Guerra pode significar o fim do controle de Netanyahu e do Hamas sobre Israel e Gaza; leia análise


Ataque do dia 7 de outubro gerou reação de Israel na Faixa de Gaza e expôs civis à consequências de grupo terrorista; em Israel, rejeição a Netanyahu cresce após danos coletivos

Por Steve Hendrix
Atualização:

JERUSALÉM — Em 2009, quando regressou ao poder para um segundo mandato como primeiro-ministro de Israel, cargo que tem mantido quase ininterruptamente desde então, Binyamin Netanyahu se deparou com uma grande mudança na região: o grupo militante islâmico Hamas havia sido eleito na Faixa de Gaza três anos antes.

Desde o início, o Hamas prometia destruir Israel e, na campanha de 2009, Netanyahu prometeu destruir o Hamas. Em vez disso, o que aconteceu foi uma década e meia de coexistência apreensiva, durante a qual os governos de Netanyahu e os líderes do Hamas se consideraram úteis para seus próprios objetivos.

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Ao longo de anos de escaladas e acomodações, esperanças de calma e períodos de caos, a estranha simbiose perdurou até agora, quando tanto o Hamas quanto Netanyahu enfrentam um possível fim de sua permanência no poder.

Palestinos caminham entre escombros causados por ataques de Israel em Khuzaa, próximo à cidade de Khan Yunis, na Faixa de Gaza. Conflito com o Hamas deixa rastros de destruição em todo o enclave Foto: Said Khatib / AFP

Depois de lançarem o ataque que matou pelo menos 1.200 israelenses em 7 de outubro, os líderes do Hamas estão sendo bombardeados e caçados por militares israelenses que prometeram que o grupo nunca mais vai governar Gaza. Sob ataques devastadores que mataram mais de 11 mil pessoas em Gaza, segundo autoridades palestinas, até mesmo alguns habitantes de Gaza tomaram a rara decisão de criticar publicamente o Hamas pelo ataque de outubro e por deixar os civis expostos à retaliação militar.

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Netanyahu, que no mês passado concordou em partilhar poderes de guerra emergenciais com seu principal rival político, enfrenta uma raiva pública sem precedentes por seu fracasso em evitar o ataque de outubro e pela resposta desordenada do governo. As pesquisas mostram que 75% dos israelenses pedem que ele renuncie agora ou seja substituído quando os combates cessarem.

“É uma aliança estranha que chegou ao fim”, disse o historiador israelense Adam Raz, que fez um estudo sobre a relação entre o primeiro-ministro e o grupo militante. “O Hamas não será o governo de Gaza. E acho que podemos dizer que Netanyahu está chegando ao fim de sua carreira política”.

As circunstâncias estão mudando rápido e o destino de ambos é incerto. A pausa de quatro dias nos combates acordada por Israel e Hamas começou na sexta-feira. O primeiro dos 50 reféns israelenses foi libertado no mesmo dia como parte do acordo. Netanyahu prometeu retomar os combates após a pausa com o objetivo de “erradicar o Hamas”.

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Raz e outros observadores deixaram claro que Netanyahu não previu o ataque do Hamas e a captura de cerca de 240 israelenses em 7 de outubro, o dia mais mortal para os judeus desde o Holocausto.

Mas eles dizem que, assim que recuperou o poder, Netanyahu – que como candidato tinha prometido “derrubar o domínio do Hamas em Gaza” – seguiu uma estratégia que não perturbava o status quo de uma população palestina dividida, deixando o Hamas governar em Gaza e a rival Autoridade Palestina na Cisjordânia.

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Esse cisma serviu aos propósitos de Netanyahu e dos opositores à solução de dois estados, comprometendo a capacidade dos palestinos de se oporem à ocupação de Israel, disseram analistas.

“Sem uma liderança unificada, Bibi pôde dizer que não conseguia avançar com as negociações de paz”, disse Dahlia Scheindlin, pesquisadora e analista política israelense, referindo-se a Netanyahu pelo apelido. “Isso permitiu que ele dissesse: ‘Não temos ninguém com quem conversar’”.

A situação permitiu a Netanyahu marginalizar a “questão palestina”, problema que vem moldando o mandato dos líderes israelenses nas últimas quatro décadas. Em vez disso, Netanyahu se concentrou no Irã e em outras ameaças e tentou transformar Israel em uma potência econômica, de acordo com Anshel Pfeffer, biógrafo de Netanyahu.

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Parentes e amigos de reféns israelenses capturados pelo Hamas no ataque do dia 7 de outubro durante protesto em Tel-Aviv, no dia 21. Pressão sobre Netanyahu cresceu pós ataque Foto: Ariel Schalit / AP

“Netanyahu sempre sentiu que o conflito palestino era uma distração que podia ser usada para criar divisões internas em Israel”, disse Pfeffer. “Ele o chamava de ‘toca do coelho’”.

Ao longo dos anos, sucessivos gabinetes de Netanyahu aprovaram medidas que tiveram o efeito de aliviar a pressão sobre o Hamas: Israel concordou com a libertação periódica de prisioneiros e a transferência de dinheiro do Qatar para pagar salários públicos e melhorar a infraestrutura em Gaza – além de, dizem os críticos, financiar as operações militares do Hamas.

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O primeiro-ministro esperava evitar qualquer reconciliação entre o Hamas e a Autoridade Palestina, até mesmo quando os dois lados estiveram perto da reaproximação em 2018.

“Nos últimos dez anos, Netanyahu fez de tudo para bloquear qualquer tentativa de demolir o Hamas em Gaza”, disse Raz.

O gabinete de Netanyahu se recusou a fornecer qualquer resposta oficial. Mas um alto funcionário do governo, que falou sob condição de anonimato, negou que o primeiro-ministro tenha seguido qualquer política para manter o Hamas no poder.

“Ele é o primeiro-ministro mais citado da história e não creio que você encontrará uma única declaração dele que faça lobby para o fortalecimento do Hamas”, disse a autoridade. “Foi o oposto. Ele atacou o Hamas com mais força do que qualquer outro primeiro-ministro na história. Liderou três operações militares em grande escala contra o Hamas em 2012, 2014 e 2021″.

“Ele não destruiu o Hamas, que foi o que seu gabinete de guerra ordenou que [as Forças de Defesa de Israel (IDF)] fizessem depois das atrocidades de 7 de outubro”, disse a autoridade. “Isto é o que a IDF está fazendo agora”.

Durante esses anos, surgiu uma distensão volátil. O Hamas continuou lançando foguetes contra Israel, a maioria dos quais era interceptada por sofisticados sistemas de defesa aérea. Guerras eclodiram, mas cada uma delas terminou em cessar-fogo negociado. O Hamas permaneceu no poder e cresceram as esperanças de que o grupo estivesse se transformando em um órgão governamental mais confiável, centrado na construção de Gaza, não na guerra total.

Netanyahu não foi o único a ver benefícios na situação. Os israelenses moderados começaram a vislumbrar um futuro ao lado de uma Faixa de Gaza com mais estabilidade e qualidade de vida. As empresas saudaram a melhoria das relações de Israel com os vizinhos árabes dispostos a estabelecer laços mais fortes com o estado judeu.

As exportações de Gaza cresceram. E, nos últimos anos, tanto Netanyahu quanto um governo de dezoito meses liderado por partidos de oposição menos conservadores concederam aos habitantes de Gaza um número crescente de autorizações para trabalhar em Israel. O número ultrapassava 18 mil em 7 de outubro.

Agora, a estratégia que deixou o Hamas entrincheirado em Gaza está sob o escrutínio de israelenses traumatizados. A raiva em todo o espectro político derrubou o apoio a Netanyahu para mínimos históricos. Agora apenas 25% dos eleitores dizem às pesquisas de opinião que ele é o político mais adequado para ser primeiro-ministro, segundo Scheindlin.

“A direita gostaria que ele tivesse eliminado o Hamas, e o centro e a esquerda gostariam que ele não tivesse abandonado o caminho das negociações”, disse ela.

É mais difícil avaliar o apoio ao Hamas em Gaza, onde não ocorrem eleições desde 2006. Antes da guerra, o medo da retaliação do Hamas praticamente silenciava as críticas ao regime. Agora, as perturbações provocadas pelos bombardeios e deslocamentos em massa quase impossibilitam a realização de eleições. Algumas pesquisas recentes mostram um apoio contínuo ao Hamas, à medida que a raiva contra Israel aumenta sob o ataque militar em curso.

Mas mais habitantes de Gaza estão dispostos a criticar o Hamas nas redes sociais e em entrevistas ao Washington Post.

“Não tenho medo de dizer: não queremos o Hamas e não apenas por causa da guerra”, disse Ahmad, 44 anos, farmacêutico em Deir al-Balah, Gaza. O Post não usa seu nome completo para protegê-lo de possíveis represálias. “A falta de um governo competente nos deixou na pobreza e na miséria, agravadas por esta guerra devastadora. As ações de Israel não poupam ninguém, independentemente de ser afiliado ao Hamas ou não”.

Motaz, 39 anos, disse que o ataque do Hamas a Israel o deixou “horrorizado” e expôs sua família aos ataques israelenses que destruíram sua mercearia em Khan Younis no mês passado.

Ele não acredita que o Hamas consiga sobreviver. Mas não acha que uma mudança no governo de Gaza vá mudar a situação de seus cidadãos devastados.

“Mesmo que o Hamas continue no poder, o que vai restar para nós aqui?”, Motaz perguntou. “Não temos casas onde morar, nenhum trabalho para nos sustentar. Perdi minha única fonte de sustento”. /TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

JERUSALÉM — Em 2009, quando regressou ao poder para um segundo mandato como primeiro-ministro de Israel, cargo que tem mantido quase ininterruptamente desde então, Binyamin Netanyahu se deparou com uma grande mudança na região: o grupo militante islâmico Hamas havia sido eleito na Faixa de Gaza três anos antes.

Desde o início, o Hamas prometia destruir Israel e, na campanha de 2009, Netanyahu prometeu destruir o Hamas. Em vez disso, o que aconteceu foi uma década e meia de coexistência apreensiva, durante a qual os governos de Netanyahu e os líderes do Hamas se consideraram úteis para seus próprios objetivos.

Ao longo de anos de escaladas e acomodações, esperanças de calma e períodos de caos, a estranha simbiose perdurou até agora, quando tanto o Hamas quanto Netanyahu enfrentam um possível fim de sua permanência no poder.

Palestinos caminham entre escombros causados por ataques de Israel em Khuzaa, próximo à cidade de Khan Yunis, na Faixa de Gaza. Conflito com o Hamas deixa rastros de destruição em todo o enclave Foto: Said Khatib / AFP

Depois de lançarem o ataque que matou pelo menos 1.200 israelenses em 7 de outubro, os líderes do Hamas estão sendo bombardeados e caçados por militares israelenses que prometeram que o grupo nunca mais vai governar Gaza. Sob ataques devastadores que mataram mais de 11 mil pessoas em Gaza, segundo autoridades palestinas, até mesmo alguns habitantes de Gaza tomaram a rara decisão de criticar publicamente o Hamas pelo ataque de outubro e por deixar os civis expostos à retaliação militar.

Netanyahu, que no mês passado concordou em partilhar poderes de guerra emergenciais com seu principal rival político, enfrenta uma raiva pública sem precedentes por seu fracasso em evitar o ataque de outubro e pela resposta desordenada do governo. As pesquisas mostram que 75% dos israelenses pedem que ele renuncie agora ou seja substituído quando os combates cessarem.

“É uma aliança estranha que chegou ao fim”, disse o historiador israelense Adam Raz, que fez um estudo sobre a relação entre o primeiro-ministro e o grupo militante. “O Hamas não será o governo de Gaza. E acho que podemos dizer que Netanyahu está chegando ao fim de sua carreira política”.

As circunstâncias estão mudando rápido e o destino de ambos é incerto. A pausa de quatro dias nos combates acordada por Israel e Hamas começou na sexta-feira. O primeiro dos 50 reféns israelenses foi libertado no mesmo dia como parte do acordo. Netanyahu prometeu retomar os combates após a pausa com o objetivo de “erradicar o Hamas”.

Raz e outros observadores deixaram claro que Netanyahu não previu o ataque do Hamas e a captura de cerca de 240 israelenses em 7 de outubro, o dia mais mortal para os judeus desde o Holocausto.

Mas eles dizem que, assim que recuperou o poder, Netanyahu – que como candidato tinha prometido “derrubar o domínio do Hamas em Gaza” – seguiu uma estratégia que não perturbava o status quo de uma população palestina dividida, deixando o Hamas governar em Gaza e a rival Autoridade Palestina na Cisjordânia.

Esse cisma serviu aos propósitos de Netanyahu e dos opositores à solução de dois estados, comprometendo a capacidade dos palestinos de se oporem à ocupação de Israel, disseram analistas.

“Sem uma liderança unificada, Bibi pôde dizer que não conseguia avançar com as negociações de paz”, disse Dahlia Scheindlin, pesquisadora e analista política israelense, referindo-se a Netanyahu pelo apelido. “Isso permitiu que ele dissesse: ‘Não temos ninguém com quem conversar’”.

A situação permitiu a Netanyahu marginalizar a “questão palestina”, problema que vem moldando o mandato dos líderes israelenses nas últimas quatro décadas. Em vez disso, Netanyahu se concentrou no Irã e em outras ameaças e tentou transformar Israel em uma potência econômica, de acordo com Anshel Pfeffer, biógrafo de Netanyahu.

Parentes e amigos de reféns israelenses capturados pelo Hamas no ataque do dia 7 de outubro durante protesto em Tel-Aviv, no dia 21. Pressão sobre Netanyahu cresceu pós ataque Foto: Ariel Schalit / AP

“Netanyahu sempre sentiu que o conflito palestino era uma distração que podia ser usada para criar divisões internas em Israel”, disse Pfeffer. “Ele o chamava de ‘toca do coelho’”.

Ao longo dos anos, sucessivos gabinetes de Netanyahu aprovaram medidas que tiveram o efeito de aliviar a pressão sobre o Hamas: Israel concordou com a libertação periódica de prisioneiros e a transferência de dinheiro do Qatar para pagar salários públicos e melhorar a infraestrutura em Gaza – além de, dizem os críticos, financiar as operações militares do Hamas.

O primeiro-ministro esperava evitar qualquer reconciliação entre o Hamas e a Autoridade Palestina, até mesmo quando os dois lados estiveram perto da reaproximação em 2018.

“Nos últimos dez anos, Netanyahu fez de tudo para bloquear qualquer tentativa de demolir o Hamas em Gaza”, disse Raz.

O gabinete de Netanyahu se recusou a fornecer qualquer resposta oficial. Mas um alto funcionário do governo, que falou sob condição de anonimato, negou que o primeiro-ministro tenha seguido qualquer política para manter o Hamas no poder.

“Ele é o primeiro-ministro mais citado da história e não creio que você encontrará uma única declaração dele que faça lobby para o fortalecimento do Hamas”, disse a autoridade. “Foi o oposto. Ele atacou o Hamas com mais força do que qualquer outro primeiro-ministro na história. Liderou três operações militares em grande escala contra o Hamas em 2012, 2014 e 2021″.

“Ele não destruiu o Hamas, que foi o que seu gabinete de guerra ordenou que [as Forças de Defesa de Israel (IDF)] fizessem depois das atrocidades de 7 de outubro”, disse a autoridade. “Isto é o que a IDF está fazendo agora”.

Durante esses anos, surgiu uma distensão volátil. O Hamas continuou lançando foguetes contra Israel, a maioria dos quais era interceptada por sofisticados sistemas de defesa aérea. Guerras eclodiram, mas cada uma delas terminou em cessar-fogo negociado. O Hamas permaneceu no poder e cresceram as esperanças de que o grupo estivesse se transformando em um órgão governamental mais confiável, centrado na construção de Gaza, não na guerra total.

Netanyahu não foi o único a ver benefícios na situação. Os israelenses moderados começaram a vislumbrar um futuro ao lado de uma Faixa de Gaza com mais estabilidade e qualidade de vida. As empresas saudaram a melhoria das relações de Israel com os vizinhos árabes dispostos a estabelecer laços mais fortes com o estado judeu.

As exportações de Gaza cresceram. E, nos últimos anos, tanto Netanyahu quanto um governo de dezoito meses liderado por partidos de oposição menos conservadores concederam aos habitantes de Gaza um número crescente de autorizações para trabalhar em Israel. O número ultrapassava 18 mil em 7 de outubro.

Agora, a estratégia que deixou o Hamas entrincheirado em Gaza está sob o escrutínio de israelenses traumatizados. A raiva em todo o espectro político derrubou o apoio a Netanyahu para mínimos históricos. Agora apenas 25% dos eleitores dizem às pesquisas de opinião que ele é o político mais adequado para ser primeiro-ministro, segundo Scheindlin.

“A direita gostaria que ele tivesse eliminado o Hamas, e o centro e a esquerda gostariam que ele não tivesse abandonado o caminho das negociações”, disse ela.

É mais difícil avaliar o apoio ao Hamas em Gaza, onde não ocorrem eleições desde 2006. Antes da guerra, o medo da retaliação do Hamas praticamente silenciava as críticas ao regime. Agora, as perturbações provocadas pelos bombardeios e deslocamentos em massa quase impossibilitam a realização de eleições. Algumas pesquisas recentes mostram um apoio contínuo ao Hamas, à medida que a raiva contra Israel aumenta sob o ataque militar em curso.

Mas mais habitantes de Gaza estão dispostos a criticar o Hamas nas redes sociais e em entrevistas ao Washington Post.

“Não tenho medo de dizer: não queremos o Hamas e não apenas por causa da guerra”, disse Ahmad, 44 anos, farmacêutico em Deir al-Balah, Gaza. O Post não usa seu nome completo para protegê-lo de possíveis represálias. “A falta de um governo competente nos deixou na pobreza e na miséria, agravadas por esta guerra devastadora. As ações de Israel não poupam ninguém, independentemente de ser afiliado ao Hamas ou não”.

Motaz, 39 anos, disse que o ataque do Hamas a Israel o deixou “horrorizado” e expôs sua família aos ataques israelenses que destruíram sua mercearia em Khan Younis no mês passado.

Ele não acredita que o Hamas consiga sobreviver. Mas não acha que uma mudança no governo de Gaza vá mudar a situação de seus cidadãos devastados.

“Mesmo que o Hamas continue no poder, o que vai restar para nós aqui?”, Motaz perguntou. “Não temos casas onde morar, nenhum trabalho para nos sustentar. Perdi minha única fonte de sustento”. /TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

JERUSALÉM — Em 2009, quando regressou ao poder para um segundo mandato como primeiro-ministro de Israel, cargo que tem mantido quase ininterruptamente desde então, Binyamin Netanyahu se deparou com uma grande mudança na região: o grupo militante islâmico Hamas havia sido eleito na Faixa de Gaza três anos antes.

Desde o início, o Hamas prometia destruir Israel e, na campanha de 2009, Netanyahu prometeu destruir o Hamas. Em vez disso, o que aconteceu foi uma década e meia de coexistência apreensiva, durante a qual os governos de Netanyahu e os líderes do Hamas se consideraram úteis para seus próprios objetivos.

Ao longo de anos de escaladas e acomodações, esperanças de calma e períodos de caos, a estranha simbiose perdurou até agora, quando tanto o Hamas quanto Netanyahu enfrentam um possível fim de sua permanência no poder.

Palestinos caminham entre escombros causados por ataques de Israel em Khuzaa, próximo à cidade de Khan Yunis, na Faixa de Gaza. Conflito com o Hamas deixa rastros de destruição em todo o enclave Foto: Said Khatib / AFP

Depois de lançarem o ataque que matou pelo menos 1.200 israelenses em 7 de outubro, os líderes do Hamas estão sendo bombardeados e caçados por militares israelenses que prometeram que o grupo nunca mais vai governar Gaza. Sob ataques devastadores que mataram mais de 11 mil pessoas em Gaza, segundo autoridades palestinas, até mesmo alguns habitantes de Gaza tomaram a rara decisão de criticar publicamente o Hamas pelo ataque de outubro e por deixar os civis expostos à retaliação militar.

Netanyahu, que no mês passado concordou em partilhar poderes de guerra emergenciais com seu principal rival político, enfrenta uma raiva pública sem precedentes por seu fracasso em evitar o ataque de outubro e pela resposta desordenada do governo. As pesquisas mostram que 75% dos israelenses pedem que ele renuncie agora ou seja substituído quando os combates cessarem.

“É uma aliança estranha que chegou ao fim”, disse o historiador israelense Adam Raz, que fez um estudo sobre a relação entre o primeiro-ministro e o grupo militante. “O Hamas não será o governo de Gaza. E acho que podemos dizer que Netanyahu está chegando ao fim de sua carreira política”.

As circunstâncias estão mudando rápido e o destino de ambos é incerto. A pausa de quatro dias nos combates acordada por Israel e Hamas começou na sexta-feira. O primeiro dos 50 reféns israelenses foi libertado no mesmo dia como parte do acordo. Netanyahu prometeu retomar os combates após a pausa com o objetivo de “erradicar o Hamas”.

Raz e outros observadores deixaram claro que Netanyahu não previu o ataque do Hamas e a captura de cerca de 240 israelenses em 7 de outubro, o dia mais mortal para os judeus desde o Holocausto.

Mas eles dizem que, assim que recuperou o poder, Netanyahu – que como candidato tinha prometido “derrubar o domínio do Hamas em Gaza” – seguiu uma estratégia que não perturbava o status quo de uma população palestina dividida, deixando o Hamas governar em Gaza e a rival Autoridade Palestina na Cisjordânia.

Esse cisma serviu aos propósitos de Netanyahu e dos opositores à solução de dois estados, comprometendo a capacidade dos palestinos de se oporem à ocupação de Israel, disseram analistas.

“Sem uma liderança unificada, Bibi pôde dizer que não conseguia avançar com as negociações de paz”, disse Dahlia Scheindlin, pesquisadora e analista política israelense, referindo-se a Netanyahu pelo apelido. “Isso permitiu que ele dissesse: ‘Não temos ninguém com quem conversar’”.

A situação permitiu a Netanyahu marginalizar a “questão palestina”, problema que vem moldando o mandato dos líderes israelenses nas últimas quatro décadas. Em vez disso, Netanyahu se concentrou no Irã e em outras ameaças e tentou transformar Israel em uma potência econômica, de acordo com Anshel Pfeffer, biógrafo de Netanyahu.

Parentes e amigos de reféns israelenses capturados pelo Hamas no ataque do dia 7 de outubro durante protesto em Tel-Aviv, no dia 21. Pressão sobre Netanyahu cresceu pós ataque Foto: Ariel Schalit / AP

“Netanyahu sempre sentiu que o conflito palestino era uma distração que podia ser usada para criar divisões internas em Israel”, disse Pfeffer. “Ele o chamava de ‘toca do coelho’”.

Ao longo dos anos, sucessivos gabinetes de Netanyahu aprovaram medidas que tiveram o efeito de aliviar a pressão sobre o Hamas: Israel concordou com a libertação periódica de prisioneiros e a transferência de dinheiro do Qatar para pagar salários públicos e melhorar a infraestrutura em Gaza – além de, dizem os críticos, financiar as operações militares do Hamas.

O primeiro-ministro esperava evitar qualquer reconciliação entre o Hamas e a Autoridade Palestina, até mesmo quando os dois lados estiveram perto da reaproximação em 2018.

“Nos últimos dez anos, Netanyahu fez de tudo para bloquear qualquer tentativa de demolir o Hamas em Gaza”, disse Raz.

O gabinete de Netanyahu se recusou a fornecer qualquer resposta oficial. Mas um alto funcionário do governo, que falou sob condição de anonimato, negou que o primeiro-ministro tenha seguido qualquer política para manter o Hamas no poder.

“Ele é o primeiro-ministro mais citado da história e não creio que você encontrará uma única declaração dele que faça lobby para o fortalecimento do Hamas”, disse a autoridade. “Foi o oposto. Ele atacou o Hamas com mais força do que qualquer outro primeiro-ministro na história. Liderou três operações militares em grande escala contra o Hamas em 2012, 2014 e 2021″.

“Ele não destruiu o Hamas, que foi o que seu gabinete de guerra ordenou que [as Forças de Defesa de Israel (IDF)] fizessem depois das atrocidades de 7 de outubro”, disse a autoridade. “Isto é o que a IDF está fazendo agora”.

Durante esses anos, surgiu uma distensão volátil. O Hamas continuou lançando foguetes contra Israel, a maioria dos quais era interceptada por sofisticados sistemas de defesa aérea. Guerras eclodiram, mas cada uma delas terminou em cessar-fogo negociado. O Hamas permaneceu no poder e cresceram as esperanças de que o grupo estivesse se transformando em um órgão governamental mais confiável, centrado na construção de Gaza, não na guerra total.

Netanyahu não foi o único a ver benefícios na situação. Os israelenses moderados começaram a vislumbrar um futuro ao lado de uma Faixa de Gaza com mais estabilidade e qualidade de vida. As empresas saudaram a melhoria das relações de Israel com os vizinhos árabes dispostos a estabelecer laços mais fortes com o estado judeu.

As exportações de Gaza cresceram. E, nos últimos anos, tanto Netanyahu quanto um governo de dezoito meses liderado por partidos de oposição menos conservadores concederam aos habitantes de Gaza um número crescente de autorizações para trabalhar em Israel. O número ultrapassava 18 mil em 7 de outubro.

Agora, a estratégia que deixou o Hamas entrincheirado em Gaza está sob o escrutínio de israelenses traumatizados. A raiva em todo o espectro político derrubou o apoio a Netanyahu para mínimos históricos. Agora apenas 25% dos eleitores dizem às pesquisas de opinião que ele é o político mais adequado para ser primeiro-ministro, segundo Scheindlin.

“A direita gostaria que ele tivesse eliminado o Hamas, e o centro e a esquerda gostariam que ele não tivesse abandonado o caminho das negociações”, disse ela.

É mais difícil avaliar o apoio ao Hamas em Gaza, onde não ocorrem eleições desde 2006. Antes da guerra, o medo da retaliação do Hamas praticamente silenciava as críticas ao regime. Agora, as perturbações provocadas pelos bombardeios e deslocamentos em massa quase impossibilitam a realização de eleições. Algumas pesquisas recentes mostram um apoio contínuo ao Hamas, à medida que a raiva contra Israel aumenta sob o ataque militar em curso.

Mas mais habitantes de Gaza estão dispostos a criticar o Hamas nas redes sociais e em entrevistas ao Washington Post.

“Não tenho medo de dizer: não queremos o Hamas e não apenas por causa da guerra”, disse Ahmad, 44 anos, farmacêutico em Deir al-Balah, Gaza. O Post não usa seu nome completo para protegê-lo de possíveis represálias. “A falta de um governo competente nos deixou na pobreza e na miséria, agravadas por esta guerra devastadora. As ações de Israel não poupam ninguém, independentemente de ser afiliado ao Hamas ou não”.

Motaz, 39 anos, disse que o ataque do Hamas a Israel o deixou “horrorizado” e expôs sua família aos ataques israelenses que destruíram sua mercearia em Khan Younis no mês passado.

Ele não acredita que o Hamas consiga sobreviver. Mas não acha que uma mudança no governo de Gaza vá mudar a situação de seus cidadãos devastados.

“Mesmo que o Hamas continue no poder, o que vai restar para nós aqui?”, Motaz perguntou. “Não temos casas onde morar, nenhum trabalho para nos sustentar. Perdi minha única fonte de sustento”. /TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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