As sete palavras mais perigosas do jornalismo são: “O mundo nunca mais será o mesmo”. Em mais de quatro décadas de reportagem, raramente ousei usar essa frase. Mas vou usar agora após a invasão da Ucrânia por Vladimir Putin.
Nosso mundo não será o mesmo novamente porque esta guerra não tem paralelo histórico. É uma apropriação de terras ao estilo do século 18 por uma superpotência – mas em um mundo globalizado do século 21. Esta é a primeira guerra que será coberta no TikTok por indivíduos superpoderosos armados apenas com smartphones, então atos de brutalidade serão documentados e transmitidos em todo o mundo sem editores ou filtros. No primeiro dia da guerra, vimos unidades de tanques russos sendo inesperadamente expostas pelos mapas do Google, porque o Google queria alertar os motoristas de que os blindados russos estavam causando engarrafamentos.
Você nunca viu isso antes.
Sim, a tentativa russa de tomar a Ucrânia é um retrocesso aos séculos anteriores – antes das revoluções democráticas na América e na França – quando um monarca europeu ou um czar russo podia simplesmente decidir que queria mais território, que era hora de tomá-lo e assim o fazia. E todos na região sabiam que ele iria devorar o máximo que pudesse e não havia comunidade global para detê-lo.
Ao agir dessa maneira hoje, porém, Putin não está apenas pretendendo reescrever unilateralmente as regras do sistema internacional que estão em vigor desde a 2ª Guerra – que nenhuma nação pode simplesmente engolfar a nação ao lado – ele também está disposto a alterar o equilíbrio de poder que ele sente ter sido imposto à Rússia após a Guerra Fria.
Esse equilíbrio - ou desequilíbrio na visão de Putin - era o equivalente humilhante das imposições do Tratado de Versalhes à Alemanha após a 1ª Guerra, que retirou da esfera de influência da União Soviética não apenas Estados como a Polônia, mas também aqueles que faziam parte da própria União Soviética, como a Ucrânia.
Vejo muitas pessoas citando o belo livro de Robert Kagan “The Jungle Grows Back” como uma espécie de abreviação para o retorno desse estilo brutal de geopolítica que a invasão de Putin manifesta. Mas essa imagem está incompleta. Porque não estamos em 1945 ou 1989. Podemos estar de volta à selva – mas hoje a selva está conectada. E mais intimamente do que nunca pelas telecomunicações; satélites; comércio; Internet; redes rodoviárias, ferroviárias e aéreas; mercados financeiros; e cadeias de suprimentos. Assim, enquanto o drama da guerra se desenrola dentro das fronteiras da Ucrânia, os riscos e as repercussões da invasão de Putin estão sendo sentidos em todo o mundo – mesmo na China, que tem bons motivos para se preocupar com seu amigo no Kremlin.
Bem-vindo àWorld War Wired (Guerra Mundial Conectada) — a primeira guerra em um mundo totalmente interconectado. Este será o encontro dos cossacos na World Wide Web. Como eu disse, você nunca esteve aqui antes.
“Faz menos de 24 horas desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, mas já temos mais informações sobre o que está acontecendo lá do que teríamos em uma semana durante a guerra do Iraque”, escreveu Daniel Johnson, que serviu como oficial de infantaria e jornalista do Exército dos EUA no Iraque, na revista Slate, na quinta-feira. “O que está saindo sobre a Ucrânia é simplesmente impossível de produzir em tal escala sem que cidadãos e soldados de todo o país tenham acesso fácil a celulares, internet e, por extensão, aplicativos de mídia social. Uma guerra moderna em larga escala será transmitida ao vivo, minuto a minuto, batalha por batalha, morte por morte, para o mundo. O que está ocorrendo já é horrível, com base nas informações divulgadas apenas no primeiro dia.”
O resultado desta guerra dependerá em grande parte da vontade do resto do mundo de deter e reverter a blitzkrieg de Putin usando principalmente sanções econômicas e armando os ucranianos com armamento antiaéreo e antitanque para tentar retardar seu avanço. Putin também pode ser forçado a considerar o número de mortos de seus próprios camaradas.
Putin será derrubado pelo exagero imperial? É muito cedo para dizer. Mas me lembro hoje em dia do que um outro líder deformado que decidiu devorar seus vizinhos na Europa observou. Seu nome era Adolf Hitler, e ele disse: “O começo de toda guerra é como abrir a porta de um quarto escuro. Nunca se sabe o que está escondido na escuridão.”
No caso de Putin, me pego perguntando: ele sabe o que está escondido à vista de todos e não apenas no escuro? Ele conhece não apenas os pontos fortes da Rússia no novo mundo de hoje, mas também suas fraquezas? Deixe-me enumerá-las.
A Rússia está no processo de assumir à força um país livre com uma população de 44 milhões de pessoas, que é um pouco menos de um terço do tamanho da população da Rússia. E a maioria desses ucranianos luta para fazer parte do Ocidente democrático e de livre mercado há 30 anos, e já forjou inúmeros laços comerciais, culturais e de internet com empresas, instituições e mídia da União Europeia.
Sabemos que Putin melhorou muito as Forças Armadas da Rússia, adicionando tudo, desde capacidades de mísseis hipersônicos a ferramentas avançadas de guerra cibernética. Ele tem o poder de fogo para colocar a Ucrânia de joelhos. Mas nesta era moderna nunca vimos um país não livre, a Rússia, tentar reescrever as regras do sistema internacional e assumir um país livre tão grande quanto a Ucrânia – especialmente quando o país não livre, a Rússia, tem uma economia que é menor que a do Texas.
Então pense nisso: graças à rápida globalização, a UE já é o maior parceiro comercial da Ucrânia – não a Rússia. Em 2012, a Rússia foi o destino de 25,7% das exportações ucranianas, em comparação com 24,9% destinados à UE. Apenas seis anos depois, após a brutal tomada da Crimeia pela Rússia, o apoio aos rebeldes separatistas no Leste da Ucrânia e o estabelecimento de laços mais estreitos com a UE, econômica e politicamente, “a participação da Rússia nas exportações ucranianas caiu para apenas 7,7%, enquanto a participação da UE subiu para 42,6%”, segundo uma análise recente publicada pelo Bruegel.org.
Se Putin não desembaraçar esses laços, a Ucrânia continuará caindo nos braços do Ocidente – e se ele os desembaraçar, estrangulará a economia da Ucrânia. E se a UE boicotar uma Ucrânia controlada pela Rússia, Putin terá que usar o dinheiro da Rússia para manter a economia da Ucrânia à tona.
Isso foi levado em conta em seus planos de guerra? Não parece. Ou como um diplomata russo aposentado em Moscou me disso em um e-mail: “Diga-me como essa guerra termina? Infelizmente, não há ninguém em nenhum lugar para perguntar.”
Mas todos na Rússia poderão assistir. À medida que essa guerra se desenrola no TikTok, Facebook, YouTube e Twitter, Putin não pode proteger sua população russa – muito menos o resto do mundo – das imagens horríveis que sairão dessa guerra ao entrar em sua fase urbana. Apenas no primeiro dia da guerra, mais de 1.300 manifestantes em toda a Rússia, muitos deles gritando “Não à guerra”, foram detidos, informou o Times, citando um grupo de direitos humanos. Esse número não é pequeno em um país onde Putin tolera pouca dissidência.
E quem sabe como essas imagens afetarão a Polônia, principalmente quando ela for invadida por refugiados ucranianos. Menciono particularmente a Polônia porque é a principal ponte terrestre da Rússia para a Alemanha e o resto da Europa Ocidental. Como o estrategista Edward Luttwak apontou no Twitter, se a Polônia apenas parasse o tráfego de caminhões e trens da Rússia para a Alemanha, “como deveria”, isso criaria um caos imediato para a economia da Rússia, porque as rotas alternativas são complicadas e precisam passar por uma agora muito perigosa Ucrânia.
Alguém está disposto a uma greve de caminhoneiros anti-Putin para impedir que mercadorias russas entrem e passem pela Europa Ocidental por meio da Polônia? Observe isso. Alguns cidadãos poloneses superpoderosos com algumas barreiras, picapes e smartphones podem sufocar toda a economia da Rússia neste mundo conectado.
Esta guerra sem paralelo histórico não será um teste de estresse apenas para os EUA e seus aliados europeus. Também será para a China. Putin basicamente jogou a luva para Pequim: “Você vai ficar com aqueles que querem derrubar a ordem liderada pelos americanos ou se juntar ao destacamento do xerife dos EUA?”
Essa não deveria ser – mas é – uma pergunta dolorosa para Pequim. “Os interesses da China e da Rússia hoje não são idênticos”, Nader Mousavizadeh, fundador e CEO da consultoria global Macro Advisory Partners, me disse. “A China quer competir com os Estados Unidos no Super Bowl da economia, inovação e tecnologia – e acha que pode vencer. Putin está pronto para incendiar o estádio e matar todos nele para satisfazer suas queixas”.
O dilema para os chineses, acrescentou Mousavizadeh, “é que sua preferência pelo tipo de ordem, estabilidade e globalização que permitiu seu milagre econômico está em forte tensão com seu autoritarismo ressurgente em casa e sua ambição de suplantar os EUA – seja pela força da China ou a fraqueza americana – como a superpotência dominante do mundo e definidora de regras.”
Tenho poucas dúvidas de que, em seu coração, o presidente da China, Xi Jinping, espera que Putin consiga sequestrar a Ucrânia e humilhar os EUA – tanto melhor para suavizar o mundo por seu desejo de tomar Taiwan e fundi-lo de volta à pátria chinesa .
Mas Xi não é bobo nem nada. Aqui estão alguns outros fatos interessantes do mundo conectado: primeiro, a economia da China é mais dependente da Ucrânia do que a da Rússia. Segundo a Reuters, “a China ultrapassou a Rússia para se tornar o maior parceiro comercial da Ucrânia em 2019, com o comércio totalizando US$ 18,98 bilhões no ano passado, um salto de quase 80% em relação a 2013. A China se tornou o maior importador de cevada ucraniana na comercialização de 2020-21 ano”, e cerca de 30% de todas as importações de milho da China no ano passado vieram de fazendas na Ucrânia.
Em segundo lugar, a China ultrapassou os Estados Unidos como o maior parceiro comercial da União Europeia em 2020, e Pequim não pode pagar pela UE estar envolvida em um conflito com uma Rússia cada vez mais agressiva e um Putin instável. A estabilidade da China depende – e a legitimidade do Partido Comunista no poder depende – da capacidade de Xi de sustentar e aumentar sua mastodôntica classe média. E isso depende de uma economia mundial estável e crescente.
Não espero que a China imponha sanções à Rússia, muito menos arme os ucranianos, como os EUA e a UE. Tudo o que Pequim fez até agora foi murmurar que a invasão de Putin “não era o que esperávamos ver” – enquanto rapidamente insinuava que Washington era o “culpado” por “atiçar chamas” com a expansão da Otan e seus recentes alertas de um iminente ataque russo.
Portanto, a China está obviamente dividida, mas das três principais superpotências com armas nucleares - EUA, China e Rússia - a China, pelo que diz ou não diz, tem um peso muito grande na decisão se Putin se safa ou não de sua fúria contra a Ucrânia.
Liderar é escolher, e se a China tem qualquer pretensão de suplantar os EUA como líder mundial, terá que fazer mais do que murmurar.
Finalmente, há algo mais que Putin encontrará escondido à vista de todos. No mundo interconectado de hoje, a “esfera de influência” de um líder não é mais um direito da história e da geografia, mas é algo que deve ser conquistado e reconquistado todos os dias, inspirando e não obrigando outros a segui-lo.
A musicista e atriz Selena Gomez tem o dobro de seguidores no Instagram – mais de 298 milhões – do que a Rússia tem cidadãos. Sim, Vladimir, posso ouvir você rindo daqui e ecoando a piada de Stalin sobre o papa: “Quantas divisões tem Selena Gomez?”
Ela não tem nenhuma. Mas ela é uma influenciadora com seguidores, e existem milhares e milhares de Selenas por aí na World Wide Web, incluindo celebridades russas que estão postando no Instagram sobre sua oposição à guerra. E embora eles não possam reverter seus tanques, eles podem fazer com que todos os líderes do Ocidente enrolem o tapete vermelho para você, para que você e seus comparsas nunca possam viajar para seus países. Você agora é oficialmente um pária global. Espero que goste de comida chinesa e norte-coreana.
Por todas essas razões, neste estágio inicial, vou arriscar apenas uma previsão sobre Putin: Vladimir, o primeiro dia desta guerra foi o melhor dia do resto de sua vida. Não tenho dúvidas de que, no curto prazo, suas Forças Armadas prevalecerão. Mas, a longo prazo, os líderes que tentam enterrar o futuro com o passado não se saem bem. A longo prazo, seu nome viverá na infâmia.
Eu sei, eu sei, Vladimir, você não se importa – não mais do que você se importa por ter começado essa guerra no meio de uma pandemia furiosa. E eu tenho que admitir que isso é o que é mais assustador nesta World War Wired. O longo prazo pode estar muito longe e o resto de nós não está isolado de sua loucura. Ou seja, eu gostaria de poder prever alegremente que a Ucrânia será o Waterloo de Putin – e somente dele. Mas não posso, porque em nosso mundo conectado, o que acontece em Waterloo não fica em Waterloo.
De fato, se você me perguntar qual é o aspecto mais perigoso do mundo de hoje, eu diria que é o fato de Putin ter mais poder descontrolado do que qualquer outro líder russo desde Stalin. E Xi tem mais poder descontrolado do que qualquer outro líder chinês desde Mao. Mas na época de Stalin, seus excessos eram em grande parte confinados à Rússia e às fronteiras que ele controlava. E na época de Mao, a China estava tão isolada que seus excessos tocavam apenas o povo chinês.
Não mais - o mundo de hoje está baseado em dois extremos simultâneos: nunca os líderes de duas das três nações nucleares mais poderosas - Putin e Xi - tiveram poder tão descontrolado e nunca mais pessoas de um extremo ao outro do mundo estiveram tão conectadas. Assim, o que esses dois líderes decidirem fazer com seu poder descontrolado afetará praticamente todos nós, direta ou indiretamente.
A invasão da Ucrânia por Putin é o nosso aperitivo real de quão louco e instável esse tipo de mundo conectado pode ficar. Não será o nosso último.