‘Não é realista o Brasil querer liderar o chamado Sul Global’, diz Rubens Barbosa


Em entrevista ao Estadão, Barbosa questiona o poder que o Brasil consegue ter nos organismos internacionais e critica a posição do governo brasileiro em relação a Cuba e Venezuela

Por Daniel Gateno
Atualização:
Foto: Amanda Perobelli/Estadão
Entrevista comRubens BarbosaDiplomata e presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)

O Brasil sempre desejou ter mais poder na política externa do que tem atualmente. A vontade antiga de um assento brasileiro no Conselho de Segurança da ONU reflete este objetivo. Nos anos 2000, a animação internacional com o boom das commodities e a famosa capa da The Economist prevendo bonança econômica não se concretizou, mas a ambição brasileira segue intacta.

“O destino manifesto do Brasil na política externa é sempre ter um papel acima daquilo que a gente pode ter”, avalia o diplomata e presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE), Rubens Barbosa.

Em entrevista ao Estadão, Barbosa questiona o poder que o Brasil consegue ter nos organismos internacionais. A entrevista marca o começo da parceria do jornal O Estado de S. Paulo com o portal Interesse Nacional, uma publicação que traz artigos de acadêmicos e diplomatas com discussões sobre as relações do Brasil com o resto do mundo e o posicionamento do país nas relações internacionais. O portal está ligado ao Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE), criado pelo embaixador Rubens Barbosa para debater os temas internacionais que afetam as políticas públicas nacionais e seus reflexos na sociedade. O Estadão vai publicar dois artigos da Interesse Nacional por semana.

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“Não é realista a gente imaginar que o Brasil possa influir na mudança da governança global. Também não é realista querer liderar o que hoje se chama de Sul Global, porque o Sul Global hoje, a África, a América Latina, elas têm pouca influência no cenário internacional”, avalia Barbosa. “Para ser líder do chamado Sul Global, é preciso ter contrapartidas para favorecer os países membros e o Brasil hoje não tem condição de oferecer financiamento, de oferecer apoios de outra maneira para esses países, é muito difícil você assumir uma liderança sem ter meios para exercer essa liderança.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de uma reunião ministerial em Brasília, Brasil  Foto: Eraldo Peres/AP

O diplomata também critica a política do governo Lula para Venezuela e Cuba, países com históricos de abusos de direitos humanos. “O Brasil em relação a Venezuela e Cuba, mantém uma política tradicional de apoio, sem nenhum espírito crítico, você não pode defender direitos humanos aqui no Brasil e ignorar direitos humanos no exterior, você não pode defender a democracia aqui no Brasil e ignorar a defesa da democracia no exterior”.

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Leia trechos da entrevista:

Primeiro eu gostaria de te perguntar sobre esta nova parceria entre o portal Interesse Nacional e o Estadão. Em um mundo polarizado, com guerras na Ucrânia e em Gaza, e eleições importantes no cenário internacional, o que podemos esperar da parceria?

A parceria é importante porque vai ajudar a reduzir o desinteresse sobre o que ocorre no exterior e qual o impacto desse novo mundo em transformação, qual é o impacto sobre o Brasil, sobre a economia, sobre a política, sobre as empresas.

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O site Interesse Nacional, justamente, foi criado com esse objetivo. Assim, a análise sobre a China, Índia, Ásia no geral, sobre a economia, com ênfase nas novas restrições internacionais que estão ocorrendo dentro dessa nova economia que nós estamos vivendo, tudo isso vai poder ser, agora, divulgado mais amplamente com essa parceria do Interesse Nacional com o Estadão.

O Brasil é sempre chamado de país do futuro, com um grande potencial. Existia uma animação internacional com o Brasil nos anos 2000, após o boom das commodities e a capa da The Economist. Na sua avaliação as previsões de futuro foram exageradas?

Não, eu acho que as previsões são corretas. Desde o descobrimento que se aponta a potencialidade do Brasil. Agora, mais recentemente, o Pais mostra grande potencial em relação a transição energética, meio ambiente e segurança alimentar.

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O problema que surge é que como a gente não tem um rumo, não tem um objetivo, não tem uma meta do Estado brasileiro, não só do governo, do Estado brasileiro, essas potencialidades não são utilizadas. Nós estamos atrasados na pesquisa e utilização do hidrogênio verde, muitos dos programas para a utilização da bioeconomia na Amazônia não estão aproveitados, então, a gente fala muito do potencial, faz o diagnóstico correto, mas a gente não tem capacidade, não tem coordenação, não tem um objetivo determinado para que a gente siga um rumo que concretize esse potencial que o Brasil tem.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de uma reunião com o presidente da França, Emmanuel Macron, em Belém, Brasil  Foto: Ricardo Stuckert/AFP

O Brasil sempre quis ter um status internacional maior do que tem atualmente. O Itamaraty sempre teve a demanda de que o Brasil tivesse um assento no Conselho de Segurança da ONU, mas outros países não compartilham o mesmo pensamento. Qual é a diferença entre o status internacional que o Brasil quer ter ou acha que tem e o que os outros países acreditam que o Brasil tenha?

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Bom, eu gosto de dizer, analisando a política externa do Brasil desde a independência, desde 1822 até aqui, que se você for examinar os fatos, em que o Brasil se envolveu, a política externa brasileira sempre procurou atuar acima da real capacidade que o Brasil tem. Então, em inglês tem uma expressão, punch above its weight. A gente sempre, a política externa brasileira sempre procurou projetar os interesses brasileiros de maneira mais forte do que havia a capacidade interna, porque a política externa é a projeção da política interna.

Então, se não há um correspondente na política interna, do esforço da política externa, fica difícil você preencher a ambição do Brasil. O destino manifesto do Brasil na política externa é sempre ter um papel acima daquilo que a gente pode. Agora, o Itamaraty sempre foi realista. Então, nós procuramos negociar, avançar dentro da capacidade de articulação da política externa.

Ultimamente, você está tendo uma série de ações que ignoram a ausência de um excedente de poder do Brasil para poder influir nos acontecimentos internacionais. Quer dizer, na minha visão, não é realista, porque nós não temos excedente de poder. Não é realista você querer interferir e promover a paz na guerra da Ucrânia, não é realista você querer interferir no Oriente Médio na guerra entre Israel e o Hamas. E também não é realista você querer interferir na mudança da governança global, no Fundo Mundial, no Banco Mundial, na ONU.

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Mesmo no Conselho de Segurança, você pode ter uma retórica, mas você tem que reconhecer que o Brasil não tem força para influir nessa decisão, que depende dos países que hoje detêm o veto no Conselho de Segurança. Então não é realista a gente imaginar que a gente possa influir na mudança da governança global. Eu também vou até um pouco mais além, eu acho que também não é muito realista você querer liderar o que hoje se chama de Sul Global, porque o Sul Global hoje, a África, a América Latina, elas têm pouca influência no cenário internacional e você se apresentar como líder desse Sul Global, você precisa ter contrapartidas para favorecer os países que são membros desse Sul Global e o Brasil hoje não tem condição de oferecer financiamento, de oferecer apoios de outra maneira para esses países, é muito difícil você assumir uma liderança sem ter meios para exercer essa liderança.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, posa para foto ao lado de outros líderes internacionais na Cúpula do Brics, em Johanesburgo  Foto: Gianluigi Guercia/AFP

O governo Lula lançou o slogan do ‘Brasil Voltou’ em 2023 e esperava-se que o País pudesse ter usado a sua influência com o governo do ditador venezuelano Nicolás Maduro. Mas após patrocinar o retorno político de Maduro ao cenário internacional, Lula teve uma postura menos ativa e propositiva do que a Colômbia, que realizou uma proposta a Caracas sobre uma lei da anistia. O Brasil perdeu a liderança nesta questão ou Lula ainda pode se colocar na dianteira deste processo?

Olha, o Lula quando assumiu, definiu três prioridades, a primeira a gente já tratou, a volta do Brasil no mundo, a segunda era a América Latina, o Brasil voltou a ter influência na América Latina, voltou a ter prioridade para a América Latina e a terceira era o meio ambiente. Em relação a questão da América Latina o governo atual fez algumas coisas, ele convocou aquela reunião de meio ambiente lá do Tratado de Cooperação Amazônica, o Lula viajou por muitos países para retomar essa voz do Brasil no mundo, mas aqui para a América Latina muito pouca coisa foi feita, nós abandonamos ou não retomamos o processo de infraestrutura que aproximaria o Brasil dos outros países, o Brasil em relação a Venezuela e Cuba, mantém uma política tradicional de apoio, sem nenhum espírito crítico, você não pode defender direitos humanos aqui no Brasil e ignorar direitos humanos no exterior, você não pode defender a democracia aqui no Brasil e ignorar a defesa da democracia no exterior, eu acho que em relação a Venezuela, por considerações ideológicas, o Brasil perdeu a influência que poderia ter se tivesse uma política proativa, com propostas concretas em relação ao processo de redemocratização e de reconstrução econômica da Venezuela.

O presidente da Colômbia levou efetivamente uma proposta para a Venezuela, isso uma semana depois de ter se encontrado com o presidente Lula, não sei se ele discutiu essa proposta com o Lula, mas ele levou a proposta da Colômbia e agora nós estamos vendo aí a aproximação da eleição lá na Venezuela de maneira muito complicada, vamos ver como é que o governo brasileiro vai reagir caso as eleições não transcorram de maneira transparente, de maneira segura e que permita que os candidatos que se opõem ao Maduro possam se apresentar e disputar livremente a presidência com o atual presidente.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de reunião com o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, em Bogota, Colômbia  Foto: Fernando Vergara/AP

Até agora, o governo do Brasil possui uma relação mais fria e distante com a administração do libertário Javier Milei, na Argentina. Milei criou atritos com a Espanha, que já decidiu que sua embaixadora não voltará a Buenos Aires. A relação Brasil-Argentina também pode entrar em uma potencial guerra de declarações entre Milei e Lula, ou os vínculos são mais fortes?

Olha, em alguns casos a política externa brasileira, tanto no governo Bolsonaro quanto no governo Lula, é ideologizada, com os sinais trocados. Aconteceu, no caso da Argentina, a mesma coisa com o Bolsonaro, o Bolsonaro passou 4 anos sem conversar com o presidente da Argentina, por questões ideológicas, por diferença de visões partidárias, tanto na Argentina quanto no Brasil.

Com o Lula está acontecendo a mesma coisa, por uma questão ideológica, o presidente atual não fala com o presidente da Argentina. No caso do Brasil, as relações de Estado vão prevalecer, como prevaleceram na época do Bolsonaro, nós mantivemos um comércio, uma relação de Estado normal, a mesma coisa vai acontecer agora, nós somos vizinhos, somos parceiros, então essa questão ideológica entre os presidentes não vai, na minha visão, dificultar nem atrapalhar as relações de Estado, as relações empresariais, as relações comerciais, as relações de cooperação entre os dois países. É uma questão ideológica que ocorreu com os sinais trocados na época do Bolsonaro e agora na época do Lula.

O panorama mundial está indicando um maior gasto em defesa ? Na França, nós vemos o presidente Macron sugerindo que a Europa precisa se defender sem depender do guarda-chuva dos EUA. A Polônia e os países bálticos querem reforçar as suas fronteiras por conta da Rússia. Na América do Sul temos a Venezuela ameaçando a Guiana, que também promete maior reforço em defesa. Até a Argentina comprou novos caças depois de dez anos.

Olha, a defesa aqui no Brasil, assim como a política externa, ela não tem a atenção que ela mereceria, entendeu? O Brasil é um país continental, a nona economia do mundo, o Brasil tem uma posição importante aqui na região e tem questões de fronteira importantes, como o crime transnacional na Amazônia. Então a questão da defesa aqui no Brasil deveria merecer uma atenção não só do Congresso, mas da sociedade em geral.

O que está acontecendo no mundo afeta diretamente a Europa, afeta diretamente os Estados Unidos, mas em termos de defesa não é percebido aqui no Brasil como uma ameaça. Nós temos problemas de defesa na preservação da nossa fronteira com os países que são limítrofes do Brasil para prevenir o crime transnacional. Nós temos questões de defesa a preservar no Atlântico pela defesa da livre navegação, do crime que também começa a se espalhar do lado da África, do Golfo da Guiné. Então você tem problemas de defesa aqui no Brasil que são peculiares à nossa realidade.

É claro que o contexto global pode afetar, mas até aqui como não houve uma escalada militar, esses conflitos são regionais e afetam os países que estão diretamente relacionados da Europa e no Oriente Médio. Aqui na América Latina nós temos uma área até aqui preservada. Essa ameaça da Venezuela com a Guiana é uma preocupação para o Brasil. Nós estamos vendo os gastos que estão ocorrendo para que o Brasil tenha uma presença militar nessa área, porque é uma área de preservação da nossa soberania, da nossa fronteira.

Mas nós temos sim problemas que são problemas de defesa, inclusive nos tempos mais recentes, problemas de defesa relacionados com a defesa cibernética, com o desenvolvimento da inteligência artificial, como isso vai afetar a soberania e a defesa do Brasil. São temas que estão relacionados com a defesa e que vão implicar na necessidade do Brasil rever esses conceitos atuais para destinar recursos efetivos para que a gente possa, nesses novos tempos, nessas novas realidades, nesses avanços tecnológicos e com novas ameaças à soberania de todos os países, que a gente possa se defender melhor.

Então não é só o cenário internacional, mas sim a nossa realidade e as novas ameaças que surgem a um país que tem uma dimensão continental e que precisa cuidar da vasta extensão de suas fronteiras.

O Brasil sempre desejou ter mais poder na política externa do que tem atualmente. A vontade antiga de um assento brasileiro no Conselho de Segurança da ONU reflete este objetivo. Nos anos 2000, a animação internacional com o boom das commodities e a famosa capa da The Economist prevendo bonança econômica não se concretizou, mas a ambição brasileira segue intacta.

“O destino manifesto do Brasil na política externa é sempre ter um papel acima daquilo que a gente pode ter”, avalia o diplomata e presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE), Rubens Barbosa.

Em entrevista ao Estadão, Barbosa questiona o poder que o Brasil consegue ter nos organismos internacionais. A entrevista marca o começo da parceria do jornal O Estado de S. Paulo com o portal Interesse Nacional, uma publicação que traz artigos de acadêmicos e diplomatas com discussões sobre as relações do Brasil com o resto do mundo e o posicionamento do país nas relações internacionais. O portal está ligado ao Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE), criado pelo embaixador Rubens Barbosa para debater os temas internacionais que afetam as políticas públicas nacionais e seus reflexos na sociedade. O Estadão vai publicar dois artigos da Interesse Nacional por semana.

“Não é realista a gente imaginar que o Brasil possa influir na mudança da governança global. Também não é realista querer liderar o que hoje se chama de Sul Global, porque o Sul Global hoje, a África, a América Latina, elas têm pouca influência no cenário internacional”, avalia Barbosa. “Para ser líder do chamado Sul Global, é preciso ter contrapartidas para favorecer os países membros e o Brasil hoje não tem condição de oferecer financiamento, de oferecer apoios de outra maneira para esses países, é muito difícil você assumir uma liderança sem ter meios para exercer essa liderança.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de uma reunião ministerial em Brasília, Brasil  Foto: Eraldo Peres/AP

O diplomata também critica a política do governo Lula para Venezuela e Cuba, países com históricos de abusos de direitos humanos. “O Brasil em relação a Venezuela e Cuba, mantém uma política tradicional de apoio, sem nenhum espírito crítico, você não pode defender direitos humanos aqui no Brasil e ignorar direitos humanos no exterior, você não pode defender a democracia aqui no Brasil e ignorar a defesa da democracia no exterior”.

Leia trechos da entrevista:

Primeiro eu gostaria de te perguntar sobre esta nova parceria entre o portal Interesse Nacional e o Estadão. Em um mundo polarizado, com guerras na Ucrânia e em Gaza, e eleições importantes no cenário internacional, o que podemos esperar da parceria?

A parceria é importante porque vai ajudar a reduzir o desinteresse sobre o que ocorre no exterior e qual o impacto desse novo mundo em transformação, qual é o impacto sobre o Brasil, sobre a economia, sobre a política, sobre as empresas.

O site Interesse Nacional, justamente, foi criado com esse objetivo. Assim, a análise sobre a China, Índia, Ásia no geral, sobre a economia, com ênfase nas novas restrições internacionais que estão ocorrendo dentro dessa nova economia que nós estamos vivendo, tudo isso vai poder ser, agora, divulgado mais amplamente com essa parceria do Interesse Nacional com o Estadão.

O Brasil é sempre chamado de país do futuro, com um grande potencial. Existia uma animação internacional com o Brasil nos anos 2000, após o boom das commodities e a capa da The Economist. Na sua avaliação as previsões de futuro foram exageradas?

Não, eu acho que as previsões são corretas. Desde o descobrimento que se aponta a potencialidade do Brasil. Agora, mais recentemente, o Pais mostra grande potencial em relação a transição energética, meio ambiente e segurança alimentar.

O problema que surge é que como a gente não tem um rumo, não tem um objetivo, não tem uma meta do Estado brasileiro, não só do governo, do Estado brasileiro, essas potencialidades não são utilizadas. Nós estamos atrasados na pesquisa e utilização do hidrogênio verde, muitos dos programas para a utilização da bioeconomia na Amazônia não estão aproveitados, então, a gente fala muito do potencial, faz o diagnóstico correto, mas a gente não tem capacidade, não tem coordenação, não tem um objetivo determinado para que a gente siga um rumo que concretize esse potencial que o Brasil tem.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de uma reunião com o presidente da França, Emmanuel Macron, em Belém, Brasil  Foto: Ricardo Stuckert/AFP

O Brasil sempre quis ter um status internacional maior do que tem atualmente. O Itamaraty sempre teve a demanda de que o Brasil tivesse um assento no Conselho de Segurança da ONU, mas outros países não compartilham o mesmo pensamento. Qual é a diferença entre o status internacional que o Brasil quer ter ou acha que tem e o que os outros países acreditam que o Brasil tenha?

Bom, eu gosto de dizer, analisando a política externa do Brasil desde a independência, desde 1822 até aqui, que se você for examinar os fatos, em que o Brasil se envolveu, a política externa brasileira sempre procurou atuar acima da real capacidade que o Brasil tem. Então, em inglês tem uma expressão, punch above its weight. A gente sempre, a política externa brasileira sempre procurou projetar os interesses brasileiros de maneira mais forte do que havia a capacidade interna, porque a política externa é a projeção da política interna.

Então, se não há um correspondente na política interna, do esforço da política externa, fica difícil você preencher a ambição do Brasil. O destino manifesto do Brasil na política externa é sempre ter um papel acima daquilo que a gente pode. Agora, o Itamaraty sempre foi realista. Então, nós procuramos negociar, avançar dentro da capacidade de articulação da política externa.

Ultimamente, você está tendo uma série de ações que ignoram a ausência de um excedente de poder do Brasil para poder influir nos acontecimentos internacionais. Quer dizer, na minha visão, não é realista, porque nós não temos excedente de poder. Não é realista você querer interferir e promover a paz na guerra da Ucrânia, não é realista você querer interferir no Oriente Médio na guerra entre Israel e o Hamas. E também não é realista você querer interferir na mudança da governança global, no Fundo Mundial, no Banco Mundial, na ONU.

Mesmo no Conselho de Segurança, você pode ter uma retórica, mas você tem que reconhecer que o Brasil não tem força para influir nessa decisão, que depende dos países que hoje detêm o veto no Conselho de Segurança. Então não é realista a gente imaginar que a gente possa influir na mudança da governança global. Eu também vou até um pouco mais além, eu acho que também não é muito realista você querer liderar o que hoje se chama de Sul Global, porque o Sul Global hoje, a África, a América Latina, elas têm pouca influência no cenário internacional e você se apresentar como líder desse Sul Global, você precisa ter contrapartidas para favorecer os países que são membros desse Sul Global e o Brasil hoje não tem condição de oferecer financiamento, de oferecer apoios de outra maneira para esses países, é muito difícil você assumir uma liderança sem ter meios para exercer essa liderança.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, posa para foto ao lado de outros líderes internacionais na Cúpula do Brics, em Johanesburgo  Foto: Gianluigi Guercia/AFP

O governo Lula lançou o slogan do ‘Brasil Voltou’ em 2023 e esperava-se que o País pudesse ter usado a sua influência com o governo do ditador venezuelano Nicolás Maduro. Mas após patrocinar o retorno político de Maduro ao cenário internacional, Lula teve uma postura menos ativa e propositiva do que a Colômbia, que realizou uma proposta a Caracas sobre uma lei da anistia. O Brasil perdeu a liderança nesta questão ou Lula ainda pode se colocar na dianteira deste processo?

Olha, o Lula quando assumiu, definiu três prioridades, a primeira a gente já tratou, a volta do Brasil no mundo, a segunda era a América Latina, o Brasil voltou a ter influência na América Latina, voltou a ter prioridade para a América Latina e a terceira era o meio ambiente. Em relação a questão da América Latina o governo atual fez algumas coisas, ele convocou aquela reunião de meio ambiente lá do Tratado de Cooperação Amazônica, o Lula viajou por muitos países para retomar essa voz do Brasil no mundo, mas aqui para a América Latina muito pouca coisa foi feita, nós abandonamos ou não retomamos o processo de infraestrutura que aproximaria o Brasil dos outros países, o Brasil em relação a Venezuela e Cuba, mantém uma política tradicional de apoio, sem nenhum espírito crítico, você não pode defender direitos humanos aqui no Brasil e ignorar direitos humanos no exterior, você não pode defender a democracia aqui no Brasil e ignorar a defesa da democracia no exterior, eu acho que em relação a Venezuela, por considerações ideológicas, o Brasil perdeu a influência que poderia ter se tivesse uma política proativa, com propostas concretas em relação ao processo de redemocratização e de reconstrução econômica da Venezuela.

O presidente da Colômbia levou efetivamente uma proposta para a Venezuela, isso uma semana depois de ter se encontrado com o presidente Lula, não sei se ele discutiu essa proposta com o Lula, mas ele levou a proposta da Colômbia e agora nós estamos vendo aí a aproximação da eleição lá na Venezuela de maneira muito complicada, vamos ver como é que o governo brasileiro vai reagir caso as eleições não transcorram de maneira transparente, de maneira segura e que permita que os candidatos que se opõem ao Maduro possam se apresentar e disputar livremente a presidência com o atual presidente.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de reunião com o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, em Bogota, Colômbia  Foto: Fernando Vergara/AP

Até agora, o governo do Brasil possui uma relação mais fria e distante com a administração do libertário Javier Milei, na Argentina. Milei criou atritos com a Espanha, que já decidiu que sua embaixadora não voltará a Buenos Aires. A relação Brasil-Argentina também pode entrar em uma potencial guerra de declarações entre Milei e Lula, ou os vínculos são mais fortes?

Olha, em alguns casos a política externa brasileira, tanto no governo Bolsonaro quanto no governo Lula, é ideologizada, com os sinais trocados. Aconteceu, no caso da Argentina, a mesma coisa com o Bolsonaro, o Bolsonaro passou 4 anos sem conversar com o presidente da Argentina, por questões ideológicas, por diferença de visões partidárias, tanto na Argentina quanto no Brasil.

Com o Lula está acontecendo a mesma coisa, por uma questão ideológica, o presidente atual não fala com o presidente da Argentina. No caso do Brasil, as relações de Estado vão prevalecer, como prevaleceram na época do Bolsonaro, nós mantivemos um comércio, uma relação de Estado normal, a mesma coisa vai acontecer agora, nós somos vizinhos, somos parceiros, então essa questão ideológica entre os presidentes não vai, na minha visão, dificultar nem atrapalhar as relações de Estado, as relações empresariais, as relações comerciais, as relações de cooperação entre os dois países. É uma questão ideológica que ocorreu com os sinais trocados na época do Bolsonaro e agora na época do Lula.

O panorama mundial está indicando um maior gasto em defesa ? Na França, nós vemos o presidente Macron sugerindo que a Europa precisa se defender sem depender do guarda-chuva dos EUA. A Polônia e os países bálticos querem reforçar as suas fronteiras por conta da Rússia. Na América do Sul temos a Venezuela ameaçando a Guiana, que também promete maior reforço em defesa. Até a Argentina comprou novos caças depois de dez anos.

Olha, a defesa aqui no Brasil, assim como a política externa, ela não tem a atenção que ela mereceria, entendeu? O Brasil é um país continental, a nona economia do mundo, o Brasil tem uma posição importante aqui na região e tem questões de fronteira importantes, como o crime transnacional na Amazônia. Então a questão da defesa aqui no Brasil deveria merecer uma atenção não só do Congresso, mas da sociedade em geral.

O que está acontecendo no mundo afeta diretamente a Europa, afeta diretamente os Estados Unidos, mas em termos de defesa não é percebido aqui no Brasil como uma ameaça. Nós temos problemas de defesa na preservação da nossa fronteira com os países que são limítrofes do Brasil para prevenir o crime transnacional. Nós temos questões de defesa a preservar no Atlântico pela defesa da livre navegação, do crime que também começa a se espalhar do lado da África, do Golfo da Guiné. Então você tem problemas de defesa aqui no Brasil que são peculiares à nossa realidade.

É claro que o contexto global pode afetar, mas até aqui como não houve uma escalada militar, esses conflitos são regionais e afetam os países que estão diretamente relacionados da Europa e no Oriente Médio. Aqui na América Latina nós temos uma área até aqui preservada. Essa ameaça da Venezuela com a Guiana é uma preocupação para o Brasil. Nós estamos vendo os gastos que estão ocorrendo para que o Brasil tenha uma presença militar nessa área, porque é uma área de preservação da nossa soberania, da nossa fronteira.

Mas nós temos sim problemas que são problemas de defesa, inclusive nos tempos mais recentes, problemas de defesa relacionados com a defesa cibernética, com o desenvolvimento da inteligência artificial, como isso vai afetar a soberania e a defesa do Brasil. São temas que estão relacionados com a defesa e que vão implicar na necessidade do Brasil rever esses conceitos atuais para destinar recursos efetivos para que a gente possa, nesses novos tempos, nessas novas realidades, nesses avanços tecnológicos e com novas ameaças à soberania de todos os países, que a gente possa se defender melhor.

Então não é só o cenário internacional, mas sim a nossa realidade e as novas ameaças que surgem a um país que tem uma dimensão continental e que precisa cuidar da vasta extensão de suas fronteiras.

O Brasil sempre desejou ter mais poder na política externa do que tem atualmente. A vontade antiga de um assento brasileiro no Conselho de Segurança da ONU reflete este objetivo. Nos anos 2000, a animação internacional com o boom das commodities e a famosa capa da The Economist prevendo bonança econômica não se concretizou, mas a ambição brasileira segue intacta.

“O destino manifesto do Brasil na política externa é sempre ter um papel acima daquilo que a gente pode ter”, avalia o diplomata e presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE), Rubens Barbosa.

Em entrevista ao Estadão, Barbosa questiona o poder que o Brasil consegue ter nos organismos internacionais. A entrevista marca o começo da parceria do jornal O Estado de S. Paulo com o portal Interesse Nacional, uma publicação que traz artigos de acadêmicos e diplomatas com discussões sobre as relações do Brasil com o resto do mundo e o posicionamento do país nas relações internacionais. O portal está ligado ao Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE), criado pelo embaixador Rubens Barbosa para debater os temas internacionais que afetam as políticas públicas nacionais e seus reflexos na sociedade. O Estadão vai publicar dois artigos da Interesse Nacional por semana.

“Não é realista a gente imaginar que o Brasil possa influir na mudança da governança global. Também não é realista querer liderar o que hoje se chama de Sul Global, porque o Sul Global hoje, a África, a América Latina, elas têm pouca influência no cenário internacional”, avalia Barbosa. “Para ser líder do chamado Sul Global, é preciso ter contrapartidas para favorecer os países membros e o Brasil hoje não tem condição de oferecer financiamento, de oferecer apoios de outra maneira para esses países, é muito difícil você assumir uma liderança sem ter meios para exercer essa liderança.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de uma reunião ministerial em Brasília, Brasil  Foto: Eraldo Peres/AP

O diplomata também critica a política do governo Lula para Venezuela e Cuba, países com históricos de abusos de direitos humanos. “O Brasil em relação a Venezuela e Cuba, mantém uma política tradicional de apoio, sem nenhum espírito crítico, você não pode defender direitos humanos aqui no Brasil e ignorar direitos humanos no exterior, você não pode defender a democracia aqui no Brasil e ignorar a defesa da democracia no exterior”.

Leia trechos da entrevista:

Primeiro eu gostaria de te perguntar sobre esta nova parceria entre o portal Interesse Nacional e o Estadão. Em um mundo polarizado, com guerras na Ucrânia e em Gaza, e eleições importantes no cenário internacional, o que podemos esperar da parceria?

A parceria é importante porque vai ajudar a reduzir o desinteresse sobre o que ocorre no exterior e qual o impacto desse novo mundo em transformação, qual é o impacto sobre o Brasil, sobre a economia, sobre a política, sobre as empresas.

O site Interesse Nacional, justamente, foi criado com esse objetivo. Assim, a análise sobre a China, Índia, Ásia no geral, sobre a economia, com ênfase nas novas restrições internacionais que estão ocorrendo dentro dessa nova economia que nós estamos vivendo, tudo isso vai poder ser, agora, divulgado mais amplamente com essa parceria do Interesse Nacional com o Estadão.

O Brasil é sempre chamado de país do futuro, com um grande potencial. Existia uma animação internacional com o Brasil nos anos 2000, após o boom das commodities e a capa da The Economist. Na sua avaliação as previsões de futuro foram exageradas?

Não, eu acho que as previsões são corretas. Desde o descobrimento que se aponta a potencialidade do Brasil. Agora, mais recentemente, o Pais mostra grande potencial em relação a transição energética, meio ambiente e segurança alimentar.

O problema que surge é que como a gente não tem um rumo, não tem um objetivo, não tem uma meta do Estado brasileiro, não só do governo, do Estado brasileiro, essas potencialidades não são utilizadas. Nós estamos atrasados na pesquisa e utilização do hidrogênio verde, muitos dos programas para a utilização da bioeconomia na Amazônia não estão aproveitados, então, a gente fala muito do potencial, faz o diagnóstico correto, mas a gente não tem capacidade, não tem coordenação, não tem um objetivo determinado para que a gente siga um rumo que concretize esse potencial que o Brasil tem.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de uma reunião com o presidente da França, Emmanuel Macron, em Belém, Brasil  Foto: Ricardo Stuckert/AFP

O Brasil sempre quis ter um status internacional maior do que tem atualmente. O Itamaraty sempre teve a demanda de que o Brasil tivesse um assento no Conselho de Segurança da ONU, mas outros países não compartilham o mesmo pensamento. Qual é a diferença entre o status internacional que o Brasil quer ter ou acha que tem e o que os outros países acreditam que o Brasil tenha?

Bom, eu gosto de dizer, analisando a política externa do Brasil desde a independência, desde 1822 até aqui, que se você for examinar os fatos, em que o Brasil se envolveu, a política externa brasileira sempre procurou atuar acima da real capacidade que o Brasil tem. Então, em inglês tem uma expressão, punch above its weight. A gente sempre, a política externa brasileira sempre procurou projetar os interesses brasileiros de maneira mais forte do que havia a capacidade interna, porque a política externa é a projeção da política interna.

Então, se não há um correspondente na política interna, do esforço da política externa, fica difícil você preencher a ambição do Brasil. O destino manifesto do Brasil na política externa é sempre ter um papel acima daquilo que a gente pode. Agora, o Itamaraty sempre foi realista. Então, nós procuramos negociar, avançar dentro da capacidade de articulação da política externa.

Ultimamente, você está tendo uma série de ações que ignoram a ausência de um excedente de poder do Brasil para poder influir nos acontecimentos internacionais. Quer dizer, na minha visão, não é realista, porque nós não temos excedente de poder. Não é realista você querer interferir e promover a paz na guerra da Ucrânia, não é realista você querer interferir no Oriente Médio na guerra entre Israel e o Hamas. E também não é realista você querer interferir na mudança da governança global, no Fundo Mundial, no Banco Mundial, na ONU.

Mesmo no Conselho de Segurança, você pode ter uma retórica, mas você tem que reconhecer que o Brasil não tem força para influir nessa decisão, que depende dos países que hoje detêm o veto no Conselho de Segurança. Então não é realista a gente imaginar que a gente possa influir na mudança da governança global. Eu também vou até um pouco mais além, eu acho que também não é muito realista você querer liderar o que hoje se chama de Sul Global, porque o Sul Global hoje, a África, a América Latina, elas têm pouca influência no cenário internacional e você se apresentar como líder desse Sul Global, você precisa ter contrapartidas para favorecer os países que são membros desse Sul Global e o Brasil hoje não tem condição de oferecer financiamento, de oferecer apoios de outra maneira para esses países, é muito difícil você assumir uma liderança sem ter meios para exercer essa liderança.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, posa para foto ao lado de outros líderes internacionais na Cúpula do Brics, em Johanesburgo  Foto: Gianluigi Guercia/AFP

O governo Lula lançou o slogan do ‘Brasil Voltou’ em 2023 e esperava-se que o País pudesse ter usado a sua influência com o governo do ditador venezuelano Nicolás Maduro. Mas após patrocinar o retorno político de Maduro ao cenário internacional, Lula teve uma postura menos ativa e propositiva do que a Colômbia, que realizou uma proposta a Caracas sobre uma lei da anistia. O Brasil perdeu a liderança nesta questão ou Lula ainda pode se colocar na dianteira deste processo?

Olha, o Lula quando assumiu, definiu três prioridades, a primeira a gente já tratou, a volta do Brasil no mundo, a segunda era a América Latina, o Brasil voltou a ter influência na América Latina, voltou a ter prioridade para a América Latina e a terceira era o meio ambiente. Em relação a questão da América Latina o governo atual fez algumas coisas, ele convocou aquela reunião de meio ambiente lá do Tratado de Cooperação Amazônica, o Lula viajou por muitos países para retomar essa voz do Brasil no mundo, mas aqui para a América Latina muito pouca coisa foi feita, nós abandonamos ou não retomamos o processo de infraestrutura que aproximaria o Brasil dos outros países, o Brasil em relação a Venezuela e Cuba, mantém uma política tradicional de apoio, sem nenhum espírito crítico, você não pode defender direitos humanos aqui no Brasil e ignorar direitos humanos no exterior, você não pode defender a democracia aqui no Brasil e ignorar a defesa da democracia no exterior, eu acho que em relação a Venezuela, por considerações ideológicas, o Brasil perdeu a influência que poderia ter se tivesse uma política proativa, com propostas concretas em relação ao processo de redemocratização e de reconstrução econômica da Venezuela.

O presidente da Colômbia levou efetivamente uma proposta para a Venezuela, isso uma semana depois de ter se encontrado com o presidente Lula, não sei se ele discutiu essa proposta com o Lula, mas ele levou a proposta da Colômbia e agora nós estamos vendo aí a aproximação da eleição lá na Venezuela de maneira muito complicada, vamos ver como é que o governo brasileiro vai reagir caso as eleições não transcorram de maneira transparente, de maneira segura e que permita que os candidatos que se opõem ao Maduro possam se apresentar e disputar livremente a presidência com o atual presidente.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de reunião com o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, em Bogota, Colômbia  Foto: Fernando Vergara/AP

Até agora, o governo do Brasil possui uma relação mais fria e distante com a administração do libertário Javier Milei, na Argentina. Milei criou atritos com a Espanha, que já decidiu que sua embaixadora não voltará a Buenos Aires. A relação Brasil-Argentina também pode entrar em uma potencial guerra de declarações entre Milei e Lula, ou os vínculos são mais fortes?

Olha, em alguns casos a política externa brasileira, tanto no governo Bolsonaro quanto no governo Lula, é ideologizada, com os sinais trocados. Aconteceu, no caso da Argentina, a mesma coisa com o Bolsonaro, o Bolsonaro passou 4 anos sem conversar com o presidente da Argentina, por questões ideológicas, por diferença de visões partidárias, tanto na Argentina quanto no Brasil.

Com o Lula está acontecendo a mesma coisa, por uma questão ideológica, o presidente atual não fala com o presidente da Argentina. No caso do Brasil, as relações de Estado vão prevalecer, como prevaleceram na época do Bolsonaro, nós mantivemos um comércio, uma relação de Estado normal, a mesma coisa vai acontecer agora, nós somos vizinhos, somos parceiros, então essa questão ideológica entre os presidentes não vai, na minha visão, dificultar nem atrapalhar as relações de Estado, as relações empresariais, as relações comerciais, as relações de cooperação entre os dois países. É uma questão ideológica que ocorreu com os sinais trocados na época do Bolsonaro e agora na época do Lula.

O panorama mundial está indicando um maior gasto em defesa ? Na França, nós vemos o presidente Macron sugerindo que a Europa precisa se defender sem depender do guarda-chuva dos EUA. A Polônia e os países bálticos querem reforçar as suas fronteiras por conta da Rússia. Na América do Sul temos a Venezuela ameaçando a Guiana, que também promete maior reforço em defesa. Até a Argentina comprou novos caças depois de dez anos.

Olha, a defesa aqui no Brasil, assim como a política externa, ela não tem a atenção que ela mereceria, entendeu? O Brasil é um país continental, a nona economia do mundo, o Brasil tem uma posição importante aqui na região e tem questões de fronteira importantes, como o crime transnacional na Amazônia. Então a questão da defesa aqui no Brasil deveria merecer uma atenção não só do Congresso, mas da sociedade em geral.

O que está acontecendo no mundo afeta diretamente a Europa, afeta diretamente os Estados Unidos, mas em termos de defesa não é percebido aqui no Brasil como uma ameaça. Nós temos problemas de defesa na preservação da nossa fronteira com os países que são limítrofes do Brasil para prevenir o crime transnacional. Nós temos questões de defesa a preservar no Atlântico pela defesa da livre navegação, do crime que também começa a se espalhar do lado da África, do Golfo da Guiné. Então você tem problemas de defesa aqui no Brasil que são peculiares à nossa realidade.

É claro que o contexto global pode afetar, mas até aqui como não houve uma escalada militar, esses conflitos são regionais e afetam os países que estão diretamente relacionados da Europa e no Oriente Médio. Aqui na América Latina nós temos uma área até aqui preservada. Essa ameaça da Venezuela com a Guiana é uma preocupação para o Brasil. Nós estamos vendo os gastos que estão ocorrendo para que o Brasil tenha uma presença militar nessa área, porque é uma área de preservação da nossa soberania, da nossa fronteira.

Mas nós temos sim problemas que são problemas de defesa, inclusive nos tempos mais recentes, problemas de defesa relacionados com a defesa cibernética, com o desenvolvimento da inteligência artificial, como isso vai afetar a soberania e a defesa do Brasil. São temas que estão relacionados com a defesa e que vão implicar na necessidade do Brasil rever esses conceitos atuais para destinar recursos efetivos para que a gente possa, nesses novos tempos, nessas novas realidades, nesses avanços tecnológicos e com novas ameaças à soberania de todos os países, que a gente possa se defender melhor.

Então não é só o cenário internacional, mas sim a nossa realidade e as novas ameaças que surgem a um país que tem uma dimensão continental e que precisa cuidar da vasta extensão de suas fronteiras.

O Brasil sempre desejou ter mais poder na política externa do que tem atualmente. A vontade antiga de um assento brasileiro no Conselho de Segurança da ONU reflete este objetivo. Nos anos 2000, a animação internacional com o boom das commodities e a famosa capa da The Economist prevendo bonança econômica não se concretizou, mas a ambição brasileira segue intacta.

“O destino manifesto do Brasil na política externa é sempre ter um papel acima daquilo que a gente pode ter”, avalia o diplomata e presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE), Rubens Barbosa.

Em entrevista ao Estadão, Barbosa questiona o poder que o Brasil consegue ter nos organismos internacionais. A entrevista marca o começo da parceria do jornal O Estado de S. Paulo com o portal Interesse Nacional, uma publicação que traz artigos de acadêmicos e diplomatas com discussões sobre as relações do Brasil com o resto do mundo e o posicionamento do país nas relações internacionais. O portal está ligado ao Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE), criado pelo embaixador Rubens Barbosa para debater os temas internacionais que afetam as políticas públicas nacionais e seus reflexos na sociedade. O Estadão vai publicar dois artigos da Interesse Nacional por semana.

“Não é realista a gente imaginar que o Brasil possa influir na mudança da governança global. Também não é realista querer liderar o que hoje se chama de Sul Global, porque o Sul Global hoje, a África, a América Latina, elas têm pouca influência no cenário internacional”, avalia Barbosa. “Para ser líder do chamado Sul Global, é preciso ter contrapartidas para favorecer os países membros e o Brasil hoje não tem condição de oferecer financiamento, de oferecer apoios de outra maneira para esses países, é muito difícil você assumir uma liderança sem ter meios para exercer essa liderança.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de uma reunião ministerial em Brasília, Brasil  Foto: Eraldo Peres/AP

O diplomata também critica a política do governo Lula para Venezuela e Cuba, países com históricos de abusos de direitos humanos. “O Brasil em relação a Venezuela e Cuba, mantém uma política tradicional de apoio, sem nenhum espírito crítico, você não pode defender direitos humanos aqui no Brasil e ignorar direitos humanos no exterior, você não pode defender a democracia aqui no Brasil e ignorar a defesa da democracia no exterior”.

Leia trechos da entrevista:

Primeiro eu gostaria de te perguntar sobre esta nova parceria entre o portal Interesse Nacional e o Estadão. Em um mundo polarizado, com guerras na Ucrânia e em Gaza, e eleições importantes no cenário internacional, o que podemos esperar da parceria?

A parceria é importante porque vai ajudar a reduzir o desinteresse sobre o que ocorre no exterior e qual o impacto desse novo mundo em transformação, qual é o impacto sobre o Brasil, sobre a economia, sobre a política, sobre as empresas.

O site Interesse Nacional, justamente, foi criado com esse objetivo. Assim, a análise sobre a China, Índia, Ásia no geral, sobre a economia, com ênfase nas novas restrições internacionais que estão ocorrendo dentro dessa nova economia que nós estamos vivendo, tudo isso vai poder ser, agora, divulgado mais amplamente com essa parceria do Interesse Nacional com o Estadão.

O Brasil é sempre chamado de país do futuro, com um grande potencial. Existia uma animação internacional com o Brasil nos anos 2000, após o boom das commodities e a capa da The Economist. Na sua avaliação as previsões de futuro foram exageradas?

Não, eu acho que as previsões são corretas. Desde o descobrimento que se aponta a potencialidade do Brasil. Agora, mais recentemente, o Pais mostra grande potencial em relação a transição energética, meio ambiente e segurança alimentar.

O problema que surge é que como a gente não tem um rumo, não tem um objetivo, não tem uma meta do Estado brasileiro, não só do governo, do Estado brasileiro, essas potencialidades não são utilizadas. Nós estamos atrasados na pesquisa e utilização do hidrogênio verde, muitos dos programas para a utilização da bioeconomia na Amazônia não estão aproveitados, então, a gente fala muito do potencial, faz o diagnóstico correto, mas a gente não tem capacidade, não tem coordenação, não tem um objetivo determinado para que a gente siga um rumo que concretize esse potencial que o Brasil tem.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de uma reunião com o presidente da França, Emmanuel Macron, em Belém, Brasil  Foto: Ricardo Stuckert/AFP

O Brasil sempre quis ter um status internacional maior do que tem atualmente. O Itamaraty sempre teve a demanda de que o Brasil tivesse um assento no Conselho de Segurança da ONU, mas outros países não compartilham o mesmo pensamento. Qual é a diferença entre o status internacional que o Brasil quer ter ou acha que tem e o que os outros países acreditam que o Brasil tenha?

Bom, eu gosto de dizer, analisando a política externa do Brasil desde a independência, desde 1822 até aqui, que se você for examinar os fatos, em que o Brasil se envolveu, a política externa brasileira sempre procurou atuar acima da real capacidade que o Brasil tem. Então, em inglês tem uma expressão, punch above its weight. A gente sempre, a política externa brasileira sempre procurou projetar os interesses brasileiros de maneira mais forte do que havia a capacidade interna, porque a política externa é a projeção da política interna.

Então, se não há um correspondente na política interna, do esforço da política externa, fica difícil você preencher a ambição do Brasil. O destino manifesto do Brasil na política externa é sempre ter um papel acima daquilo que a gente pode. Agora, o Itamaraty sempre foi realista. Então, nós procuramos negociar, avançar dentro da capacidade de articulação da política externa.

Ultimamente, você está tendo uma série de ações que ignoram a ausência de um excedente de poder do Brasil para poder influir nos acontecimentos internacionais. Quer dizer, na minha visão, não é realista, porque nós não temos excedente de poder. Não é realista você querer interferir e promover a paz na guerra da Ucrânia, não é realista você querer interferir no Oriente Médio na guerra entre Israel e o Hamas. E também não é realista você querer interferir na mudança da governança global, no Fundo Mundial, no Banco Mundial, na ONU.

Mesmo no Conselho de Segurança, você pode ter uma retórica, mas você tem que reconhecer que o Brasil não tem força para influir nessa decisão, que depende dos países que hoje detêm o veto no Conselho de Segurança. Então não é realista a gente imaginar que a gente possa influir na mudança da governança global. Eu também vou até um pouco mais além, eu acho que também não é muito realista você querer liderar o que hoje se chama de Sul Global, porque o Sul Global hoje, a África, a América Latina, elas têm pouca influência no cenário internacional e você se apresentar como líder desse Sul Global, você precisa ter contrapartidas para favorecer os países que são membros desse Sul Global e o Brasil hoje não tem condição de oferecer financiamento, de oferecer apoios de outra maneira para esses países, é muito difícil você assumir uma liderança sem ter meios para exercer essa liderança.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, posa para foto ao lado de outros líderes internacionais na Cúpula do Brics, em Johanesburgo  Foto: Gianluigi Guercia/AFP

O governo Lula lançou o slogan do ‘Brasil Voltou’ em 2023 e esperava-se que o País pudesse ter usado a sua influência com o governo do ditador venezuelano Nicolás Maduro. Mas após patrocinar o retorno político de Maduro ao cenário internacional, Lula teve uma postura menos ativa e propositiva do que a Colômbia, que realizou uma proposta a Caracas sobre uma lei da anistia. O Brasil perdeu a liderança nesta questão ou Lula ainda pode se colocar na dianteira deste processo?

Olha, o Lula quando assumiu, definiu três prioridades, a primeira a gente já tratou, a volta do Brasil no mundo, a segunda era a América Latina, o Brasil voltou a ter influência na América Latina, voltou a ter prioridade para a América Latina e a terceira era o meio ambiente. Em relação a questão da América Latina o governo atual fez algumas coisas, ele convocou aquela reunião de meio ambiente lá do Tratado de Cooperação Amazônica, o Lula viajou por muitos países para retomar essa voz do Brasil no mundo, mas aqui para a América Latina muito pouca coisa foi feita, nós abandonamos ou não retomamos o processo de infraestrutura que aproximaria o Brasil dos outros países, o Brasil em relação a Venezuela e Cuba, mantém uma política tradicional de apoio, sem nenhum espírito crítico, você não pode defender direitos humanos aqui no Brasil e ignorar direitos humanos no exterior, você não pode defender a democracia aqui no Brasil e ignorar a defesa da democracia no exterior, eu acho que em relação a Venezuela, por considerações ideológicas, o Brasil perdeu a influência que poderia ter se tivesse uma política proativa, com propostas concretas em relação ao processo de redemocratização e de reconstrução econômica da Venezuela.

O presidente da Colômbia levou efetivamente uma proposta para a Venezuela, isso uma semana depois de ter se encontrado com o presidente Lula, não sei se ele discutiu essa proposta com o Lula, mas ele levou a proposta da Colômbia e agora nós estamos vendo aí a aproximação da eleição lá na Venezuela de maneira muito complicada, vamos ver como é que o governo brasileiro vai reagir caso as eleições não transcorram de maneira transparente, de maneira segura e que permita que os candidatos que se opõem ao Maduro possam se apresentar e disputar livremente a presidência com o atual presidente.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de reunião com o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, em Bogota, Colômbia  Foto: Fernando Vergara/AP

Até agora, o governo do Brasil possui uma relação mais fria e distante com a administração do libertário Javier Milei, na Argentina. Milei criou atritos com a Espanha, que já decidiu que sua embaixadora não voltará a Buenos Aires. A relação Brasil-Argentina também pode entrar em uma potencial guerra de declarações entre Milei e Lula, ou os vínculos são mais fortes?

Olha, em alguns casos a política externa brasileira, tanto no governo Bolsonaro quanto no governo Lula, é ideologizada, com os sinais trocados. Aconteceu, no caso da Argentina, a mesma coisa com o Bolsonaro, o Bolsonaro passou 4 anos sem conversar com o presidente da Argentina, por questões ideológicas, por diferença de visões partidárias, tanto na Argentina quanto no Brasil.

Com o Lula está acontecendo a mesma coisa, por uma questão ideológica, o presidente atual não fala com o presidente da Argentina. No caso do Brasil, as relações de Estado vão prevalecer, como prevaleceram na época do Bolsonaro, nós mantivemos um comércio, uma relação de Estado normal, a mesma coisa vai acontecer agora, nós somos vizinhos, somos parceiros, então essa questão ideológica entre os presidentes não vai, na minha visão, dificultar nem atrapalhar as relações de Estado, as relações empresariais, as relações comerciais, as relações de cooperação entre os dois países. É uma questão ideológica que ocorreu com os sinais trocados na época do Bolsonaro e agora na época do Lula.

O panorama mundial está indicando um maior gasto em defesa ? Na França, nós vemos o presidente Macron sugerindo que a Europa precisa se defender sem depender do guarda-chuva dos EUA. A Polônia e os países bálticos querem reforçar as suas fronteiras por conta da Rússia. Na América do Sul temos a Venezuela ameaçando a Guiana, que também promete maior reforço em defesa. Até a Argentina comprou novos caças depois de dez anos.

Olha, a defesa aqui no Brasil, assim como a política externa, ela não tem a atenção que ela mereceria, entendeu? O Brasil é um país continental, a nona economia do mundo, o Brasil tem uma posição importante aqui na região e tem questões de fronteira importantes, como o crime transnacional na Amazônia. Então a questão da defesa aqui no Brasil deveria merecer uma atenção não só do Congresso, mas da sociedade em geral.

O que está acontecendo no mundo afeta diretamente a Europa, afeta diretamente os Estados Unidos, mas em termos de defesa não é percebido aqui no Brasil como uma ameaça. Nós temos problemas de defesa na preservação da nossa fronteira com os países que são limítrofes do Brasil para prevenir o crime transnacional. Nós temos questões de defesa a preservar no Atlântico pela defesa da livre navegação, do crime que também começa a se espalhar do lado da África, do Golfo da Guiné. Então você tem problemas de defesa aqui no Brasil que são peculiares à nossa realidade.

É claro que o contexto global pode afetar, mas até aqui como não houve uma escalada militar, esses conflitos são regionais e afetam os países que estão diretamente relacionados da Europa e no Oriente Médio. Aqui na América Latina nós temos uma área até aqui preservada. Essa ameaça da Venezuela com a Guiana é uma preocupação para o Brasil. Nós estamos vendo os gastos que estão ocorrendo para que o Brasil tenha uma presença militar nessa área, porque é uma área de preservação da nossa soberania, da nossa fronteira.

Mas nós temos sim problemas que são problemas de defesa, inclusive nos tempos mais recentes, problemas de defesa relacionados com a defesa cibernética, com o desenvolvimento da inteligência artificial, como isso vai afetar a soberania e a defesa do Brasil. São temas que estão relacionados com a defesa e que vão implicar na necessidade do Brasil rever esses conceitos atuais para destinar recursos efetivos para que a gente possa, nesses novos tempos, nessas novas realidades, nesses avanços tecnológicos e com novas ameaças à soberania de todos os países, que a gente possa se defender melhor.

Então não é só o cenário internacional, mas sim a nossa realidade e as novas ameaças que surgem a um país que tem uma dimensão continental e que precisa cuidar da vasta extensão de suas fronteiras.

O Brasil sempre desejou ter mais poder na política externa do que tem atualmente. A vontade antiga de um assento brasileiro no Conselho de Segurança da ONU reflete este objetivo. Nos anos 2000, a animação internacional com o boom das commodities e a famosa capa da The Economist prevendo bonança econômica não se concretizou, mas a ambição brasileira segue intacta.

“O destino manifesto do Brasil na política externa é sempre ter um papel acima daquilo que a gente pode ter”, avalia o diplomata e presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE), Rubens Barbosa.

Em entrevista ao Estadão, Barbosa questiona o poder que o Brasil consegue ter nos organismos internacionais. A entrevista marca o começo da parceria do jornal O Estado de S. Paulo com o portal Interesse Nacional, uma publicação que traz artigos de acadêmicos e diplomatas com discussões sobre as relações do Brasil com o resto do mundo e o posicionamento do país nas relações internacionais. O portal está ligado ao Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE), criado pelo embaixador Rubens Barbosa para debater os temas internacionais que afetam as políticas públicas nacionais e seus reflexos na sociedade. O Estadão vai publicar dois artigos da Interesse Nacional por semana.

“Não é realista a gente imaginar que o Brasil possa influir na mudança da governança global. Também não é realista querer liderar o que hoje se chama de Sul Global, porque o Sul Global hoje, a África, a América Latina, elas têm pouca influência no cenário internacional”, avalia Barbosa. “Para ser líder do chamado Sul Global, é preciso ter contrapartidas para favorecer os países membros e o Brasil hoje não tem condição de oferecer financiamento, de oferecer apoios de outra maneira para esses países, é muito difícil você assumir uma liderança sem ter meios para exercer essa liderança.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de uma reunião ministerial em Brasília, Brasil  Foto: Eraldo Peres/AP

O diplomata também critica a política do governo Lula para Venezuela e Cuba, países com históricos de abusos de direitos humanos. “O Brasil em relação a Venezuela e Cuba, mantém uma política tradicional de apoio, sem nenhum espírito crítico, você não pode defender direitos humanos aqui no Brasil e ignorar direitos humanos no exterior, você não pode defender a democracia aqui no Brasil e ignorar a defesa da democracia no exterior”.

Leia trechos da entrevista:

Primeiro eu gostaria de te perguntar sobre esta nova parceria entre o portal Interesse Nacional e o Estadão. Em um mundo polarizado, com guerras na Ucrânia e em Gaza, e eleições importantes no cenário internacional, o que podemos esperar da parceria?

A parceria é importante porque vai ajudar a reduzir o desinteresse sobre o que ocorre no exterior e qual o impacto desse novo mundo em transformação, qual é o impacto sobre o Brasil, sobre a economia, sobre a política, sobre as empresas.

O site Interesse Nacional, justamente, foi criado com esse objetivo. Assim, a análise sobre a China, Índia, Ásia no geral, sobre a economia, com ênfase nas novas restrições internacionais que estão ocorrendo dentro dessa nova economia que nós estamos vivendo, tudo isso vai poder ser, agora, divulgado mais amplamente com essa parceria do Interesse Nacional com o Estadão.

O Brasil é sempre chamado de país do futuro, com um grande potencial. Existia uma animação internacional com o Brasil nos anos 2000, após o boom das commodities e a capa da The Economist. Na sua avaliação as previsões de futuro foram exageradas?

Não, eu acho que as previsões são corretas. Desde o descobrimento que se aponta a potencialidade do Brasil. Agora, mais recentemente, o Pais mostra grande potencial em relação a transição energética, meio ambiente e segurança alimentar.

O problema que surge é que como a gente não tem um rumo, não tem um objetivo, não tem uma meta do Estado brasileiro, não só do governo, do Estado brasileiro, essas potencialidades não são utilizadas. Nós estamos atrasados na pesquisa e utilização do hidrogênio verde, muitos dos programas para a utilização da bioeconomia na Amazônia não estão aproveitados, então, a gente fala muito do potencial, faz o diagnóstico correto, mas a gente não tem capacidade, não tem coordenação, não tem um objetivo determinado para que a gente siga um rumo que concretize esse potencial que o Brasil tem.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de uma reunião com o presidente da França, Emmanuel Macron, em Belém, Brasil  Foto: Ricardo Stuckert/AFP

O Brasil sempre quis ter um status internacional maior do que tem atualmente. O Itamaraty sempre teve a demanda de que o Brasil tivesse um assento no Conselho de Segurança da ONU, mas outros países não compartilham o mesmo pensamento. Qual é a diferença entre o status internacional que o Brasil quer ter ou acha que tem e o que os outros países acreditam que o Brasil tenha?

Bom, eu gosto de dizer, analisando a política externa do Brasil desde a independência, desde 1822 até aqui, que se você for examinar os fatos, em que o Brasil se envolveu, a política externa brasileira sempre procurou atuar acima da real capacidade que o Brasil tem. Então, em inglês tem uma expressão, punch above its weight. A gente sempre, a política externa brasileira sempre procurou projetar os interesses brasileiros de maneira mais forte do que havia a capacidade interna, porque a política externa é a projeção da política interna.

Então, se não há um correspondente na política interna, do esforço da política externa, fica difícil você preencher a ambição do Brasil. O destino manifesto do Brasil na política externa é sempre ter um papel acima daquilo que a gente pode. Agora, o Itamaraty sempre foi realista. Então, nós procuramos negociar, avançar dentro da capacidade de articulação da política externa.

Ultimamente, você está tendo uma série de ações que ignoram a ausência de um excedente de poder do Brasil para poder influir nos acontecimentos internacionais. Quer dizer, na minha visão, não é realista, porque nós não temos excedente de poder. Não é realista você querer interferir e promover a paz na guerra da Ucrânia, não é realista você querer interferir no Oriente Médio na guerra entre Israel e o Hamas. E também não é realista você querer interferir na mudança da governança global, no Fundo Mundial, no Banco Mundial, na ONU.

Mesmo no Conselho de Segurança, você pode ter uma retórica, mas você tem que reconhecer que o Brasil não tem força para influir nessa decisão, que depende dos países que hoje detêm o veto no Conselho de Segurança. Então não é realista a gente imaginar que a gente possa influir na mudança da governança global. Eu também vou até um pouco mais além, eu acho que também não é muito realista você querer liderar o que hoje se chama de Sul Global, porque o Sul Global hoje, a África, a América Latina, elas têm pouca influência no cenário internacional e você se apresentar como líder desse Sul Global, você precisa ter contrapartidas para favorecer os países que são membros desse Sul Global e o Brasil hoje não tem condição de oferecer financiamento, de oferecer apoios de outra maneira para esses países, é muito difícil você assumir uma liderança sem ter meios para exercer essa liderança.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, posa para foto ao lado de outros líderes internacionais na Cúpula do Brics, em Johanesburgo  Foto: Gianluigi Guercia/AFP

O governo Lula lançou o slogan do ‘Brasil Voltou’ em 2023 e esperava-se que o País pudesse ter usado a sua influência com o governo do ditador venezuelano Nicolás Maduro. Mas após patrocinar o retorno político de Maduro ao cenário internacional, Lula teve uma postura menos ativa e propositiva do que a Colômbia, que realizou uma proposta a Caracas sobre uma lei da anistia. O Brasil perdeu a liderança nesta questão ou Lula ainda pode se colocar na dianteira deste processo?

Olha, o Lula quando assumiu, definiu três prioridades, a primeira a gente já tratou, a volta do Brasil no mundo, a segunda era a América Latina, o Brasil voltou a ter influência na América Latina, voltou a ter prioridade para a América Latina e a terceira era o meio ambiente. Em relação a questão da América Latina o governo atual fez algumas coisas, ele convocou aquela reunião de meio ambiente lá do Tratado de Cooperação Amazônica, o Lula viajou por muitos países para retomar essa voz do Brasil no mundo, mas aqui para a América Latina muito pouca coisa foi feita, nós abandonamos ou não retomamos o processo de infraestrutura que aproximaria o Brasil dos outros países, o Brasil em relação a Venezuela e Cuba, mantém uma política tradicional de apoio, sem nenhum espírito crítico, você não pode defender direitos humanos aqui no Brasil e ignorar direitos humanos no exterior, você não pode defender a democracia aqui no Brasil e ignorar a defesa da democracia no exterior, eu acho que em relação a Venezuela, por considerações ideológicas, o Brasil perdeu a influência que poderia ter se tivesse uma política proativa, com propostas concretas em relação ao processo de redemocratização e de reconstrução econômica da Venezuela.

O presidente da Colômbia levou efetivamente uma proposta para a Venezuela, isso uma semana depois de ter se encontrado com o presidente Lula, não sei se ele discutiu essa proposta com o Lula, mas ele levou a proposta da Colômbia e agora nós estamos vendo aí a aproximação da eleição lá na Venezuela de maneira muito complicada, vamos ver como é que o governo brasileiro vai reagir caso as eleições não transcorram de maneira transparente, de maneira segura e que permita que os candidatos que se opõem ao Maduro possam se apresentar e disputar livremente a presidência com o atual presidente.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de reunião com o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, em Bogota, Colômbia  Foto: Fernando Vergara/AP

Até agora, o governo do Brasil possui uma relação mais fria e distante com a administração do libertário Javier Milei, na Argentina. Milei criou atritos com a Espanha, que já decidiu que sua embaixadora não voltará a Buenos Aires. A relação Brasil-Argentina também pode entrar em uma potencial guerra de declarações entre Milei e Lula, ou os vínculos são mais fortes?

Olha, em alguns casos a política externa brasileira, tanto no governo Bolsonaro quanto no governo Lula, é ideologizada, com os sinais trocados. Aconteceu, no caso da Argentina, a mesma coisa com o Bolsonaro, o Bolsonaro passou 4 anos sem conversar com o presidente da Argentina, por questões ideológicas, por diferença de visões partidárias, tanto na Argentina quanto no Brasil.

Com o Lula está acontecendo a mesma coisa, por uma questão ideológica, o presidente atual não fala com o presidente da Argentina. No caso do Brasil, as relações de Estado vão prevalecer, como prevaleceram na época do Bolsonaro, nós mantivemos um comércio, uma relação de Estado normal, a mesma coisa vai acontecer agora, nós somos vizinhos, somos parceiros, então essa questão ideológica entre os presidentes não vai, na minha visão, dificultar nem atrapalhar as relações de Estado, as relações empresariais, as relações comerciais, as relações de cooperação entre os dois países. É uma questão ideológica que ocorreu com os sinais trocados na época do Bolsonaro e agora na época do Lula.

O panorama mundial está indicando um maior gasto em defesa ? Na França, nós vemos o presidente Macron sugerindo que a Europa precisa se defender sem depender do guarda-chuva dos EUA. A Polônia e os países bálticos querem reforçar as suas fronteiras por conta da Rússia. Na América do Sul temos a Venezuela ameaçando a Guiana, que também promete maior reforço em defesa. Até a Argentina comprou novos caças depois de dez anos.

Olha, a defesa aqui no Brasil, assim como a política externa, ela não tem a atenção que ela mereceria, entendeu? O Brasil é um país continental, a nona economia do mundo, o Brasil tem uma posição importante aqui na região e tem questões de fronteira importantes, como o crime transnacional na Amazônia. Então a questão da defesa aqui no Brasil deveria merecer uma atenção não só do Congresso, mas da sociedade em geral.

O que está acontecendo no mundo afeta diretamente a Europa, afeta diretamente os Estados Unidos, mas em termos de defesa não é percebido aqui no Brasil como uma ameaça. Nós temos problemas de defesa na preservação da nossa fronteira com os países que são limítrofes do Brasil para prevenir o crime transnacional. Nós temos questões de defesa a preservar no Atlântico pela defesa da livre navegação, do crime que também começa a se espalhar do lado da África, do Golfo da Guiné. Então você tem problemas de defesa aqui no Brasil que são peculiares à nossa realidade.

É claro que o contexto global pode afetar, mas até aqui como não houve uma escalada militar, esses conflitos são regionais e afetam os países que estão diretamente relacionados da Europa e no Oriente Médio. Aqui na América Latina nós temos uma área até aqui preservada. Essa ameaça da Venezuela com a Guiana é uma preocupação para o Brasil. Nós estamos vendo os gastos que estão ocorrendo para que o Brasil tenha uma presença militar nessa área, porque é uma área de preservação da nossa soberania, da nossa fronteira.

Mas nós temos sim problemas que são problemas de defesa, inclusive nos tempos mais recentes, problemas de defesa relacionados com a defesa cibernética, com o desenvolvimento da inteligência artificial, como isso vai afetar a soberania e a defesa do Brasil. São temas que estão relacionados com a defesa e que vão implicar na necessidade do Brasil rever esses conceitos atuais para destinar recursos efetivos para que a gente possa, nesses novos tempos, nessas novas realidades, nesses avanços tecnológicos e com novas ameaças à soberania de todos os países, que a gente possa se defender melhor.

Então não é só o cenário internacional, mas sim a nossa realidade e as novas ameaças que surgem a um país que tem uma dimensão continental e que precisa cuidar da vasta extensão de suas fronteiras.

Entrevista por Daniel Gateno

Repórter da editoria de internacional do Estadão

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