THE NEW YORK TIMES – As nuvens escuras apareceram rapidamente, surpreendendo quem buscava o sol nesse lago no norte da Itália, interrompendo aperitivos de fim de tarde e caminhadas à beira d’água. Um alerta climático emitido anteriormente naquele dia não tinha previsto a violência da tempestade atingiu o lago com ventos tão fortes que um barco afundou, matando quatro de seus 23 passageiros.
Segundo as reportagens, o incidente no Lago Maggiore, no domingo, foi uma tragédia incomum, que normalmente teria atraído atenção momentaneamente.
Nos dias seguintes ao ocorrido, contudo, o caso explodiu nos meios de comunicação italianos quando se soube que 21 passageiros do barco eram espiões ou ex-espiões — incluindo 13 agentes do Mossad, o serviço de inteligência exterior de Israel, e oito italianos. As explicações oficiais afirmando que o grupo celebrava um aniversário fizeram pouco para arrefecer o frenesi de especulações a respeito de suas atividades.
Dois dos mortos pertenciam ao serviço de inteligência da Itália, de acordo com uma nota emitida pela entidade, e Israel afirmou que outra vítima era um operador do Mossad aposentado. A quarta vítima, uma mulher russa, era casada com o capitão do barco.
O que, imaginaram os italianos, todos esses espiões estavam fazendo realmente em uma tarde de domingo navegando em um barco alugado batizado de “Good…uria” (uma brincadeira com a palavra “goduria”, que define prazer em italiano)? O encontro foi rapidamente batizado de “festa espiã” por vários meios de comunicação.
Alguns veículos especularam a respeito da possibilidade da navegação alpina ter sido uma oportunidade para trocas de informações. Seria coincidência que o capitão era fluente em língua búlgara, notaram alguns, e casado com a russa Anna Bozhkova? Estariam os espiões vasculhando o lago em busca de magnatas russos que investem no seu entorno, conforme o jornal milanês Corriere della Sera postulou na quinta-feira?
Mais de espionagem
O procurador de Justiça que investiga o incidente, Massimo de Filippo, e o chefe dele, o procurador da República, Carlo Nocerino, afirmaram que essas questões estão fora do escopo de sua investigação, que pretende determinar o que fez o barco virar e afundar.
O capitão, Carlo Carminati, de 60 anos, é investigado por homicídio culposo, responsabilidade sobre o naufrágio e provocar ferimentos nos sobreviventes. “Nós não estamos interessados no que os passageiros estavam fazendo”, afirmou Nocerino durante entrevista concedida em seu escritório, em Busto Arsizio, na Lombardia, região que abrange a parte do lago onde o barco afundou.
Nocerino afirmou que pediu ao chefe da equipe que tenta içar o barco à superfície para avisá-lo assim que a embarcação for resgatada, para que ele e Filippo sejam os primeiros a entrar a bordo.
Na tarde da quarta-feira, o barco tinha sido rebocado para um ponto próximo à margem, mas continuava submerso após várias tentativas malsucedidas de trazê-lo à tona com uso de balões. “Eu não quero que haja nenhuma dúvida de que não buscamos investigar o caso em todo detalhe”, afirmou Nocerino.
O barco e seu conteúdo seriam confiscados e colocados sob custódia judicial, disse o procurador-chefe.
Nocerino admitiu especulações da imprensa de que o governo poderia encerrar a investigação caso documentos ou pastas forem encontrados. “Se encontrarmos pastas, nós confiscaremos”, afirmou o procurador-chefe secamente.
Desaparecidos
Colaborando para a intriga, os passageiros sobreviventes parecem ter desaparecido do lago horas depois do incidente. O Mossad mandou um avião buscar os israelenses e tentou evitar a publicação de detalhes a respeito do caso em Israel, de acordo com duas autoridades de defesa israelenses (os meios de comunicação do país noticiaram que o morto israelense era veterano do Mossad apenas na quarta-feira).
O comunicado emitido pela agência de inteligência italiana que identificou duas das vítimas, Claudio Alonzi, de 62 anos, e Tiziana Barnobi, de 53, como membros da rede de espionagem da Itália, afirmou que ambos estavam na região “para comparecer a uma reunião social” para celebrar o aniversário de uma pessoa do grupo. Uma porta-voz da agência italiana afirmou que não tinha nada a acrescentar.
Os serviços de comunicação de Israel não revelaram oficialmente o nome verdadeiro do veterano do Mossad. Ele foi enterrado na quarta-feira, em Ashkelon, Israel.
O Mossad emitiu um comunicado na quarta-feira notando que, “em razão do serviço dele na organização, não será possível fornecer detalhes. O Mossad perdeu um amigo querido, um profissional desvelado que dedicou sua vida à segurança do Estado de Israel durante décadas, mesmo após sua aposentadoria”.
O ex-operador do Mossad havia pertencido a uma unidade responsável por articulações secretas com serviços de inteligência de outros países, de acordo com uma ex-autoridade graduada de defesa, que pediu para não ter a identidade revelada ao discutir relações sensíveis de agências de espionagem.
Apesar de ter se aposentado do serviço no Mossad, ele continuou a servir como reservista para a organização e chegou à Itália com colegas como parte de uma relação de cooperação entre as agências de espionagem israelense e italiana, acrescentou a ex-autoridade.
O Mossad e a inteligência italiana cooperam em temas de interesse comum, como a guerra contra o terrorismo ou na obtenção de informações a respeito do projeto nuclear iraniano, acrescentou ele.
Nenhum dos sobreviventes carregava documentos de identidade quando todos depuseram a respeito do incidente para agentes da polícia militar italiana, na noite do domingo. Eles disseram que perderam os documentos quando o barco virou, afirmaram os procuradores.
Os procuradores também confirmaram que os italianos disseram aos investigadores que eram funcionários da presidência do Conselho de Ministros, um departamento do governo abrangente, enquanto os israelenses afirmaram que eram parte de uma delegação governamental.
Tempestade
Sejam quais forem as incertezas em torno desse caso, algo que ficou claro foi a violência inesperada da tempestade no Lago Maggiore na noite do domingo.
A agência de defesa civil da região da Lombardia emitiu um Código Amarelo — um alerta — para o lago a respeito da possibilidade de fortes tempestades ocorrerem naquela noite. Ainda que todos os boletins alertassem para uma piora de condições na área, “fenômenos intensos como esse eram considerados improváveis naquela noite”, afirmou o meteorologista Paolo Valisa, que trabalha em uma empresa local de monitoramento climático. “É possível prever um temporal, mas até hoje não conseguimos prever sua intensidade, pelo menos não em uma área tão específica.”
Medidores de velocidade do vento instalados na região do lago registraram rajadas de 42 e 60 km/h, mas sua força pode ter sido maior no local em que o barco ficou preso por uma poderosa corrente descendente de ar frio da tempestade que se espalhou, afirmou ele.
Samuel Panetti e vários amigos estavam passeando no barco do grupo na noite do domingo e foram os primeiros a resgatar os sobreviventes do Good…uria.
“O tempo tinha ficado bom o dia inteiro”, afirmou Panetti, mas quando a tempestade começou, a chuva caiu tão espessa que era como navegar no meio de uma nuvem. “Caia muita água e granizo, e o vento sacudia o barco de um lado para o outro”, recordou-se ele.
Panetti viu o que a princípio pensou ser um grupo de gaivotas no meio do lago, mas quando se aproximou percebeu que eram passageiros do barco que afundou “gritando por ajuda, como crianças”.
Panetti e seus amigos ajudaram alguns sobreviventes a subir a bordo e jogaram “qualquer coisa que flutuasse” na água para os outros poderem boiar. Alguns sobreviventes conseguiram nadar até a margem.
As duas mulheres que morreram foram encontradas presas dentro do barco alugado, que afundou cerca de 15 metros. Uma terceira vítima foi retirada do fundo do lago, e outra foi encontrada boiando.
“Foi assustador ver todas aquelas pessoas na água — parecia cena de um filme. Ainda tenho dificuldade em acreditar que algo assim aconteceu”, afirmou Panetti. “Se nós não estivéssemos por perto, acho que todos teriam morrido”, disse ele.
Paolo Mazzucchelli, diretor de transporte público no Lago Maggiore, afirmou que, no momento do incidente, “a velocidade do vento tinha aumentado muito rapidamente em um curto período de tempo” e que o temporal foi “localizado e muito intenso”. “Eles estavam no lugar errado na hora errada”, afirmou ele. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL