Netanyahu continua seu projeto de degradação de Israel; leia o artigo de Thomas Friedman


Há uma sensação de estarrecimento hoje entre os diplomatas americanos que têm lidado com Netanyahu; eles acham difícil acreditar que Bibi se deixaria conduzir pelos instintos de indivíduos como Ben-Gvir — dispostos a colocar em risco as relações de Israel com os EUA

Por Thomas Friedman

Sempre que me perguntam qual é o meu trabalho, eu digo às pessoas que sou tradutor do inglês para o inglês. Eu tento tratar de assuntos complexos tornando-os compreensíveis, primeiro para mim mesmo, depois para os leitores — e é isto o que pretendo fazer aqui em relação a três questões inter-relacionadas: Por que o governo de Israel está tentando esmagar a Suprema Corte do país? Por que o presidente Joe Biden disse à CNN que “este é um dos mais extremos” governos israelenses que ele já viu? E por que o embaixador americano em Israel acaba de dizer que os EUA estão trabalhando para evitar que Israel “saia dos trilhos”?

A resposta resumida para estas três perguntas é que a equipe de Biden tem consciência de que o governo israelense de extrema direita liderado por Binyamin Netanyahu adota um comportamento radical sem precedentes — sob o pretexto de uma “reforma” judicial — que está comprometendo nossos interesses e valores compartilhados com Israel e a ficção compartilhada, de importância vital, sobre o status da Cisjordânia que manteve as esperanças de paz na região vivas, ainda que agonizantes.

Se vocês quiserem perceber apenas um sopro da tensão entre os EUA e o gabinete israelense comandado por extremistas considerem que, horas depois de Biden comentar a Fareed Zakaria na CNN a respeito da magnitude do extremismo de alguns integrantes do governo de Netanyahu, um dos ministros israelenses mais extremistas, o detentor da pasta da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, disse para Biden is se catar — porque “Israel deixou de ser estrela da bandeira americana”.

continua após a publicidade
Israelenses agitam sua bandeira nacional durante um protesto contra os planos do governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de reformar o sistema judicial, no Aeroporto Ben Gurion em Lod, perto de Tel Aviv, Israel, terça-feira, 11 de julho de 2023 Foto: Ariel Schalit / AP

Legal, né? De acordo com um relatório de 2020 do Serviço de Pesquisas do Congresso, Israel foi o país que mais recebeu assistência externa dos EUA desde a 2.ª Guerra; na casa de US$ 146 bilhões sem ajuste inflacionário. É uma baita mesada, que deveria fazer Ben-Gvir, condenado quando jovem pela Justiça por racismo contra árabes, demonstrar pelo menos um pouquinho mais de respeito pelo presidente americano.

Há uma sensação de estarrecimento hoje entre os diplomatas americanos que têm lidado com Netanyahu, primeiro-ministro israelense há mais tempo na função e homem de considerável inteligência e talento político. Eles acham difícil acreditar que Bibi se deixaria conduzir pelos instintos de indivíduos como Ben-Gvir — dispostos a colocar em risco as relações de Israel com os EUA e DISPOSTOS A PROVOCAR UMA GUERRA CIVIL EM ISRAEL apenas para permanecer no poder com um grupo de zé-ninguéns e ultranacionalistas.

continua após a publicidade

Mas assim é a coisa — e a coisa está feia. Dezenas de milhares de israelenses defensores da democracia bloquearam ruas e rodovias do país e ocuparam o aeroporto de Tel-Aviv na terça-feira para deixar claro para Netanyahu que, se ele pensa que pode assassinar a democracia israelense assim com tanta facilidade, ele está redondamente enganado.

Equilíbrio de poder

A ruptura nos valores compartilhados entre EUA e Israel começa com o fato de que a coalizão de governo de Netanyahu, que se contorceu para chegar ao gabinete sob margens ínfimas, decidiu se comportar como se tivesse ganhado de lavada e se movimentou imediatamente para alterar um equilíbrio de poder estabelecido há muito entre o Executivo e a Suprema Corte, o único organismo que fiscaliza o poder político em Israel.

continua após a publicidade

Nesta semana, Netanyahu e seus colegas começaram a empurrar na Knesset um projeto de lei que pretende retirar do Judiciário israelense a atribuição de aplicar a doutrina de razoabilidade tradicionalmente estabelecida na Justiça israelense que concede à Suprema Corte o direito de revisar e reverter decisões consideradas irresponsáveis ou antiéticas tomadas pelo gabinete Executivo, por ministros do governo ou por certas autoridades eleitas.

Conforme David Horovitz, jornalista que fundou e edita o centrista Times of Israel, escreveu na segunda-feira, “Somente um governo dedicado ao irrazoável se movimentaria para assegurar-se de que os ministros (da Suprema Corte) — único freio ao poder majoritário em um país sem Constituição e que não tem consagradas nem garantidas as liberdades de religião ou de expressão, além de outros direitos básicos — sejam incapazes de revisar a irrazoabilidade de suas políticas”.

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ao centro, conversa com o ministro de Energia de Israel, Israel Katz, o ministro da Justiça de Israel, Yariv Levin, e o ministro da Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben-Gvir, no Knesset, o parlamento de Israel, em Jerusalém, segunda-feira, 10 de julho de 2023 Foto: Maya Alleruzzo / AP
continua após a publicidade

Uma mudança dessa magnitude no respeitado sistema Judiciário de Israel, que orientou o surgimento de uma notável economia startup, é algo que deveria ser feito somente após um estudo de especialistas independentes politicamente e com amplo respaldo popular e consenso nacional. É assim que democracias verdadeiras fazem coisas dessa magnitude, mas nada disso está presente no caso de Netanyahu — o que sublinha que toda essa farsa não tem nada a ver com alguma “reforma” judicial, mas tudo a ver com uma explícita operação de tomada de poder por parte de cada segmento da coalizão de Netanyahu.

Os colonos israelenses querem tirar a Suprema Corte do caminho para poderem criar assentamentos em todas as partes da Cisjordânia e confiscar com facilidade terras palestinas. Os judeus ultraortodoxos querem tirar a Suprema Corte do caminho para que ninguém diga aos seus filhos que eles têm de servir ao Exército nem às suas escolas que elas têm de lecionar inglês, matemática, ciências e valores democráticos. E Netanyahu quer tirar a Suprema Corte do caminho para poder nomear qualquer representante da facção diminuta que bem entender para exercer cargos públicos cruciais.

Na segunda-feira, a Knesset deliberou favoravelmente ao projeto de lei que determina a reformulação no Judiciário em primeira votação — das três necessárias para sua aprovação; que Netanyahu pretende que ocorra antes do início do recesso parlamentar, em 31 de julho. Vocês conseguem imaginar os Estados Unidos emendando sua Constituição em apenas uns poucos meses, sem nenhum debate nacional, nenhum testemunho de especialistas e nenhuma tentativa do líder nacional de forjar consenso?

continua após a publicidade

Se as centenas de milhares de defensores da democracia israelense que têm tomado as ruas todos os sábados há mais de seis meses não forem capazes de impedir Netanyahu de arrebentar a porta e enfiar seu projeto de lei goela abaixo dos israelenses, isso irá, conforme escreveu outro dia no Haaretz o ex-primeiro-ministro israelense Ehud Barak, “degradar o Estado de Israel, transformando-o numa ditadura corrupta e racista que arruinará a sociedade, isolará o país” e encerrará “o capítulo democrático” da história israelense.

Governo

continua após a publicidade

Permitam-me oferecer um exemplo bem concreto. Segundo o pacto original de formação de governo que firmou com seus parceiros de direita na coalizão, Netanyahu nomeou Aryeh Deri, líder do partido judaico ultraortodoxo Shas, ministro do Interior, da Saúde e então, em dois anos, das Finanças, em rodízio com o líder do Partido Religioso Sionista, Bezalel Smotrich.

Deri foi condenado três vezes pela Justiça por crimes financeiros que o mandaram para a cadeia — incluindo evasão fiscal e recebimento de propinas. A Suprema Corte israelense, por 10 votos a 1, expressou a Netanyahu em janeiro que sua nomeação de um sonegador de impostos e tomador de propinas como ministro do governo era “extremamente irrazoável” e em “grave contradição a princípios básicos que deveriam orientar o primeiro-ministro quando ele aponta seus ministros”.

O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e Aryeh Deri, líder do partido Shas que representa judeus ultraortodoxos, participam de uma coletiva de imprensa antes da votação do orçamento nacional, em 23 de maio de 2023, na Knesset (parlamento israelense) em Jerusalém Foto: Gil Cohen-Magen / AFP

Netanyahu, que é julgado por acusações de corrupção, quer neutralizar a Suprema Corte para que o tribunal não possa impedi-lo de nomear esse sonegador de impostos seu ministro das Finanças — para administrar, entre outras coisas, as contribuições de cidadãos israelenses e americanos ao Tesouro de Israel. Bela “reforma”.

Agora tratemos dos nossos interesses comuns. Um dos interesses mais importantes que Israel e EUA compartilharam tem sido a ficção compartilhada de que a ocupação israelense na Cisjordânia é apenas temporária e que, algum dia, poderá haver uma solução de dois Estados com os 2,9 milhões de palestinos que vivem no território ocupado. Assim os americanos não tinham de se preocupar com os agora mais de 500 mil colonos israelenses que se assentaram por lá. Alguns ficariam quando o pacto de dois Estados vier; outros partiriam.

Por causa dessa ficção compartilhada, os EUA quase sempre defenderam Israel na ONU e na Corte Internacional de Justiça, em Haia, contra várias resoluções ou julgamentos dando conta de que Israel não ocupa temporariamente a Cisjordânia, mas na realidade anexou permanentemente o território palestino.

O atual governo israelense está neste momento fazendo tudo que pode para destruir essa ficção de compra de tempo. Desde que foi empossado primeiro-ministro, em dezembro, Netanyahu aprovou mais de 7 mil unidades habitacionais de assentamento, a maioria em localidades mais afastadas de Israel dentro da Cisjordânia. O governo também alterou a lei para permitir que colonos ilegais retornem para quatro assentamentos dos quais foram despejados pelo Exército israelense — rompendo uma promessa ao ex-presidente George W. Bush de que Israel nunca faria isso.

Smotrich, o ministro das Finanças de Netanyahu, declarou em março que “algo como os palestinos não existe, porque não existe algum povo palestino”. O partido de Smotrich é contra o estabelecimento de um Estado palestino e apoia a anexação da Cisjordânia.

O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, discursa na Knesset, o parlamento israelense, em Jerusalem  Foto: Maya Alleruzzo / AP

A constante destruição operada por Netanyahu dessa ficção comum representa neste momento um problema real para outros interesses compartilhados entre EUA e Israel: ameaça a estabilidade da Jordânia, que constitui um interesse vital americano e israelense; faz os Estados árabes que se juntaram a Israel nos Acordos de Abraão darem um passo atrás; e os sauditas pensarem duas vezes — e profundamente — a respeito de avançar no sentido da normalização com um regime israelense tão imprevisível.

O que força os EUA a escolher. Se o governo de Netanyahu passar a se comportar como se a Cisjordânia pertencesse a Israel, os EUA terão de insistir em duas coisas. Primeiro, que o acordo para isenção de necessidade de visto que os israelenses querem dos americanos — que permitiria a entrada nos EUA de todos os cidadãos de Israel, incluindo os mais de 500 mil colonos israelenses que vivem na Cisjordânia — deva se aplicar também aos 2,9 milhões de palestinos que vivem no território. Por que não? Por que um colono israelense assentado em Hebron, na Cisjordânia, deve poder entrar nos EUA sem visto e um palestino de Hebron, não? Especialmente quando este governo israelense de fato afirma que Hebron pertence a Israel.

Por que os EUA deveriam continuar a defender a ideia na ONU e na Corte Internacional de Justiça que Israel ocupa apenas temporariamente a Cisjordânia — e portanto não pratica algum tipo de apartheid por lá — quando este governo israelense parece abertamente dedicado a anexar o território palestino e deu a dois dos mais ativos defensores da anexação, Smotrich e Ben-Gvir, amplos poderes sobre a segurança e as finanças dos assentamentos na região?

O presidente de Israel, Isaac Herzog, homem decente e político moderado, que tem insistido para a coalizão de Netanyahu desistir de forçar qualquer mudança no Judiciário e, se for colocá-la em prática, não prescindir de um amplo consenso nacional, se reunirá com Biden em Washington na próxima semana. É a maneira de Biden sinalizar que seu problema não é com o povo israelense, mas com o gabinete extremista de Bibi.

O presidente de Israel, Isaac Herzog, discursa na cerimonia de abertura de um evento no museu do Holocausto em Jerusalém  Foto: Tsafrir Abayov / AP

Mas eu não tenho nenhuma dúvida de que o presidente americano infundirá no presidente israelense a mensagem — produto de pesar, não de ira — de que quando interesses e valores de um governo americano e um governo israelense divergem tanto, uma revisão da relação é inevitável.

Eu não estou falando em revisar nossa cooperação militar ou em inteligência com Israel, que permanece firme e vital. Estou falando da nossa interação diplomática básica com uma nação israelense que está se fixando despudoradamente numa solução de um Estado; um único Estado judaico, com o destino e os direitos dos palestinos a serem determinados.

Um reposicionamento desse tipo, com base nos interesses e valores americanos, resultaria em amor rude para Israel, mas é uma necessidade real antes que o país saia realmente dos trilhos. O fato de Biden estar preparado para investir contra Netanyahu anteriormente às eleições de 2024 sugere que nosso presidente acredita ter apoio não apenas da maioria dos americanos, mas também da maioria dos judeus americanos e talvez até da maioria dos judeus israelenses. E ele está correto sobre isso. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Sempre que me perguntam qual é o meu trabalho, eu digo às pessoas que sou tradutor do inglês para o inglês. Eu tento tratar de assuntos complexos tornando-os compreensíveis, primeiro para mim mesmo, depois para os leitores — e é isto o que pretendo fazer aqui em relação a três questões inter-relacionadas: Por que o governo de Israel está tentando esmagar a Suprema Corte do país? Por que o presidente Joe Biden disse à CNN que “este é um dos mais extremos” governos israelenses que ele já viu? E por que o embaixador americano em Israel acaba de dizer que os EUA estão trabalhando para evitar que Israel “saia dos trilhos”?

A resposta resumida para estas três perguntas é que a equipe de Biden tem consciência de que o governo israelense de extrema direita liderado por Binyamin Netanyahu adota um comportamento radical sem precedentes — sob o pretexto de uma “reforma” judicial — que está comprometendo nossos interesses e valores compartilhados com Israel e a ficção compartilhada, de importância vital, sobre o status da Cisjordânia que manteve as esperanças de paz na região vivas, ainda que agonizantes.

Se vocês quiserem perceber apenas um sopro da tensão entre os EUA e o gabinete israelense comandado por extremistas considerem que, horas depois de Biden comentar a Fareed Zakaria na CNN a respeito da magnitude do extremismo de alguns integrantes do governo de Netanyahu, um dos ministros israelenses mais extremistas, o detentor da pasta da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, disse para Biden is se catar — porque “Israel deixou de ser estrela da bandeira americana”.

Israelenses agitam sua bandeira nacional durante um protesto contra os planos do governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de reformar o sistema judicial, no Aeroporto Ben Gurion em Lod, perto de Tel Aviv, Israel, terça-feira, 11 de julho de 2023 Foto: Ariel Schalit / AP

Legal, né? De acordo com um relatório de 2020 do Serviço de Pesquisas do Congresso, Israel foi o país que mais recebeu assistência externa dos EUA desde a 2.ª Guerra; na casa de US$ 146 bilhões sem ajuste inflacionário. É uma baita mesada, que deveria fazer Ben-Gvir, condenado quando jovem pela Justiça por racismo contra árabes, demonstrar pelo menos um pouquinho mais de respeito pelo presidente americano.

Há uma sensação de estarrecimento hoje entre os diplomatas americanos que têm lidado com Netanyahu, primeiro-ministro israelense há mais tempo na função e homem de considerável inteligência e talento político. Eles acham difícil acreditar que Bibi se deixaria conduzir pelos instintos de indivíduos como Ben-Gvir — dispostos a colocar em risco as relações de Israel com os EUA e DISPOSTOS A PROVOCAR UMA GUERRA CIVIL EM ISRAEL apenas para permanecer no poder com um grupo de zé-ninguéns e ultranacionalistas.

Mas assim é a coisa — e a coisa está feia. Dezenas de milhares de israelenses defensores da democracia bloquearam ruas e rodovias do país e ocuparam o aeroporto de Tel-Aviv na terça-feira para deixar claro para Netanyahu que, se ele pensa que pode assassinar a democracia israelense assim com tanta facilidade, ele está redondamente enganado.

Equilíbrio de poder

A ruptura nos valores compartilhados entre EUA e Israel começa com o fato de que a coalizão de governo de Netanyahu, que se contorceu para chegar ao gabinete sob margens ínfimas, decidiu se comportar como se tivesse ganhado de lavada e se movimentou imediatamente para alterar um equilíbrio de poder estabelecido há muito entre o Executivo e a Suprema Corte, o único organismo que fiscaliza o poder político em Israel.

Nesta semana, Netanyahu e seus colegas começaram a empurrar na Knesset um projeto de lei que pretende retirar do Judiciário israelense a atribuição de aplicar a doutrina de razoabilidade tradicionalmente estabelecida na Justiça israelense que concede à Suprema Corte o direito de revisar e reverter decisões consideradas irresponsáveis ou antiéticas tomadas pelo gabinete Executivo, por ministros do governo ou por certas autoridades eleitas.

Conforme David Horovitz, jornalista que fundou e edita o centrista Times of Israel, escreveu na segunda-feira, “Somente um governo dedicado ao irrazoável se movimentaria para assegurar-se de que os ministros (da Suprema Corte) — único freio ao poder majoritário em um país sem Constituição e que não tem consagradas nem garantidas as liberdades de religião ou de expressão, além de outros direitos básicos — sejam incapazes de revisar a irrazoabilidade de suas políticas”.

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ao centro, conversa com o ministro de Energia de Israel, Israel Katz, o ministro da Justiça de Israel, Yariv Levin, e o ministro da Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben-Gvir, no Knesset, o parlamento de Israel, em Jerusalém, segunda-feira, 10 de julho de 2023 Foto: Maya Alleruzzo / AP

Uma mudança dessa magnitude no respeitado sistema Judiciário de Israel, que orientou o surgimento de uma notável economia startup, é algo que deveria ser feito somente após um estudo de especialistas independentes politicamente e com amplo respaldo popular e consenso nacional. É assim que democracias verdadeiras fazem coisas dessa magnitude, mas nada disso está presente no caso de Netanyahu — o que sublinha que toda essa farsa não tem nada a ver com alguma “reforma” judicial, mas tudo a ver com uma explícita operação de tomada de poder por parte de cada segmento da coalizão de Netanyahu.

Os colonos israelenses querem tirar a Suprema Corte do caminho para poderem criar assentamentos em todas as partes da Cisjordânia e confiscar com facilidade terras palestinas. Os judeus ultraortodoxos querem tirar a Suprema Corte do caminho para que ninguém diga aos seus filhos que eles têm de servir ao Exército nem às suas escolas que elas têm de lecionar inglês, matemática, ciências e valores democráticos. E Netanyahu quer tirar a Suprema Corte do caminho para poder nomear qualquer representante da facção diminuta que bem entender para exercer cargos públicos cruciais.

Na segunda-feira, a Knesset deliberou favoravelmente ao projeto de lei que determina a reformulação no Judiciário em primeira votação — das três necessárias para sua aprovação; que Netanyahu pretende que ocorra antes do início do recesso parlamentar, em 31 de julho. Vocês conseguem imaginar os Estados Unidos emendando sua Constituição em apenas uns poucos meses, sem nenhum debate nacional, nenhum testemunho de especialistas e nenhuma tentativa do líder nacional de forjar consenso?

Se as centenas de milhares de defensores da democracia israelense que têm tomado as ruas todos os sábados há mais de seis meses não forem capazes de impedir Netanyahu de arrebentar a porta e enfiar seu projeto de lei goela abaixo dos israelenses, isso irá, conforme escreveu outro dia no Haaretz o ex-primeiro-ministro israelense Ehud Barak, “degradar o Estado de Israel, transformando-o numa ditadura corrupta e racista que arruinará a sociedade, isolará o país” e encerrará “o capítulo democrático” da história israelense.

Governo

Permitam-me oferecer um exemplo bem concreto. Segundo o pacto original de formação de governo que firmou com seus parceiros de direita na coalizão, Netanyahu nomeou Aryeh Deri, líder do partido judaico ultraortodoxo Shas, ministro do Interior, da Saúde e então, em dois anos, das Finanças, em rodízio com o líder do Partido Religioso Sionista, Bezalel Smotrich.

Deri foi condenado três vezes pela Justiça por crimes financeiros que o mandaram para a cadeia — incluindo evasão fiscal e recebimento de propinas. A Suprema Corte israelense, por 10 votos a 1, expressou a Netanyahu em janeiro que sua nomeação de um sonegador de impostos e tomador de propinas como ministro do governo era “extremamente irrazoável” e em “grave contradição a princípios básicos que deveriam orientar o primeiro-ministro quando ele aponta seus ministros”.

O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e Aryeh Deri, líder do partido Shas que representa judeus ultraortodoxos, participam de uma coletiva de imprensa antes da votação do orçamento nacional, em 23 de maio de 2023, na Knesset (parlamento israelense) em Jerusalém Foto: Gil Cohen-Magen / AFP

Netanyahu, que é julgado por acusações de corrupção, quer neutralizar a Suprema Corte para que o tribunal não possa impedi-lo de nomear esse sonegador de impostos seu ministro das Finanças — para administrar, entre outras coisas, as contribuições de cidadãos israelenses e americanos ao Tesouro de Israel. Bela “reforma”.

Agora tratemos dos nossos interesses comuns. Um dos interesses mais importantes que Israel e EUA compartilharam tem sido a ficção compartilhada de que a ocupação israelense na Cisjordânia é apenas temporária e que, algum dia, poderá haver uma solução de dois Estados com os 2,9 milhões de palestinos que vivem no território ocupado. Assim os americanos não tinham de se preocupar com os agora mais de 500 mil colonos israelenses que se assentaram por lá. Alguns ficariam quando o pacto de dois Estados vier; outros partiriam.

Por causa dessa ficção compartilhada, os EUA quase sempre defenderam Israel na ONU e na Corte Internacional de Justiça, em Haia, contra várias resoluções ou julgamentos dando conta de que Israel não ocupa temporariamente a Cisjordânia, mas na realidade anexou permanentemente o território palestino.

O atual governo israelense está neste momento fazendo tudo que pode para destruir essa ficção de compra de tempo. Desde que foi empossado primeiro-ministro, em dezembro, Netanyahu aprovou mais de 7 mil unidades habitacionais de assentamento, a maioria em localidades mais afastadas de Israel dentro da Cisjordânia. O governo também alterou a lei para permitir que colonos ilegais retornem para quatro assentamentos dos quais foram despejados pelo Exército israelense — rompendo uma promessa ao ex-presidente George W. Bush de que Israel nunca faria isso.

Smotrich, o ministro das Finanças de Netanyahu, declarou em março que “algo como os palestinos não existe, porque não existe algum povo palestino”. O partido de Smotrich é contra o estabelecimento de um Estado palestino e apoia a anexação da Cisjordânia.

O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, discursa na Knesset, o parlamento israelense, em Jerusalem  Foto: Maya Alleruzzo / AP

A constante destruição operada por Netanyahu dessa ficção comum representa neste momento um problema real para outros interesses compartilhados entre EUA e Israel: ameaça a estabilidade da Jordânia, que constitui um interesse vital americano e israelense; faz os Estados árabes que se juntaram a Israel nos Acordos de Abraão darem um passo atrás; e os sauditas pensarem duas vezes — e profundamente — a respeito de avançar no sentido da normalização com um regime israelense tão imprevisível.

O que força os EUA a escolher. Se o governo de Netanyahu passar a se comportar como se a Cisjordânia pertencesse a Israel, os EUA terão de insistir em duas coisas. Primeiro, que o acordo para isenção de necessidade de visto que os israelenses querem dos americanos — que permitiria a entrada nos EUA de todos os cidadãos de Israel, incluindo os mais de 500 mil colonos israelenses que vivem na Cisjordânia — deva se aplicar também aos 2,9 milhões de palestinos que vivem no território. Por que não? Por que um colono israelense assentado em Hebron, na Cisjordânia, deve poder entrar nos EUA sem visto e um palestino de Hebron, não? Especialmente quando este governo israelense de fato afirma que Hebron pertence a Israel.

Por que os EUA deveriam continuar a defender a ideia na ONU e na Corte Internacional de Justiça que Israel ocupa apenas temporariamente a Cisjordânia — e portanto não pratica algum tipo de apartheid por lá — quando este governo israelense parece abertamente dedicado a anexar o território palestino e deu a dois dos mais ativos defensores da anexação, Smotrich e Ben-Gvir, amplos poderes sobre a segurança e as finanças dos assentamentos na região?

O presidente de Israel, Isaac Herzog, homem decente e político moderado, que tem insistido para a coalizão de Netanyahu desistir de forçar qualquer mudança no Judiciário e, se for colocá-la em prática, não prescindir de um amplo consenso nacional, se reunirá com Biden em Washington na próxima semana. É a maneira de Biden sinalizar que seu problema não é com o povo israelense, mas com o gabinete extremista de Bibi.

O presidente de Israel, Isaac Herzog, discursa na cerimonia de abertura de um evento no museu do Holocausto em Jerusalém  Foto: Tsafrir Abayov / AP

Mas eu não tenho nenhuma dúvida de que o presidente americano infundirá no presidente israelense a mensagem — produto de pesar, não de ira — de que quando interesses e valores de um governo americano e um governo israelense divergem tanto, uma revisão da relação é inevitável.

Eu não estou falando em revisar nossa cooperação militar ou em inteligência com Israel, que permanece firme e vital. Estou falando da nossa interação diplomática básica com uma nação israelense que está se fixando despudoradamente numa solução de um Estado; um único Estado judaico, com o destino e os direitos dos palestinos a serem determinados.

Um reposicionamento desse tipo, com base nos interesses e valores americanos, resultaria em amor rude para Israel, mas é uma necessidade real antes que o país saia realmente dos trilhos. O fato de Biden estar preparado para investir contra Netanyahu anteriormente às eleições de 2024 sugere que nosso presidente acredita ter apoio não apenas da maioria dos americanos, mas também da maioria dos judeus americanos e talvez até da maioria dos judeus israelenses. E ele está correto sobre isso. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Sempre que me perguntam qual é o meu trabalho, eu digo às pessoas que sou tradutor do inglês para o inglês. Eu tento tratar de assuntos complexos tornando-os compreensíveis, primeiro para mim mesmo, depois para os leitores — e é isto o que pretendo fazer aqui em relação a três questões inter-relacionadas: Por que o governo de Israel está tentando esmagar a Suprema Corte do país? Por que o presidente Joe Biden disse à CNN que “este é um dos mais extremos” governos israelenses que ele já viu? E por que o embaixador americano em Israel acaba de dizer que os EUA estão trabalhando para evitar que Israel “saia dos trilhos”?

A resposta resumida para estas três perguntas é que a equipe de Biden tem consciência de que o governo israelense de extrema direita liderado por Binyamin Netanyahu adota um comportamento radical sem precedentes — sob o pretexto de uma “reforma” judicial — que está comprometendo nossos interesses e valores compartilhados com Israel e a ficção compartilhada, de importância vital, sobre o status da Cisjordânia que manteve as esperanças de paz na região vivas, ainda que agonizantes.

Se vocês quiserem perceber apenas um sopro da tensão entre os EUA e o gabinete israelense comandado por extremistas considerem que, horas depois de Biden comentar a Fareed Zakaria na CNN a respeito da magnitude do extremismo de alguns integrantes do governo de Netanyahu, um dos ministros israelenses mais extremistas, o detentor da pasta da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, disse para Biden is se catar — porque “Israel deixou de ser estrela da bandeira americana”.

Israelenses agitam sua bandeira nacional durante um protesto contra os planos do governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de reformar o sistema judicial, no Aeroporto Ben Gurion em Lod, perto de Tel Aviv, Israel, terça-feira, 11 de julho de 2023 Foto: Ariel Schalit / AP

Legal, né? De acordo com um relatório de 2020 do Serviço de Pesquisas do Congresso, Israel foi o país que mais recebeu assistência externa dos EUA desde a 2.ª Guerra; na casa de US$ 146 bilhões sem ajuste inflacionário. É uma baita mesada, que deveria fazer Ben-Gvir, condenado quando jovem pela Justiça por racismo contra árabes, demonstrar pelo menos um pouquinho mais de respeito pelo presidente americano.

Há uma sensação de estarrecimento hoje entre os diplomatas americanos que têm lidado com Netanyahu, primeiro-ministro israelense há mais tempo na função e homem de considerável inteligência e talento político. Eles acham difícil acreditar que Bibi se deixaria conduzir pelos instintos de indivíduos como Ben-Gvir — dispostos a colocar em risco as relações de Israel com os EUA e DISPOSTOS A PROVOCAR UMA GUERRA CIVIL EM ISRAEL apenas para permanecer no poder com um grupo de zé-ninguéns e ultranacionalistas.

Mas assim é a coisa — e a coisa está feia. Dezenas de milhares de israelenses defensores da democracia bloquearam ruas e rodovias do país e ocuparam o aeroporto de Tel-Aviv na terça-feira para deixar claro para Netanyahu que, se ele pensa que pode assassinar a democracia israelense assim com tanta facilidade, ele está redondamente enganado.

Equilíbrio de poder

A ruptura nos valores compartilhados entre EUA e Israel começa com o fato de que a coalizão de governo de Netanyahu, que se contorceu para chegar ao gabinete sob margens ínfimas, decidiu se comportar como se tivesse ganhado de lavada e se movimentou imediatamente para alterar um equilíbrio de poder estabelecido há muito entre o Executivo e a Suprema Corte, o único organismo que fiscaliza o poder político em Israel.

Nesta semana, Netanyahu e seus colegas começaram a empurrar na Knesset um projeto de lei que pretende retirar do Judiciário israelense a atribuição de aplicar a doutrina de razoabilidade tradicionalmente estabelecida na Justiça israelense que concede à Suprema Corte o direito de revisar e reverter decisões consideradas irresponsáveis ou antiéticas tomadas pelo gabinete Executivo, por ministros do governo ou por certas autoridades eleitas.

Conforme David Horovitz, jornalista que fundou e edita o centrista Times of Israel, escreveu na segunda-feira, “Somente um governo dedicado ao irrazoável se movimentaria para assegurar-se de que os ministros (da Suprema Corte) — único freio ao poder majoritário em um país sem Constituição e que não tem consagradas nem garantidas as liberdades de religião ou de expressão, além de outros direitos básicos — sejam incapazes de revisar a irrazoabilidade de suas políticas”.

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ao centro, conversa com o ministro de Energia de Israel, Israel Katz, o ministro da Justiça de Israel, Yariv Levin, e o ministro da Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben-Gvir, no Knesset, o parlamento de Israel, em Jerusalém, segunda-feira, 10 de julho de 2023 Foto: Maya Alleruzzo / AP

Uma mudança dessa magnitude no respeitado sistema Judiciário de Israel, que orientou o surgimento de uma notável economia startup, é algo que deveria ser feito somente após um estudo de especialistas independentes politicamente e com amplo respaldo popular e consenso nacional. É assim que democracias verdadeiras fazem coisas dessa magnitude, mas nada disso está presente no caso de Netanyahu — o que sublinha que toda essa farsa não tem nada a ver com alguma “reforma” judicial, mas tudo a ver com uma explícita operação de tomada de poder por parte de cada segmento da coalizão de Netanyahu.

Os colonos israelenses querem tirar a Suprema Corte do caminho para poderem criar assentamentos em todas as partes da Cisjordânia e confiscar com facilidade terras palestinas. Os judeus ultraortodoxos querem tirar a Suprema Corte do caminho para que ninguém diga aos seus filhos que eles têm de servir ao Exército nem às suas escolas que elas têm de lecionar inglês, matemática, ciências e valores democráticos. E Netanyahu quer tirar a Suprema Corte do caminho para poder nomear qualquer representante da facção diminuta que bem entender para exercer cargos públicos cruciais.

Na segunda-feira, a Knesset deliberou favoravelmente ao projeto de lei que determina a reformulação no Judiciário em primeira votação — das três necessárias para sua aprovação; que Netanyahu pretende que ocorra antes do início do recesso parlamentar, em 31 de julho. Vocês conseguem imaginar os Estados Unidos emendando sua Constituição em apenas uns poucos meses, sem nenhum debate nacional, nenhum testemunho de especialistas e nenhuma tentativa do líder nacional de forjar consenso?

Se as centenas de milhares de defensores da democracia israelense que têm tomado as ruas todos os sábados há mais de seis meses não forem capazes de impedir Netanyahu de arrebentar a porta e enfiar seu projeto de lei goela abaixo dos israelenses, isso irá, conforme escreveu outro dia no Haaretz o ex-primeiro-ministro israelense Ehud Barak, “degradar o Estado de Israel, transformando-o numa ditadura corrupta e racista que arruinará a sociedade, isolará o país” e encerrará “o capítulo democrático” da história israelense.

Governo

Permitam-me oferecer um exemplo bem concreto. Segundo o pacto original de formação de governo que firmou com seus parceiros de direita na coalizão, Netanyahu nomeou Aryeh Deri, líder do partido judaico ultraortodoxo Shas, ministro do Interior, da Saúde e então, em dois anos, das Finanças, em rodízio com o líder do Partido Religioso Sionista, Bezalel Smotrich.

Deri foi condenado três vezes pela Justiça por crimes financeiros que o mandaram para a cadeia — incluindo evasão fiscal e recebimento de propinas. A Suprema Corte israelense, por 10 votos a 1, expressou a Netanyahu em janeiro que sua nomeação de um sonegador de impostos e tomador de propinas como ministro do governo era “extremamente irrazoável” e em “grave contradição a princípios básicos que deveriam orientar o primeiro-ministro quando ele aponta seus ministros”.

O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e Aryeh Deri, líder do partido Shas que representa judeus ultraortodoxos, participam de uma coletiva de imprensa antes da votação do orçamento nacional, em 23 de maio de 2023, na Knesset (parlamento israelense) em Jerusalém Foto: Gil Cohen-Magen / AFP

Netanyahu, que é julgado por acusações de corrupção, quer neutralizar a Suprema Corte para que o tribunal não possa impedi-lo de nomear esse sonegador de impostos seu ministro das Finanças — para administrar, entre outras coisas, as contribuições de cidadãos israelenses e americanos ao Tesouro de Israel. Bela “reforma”.

Agora tratemos dos nossos interesses comuns. Um dos interesses mais importantes que Israel e EUA compartilharam tem sido a ficção compartilhada de que a ocupação israelense na Cisjordânia é apenas temporária e que, algum dia, poderá haver uma solução de dois Estados com os 2,9 milhões de palestinos que vivem no território ocupado. Assim os americanos não tinham de se preocupar com os agora mais de 500 mil colonos israelenses que se assentaram por lá. Alguns ficariam quando o pacto de dois Estados vier; outros partiriam.

Por causa dessa ficção compartilhada, os EUA quase sempre defenderam Israel na ONU e na Corte Internacional de Justiça, em Haia, contra várias resoluções ou julgamentos dando conta de que Israel não ocupa temporariamente a Cisjordânia, mas na realidade anexou permanentemente o território palestino.

O atual governo israelense está neste momento fazendo tudo que pode para destruir essa ficção de compra de tempo. Desde que foi empossado primeiro-ministro, em dezembro, Netanyahu aprovou mais de 7 mil unidades habitacionais de assentamento, a maioria em localidades mais afastadas de Israel dentro da Cisjordânia. O governo também alterou a lei para permitir que colonos ilegais retornem para quatro assentamentos dos quais foram despejados pelo Exército israelense — rompendo uma promessa ao ex-presidente George W. Bush de que Israel nunca faria isso.

Smotrich, o ministro das Finanças de Netanyahu, declarou em março que “algo como os palestinos não existe, porque não existe algum povo palestino”. O partido de Smotrich é contra o estabelecimento de um Estado palestino e apoia a anexação da Cisjordânia.

O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, discursa na Knesset, o parlamento israelense, em Jerusalem  Foto: Maya Alleruzzo / AP

A constante destruição operada por Netanyahu dessa ficção comum representa neste momento um problema real para outros interesses compartilhados entre EUA e Israel: ameaça a estabilidade da Jordânia, que constitui um interesse vital americano e israelense; faz os Estados árabes que se juntaram a Israel nos Acordos de Abraão darem um passo atrás; e os sauditas pensarem duas vezes — e profundamente — a respeito de avançar no sentido da normalização com um regime israelense tão imprevisível.

O que força os EUA a escolher. Se o governo de Netanyahu passar a se comportar como se a Cisjordânia pertencesse a Israel, os EUA terão de insistir em duas coisas. Primeiro, que o acordo para isenção de necessidade de visto que os israelenses querem dos americanos — que permitiria a entrada nos EUA de todos os cidadãos de Israel, incluindo os mais de 500 mil colonos israelenses que vivem na Cisjordânia — deva se aplicar também aos 2,9 milhões de palestinos que vivem no território. Por que não? Por que um colono israelense assentado em Hebron, na Cisjordânia, deve poder entrar nos EUA sem visto e um palestino de Hebron, não? Especialmente quando este governo israelense de fato afirma que Hebron pertence a Israel.

Por que os EUA deveriam continuar a defender a ideia na ONU e na Corte Internacional de Justiça que Israel ocupa apenas temporariamente a Cisjordânia — e portanto não pratica algum tipo de apartheid por lá — quando este governo israelense parece abertamente dedicado a anexar o território palestino e deu a dois dos mais ativos defensores da anexação, Smotrich e Ben-Gvir, amplos poderes sobre a segurança e as finanças dos assentamentos na região?

O presidente de Israel, Isaac Herzog, homem decente e político moderado, que tem insistido para a coalizão de Netanyahu desistir de forçar qualquer mudança no Judiciário e, se for colocá-la em prática, não prescindir de um amplo consenso nacional, se reunirá com Biden em Washington na próxima semana. É a maneira de Biden sinalizar que seu problema não é com o povo israelense, mas com o gabinete extremista de Bibi.

O presidente de Israel, Isaac Herzog, discursa na cerimonia de abertura de um evento no museu do Holocausto em Jerusalém  Foto: Tsafrir Abayov / AP

Mas eu não tenho nenhuma dúvida de que o presidente americano infundirá no presidente israelense a mensagem — produto de pesar, não de ira — de que quando interesses e valores de um governo americano e um governo israelense divergem tanto, uma revisão da relação é inevitável.

Eu não estou falando em revisar nossa cooperação militar ou em inteligência com Israel, que permanece firme e vital. Estou falando da nossa interação diplomática básica com uma nação israelense que está se fixando despudoradamente numa solução de um Estado; um único Estado judaico, com o destino e os direitos dos palestinos a serem determinados.

Um reposicionamento desse tipo, com base nos interesses e valores americanos, resultaria em amor rude para Israel, mas é uma necessidade real antes que o país saia realmente dos trilhos. O fato de Biden estar preparado para investir contra Netanyahu anteriormente às eleições de 2024 sugere que nosso presidente acredita ter apoio não apenas da maioria dos americanos, mas também da maioria dos judeus americanos e talvez até da maioria dos judeus israelenses. E ele está correto sobre isso. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Sempre que me perguntam qual é o meu trabalho, eu digo às pessoas que sou tradutor do inglês para o inglês. Eu tento tratar de assuntos complexos tornando-os compreensíveis, primeiro para mim mesmo, depois para os leitores — e é isto o que pretendo fazer aqui em relação a três questões inter-relacionadas: Por que o governo de Israel está tentando esmagar a Suprema Corte do país? Por que o presidente Joe Biden disse à CNN que “este é um dos mais extremos” governos israelenses que ele já viu? E por que o embaixador americano em Israel acaba de dizer que os EUA estão trabalhando para evitar que Israel “saia dos trilhos”?

A resposta resumida para estas três perguntas é que a equipe de Biden tem consciência de que o governo israelense de extrema direita liderado por Binyamin Netanyahu adota um comportamento radical sem precedentes — sob o pretexto de uma “reforma” judicial — que está comprometendo nossos interesses e valores compartilhados com Israel e a ficção compartilhada, de importância vital, sobre o status da Cisjordânia que manteve as esperanças de paz na região vivas, ainda que agonizantes.

Se vocês quiserem perceber apenas um sopro da tensão entre os EUA e o gabinete israelense comandado por extremistas considerem que, horas depois de Biden comentar a Fareed Zakaria na CNN a respeito da magnitude do extremismo de alguns integrantes do governo de Netanyahu, um dos ministros israelenses mais extremistas, o detentor da pasta da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, disse para Biden is se catar — porque “Israel deixou de ser estrela da bandeira americana”.

Israelenses agitam sua bandeira nacional durante um protesto contra os planos do governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de reformar o sistema judicial, no Aeroporto Ben Gurion em Lod, perto de Tel Aviv, Israel, terça-feira, 11 de julho de 2023 Foto: Ariel Schalit / AP

Legal, né? De acordo com um relatório de 2020 do Serviço de Pesquisas do Congresso, Israel foi o país que mais recebeu assistência externa dos EUA desde a 2.ª Guerra; na casa de US$ 146 bilhões sem ajuste inflacionário. É uma baita mesada, que deveria fazer Ben-Gvir, condenado quando jovem pela Justiça por racismo contra árabes, demonstrar pelo menos um pouquinho mais de respeito pelo presidente americano.

Há uma sensação de estarrecimento hoje entre os diplomatas americanos que têm lidado com Netanyahu, primeiro-ministro israelense há mais tempo na função e homem de considerável inteligência e talento político. Eles acham difícil acreditar que Bibi se deixaria conduzir pelos instintos de indivíduos como Ben-Gvir — dispostos a colocar em risco as relações de Israel com os EUA e DISPOSTOS A PROVOCAR UMA GUERRA CIVIL EM ISRAEL apenas para permanecer no poder com um grupo de zé-ninguéns e ultranacionalistas.

Mas assim é a coisa — e a coisa está feia. Dezenas de milhares de israelenses defensores da democracia bloquearam ruas e rodovias do país e ocuparam o aeroporto de Tel-Aviv na terça-feira para deixar claro para Netanyahu que, se ele pensa que pode assassinar a democracia israelense assim com tanta facilidade, ele está redondamente enganado.

Equilíbrio de poder

A ruptura nos valores compartilhados entre EUA e Israel começa com o fato de que a coalizão de governo de Netanyahu, que se contorceu para chegar ao gabinete sob margens ínfimas, decidiu se comportar como se tivesse ganhado de lavada e se movimentou imediatamente para alterar um equilíbrio de poder estabelecido há muito entre o Executivo e a Suprema Corte, o único organismo que fiscaliza o poder político em Israel.

Nesta semana, Netanyahu e seus colegas começaram a empurrar na Knesset um projeto de lei que pretende retirar do Judiciário israelense a atribuição de aplicar a doutrina de razoabilidade tradicionalmente estabelecida na Justiça israelense que concede à Suprema Corte o direito de revisar e reverter decisões consideradas irresponsáveis ou antiéticas tomadas pelo gabinete Executivo, por ministros do governo ou por certas autoridades eleitas.

Conforme David Horovitz, jornalista que fundou e edita o centrista Times of Israel, escreveu na segunda-feira, “Somente um governo dedicado ao irrazoável se movimentaria para assegurar-se de que os ministros (da Suprema Corte) — único freio ao poder majoritário em um país sem Constituição e que não tem consagradas nem garantidas as liberdades de religião ou de expressão, além de outros direitos básicos — sejam incapazes de revisar a irrazoabilidade de suas políticas”.

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ao centro, conversa com o ministro de Energia de Israel, Israel Katz, o ministro da Justiça de Israel, Yariv Levin, e o ministro da Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben-Gvir, no Knesset, o parlamento de Israel, em Jerusalém, segunda-feira, 10 de julho de 2023 Foto: Maya Alleruzzo / AP

Uma mudança dessa magnitude no respeitado sistema Judiciário de Israel, que orientou o surgimento de uma notável economia startup, é algo que deveria ser feito somente após um estudo de especialistas independentes politicamente e com amplo respaldo popular e consenso nacional. É assim que democracias verdadeiras fazem coisas dessa magnitude, mas nada disso está presente no caso de Netanyahu — o que sublinha que toda essa farsa não tem nada a ver com alguma “reforma” judicial, mas tudo a ver com uma explícita operação de tomada de poder por parte de cada segmento da coalizão de Netanyahu.

Os colonos israelenses querem tirar a Suprema Corte do caminho para poderem criar assentamentos em todas as partes da Cisjordânia e confiscar com facilidade terras palestinas. Os judeus ultraortodoxos querem tirar a Suprema Corte do caminho para que ninguém diga aos seus filhos que eles têm de servir ao Exército nem às suas escolas que elas têm de lecionar inglês, matemática, ciências e valores democráticos. E Netanyahu quer tirar a Suprema Corte do caminho para poder nomear qualquer representante da facção diminuta que bem entender para exercer cargos públicos cruciais.

Na segunda-feira, a Knesset deliberou favoravelmente ao projeto de lei que determina a reformulação no Judiciário em primeira votação — das três necessárias para sua aprovação; que Netanyahu pretende que ocorra antes do início do recesso parlamentar, em 31 de julho. Vocês conseguem imaginar os Estados Unidos emendando sua Constituição em apenas uns poucos meses, sem nenhum debate nacional, nenhum testemunho de especialistas e nenhuma tentativa do líder nacional de forjar consenso?

Se as centenas de milhares de defensores da democracia israelense que têm tomado as ruas todos os sábados há mais de seis meses não forem capazes de impedir Netanyahu de arrebentar a porta e enfiar seu projeto de lei goela abaixo dos israelenses, isso irá, conforme escreveu outro dia no Haaretz o ex-primeiro-ministro israelense Ehud Barak, “degradar o Estado de Israel, transformando-o numa ditadura corrupta e racista que arruinará a sociedade, isolará o país” e encerrará “o capítulo democrático” da história israelense.

Governo

Permitam-me oferecer um exemplo bem concreto. Segundo o pacto original de formação de governo que firmou com seus parceiros de direita na coalizão, Netanyahu nomeou Aryeh Deri, líder do partido judaico ultraortodoxo Shas, ministro do Interior, da Saúde e então, em dois anos, das Finanças, em rodízio com o líder do Partido Religioso Sionista, Bezalel Smotrich.

Deri foi condenado três vezes pela Justiça por crimes financeiros que o mandaram para a cadeia — incluindo evasão fiscal e recebimento de propinas. A Suprema Corte israelense, por 10 votos a 1, expressou a Netanyahu em janeiro que sua nomeação de um sonegador de impostos e tomador de propinas como ministro do governo era “extremamente irrazoável” e em “grave contradição a princípios básicos que deveriam orientar o primeiro-ministro quando ele aponta seus ministros”.

O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e Aryeh Deri, líder do partido Shas que representa judeus ultraortodoxos, participam de uma coletiva de imprensa antes da votação do orçamento nacional, em 23 de maio de 2023, na Knesset (parlamento israelense) em Jerusalém Foto: Gil Cohen-Magen / AFP

Netanyahu, que é julgado por acusações de corrupção, quer neutralizar a Suprema Corte para que o tribunal não possa impedi-lo de nomear esse sonegador de impostos seu ministro das Finanças — para administrar, entre outras coisas, as contribuições de cidadãos israelenses e americanos ao Tesouro de Israel. Bela “reforma”.

Agora tratemos dos nossos interesses comuns. Um dos interesses mais importantes que Israel e EUA compartilharam tem sido a ficção compartilhada de que a ocupação israelense na Cisjordânia é apenas temporária e que, algum dia, poderá haver uma solução de dois Estados com os 2,9 milhões de palestinos que vivem no território ocupado. Assim os americanos não tinham de se preocupar com os agora mais de 500 mil colonos israelenses que se assentaram por lá. Alguns ficariam quando o pacto de dois Estados vier; outros partiriam.

Por causa dessa ficção compartilhada, os EUA quase sempre defenderam Israel na ONU e na Corte Internacional de Justiça, em Haia, contra várias resoluções ou julgamentos dando conta de que Israel não ocupa temporariamente a Cisjordânia, mas na realidade anexou permanentemente o território palestino.

O atual governo israelense está neste momento fazendo tudo que pode para destruir essa ficção de compra de tempo. Desde que foi empossado primeiro-ministro, em dezembro, Netanyahu aprovou mais de 7 mil unidades habitacionais de assentamento, a maioria em localidades mais afastadas de Israel dentro da Cisjordânia. O governo também alterou a lei para permitir que colonos ilegais retornem para quatro assentamentos dos quais foram despejados pelo Exército israelense — rompendo uma promessa ao ex-presidente George W. Bush de que Israel nunca faria isso.

Smotrich, o ministro das Finanças de Netanyahu, declarou em março que “algo como os palestinos não existe, porque não existe algum povo palestino”. O partido de Smotrich é contra o estabelecimento de um Estado palestino e apoia a anexação da Cisjordânia.

O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, discursa na Knesset, o parlamento israelense, em Jerusalem  Foto: Maya Alleruzzo / AP

A constante destruição operada por Netanyahu dessa ficção comum representa neste momento um problema real para outros interesses compartilhados entre EUA e Israel: ameaça a estabilidade da Jordânia, que constitui um interesse vital americano e israelense; faz os Estados árabes que se juntaram a Israel nos Acordos de Abraão darem um passo atrás; e os sauditas pensarem duas vezes — e profundamente — a respeito de avançar no sentido da normalização com um regime israelense tão imprevisível.

O que força os EUA a escolher. Se o governo de Netanyahu passar a se comportar como se a Cisjordânia pertencesse a Israel, os EUA terão de insistir em duas coisas. Primeiro, que o acordo para isenção de necessidade de visto que os israelenses querem dos americanos — que permitiria a entrada nos EUA de todos os cidadãos de Israel, incluindo os mais de 500 mil colonos israelenses que vivem na Cisjordânia — deva se aplicar também aos 2,9 milhões de palestinos que vivem no território. Por que não? Por que um colono israelense assentado em Hebron, na Cisjordânia, deve poder entrar nos EUA sem visto e um palestino de Hebron, não? Especialmente quando este governo israelense de fato afirma que Hebron pertence a Israel.

Por que os EUA deveriam continuar a defender a ideia na ONU e na Corte Internacional de Justiça que Israel ocupa apenas temporariamente a Cisjordânia — e portanto não pratica algum tipo de apartheid por lá — quando este governo israelense parece abertamente dedicado a anexar o território palestino e deu a dois dos mais ativos defensores da anexação, Smotrich e Ben-Gvir, amplos poderes sobre a segurança e as finanças dos assentamentos na região?

O presidente de Israel, Isaac Herzog, homem decente e político moderado, que tem insistido para a coalizão de Netanyahu desistir de forçar qualquer mudança no Judiciário e, se for colocá-la em prática, não prescindir de um amplo consenso nacional, se reunirá com Biden em Washington na próxima semana. É a maneira de Biden sinalizar que seu problema não é com o povo israelense, mas com o gabinete extremista de Bibi.

O presidente de Israel, Isaac Herzog, discursa na cerimonia de abertura de um evento no museu do Holocausto em Jerusalém  Foto: Tsafrir Abayov / AP

Mas eu não tenho nenhuma dúvida de que o presidente americano infundirá no presidente israelense a mensagem — produto de pesar, não de ira — de que quando interesses e valores de um governo americano e um governo israelense divergem tanto, uma revisão da relação é inevitável.

Eu não estou falando em revisar nossa cooperação militar ou em inteligência com Israel, que permanece firme e vital. Estou falando da nossa interação diplomática básica com uma nação israelense que está se fixando despudoradamente numa solução de um Estado; um único Estado judaico, com o destino e os direitos dos palestinos a serem determinados.

Um reposicionamento desse tipo, com base nos interesses e valores americanos, resultaria em amor rude para Israel, mas é uma necessidade real antes que o país saia realmente dos trilhos. O fato de Biden estar preparado para investir contra Netanyahu anteriormente às eleições de 2024 sugere que nosso presidente acredita ter apoio não apenas da maioria dos americanos, mas também da maioria dos judeus americanos e talvez até da maioria dos judeus israelenses. E ele está correto sobre isso. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.