LONDRES - Ela se casou ao som de um animado coro gospel, seu véu foi adornado com flores das antigas colônias britânicas, uma rara imagem vista entre príncipes e princesas brancos da sociedade de imigrantes pós-racial que alguns imaginavam ser o Reino Unido. Mas depois essa imagem se desfez.
O relato feito por Meghan Markle sobre racismo dentro da família real, durante a entrevista que concedeu na semana passada no jardim de uma mansão na Califórnia, fez mais do que abrir novas feridas no Palácio de Buckingham, levantando dúvidas quanto a se a família, ou na verdade, o país, eram de fato tão acolhedores das pessoas negras como o casamento dela em 2018 indicava que podiam ser.
As revelações tiveram grande repercussão no âmbito da Commonwealth, grupo de ex-colônias não brancas chefiadas pela rainha Elizabeth II, resultando em apelos para uma reavaliação dos vínculos reais e, na Austrália, para um desligamento total da coroa britânica.
Internamente, entre os britânicos que se identificam com Meghan e seu filho, Archie, recém-chegados birraciais a uma família branca, a entrevista repercutiu de modo diferente, enfatizando os duros limites do avanço racial no país.
Para eles, a descrição feita por Meghan sobre a inquietação de um ou mais dos parentes do seu marido sobre a possível cor da pele de Archie lembrou o racismo que eles também enfrentaram dentro de suas próprias famílias e mais além. O nocivo insulto verbal: mestiço, sarapintado. Os sussurros nas visitas aos vilarejos dos parentes. As perguntas confusas e brutais de colegas de escola e outros: o que você é?
Adam Hamdy, escritor londrino, lembrou quando sua mãe branca foi deserdada pela família ao se casar com seu pai, um homem negro.
“Aquilo realmente me alertou para a ideia de que há uma espécie de limite até onde você pode chegar”, afirmou. “A ideia de que alguém dirá que não posso ser um príncipe, ou uma princesa, que existe uma falha inerente ou defeito por causa da cor da minha pele. Isto é profundamente ofensivo.”
No relato de Meghan, Archie não tinha permissão para se tornar um príncipe. E Meghan, cuja mãe é afro-americana e o pai é branco, não poderia se tornar a imagem de um Reino Unido evoluído que imaginava se tornar. “Nunca entendi como isto não seria benéfico e um reflexo do mundo de hoje”, disse ela a Oprah Winfrey.
Desde que a entrevista foi transmitida, ela tem sido dissecada em cada aspecto - o que revelou sobre a dança entre os membros da realeza e a imprensa britânica dos tabloides amplamente branca e obcecada pela monarquia, e o seu potencial de desfazer muito do trabalho da realeza para se restabelecer dos efeitos desastrosos da morte da princesa Diana em 1997.
Mas entre outras coisas, a controvérsia sobre a entrevista é uma disputa transatlântica - entre um hábito americano de falar claramente sobre raça e um costume britânico de ocultar a questão, afirmam os historiadores.
Realizada num jardim americano, com uma das mais poderosas celebridades negras do país, a entrevista mostrou para os americanos como o comportamento do Reino Unido com relação à raça, segundo os historiadores, tem sido marcado por décadas de segregação e violência racial para detectar os atos racistas menos evidentes que os britânicos fingem às vezes não existirem ali.
“No Reino Unido há um enorme silêncio em torno da raça que, na verdade, não existe nos Estados Unidos”, afirmou Priyamvada Gopal, professor de estudos pós-coloniais na Universidade de Cambridge. “Você não teria uma entrevista comparável num horário nobre de uma TV britânica. Não há ninguém com o perfil de Oprah. E a ideia de um apresentador de talk-show sentar-se ao lado de um casal real ou qualquer pessoa e debater longamente a questão da raça é algo inimaginável no Reino Unido.”
Quando Meghan se casou com Harry, alguns britânicos birraciais e negros viram uma versão deles mesmos, estrangeiros ascendendo à instituição mais elitista do país. “Na época não passava pela minha cabeça que havia alguma reação contra o casamento”, disse Armarni Lane, de 25 anos, de Sheffield, cujo pai é negro e a mãe, branca.
Agora ela considera essa ideia “ingênua”. E escreveu no Twitter nesta semana que a família do seu marido branco também havia especulado sobre a cor da pele do seu filho, do mesmo modo que a família de Harry fez no caso de Archie. E, então, um parente enviou mensagem ao seu marido refutando o que ele entendeu ser uma acusação de racismo.
“O que comecei a entender é que no Reino Unidos existe muita distorção. É quase como se, ser negro ou mestiço, você representa uma versão do Show de Truman, em que sabe que alguma coisa não está certa, mas ninguém admite.”
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O príncipe William disse nesta quinta-feira que a família real britânica não é racista. Durante uma visita em uma escola de um bairro multirracial da zona leste de Londres, o segundo na linha de sucessão ao trono negou o que foi dito pelo irmão Harry e Meghan Markle durante a entrevista para a americana Oprah Winfrey no último domingo.
A Commonwealth teve por meta reestruturar o império como uma aliança, mas essa parceria igualitária significava permitir que líderes das antigas colônias chefiassem a organização, afirmam analistas. Entretanto, pelo contrário, esse papel é reservado à rainha, uma britânica branca não eleita.
E apesar de os britânicos terem visto Meghan como uma ponte potencial entre o passado e o futuro da monarquia, os Windsors não conseguiram, independente da razão, integrá-la na família.
“Toda a experiência com Meghan mostra a relação ambivalente da monarquia com a reinvenção da identidade britânica”, disse Mark Leonard, diretor do European Council on Foreign Relations.
Mas longe dos palácios reais, o Reino Unido vem se reformulando. Desde 2011, 1 em cada 10 pessoas vivendo como um casal na Inglaterra e Gales foi parte de uma relação interétnica. Os distritos londrinos são menos segregados do que muitas cidades nos Estados Unidos. Elementos de outras culturas vêm sendo lentamente assimilados pela cultura britânica.
Nem todos estão satisfeitos com essa transição: um dos apelos do Brexit foi a promessa de limitar a imigração.
Mas o fato de que o pior da violência racial do império foi nas colônias e não em seu próprio solo, como nos Estados Unidos, inibiu um debate mais produtivo sobre raça, afirmam os historiadores.
Tariq Jenner, médico socorrista, disse que o Império Britânico pouco foi abordado nas aulas nos seus tempos de escola.
"Fomos ensinados sobre a Guerra das Rosas, as mulheres de Henrique VIII”, disse ele. “E depois nada mais ocorreu e o Reino Unido fez a Revolução Industrial, derrotou os nazistas e Churchill salvou tudo." / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO