WASHINGTON - A mudança histórica de posicionamento dos Estados Unidos sobre as patentes de vacinas contra covid-19, anunciada nesta semana, pode ter efeitos que extrapolam os limites das negociações feitas na Organização Mundial do Comércio (OMC). Para especialistas que acompanham a disputa comercial em Washington, a Casa Branca busca pressionar as farmacêuticas a multiplicar os acordos de transferência de tecnologia para produção das vacinas em outros países, antes mesmo de um futuro consenso desenhado entre os países multilateralmente.
Assessores do presidente Joe Biden dizem que abrir mão dos direitos de propriedade intelectual na OMC pode levar "alguns meses", pois uma medida como essa exige concordância entre todos os membros, de acordo com as regras e tradições do organismo. Mas o efeito imediato é o sinal enviado ao setor privado e também a outros países para estimular acordos pontuais.
"Há duas negociações paralelas agora. Uma pública e uma privada, feita nos bastidores", afirma Simon Lester, diretor de estudos sobre política comercial no Cato Institute. Lester, que trabalhou no órgão de apelações da OMC, afirma que a discussão mais eficaz deve ser a que estará fora dos holofotes e do palco do organismo multilateral.
"Na OMC, os EUA irão trabalhar nas próximas semanas ou meses para ver se todos os países chegam a uma proposta de consenso. Ao mesmo tempo, os americanos negociarão com a indústria farmacêutica para que o setor privado concorde com licenciamento de tecnologia para outras fábricas, para produzir a vacina em outros países", afirma.
Farmacêuticas já têm feito acordos para licenciar a fabricação de vacinas para outros países. É o caso da parceria da AstraZeneca, por exemplo, com o Instituto Serum, na Índia. A nova posição dos americanos é lida pelo especialista como um ultimato para intensificar esse tipo de contrato e ampliar a produção dos imunizantes.
A negociação com as farmacêuticas pode ser mais rápida fora da OMC -- e mais benéfica para as empresas. A renúncia dos direitos de propriedade intelectual da forma como é discutido atualmente na proposta encabeçada pela Índia e pela África do Sul inclui questões de copyright e desenho industrial, além da quebra de patentes. O texto é, portanto, mais abrangente do que o mero licenciamento de tecnologia.
"Talvez esse consenso na OMC só seja atingido na reunião ministerial em novembro", afirma a especialista em comércio internacional e professora adjunta de Direito Internacional da American University, Renata Amaral. Um dia após anunciarem a revisão no posicionamento, integrantes do governo Biden falaram que a discussão entre os países sobre o assunto deve levar "muitos meses".
"Parece uma jogada mais alta do governo Biden para conseguir negociar ações pontuais. O consenso multilateral é muito difícil de ser alcançado. E, mesmo se nos surpreendermos e isso for para frente na OMC, não sabemos como seria implementado na prática", afirma a especialista.
Diplomatas de países que não apoiam a quebra de patentes, como europeus, se queixaram da falta de alinhamento dos americanos. Eles dizem terem sido pegos de surpresa. Segundo assessores da Casa Branca, foi o próprio Biden quem decidiu a questão. Mas a Casa Branca defende uma suspensão de garantias de proteção intelectual mais restrita do que a ideia original, que tratava de produtos médicos e medicamentos usados no combate à covid-19, além de imunizantes. Os americanos falam em liberar as patentes apenas de vacinas.
"Os EUA sinalizaram que as empresas precisam ser receptivas ao discutir um acordo, caso contrário podem ver a renúncia dos direitos de propriedade intelectual aprovada na OMC -- e elas não querem isso", afirma Lester. "Os americanos enviaram uma mensagem. Estão dizendo à indústria farmacêutica: não vamos mais fazer tudo o que vocês quiserem". E isso torna a indústria farmacêutica um pouco mais disposta a fazer concessões e possivelmente concordar em fazer o licenciamento de tecnologia", diz o ex-integrante da OMC.
Segundo Renata Amaral, a nova posição dos americanos também pode incentivar governos de outros países a adotarem a quebra unilateral de patentes. "O efeito deve ser apressar processos de licença compulsória que os países podem dar e usar a influência para convencer farmacêuticas a transferirem tecnologia e licença sem necessariamente partir para um 'waiver' mais amplo que abarque segredo industrial e outras coisas", afirma.
Os direitos de propriedade intelectual são registrados em cada país. Organizações de direitos humanos e de saúde pedem para que os países ofereçam uma licença compulsória -- a quebra de patente de maneira unilateral -- no caso de medicamentos e vacinas contra covid-19. Segundo a advogada e especialista em comércio internacional, a posição dos americanos sobre as patentes deve fortalecer esse discurso. A medida é prevista no Acordo de Propriedade Industrial (Trips) da OMC e pode ser adotada pelo país que concedeu a patente, em casos de emergência nacional ou abuso econômico por parte de empresas.
Foi o que aconteceu em 2007, quando o Brasil pela primeira vez quebrou a patente de um medicamento usado em pacientes portadores de HIV. O governo Lula anunciou a quebra de patente de droga usada no tratamento da aids. O medicamento era produzido por uma farmacêutica americana. Após a quebra de patente pelo governo brasileiro, o País passou a comprar remédio genérico produzido por uma fábrica indiana. A ideia surgiu no governo FHC, que ensaiou quebrar a patente de dois remédios usados no coquetel de tratamento da aids, mas recuou após conseguir negociações de redução de preço com as fabricantes.