente nos anos que passou lançando diatribes a partir das margens da política. Segundo ele, “para ser ouvido quando se está na oposição, sempre é preciso falar muito alto”.