Nos EUA, uma história eleitoral bem familiar


Muitas coisas ocorreram, como o assassinato de negros e a covid, mas elas não quebraram o impasse partidário

Por The Economist
Atualização:

Liu Xiaobo, o heroico dissidente anticomunista da China, era um grande admirador da democracia americana. “O que mais me interessa”, ele escreveu certa vez, “é a evidência óbvia de como o sistema democrático americano pode se corrigir (...) especialmente em momentos de grande crise”. Pouco depois de fazer essa observação, Liu foi preso para o resto da vida. Mas o argumento continua de pé. Vistos de longe, os eleitores americanos parecem ter voltado a agir de forma decisiva em um momento de crise, destituindo um presidente em exercício, algo que ocorreu apenas uma vez nos últimos 40 anos.

Vistas de perto, as conclusões a tirar dos resultados das eleições do dia 3 são menos grandiosas. As pesquisas de opinião, que mostraram Joe Biden com uma vasta vantagem até o dia das eleições, condicionaram as esperanças dos democratas e os temores dos republicanos pelo que ocorreria. Essas pesquisas acabaram se mostrando equivocadas – talvez até mais do que em 2016.

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Apoiadores do candidato democrata, Joe Biden, aguardam discurso no Chase Center, na cidade de Wilmington: motivação dos eleitores favoreceu alto comparecimento Foto: Joe Raedle/AFP

O resultado está acirrado o suficiente para que surjam contestações judiciais – embora pareça provável que Biden venha a ganhar os votos de colégio eleitoral necessários para se tornar o próximo presidente – e o momento catártico em que um candidato vence e o outro reconhece a derrota ainda parece distante. Se isso é um repúdio ao presidente, a mecânica do colégio eleitoral fez com que parecesse marginal e ambíguo, o que mostra o domínio do partidarismo no país.

Apesar da epidemia de covid-19, o comparecimento às urnas foi o maior desde 1900 – o que significa que Biden ganhou mais votos do que qualquer outro candidato na história americana. Uma vez mais, os Estados que realizam eleições federais não conseguiram contar votos tão rapidamente quanto outras grandes democracias. Na eleição geral do ano passado, a Índia apurou 600 milhões de votos em poucas horas, em contraste com os dias que serão necessários para se somar cerca de 140 milhões de votos nos EUA.

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Mas havia tanta incerteza no gerenciamento desta eleição, incluindo o uso generalizado do voto pelo correio pela primeira vez em alguns Estados, que esse alto comparecimento ainda é uma conquista que vale a pena comemorar, mesmo que tenha sido, sobretudo, o produto de algo próximo ao terror existencial em ambos os lados.

O alto comparecimento às urnas, entretanto, não rendeu os dividendos que esperavam os democratas e a maioria dos analistas. Desde pelo menos 2004, a última vez que um republicano venceu no voto popular, os democratas presumem que as eleições nacionais com alta participação são necessariamente boas para seu partido. E Biden ganhou o voto popular com uma margem confortável, destacando o status dos democratas como o partido consistentemente preferido pela maioria dos eleitores americanos.

Este resultado estende a vitória democrata no voto popular a sete das últimas oito eleições presidenciais, uma conquista que não recebe nenhum prêmio além do direito de alegar que o país não é de fato tão conservador quanto parece. Mas o aumento da participação não favoreceu Biden de maneira decisiva. Em vez disso, um contingente de eleitores ocasionais que ficaram de fora em 2016 fizeram suas vozes serem ouvidas e, no fim das contas, umas quase cancelaram as outras.

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Isso, por sua vez, destaca uma segunda característica marcante do resultado: o grau com que 2020 se parece com quase qualquer outra eleição presidencial recente. Até agora, com algumas exceções – notadamente a Flórida e possivelmente o Arizona – o mapa eleitoral se parece muito com o de 2012, quando Barack Obama derrotou Mitt Romney por pouco. Em outras palavras, apesar de tudo o que aconteceu nos últimos quatro anos, essa eleição acabou se parecendo muito com o que ocorreria se um republicano genérico concorresse contra um democrata genérico em um ano em que não estivesse acontecendo nada de mais.

Não deixa de ser algo notável quando você faz uma pausa para se lembrar de todas as coisas que não conseguiram quebrar o impasse partidário em 2020. No ano passado, Donald Trump sofreu impeachment pela Câmara, tornando-se o terceiro presidente na história dos EUA a sofrer esse processo.

O país assistiu a uma ampla cobertura de assassinatos de afro-americanos desarmados por policiais, aos maiores protestos pelos direitos civis na história americana e a episódios de violência em algumas cidades.

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A Califórnia sofreu com incêndios florestais terríveis, bandidos de extrema direita planejaram sequestrar o governador de Michigan e o presidente apresentou aquele que talvez tenha sido o pior desempenho já visto em um debate eleitoral.

O presidente também nomeou um terceiro juiz para a Suprema Corte, garantindo maioria conservadora na mais alta corte pelas próximas décadas. O laptop de Hunter Biden teve seus e-mails vazados depois que o advogado do presidente garantiu que esse material chegasse até um tabloide amigável.

No fim de tudo isso, quase nenhum americano mudou de ideia sobre quem gostaria que fosse o próximo presidente. É possível argumentar que todas essas coisas simplesmente cancelaram umas às outras. O mais provável é que tenham se tornado irrelevantes em razão do poder do viés partidário em moldar a forma como os eleitores interpretam tais eventos.

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Desde que Ronald Reagan venceu Walter Mondale por 525 votos a 13 no colégio eleitoral, em 1984, o apego partidário vem se fortalecendo a ponto de os eleitores votarem quase sempre da mesma maneira que votaram da última vez, independentemente do candidato, das políticas ou do que está acontecendo no país ou no mundo. A pequena quantidade de eleitores que de fato mudaram de lado em Estados-chave agora será objeto de fascínio e estudo, à medida que mais dados ficarem disponíveis.

A pequena quantidade de eleitores que de fato mudaram de lado em Estados-chave agora será objeto de fascínio e estudo, à medida que mais dados ficarem disponíveis. Em 2016, os eleitores Obama-Trump na Pensilvânia, Michigan e Wisconsin quase foram superados em número pelos jornalistas e sociólogos que decidiram estudá-los em seu habitat natural. Os resultados em nível municipal de 2020 sugerem que os eleitores republicanos hispânicos podem receber o mesmo tratamento desta vez.

Esse grupo deu ao presidente tanto a Flórida quanto o Texas. O Estado do Sol agora parece mais um confiável reduto republicano do que um autêntico Estado-pêndulo. No Texas, os democratas ficaram mais uma vez argumentando que a mudança demográfica lhes dará o Estado em algum ponto não especificado do futuro – um argumento que há muito o partido vem repetindo para se tranquilizar (a melhor expressão dessa tese otimista, o livro The Emerging Democratic Majority (A maioria democrática emergente), de John Judis e Ruy Teixeira, já tem quase 20 anos).

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Ao que parece, os democratas precisam aprender a mesma lição repetidas vezes: os eleitores hispânicos não são monolíticos e uma política mais acolhedora para com os imigrantes não se traduz automaticamente em mais votos dos imigrantes. Na verdade, os resultados no nível dos condados sugerem que o melhor indicador de uma oscilação em direção a Trump foi a presença de muitos eleitores latinos.

Por outro lado, o melhor indicador de uma oscilação em direção a Biden foi o agrupamento de americanos com ensino superior. Em termos demográficos, a história da eleição pode ser contada, portanto, como uma ligeira diminuição da polarização racial (o fenômeno dos eleitores minoritários se desvinculando do Partido Democrata) e um ligeiro aumento na polarização educacional (o fenômeno dos eleitores com ensino superior abandonando o Partido Republicano). Não seria prudente traçar linhas de tendência até um futuro distante, mas esta parece ser uma boa notícia para as perspectivas futuras dos republicanos, dado o quão diverso o país está se tornando, e dado que apenas 36% dos americanos têm diploma universitário.

Apesar de seu número relativamente pequeno, os graduados em universidade têm uma influência cultural desproporcional na América. Esse fato tende a distorcer as percepções de como o país realmente é, tanto de dentro quanto de fora dos Estados Unidos. Uma grande parte dos americanos com ensino superior acreditava que Trump era um presidente desastroso e uma ameaça às instituições governamentais. Eles também acreditavam que ele era um racista cujas mensagens sobre imigrantes e negros criariam um ambiente tóxico para os não brancos. Essa visão não é tão amplamente compartilhada quanto eles presumiam.

Como isso pode acontecer? Uma pesquisa do Cato Institute, um think-tank libertário, no início deste ano descobriu que “liberais fortes” eram o único grupo ideológico do país que se sentia livre para expressar suas opiniões políticas sem causar ofensa. Todos os outros, desde os liberais normais até os “conservadores fortes”, se sentiam um tanto amordaçados pela cultura política na qual procuravam expressar suas opiniões. Se essa informação for correta, talvez não exista uma recalibragem que consiga deixar as pesquisas precisas. Outro problema possivelmente relacionado para os pesquisadores é que muitos eleitores simplesmente não confiam nas pesquisas o suficiente para responder às suas perguntas: em 2016, menos de 1 em 200 ligações feitas por firmas de pesquisa resultou em uma entrevista com eleitor. O mesmo provavelmente aconteceu desta vez.

Biden agora parece prestes a se tornar o 46.º presidente, mas por uma margem estreita. Sua provável conquista reacenderá uma longa discussão dentro do Partido Democrata sobre se o populismo de esquerda pode ser um antídoto melhor para o populismo de direita, um debate que a vitória de Biden nas primárias parecia ter encerrado. É bem possível que o resultado mantenha o Partido Republicano escravo de Trump e do trumpismo até onde a vista alcança. E isso significa que Biden, se for de fato empossado no dia 20 de janeiro, ficará muito restrito em termos de política interna. No entanto, se o presidente que um país elege é a medida mais visível de seus valores, os Estados Unidos realmente mudaram de rumo. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Liu Xiaobo, o heroico dissidente anticomunista da China, era um grande admirador da democracia americana. “O que mais me interessa”, ele escreveu certa vez, “é a evidência óbvia de como o sistema democrático americano pode se corrigir (...) especialmente em momentos de grande crise”. Pouco depois de fazer essa observação, Liu foi preso para o resto da vida. Mas o argumento continua de pé. Vistos de longe, os eleitores americanos parecem ter voltado a agir de forma decisiva em um momento de crise, destituindo um presidente em exercício, algo que ocorreu apenas uma vez nos últimos 40 anos.

Vistas de perto, as conclusões a tirar dos resultados das eleições do dia 3 são menos grandiosas. As pesquisas de opinião, que mostraram Joe Biden com uma vasta vantagem até o dia das eleições, condicionaram as esperanças dos democratas e os temores dos republicanos pelo que ocorreria. Essas pesquisas acabaram se mostrando equivocadas – talvez até mais do que em 2016.

Apoiadores do candidato democrata, Joe Biden, aguardam discurso no Chase Center, na cidade de Wilmington: motivação dos eleitores favoreceu alto comparecimento Foto: Joe Raedle/AFP

O resultado está acirrado o suficiente para que surjam contestações judiciais – embora pareça provável que Biden venha a ganhar os votos de colégio eleitoral necessários para se tornar o próximo presidente – e o momento catártico em que um candidato vence e o outro reconhece a derrota ainda parece distante. Se isso é um repúdio ao presidente, a mecânica do colégio eleitoral fez com que parecesse marginal e ambíguo, o que mostra o domínio do partidarismo no país.

Apesar da epidemia de covid-19, o comparecimento às urnas foi o maior desde 1900 – o que significa que Biden ganhou mais votos do que qualquer outro candidato na história americana. Uma vez mais, os Estados que realizam eleições federais não conseguiram contar votos tão rapidamente quanto outras grandes democracias. Na eleição geral do ano passado, a Índia apurou 600 milhões de votos em poucas horas, em contraste com os dias que serão necessários para se somar cerca de 140 milhões de votos nos EUA.

Mas havia tanta incerteza no gerenciamento desta eleição, incluindo o uso generalizado do voto pelo correio pela primeira vez em alguns Estados, que esse alto comparecimento ainda é uma conquista que vale a pena comemorar, mesmo que tenha sido, sobretudo, o produto de algo próximo ao terror existencial em ambos os lados.

O alto comparecimento às urnas, entretanto, não rendeu os dividendos que esperavam os democratas e a maioria dos analistas. Desde pelo menos 2004, a última vez que um republicano venceu no voto popular, os democratas presumem que as eleições nacionais com alta participação são necessariamente boas para seu partido. E Biden ganhou o voto popular com uma margem confortável, destacando o status dos democratas como o partido consistentemente preferido pela maioria dos eleitores americanos.

Este resultado estende a vitória democrata no voto popular a sete das últimas oito eleições presidenciais, uma conquista que não recebe nenhum prêmio além do direito de alegar que o país não é de fato tão conservador quanto parece. Mas o aumento da participação não favoreceu Biden de maneira decisiva. Em vez disso, um contingente de eleitores ocasionais que ficaram de fora em 2016 fizeram suas vozes serem ouvidas e, no fim das contas, umas quase cancelaram as outras.

Isso, por sua vez, destaca uma segunda característica marcante do resultado: o grau com que 2020 se parece com quase qualquer outra eleição presidencial recente. Até agora, com algumas exceções – notadamente a Flórida e possivelmente o Arizona – o mapa eleitoral se parece muito com o de 2012, quando Barack Obama derrotou Mitt Romney por pouco. Em outras palavras, apesar de tudo o que aconteceu nos últimos quatro anos, essa eleição acabou se parecendo muito com o que ocorreria se um republicano genérico concorresse contra um democrata genérico em um ano em que não estivesse acontecendo nada de mais.

Não deixa de ser algo notável quando você faz uma pausa para se lembrar de todas as coisas que não conseguiram quebrar o impasse partidário em 2020. No ano passado, Donald Trump sofreu impeachment pela Câmara, tornando-se o terceiro presidente na história dos EUA a sofrer esse processo.

O país assistiu a uma ampla cobertura de assassinatos de afro-americanos desarmados por policiais, aos maiores protestos pelos direitos civis na história americana e a episódios de violência em algumas cidades.

A Califórnia sofreu com incêndios florestais terríveis, bandidos de extrema direita planejaram sequestrar o governador de Michigan e o presidente apresentou aquele que talvez tenha sido o pior desempenho já visto em um debate eleitoral.

O presidente também nomeou um terceiro juiz para a Suprema Corte, garantindo maioria conservadora na mais alta corte pelas próximas décadas. O laptop de Hunter Biden teve seus e-mails vazados depois que o advogado do presidente garantiu que esse material chegasse até um tabloide amigável.

No fim de tudo isso, quase nenhum americano mudou de ideia sobre quem gostaria que fosse o próximo presidente. É possível argumentar que todas essas coisas simplesmente cancelaram umas às outras. O mais provável é que tenham se tornado irrelevantes em razão do poder do viés partidário em moldar a forma como os eleitores interpretam tais eventos.

Desde que Ronald Reagan venceu Walter Mondale por 525 votos a 13 no colégio eleitoral, em 1984, o apego partidário vem se fortalecendo a ponto de os eleitores votarem quase sempre da mesma maneira que votaram da última vez, independentemente do candidato, das políticas ou do que está acontecendo no país ou no mundo. A pequena quantidade de eleitores que de fato mudaram de lado em Estados-chave agora será objeto de fascínio e estudo, à medida que mais dados ficarem disponíveis.

A pequena quantidade de eleitores que de fato mudaram de lado em Estados-chave agora será objeto de fascínio e estudo, à medida que mais dados ficarem disponíveis. Em 2016, os eleitores Obama-Trump na Pensilvânia, Michigan e Wisconsin quase foram superados em número pelos jornalistas e sociólogos que decidiram estudá-los em seu habitat natural. Os resultados em nível municipal de 2020 sugerem que os eleitores republicanos hispânicos podem receber o mesmo tratamento desta vez.

Esse grupo deu ao presidente tanto a Flórida quanto o Texas. O Estado do Sol agora parece mais um confiável reduto republicano do que um autêntico Estado-pêndulo. No Texas, os democratas ficaram mais uma vez argumentando que a mudança demográfica lhes dará o Estado em algum ponto não especificado do futuro – um argumento que há muito o partido vem repetindo para se tranquilizar (a melhor expressão dessa tese otimista, o livro The Emerging Democratic Majority (A maioria democrática emergente), de John Judis e Ruy Teixeira, já tem quase 20 anos).

Ao que parece, os democratas precisam aprender a mesma lição repetidas vezes: os eleitores hispânicos não são monolíticos e uma política mais acolhedora para com os imigrantes não se traduz automaticamente em mais votos dos imigrantes. Na verdade, os resultados no nível dos condados sugerem que o melhor indicador de uma oscilação em direção a Trump foi a presença de muitos eleitores latinos.

Por outro lado, o melhor indicador de uma oscilação em direção a Biden foi o agrupamento de americanos com ensino superior. Em termos demográficos, a história da eleição pode ser contada, portanto, como uma ligeira diminuição da polarização racial (o fenômeno dos eleitores minoritários se desvinculando do Partido Democrata) e um ligeiro aumento na polarização educacional (o fenômeno dos eleitores com ensino superior abandonando o Partido Republicano). Não seria prudente traçar linhas de tendência até um futuro distante, mas esta parece ser uma boa notícia para as perspectivas futuras dos republicanos, dado o quão diverso o país está se tornando, e dado que apenas 36% dos americanos têm diploma universitário.

Apesar de seu número relativamente pequeno, os graduados em universidade têm uma influência cultural desproporcional na América. Esse fato tende a distorcer as percepções de como o país realmente é, tanto de dentro quanto de fora dos Estados Unidos. Uma grande parte dos americanos com ensino superior acreditava que Trump era um presidente desastroso e uma ameaça às instituições governamentais. Eles também acreditavam que ele era um racista cujas mensagens sobre imigrantes e negros criariam um ambiente tóxico para os não brancos. Essa visão não é tão amplamente compartilhada quanto eles presumiam.

Como isso pode acontecer? Uma pesquisa do Cato Institute, um think-tank libertário, no início deste ano descobriu que “liberais fortes” eram o único grupo ideológico do país que se sentia livre para expressar suas opiniões políticas sem causar ofensa. Todos os outros, desde os liberais normais até os “conservadores fortes”, se sentiam um tanto amordaçados pela cultura política na qual procuravam expressar suas opiniões. Se essa informação for correta, talvez não exista uma recalibragem que consiga deixar as pesquisas precisas. Outro problema possivelmente relacionado para os pesquisadores é que muitos eleitores simplesmente não confiam nas pesquisas o suficiente para responder às suas perguntas: em 2016, menos de 1 em 200 ligações feitas por firmas de pesquisa resultou em uma entrevista com eleitor. O mesmo provavelmente aconteceu desta vez.

Biden agora parece prestes a se tornar o 46.º presidente, mas por uma margem estreita. Sua provável conquista reacenderá uma longa discussão dentro do Partido Democrata sobre se o populismo de esquerda pode ser um antídoto melhor para o populismo de direita, um debate que a vitória de Biden nas primárias parecia ter encerrado. É bem possível que o resultado mantenha o Partido Republicano escravo de Trump e do trumpismo até onde a vista alcança. E isso significa que Biden, se for de fato empossado no dia 20 de janeiro, ficará muito restrito em termos de política interna. No entanto, se o presidente que um país elege é a medida mais visível de seus valores, os Estados Unidos realmente mudaram de rumo. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Liu Xiaobo, o heroico dissidente anticomunista da China, era um grande admirador da democracia americana. “O que mais me interessa”, ele escreveu certa vez, “é a evidência óbvia de como o sistema democrático americano pode se corrigir (...) especialmente em momentos de grande crise”. Pouco depois de fazer essa observação, Liu foi preso para o resto da vida. Mas o argumento continua de pé. Vistos de longe, os eleitores americanos parecem ter voltado a agir de forma decisiva em um momento de crise, destituindo um presidente em exercício, algo que ocorreu apenas uma vez nos últimos 40 anos.

Vistas de perto, as conclusões a tirar dos resultados das eleições do dia 3 são menos grandiosas. As pesquisas de opinião, que mostraram Joe Biden com uma vasta vantagem até o dia das eleições, condicionaram as esperanças dos democratas e os temores dos republicanos pelo que ocorreria. Essas pesquisas acabaram se mostrando equivocadas – talvez até mais do que em 2016.

Apoiadores do candidato democrata, Joe Biden, aguardam discurso no Chase Center, na cidade de Wilmington: motivação dos eleitores favoreceu alto comparecimento Foto: Joe Raedle/AFP

O resultado está acirrado o suficiente para que surjam contestações judiciais – embora pareça provável que Biden venha a ganhar os votos de colégio eleitoral necessários para se tornar o próximo presidente – e o momento catártico em que um candidato vence e o outro reconhece a derrota ainda parece distante. Se isso é um repúdio ao presidente, a mecânica do colégio eleitoral fez com que parecesse marginal e ambíguo, o que mostra o domínio do partidarismo no país.

Apesar da epidemia de covid-19, o comparecimento às urnas foi o maior desde 1900 – o que significa que Biden ganhou mais votos do que qualquer outro candidato na história americana. Uma vez mais, os Estados que realizam eleições federais não conseguiram contar votos tão rapidamente quanto outras grandes democracias. Na eleição geral do ano passado, a Índia apurou 600 milhões de votos em poucas horas, em contraste com os dias que serão necessários para se somar cerca de 140 milhões de votos nos EUA.

Mas havia tanta incerteza no gerenciamento desta eleição, incluindo o uso generalizado do voto pelo correio pela primeira vez em alguns Estados, que esse alto comparecimento ainda é uma conquista que vale a pena comemorar, mesmo que tenha sido, sobretudo, o produto de algo próximo ao terror existencial em ambos os lados.

O alto comparecimento às urnas, entretanto, não rendeu os dividendos que esperavam os democratas e a maioria dos analistas. Desde pelo menos 2004, a última vez que um republicano venceu no voto popular, os democratas presumem que as eleições nacionais com alta participação são necessariamente boas para seu partido. E Biden ganhou o voto popular com uma margem confortável, destacando o status dos democratas como o partido consistentemente preferido pela maioria dos eleitores americanos.

Este resultado estende a vitória democrata no voto popular a sete das últimas oito eleições presidenciais, uma conquista que não recebe nenhum prêmio além do direito de alegar que o país não é de fato tão conservador quanto parece. Mas o aumento da participação não favoreceu Biden de maneira decisiva. Em vez disso, um contingente de eleitores ocasionais que ficaram de fora em 2016 fizeram suas vozes serem ouvidas e, no fim das contas, umas quase cancelaram as outras.

Isso, por sua vez, destaca uma segunda característica marcante do resultado: o grau com que 2020 se parece com quase qualquer outra eleição presidencial recente. Até agora, com algumas exceções – notadamente a Flórida e possivelmente o Arizona – o mapa eleitoral se parece muito com o de 2012, quando Barack Obama derrotou Mitt Romney por pouco. Em outras palavras, apesar de tudo o que aconteceu nos últimos quatro anos, essa eleição acabou se parecendo muito com o que ocorreria se um republicano genérico concorresse contra um democrata genérico em um ano em que não estivesse acontecendo nada de mais.

Não deixa de ser algo notável quando você faz uma pausa para se lembrar de todas as coisas que não conseguiram quebrar o impasse partidário em 2020. No ano passado, Donald Trump sofreu impeachment pela Câmara, tornando-se o terceiro presidente na história dos EUA a sofrer esse processo.

O país assistiu a uma ampla cobertura de assassinatos de afro-americanos desarmados por policiais, aos maiores protestos pelos direitos civis na história americana e a episódios de violência em algumas cidades.

A Califórnia sofreu com incêndios florestais terríveis, bandidos de extrema direita planejaram sequestrar o governador de Michigan e o presidente apresentou aquele que talvez tenha sido o pior desempenho já visto em um debate eleitoral.

O presidente também nomeou um terceiro juiz para a Suprema Corte, garantindo maioria conservadora na mais alta corte pelas próximas décadas. O laptop de Hunter Biden teve seus e-mails vazados depois que o advogado do presidente garantiu que esse material chegasse até um tabloide amigável.

No fim de tudo isso, quase nenhum americano mudou de ideia sobre quem gostaria que fosse o próximo presidente. É possível argumentar que todas essas coisas simplesmente cancelaram umas às outras. O mais provável é que tenham se tornado irrelevantes em razão do poder do viés partidário em moldar a forma como os eleitores interpretam tais eventos.

Desde que Ronald Reagan venceu Walter Mondale por 525 votos a 13 no colégio eleitoral, em 1984, o apego partidário vem se fortalecendo a ponto de os eleitores votarem quase sempre da mesma maneira que votaram da última vez, independentemente do candidato, das políticas ou do que está acontecendo no país ou no mundo. A pequena quantidade de eleitores que de fato mudaram de lado em Estados-chave agora será objeto de fascínio e estudo, à medida que mais dados ficarem disponíveis.

A pequena quantidade de eleitores que de fato mudaram de lado em Estados-chave agora será objeto de fascínio e estudo, à medida que mais dados ficarem disponíveis. Em 2016, os eleitores Obama-Trump na Pensilvânia, Michigan e Wisconsin quase foram superados em número pelos jornalistas e sociólogos que decidiram estudá-los em seu habitat natural. Os resultados em nível municipal de 2020 sugerem que os eleitores republicanos hispânicos podem receber o mesmo tratamento desta vez.

Esse grupo deu ao presidente tanto a Flórida quanto o Texas. O Estado do Sol agora parece mais um confiável reduto republicano do que um autêntico Estado-pêndulo. No Texas, os democratas ficaram mais uma vez argumentando que a mudança demográfica lhes dará o Estado em algum ponto não especificado do futuro – um argumento que há muito o partido vem repetindo para se tranquilizar (a melhor expressão dessa tese otimista, o livro The Emerging Democratic Majority (A maioria democrática emergente), de John Judis e Ruy Teixeira, já tem quase 20 anos).

Ao que parece, os democratas precisam aprender a mesma lição repetidas vezes: os eleitores hispânicos não são monolíticos e uma política mais acolhedora para com os imigrantes não se traduz automaticamente em mais votos dos imigrantes. Na verdade, os resultados no nível dos condados sugerem que o melhor indicador de uma oscilação em direção a Trump foi a presença de muitos eleitores latinos.

Por outro lado, o melhor indicador de uma oscilação em direção a Biden foi o agrupamento de americanos com ensino superior. Em termos demográficos, a história da eleição pode ser contada, portanto, como uma ligeira diminuição da polarização racial (o fenômeno dos eleitores minoritários se desvinculando do Partido Democrata) e um ligeiro aumento na polarização educacional (o fenômeno dos eleitores com ensino superior abandonando o Partido Republicano). Não seria prudente traçar linhas de tendência até um futuro distante, mas esta parece ser uma boa notícia para as perspectivas futuras dos republicanos, dado o quão diverso o país está se tornando, e dado que apenas 36% dos americanos têm diploma universitário.

Apesar de seu número relativamente pequeno, os graduados em universidade têm uma influência cultural desproporcional na América. Esse fato tende a distorcer as percepções de como o país realmente é, tanto de dentro quanto de fora dos Estados Unidos. Uma grande parte dos americanos com ensino superior acreditava que Trump era um presidente desastroso e uma ameaça às instituições governamentais. Eles também acreditavam que ele era um racista cujas mensagens sobre imigrantes e negros criariam um ambiente tóxico para os não brancos. Essa visão não é tão amplamente compartilhada quanto eles presumiam.

Como isso pode acontecer? Uma pesquisa do Cato Institute, um think-tank libertário, no início deste ano descobriu que “liberais fortes” eram o único grupo ideológico do país que se sentia livre para expressar suas opiniões políticas sem causar ofensa. Todos os outros, desde os liberais normais até os “conservadores fortes”, se sentiam um tanto amordaçados pela cultura política na qual procuravam expressar suas opiniões. Se essa informação for correta, talvez não exista uma recalibragem que consiga deixar as pesquisas precisas. Outro problema possivelmente relacionado para os pesquisadores é que muitos eleitores simplesmente não confiam nas pesquisas o suficiente para responder às suas perguntas: em 2016, menos de 1 em 200 ligações feitas por firmas de pesquisa resultou em uma entrevista com eleitor. O mesmo provavelmente aconteceu desta vez.

Biden agora parece prestes a se tornar o 46.º presidente, mas por uma margem estreita. Sua provável conquista reacenderá uma longa discussão dentro do Partido Democrata sobre se o populismo de esquerda pode ser um antídoto melhor para o populismo de direita, um debate que a vitória de Biden nas primárias parecia ter encerrado. É bem possível que o resultado mantenha o Partido Republicano escravo de Trump e do trumpismo até onde a vista alcança. E isso significa que Biden, se for de fato empossado no dia 20 de janeiro, ficará muito restrito em termos de política interna. No entanto, se o presidente que um país elege é a medida mais visível de seus valores, os Estados Unidos realmente mudaram de rumo. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Liu Xiaobo, o heroico dissidente anticomunista da China, era um grande admirador da democracia americana. “O que mais me interessa”, ele escreveu certa vez, “é a evidência óbvia de como o sistema democrático americano pode se corrigir (...) especialmente em momentos de grande crise”. Pouco depois de fazer essa observação, Liu foi preso para o resto da vida. Mas o argumento continua de pé. Vistos de longe, os eleitores americanos parecem ter voltado a agir de forma decisiva em um momento de crise, destituindo um presidente em exercício, algo que ocorreu apenas uma vez nos últimos 40 anos.

Vistas de perto, as conclusões a tirar dos resultados das eleições do dia 3 são menos grandiosas. As pesquisas de opinião, que mostraram Joe Biden com uma vasta vantagem até o dia das eleições, condicionaram as esperanças dos democratas e os temores dos republicanos pelo que ocorreria. Essas pesquisas acabaram se mostrando equivocadas – talvez até mais do que em 2016.

Apoiadores do candidato democrata, Joe Biden, aguardam discurso no Chase Center, na cidade de Wilmington: motivação dos eleitores favoreceu alto comparecimento Foto: Joe Raedle/AFP

O resultado está acirrado o suficiente para que surjam contestações judiciais – embora pareça provável que Biden venha a ganhar os votos de colégio eleitoral necessários para se tornar o próximo presidente – e o momento catártico em que um candidato vence e o outro reconhece a derrota ainda parece distante. Se isso é um repúdio ao presidente, a mecânica do colégio eleitoral fez com que parecesse marginal e ambíguo, o que mostra o domínio do partidarismo no país.

Apesar da epidemia de covid-19, o comparecimento às urnas foi o maior desde 1900 – o que significa que Biden ganhou mais votos do que qualquer outro candidato na história americana. Uma vez mais, os Estados que realizam eleições federais não conseguiram contar votos tão rapidamente quanto outras grandes democracias. Na eleição geral do ano passado, a Índia apurou 600 milhões de votos em poucas horas, em contraste com os dias que serão necessários para se somar cerca de 140 milhões de votos nos EUA.

Mas havia tanta incerteza no gerenciamento desta eleição, incluindo o uso generalizado do voto pelo correio pela primeira vez em alguns Estados, que esse alto comparecimento ainda é uma conquista que vale a pena comemorar, mesmo que tenha sido, sobretudo, o produto de algo próximo ao terror existencial em ambos os lados.

O alto comparecimento às urnas, entretanto, não rendeu os dividendos que esperavam os democratas e a maioria dos analistas. Desde pelo menos 2004, a última vez que um republicano venceu no voto popular, os democratas presumem que as eleições nacionais com alta participação são necessariamente boas para seu partido. E Biden ganhou o voto popular com uma margem confortável, destacando o status dos democratas como o partido consistentemente preferido pela maioria dos eleitores americanos.

Este resultado estende a vitória democrata no voto popular a sete das últimas oito eleições presidenciais, uma conquista que não recebe nenhum prêmio além do direito de alegar que o país não é de fato tão conservador quanto parece. Mas o aumento da participação não favoreceu Biden de maneira decisiva. Em vez disso, um contingente de eleitores ocasionais que ficaram de fora em 2016 fizeram suas vozes serem ouvidas e, no fim das contas, umas quase cancelaram as outras.

Isso, por sua vez, destaca uma segunda característica marcante do resultado: o grau com que 2020 se parece com quase qualquer outra eleição presidencial recente. Até agora, com algumas exceções – notadamente a Flórida e possivelmente o Arizona – o mapa eleitoral se parece muito com o de 2012, quando Barack Obama derrotou Mitt Romney por pouco. Em outras palavras, apesar de tudo o que aconteceu nos últimos quatro anos, essa eleição acabou se parecendo muito com o que ocorreria se um republicano genérico concorresse contra um democrata genérico em um ano em que não estivesse acontecendo nada de mais.

Não deixa de ser algo notável quando você faz uma pausa para se lembrar de todas as coisas que não conseguiram quebrar o impasse partidário em 2020. No ano passado, Donald Trump sofreu impeachment pela Câmara, tornando-se o terceiro presidente na história dos EUA a sofrer esse processo.

O país assistiu a uma ampla cobertura de assassinatos de afro-americanos desarmados por policiais, aos maiores protestos pelos direitos civis na história americana e a episódios de violência em algumas cidades.

A Califórnia sofreu com incêndios florestais terríveis, bandidos de extrema direita planejaram sequestrar o governador de Michigan e o presidente apresentou aquele que talvez tenha sido o pior desempenho já visto em um debate eleitoral.

O presidente também nomeou um terceiro juiz para a Suprema Corte, garantindo maioria conservadora na mais alta corte pelas próximas décadas. O laptop de Hunter Biden teve seus e-mails vazados depois que o advogado do presidente garantiu que esse material chegasse até um tabloide amigável.

No fim de tudo isso, quase nenhum americano mudou de ideia sobre quem gostaria que fosse o próximo presidente. É possível argumentar que todas essas coisas simplesmente cancelaram umas às outras. O mais provável é que tenham se tornado irrelevantes em razão do poder do viés partidário em moldar a forma como os eleitores interpretam tais eventos.

Desde que Ronald Reagan venceu Walter Mondale por 525 votos a 13 no colégio eleitoral, em 1984, o apego partidário vem se fortalecendo a ponto de os eleitores votarem quase sempre da mesma maneira que votaram da última vez, independentemente do candidato, das políticas ou do que está acontecendo no país ou no mundo. A pequena quantidade de eleitores que de fato mudaram de lado em Estados-chave agora será objeto de fascínio e estudo, à medida que mais dados ficarem disponíveis.

A pequena quantidade de eleitores que de fato mudaram de lado em Estados-chave agora será objeto de fascínio e estudo, à medida que mais dados ficarem disponíveis. Em 2016, os eleitores Obama-Trump na Pensilvânia, Michigan e Wisconsin quase foram superados em número pelos jornalistas e sociólogos que decidiram estudá-los em seu habitat natural. Os resultados em nível municipal de 2020 sugerem que os eleitores republicanos hispânicos podem receber o mesmo tratamento desta vez.

Esse grupo deu ao presidente tanto a Flórida quanto o Texas. O Estado do Sol agora parece mais um confiável reduto republicano do que um autêntico Estado-pêndulo. No Texas, os democratas ficaram mais uma vez argumentando que a mudança demográfica lhes dará o Estado em algum ponto não especificado do futuro – um argumento que há muito o partido vem repetindo para se tranquilizar (a melhor expressão dessa tese otimista, o livro The Emerging Democratic Majority (A maioria democrática emergente), de John Judis e Ruy Teixeira, já tem quase 20 anos).

Ao que parece, os democratas precisam aprender a mesma lição repetidas vezes: os eleitores hispânicos não são monolíticos e uma política mais acolhedora para com os imigrantes não se traduz automaticamente em mais votos dos imigrantes. Na verdade, os resultados no nível dos condados sugerem que o melhor indicador de uma oscilação em direção a Trump foi a presença de muitos eleitores latinos.

Por outro lado, o melhor indicador de uma oscilação em direção a Biden foi o agrupamento de americanos com ensino superior. Em termos demográficos, a história da eleição pode ser contada, portanto, como uma ligeira diminuição da polarização racial (o fenômeno dos eleitores minoritários se desvinculando do Partido Democrata) e um ligeiro aumento na polarização educacional (o fenômeno dos eleitores com ensino superior abandonando o Partido Republicano). Não seria prudente traçar linhas de tendência até um futuro distante, mas esta parece ser uma boa notícia para as perspectivas futuras dos republicanos, dado o quão diverso o país está se tornando, e dado que apenas 36% dos americanos têm diploma universitário.

Apesar de seu número relativamente pequeno, os graduados em universidade têm uma influência cultural desproporcional na América. Esse fato tende a distorcer as percepções de como o país realmente é, tanto de dentro quanto de fora dos Estados Unidos. Uma grande parte dos americanos com ensino superior acreditava que Trump era um presidente desastroso e uma ameaça às instituições governamentais. Eles também acreditavam que ele era um racista cujas mensagens sobre imigrantes e negros criariam um ambiente tóxico para os não brancos. Essa visão não é tão amplamente compartilhada quanto eles presumiam.

Como isso pode acontecer? Uma pesquisa do Cato Institute, um think-tank libertário, no início deste ano descobriu que “liberais fortes” eram o único grupo ideológico do país que se sentia livre para expressar suas opiniões políticas sem causar ofensa. Todos os outros, desde os liberais normais até os “conservadores fortes”, se sentiam um tanto amordaçados pela cultura política na qual procuravam expressar suas opiniões. Se essa informação for correta, talvez não exista uma recalibragem que consiga deixar as pesquisas precisas. Outro problema possivelmente relacionado para os pesquisadores é que muitos eleitores simplesmente não confiam nas pesquisas o suficiente para responder às suas perguntas: em 2016, menos de 1 em 200 ligações feitas por firmas de pesquisa resultou em uma entrevista com eleitor. O mesmo provavelmente aconteceu desta vez.

Biden agora parece prestes a se tornar o 46.º presidente, mas por uma margem estreita. Sua provável conquista reacenderá uma longa discussão dentro do Partido Democrata sobre se o populismo de esquerda pode ser um antídoto melhor para o populismo de direita, um debate que a vitória de Biden nas primárias parecia ter encerrado. É bem possível que o resultado mantenha o Partido Republicano escravo de Trump e do trumpismo até onde a vista alcança. E isso significa que Biden, se for de fato empossado no dia 20 de janeiro, ficará muito restrito em termos de política interna. No entanto, se o presidente que um país elege é a medida mais visível de seus valores, os Estados Unidos realmente mudaram de rumo. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Liu Xiaobo, o heroico dissidente anticomunista da China, era um grande admirador da democracia americana. “O que mais me interessa”, ele escreveu certa vez, “é a evidência óbvia de como o sistema democrático americano pode se corrigir (...) especialmente em momentos de grande crise”. Pouco depois de fazer essa observação, Liu foi preso para o resto da vida. Mas o argumento continua de pé. Vistos de longe, os eleitores americanos parecem ter voltado a agir de forma decisiva em um momento de crise, destituindo um presidente em exercício, algo que ocorreu apenas uma vez nos últimos 40 anos.

Vistas de perto, as conclusões a tirar dos resultados das eleições do dia 3 são menos grandiosas. As pesquisas de opinião, que mostraram Joe Biden com uma vasta vantagem até o dia das eleições, condicionaram as esperanças dos democratas e os temores dos republicanos pelo que ocorreria. Essas pesquisas acabaram se mostrando equivocadas – talvez até mais do que em 2016.

Apoiadores do candidato democrata, Joe Biden, aguardam discurso no Chase Center, na cidade de Wilmington: motivação dos eleitores favoreceu alto comparecimento Foto: Joe Raedle/AFP

O resultado está acirrado o suficiente para que surjam contestações judiciais – embora pareça provável que Biden venha a ganhar os votos de colégio eleitoral necessários para se tornar o próximo presidente – e o momento catártico em que um candidato vence e o outro reconhece a derrota ainda parece distante. Se isso é um repúdio ao presidente, a mecânica do colégio eleitoral fez com que parecesse marginal e ambíguo, o que mostra o domínio do partidarismo no país.

Apesar da epidemia de covid-19, o comparecimento às urnas foi o maior desde 1900 – o que significa que Biden ganhou mais votos do que qualquer outro candidato na história americana. Uma vez mais, os Estados que realizam eleições federais não conseguiram contar votos tão rapidamente quanto outras grandes democracias. Na eleição geral do ano passado, a Índia apurou 600 milhões de votos em poucas horas, em contraste com os dias que serão necessários para se somar cerca de 140 milhões de votos nos EUA.

Mas havia tanta incerteza no gerenciamento desta eleição, incluindo o uso generalizado do voto pelo correio pela primeira vez em alguns Estados, que esse alto comparecimento ainda é uma conquista que vale a pena comemorar, mesmo que tenha sido, sobretudo, o produto de algo próximo ao terror existencial em ambos os lados.

O alto comparecimento às urnas, entretanto, não rendeu os dividendos que esperavam os democratas e a maioria dos analistas. Desde pelo menos 2004, a última vez que um republicano venceu no voto popular, os democratas presumem que as eleições nacionais com alta participação são necessariamente boas para seu partido. E Biden ganhou o voto popular com uma margem confortável, destacando o status dos democratas como o partido consistentemente preferido pela maioria dos eleitores americanos.

Este resultado estende a vitória democrata no voto popular a sete das últimas oito eleições presidenciais, uma conquista que não recebe nenhum prêmio além do direito de alegar que o país não é de fato tão conservador quanto parece. Mas o aumento da participação não favoreceu Biden de maneira decisiva. Em vez disso, um contingente de eleitores ocasionais que ficaram de fora em 2016 fizeram suas vozes serem ouvidas e, no fim das contas, umas quase cancelaram as outras.

Isso, por sua vez, destaca uma segunda característica marcante do resultado: o grau com que 2020 se parece com quase qualquer outra eleição presidencial recente. Até agora, com algumas exceções – notadamente a Flórida e possivelmente o Arizona – o mapa eleitoral se parece muito com o de 2012, quando Barack Obama derrotou Mitt Romney por pouco. Em outras palavras, apesar de tudo o que aconteceu nos últimos quatro anos, essa eleição acabou se parecendo muito com o que ocorreria se um republicano genérico concorresse contra um democrata genérico em um ano em que não estivesse acontecendo nada de mais.

Não deixa de ser algo notável quando você faz uma pausa para se lembrar de todas as coisas que não conseguiram quebrar o impasse partidário em 2020. No ano passado, Donald Trump sofreu impeachment pela Câmara, tornando-se o terceiro presidente na história dos EUA a sofrer esse processo.

O país assistiu a uma ampla cobertura de assassinatos de afro-americanos desarmados por policiais, aos maiores protestos pelos direitos civis na história americana e a episódios de violência em algumas cidades.

A Califórnia sofreu com incêndios florestais terríveis, bandidos de extrema direita planejaram sequestrar o governador de Michigan e o presidente apresentou aquele que talvez tenha sido o pior desempenho já visto em um debate eleitoral.

O presidente também nomeou um terceiro juiz para a Suprema Corte, garantindo maioria conservadora na mais alta corte pelas próximas décadas. O laptop de Hunter Biden teve seus e-mails vazados depois que o advogado do presidente garantiu que esse material chegasse até um tabloide amigável.

No fim de tudo isso, quase nenhum americano mudou de ideia sobre quem gostaria que fosse o próximo presidente. É possível argumentar que todas essas coisas simplesmente cancelaram umas às outras. O mais provável é que tenham se tornado irrelevantes em razão do poder do viés partidário em moldar a forma como os eleitores interpretam tais eventos.

Desde que Ronald Reagan venceu Walter Mondale por 525 votos a 13 no colégio eleitoral, em 1984, o apego partidário vem se fortalecendo a ponto de os eleitores votarem quase sempre da mesma maneira que votaram da última vez, independentemente do candidato, das políticas ou do que está acontecendo no país ou no mundo. A pequena quantidade de eleitores que de fato mudaram de lado em Estados-chave agora será objeto de fascínio e estudo, à medida que mais dados ficarem disponíveis.

A pequena quantidade de eleitores que de fato mudaram de lado em Estados-chave agora será objeto de fascínio e estudo, à medida que mais dados ficarem disponíveis. Em 2016, os eleitores Obama-Trump na Pensilvânia, Michigan e Wisconsin quase foram superados em número pelos jornalistas e sociólogos que decidiram estudá-los em seu habitat natural. Os resultados em nível municipal de 2020 sugerem que os eleitores republicanos hispânicos podem receber o mesmo tratamento desta vez.

Esse grupo deu ao presidente tanto a Flórida quanto o Texas. O Estado do Sol agora parece mais um confiável reduto republicano do que um autêntico Estado-pêndulo. No Texas, os democratas ficaram mais uma vez argumentando que a mudança demográfica lhes dará o Estado em algum ponto não especificado do futuro – um argumento que há muito o partido vem repetindo para se tranquilizar (a melhor expressão dessa tese otimista, o livro The Emerging Democratic Majority (A maioria democrática emergente), de John Judis e Ruy Teixeira, já tem quase 20 anos).

Ao que parece, os democratas precisam aprender a mesma lição repetidas vezes: os eleitores hispânicos não são monolíticos e uma política mais acolhedora para com os imigrantes não se traduz automaticamente em mais votos dos imigrantes. Na verdade, os resultados no nível dos condados sugerem que o melhor indicador de uma oscilação em direção a Trump foi a presença de muitos eleitores latinos.

Por outro lado, o melhor indicador de uma oscilação em direção a Biden foi o agrupamento de americanos com ensino superior. Em termos demográficos, a história da eleição pode ser contada, portanto, como uma ligeira diminuição da polarização racial (o fenômeno dos eleitores minoritários se desvinculando do Partido Democrata) e um ligeiro aumento na polarização educacional (o fenômeno dos eleitores com ensino superior abandonando o Partido Republicano). Não seria prudente traçar linhas de tendência até um futuro distante, mas esta parece ser uma boa notícia para as perspectivas futuras dos republicanos, dado o quão diverso o país está se tornando, e dado que apenas 36% dos americanos têm diploma universitário.

Apesar de seu número relativamente pequeno, os graduados em universidade têm uma influência cultural desproporcional na América. Esse fato tende a distorcer as percepções de como o país realmente é, tanto de dentro quanto de fora dos Estados Unidos. Uma grande parte dos americanos com ensino superior acreditava que Trump era um presidente desastroso e uma ameaça às instituições governamentais. Eles também acreditavam que ele era um racista cujas mensagens sobre imigrantes e negros criariam um ambiente tóxico para os não brancos. Essa visão não é tão amplamente compartilhada quanto eles presumiam.

Como isso pode acontecer? Uma pesquisa do Cato Institute, um think-tank libertário, no início deste ano descobriu que “liberais fortes” eram o único grupo ideológico do país que se sentia livre para expressar suas opiniões políticas sem causar ofensa. Todos os outros, desde os liberais normais até os “conservadores fortes”, se sentiam um tanto amordaçados pela cultura política na qual procuravam expressar suas opiniões. Se essa informação for correta, talvez não exista uma recalibragem que consiga deixar as pesquisas precisas. Outro problema possivelmente relacionado para os pesquisadores é que muitos eleitores simplesmente não confiam nas pesquisas o suficiente para responder às suas perguntas: em 2016, menos de 1 em 200 ligações feitas por firmas de pesquisa resultou em uma entrevista com eleitor. O mesmo provavelmente aconteceu desta vez.

Biden agora parece prestes a se tornar o 46.º presidente, mas por uma margem estreita. Sua provável conquista reacenderá uma longa discussão dentro do Partido Democrata sobre se o populismo de esquerda pode ser um antídoto melhor para o populismo de direita, um debate que a vitória de Biden nas primárias parecia ter encerrado. É bem possível que o resultado mantenha o Partido Republicano escravo de Trump e do trumpismo até onde a vista alcança. E isso significa que Biden, se for de fato empossado no dia 20 de janeiro, ficará muito restrito em termos de política interna. No entanto, se o presidente que um país elege é a medida mais visível de seus valores, os Estados Unidos realmente mudaram de rumo. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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