Nova Guerra Fria é um perigo e Brasil não precisa se alinhar a um dos lados, diz Niall Ferguson


Especialista em história internacional avalia os conflitos em curso e a posição do Brasil em cenário belicoso: País deve ser ‘não-alinhado’ ou ‘poliamoroso’, ‘não precisa escolher um lado’

Por Jéssica Petrovna
Atualização:
Foto: ALEX SILVA/ESTADAO
Entrevista comNiall FergusonHistoriador, professor da Universidade de Harvard, pesquisador nas universidades de Stanford e Oxford e no Hoover Institute

O historiador Niall Ferguson, alerta: o mundo já vive a nova Guerra Fria. A disputa dos Estados Unidos com a China evoca a relação conflituosa que os americanos tiveram com a antiga União Soviética e o problema da tensão entre as potências é que a escalada da crise resultaria em catástrofe. As guerras simultâneas na Ucrânia e na Faixa de Gaza são um lembrete constante desse risco.

“O mundo é um lugar perigoso porque a Guerra Fria é inerentemente perigosa”, disse em entrevista exclusiva ao Estadão , durante evento organizado pelo banco UBS. “A grande questão é o que nós podemos fazer para evitar que a Guerra Fria escale. E eu acho que depende muito dos líderes em Washington e Pequim”, acrescenta.

Do lado americano, a pergunta será respondida este ano. É dado como certo que a escolha se dará, de novo, entre Joe Biden e Donald Trump, mas nenhum dos dois parece uma boa escolha para Ferguson. O primeiro, afirma, falhou em deter os rivais americanos. Durante o governo democrata, lembra, o Taleban voltou ao poder no Afeganistão, a Rússia de Vladimir Putin invadiu a Ucrânia e o Hamas, apoiado pelo Irã, atacou Israel. O segundo ameaçou a estabilidade dos EUA em si no 6 de janeiro, quando seus apoiadores fiéis avançaram sobre o Capitólio, e coloca em dúvida o compromisso americano com a segurança dos aliados europeus. Isso além de ter se lançado em uma guerra comercial com a China.

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É uma como escolher entre a força e uma política externa mais dura, mas perder a república, ou escolher o governo constitucional, mas perder a credibilidade americana no exterior.

Historiador Niall Ferguson

O professor da Universidade de Harvard e autor de mais de uma dezena de livros sobre história internacional, economia e finanças, Niall Ferguson participou esta semana de um evento promovido pela empresa de serviços financeiros UBS. Na passagem pelo Brasil, ele falou sobre como o País se insere nessa nova Guerra Fria. A avaliação do especialista é que o governo Luiz Inácio Lula da Silva tem tomado lado, assim como seu antecessor Jair Bolsonaro se alinhou ao lado oposto. O País, no entanto, não precisaria escolher, pode ser não-alinhado - como ficou conhecido o bloco que buscava a neutralidade durante a primeira Guerra Fria - ou “poliamoroso”.

Nessa nova Guerra Fria, argumenta Ferguson, Pequim não é isolada como era Moscou. E a interdependência entre as economias coloca o Brasil em uma posição privilegiada. Está geograficamente longe do foco dos conflitos, o Hemisfério Norte, ao mesmo tempo em pode fazer negócio com chineses e americanos.

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“A China precisa do Brasil por ser um enorme fornecedor de produtos agrícolas, cada vez mais sofisticado. O Ocidente precisa da contribuição do Brasil para enfrentar os desafios das mudanças climáticas. O Brasil é demandado”, disse ele. “Não precisa escolher”, concluiu.

Presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da China, Xi Jinping, na Cúpula do BRICS, Johannesburg, África do Sul, 24 de agosto de 2023. Foto: EFE/EPA/YESHIEL PANCHIA

Ouvi você dizer, há um ano, que a Ucrânia era a primeira ‘guerra quente’ dessa nova Guerra Fria e alertar que o Oriente Médio poderia ser o próximo foco de conflito. E é nesse ponto que estamos agora. Como você avalia esses conflitos na perspectiva de uma nova Guerra Fria?

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Eu comecei a dizer há cinco anos que nós estávamos em uma Guerra Fria e as pessoas eram céticas. Mas eu acho que está cada vez mais visível que os Estados Unidos e a China estão em uma relação muito parecida com a relação que os EUA tinham com a União Soviética na Guerra Fria.

A primeira Guerra Fria não era totalmente fria, houve uma guerra na Coreia. Para muitas pessoas, 1950 foi o momento em que elas perceberam a real natureza de divisão do mundo. Eu acredito que, da mesma forma, a guerra na Ucrânia revelou a natureza real do mundo. Os EUA e os seus aliados apoiam a Ucrânia. China, Irã e Coreia do Norte apoiam a Rússia. Essa não é apenas uma guerra regional, é um conflito global de certa forma.

Assim como na primeira Guerra Fria, havia o risco de outros conflitos locais. Quando a guerra no Oriente Médio explodiu, em 7 de outubro, não foi uma surpresa para mim. E há outros potenciais. Pode acontecer em Taiwan, pode acontecer entre as Coreias do Norte e do Sul. O mundo é um lugar perigoso porque a Guerra Fria é inerentemente perigosa.

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Estamos nos aproximando de uma 3ª Guerra?

Eu acho que é inerente da Guerra Fria o potencial de se transformar em uma Guerra Mundial. Isso era verdade na primeira e é verdade agora. E todos nós devemos esperar que isso não aconteça porque, claramente, uma Guerra Mundial seria um desastre. A grande questão é: o que nós podemos fazer para evitar que a Guerra Fria escale? E eu acho que depende muito dos líderes em Washington e Pequim. Felizmente, tivemos sinais de distensionamento entre EUA e China no ano passado em São Francisco. (Joe Biden e Xi Jipping se encontraram às margens da cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, a APEC). Aquela cúpula correu muito bem então eu não estou em estado de pânico total. Eu acredito que é possível manegar a segunda Guerra Fria e evitar o risco de 3º Guerra Mundial.

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A Otan citou a Rússia como ameaça ao anunciar o maior exercício militar desde a Guerra Fria. Quais são as grandes preocupações da Europa no que diz respeito à segurança?

A maior preocupação em segurança na Europa hoje é se os Estados Unidos vão retirar o apoio à Ucrânia ou, talvez até mesmo deixar a Otan. Muitas pessoas se preocupavam que, se o Donald Trump fosse eleito, a ajuda dos EUA à Ucrânia seria cortada. Isso já está acontecendo e ainda faltam nove meses para eleição.

Ninguém sabe o que Trump fará se for reeleito e, eu diria, tem 50% de chance de isso ocorrer, mas é improvável que seja bom para as alianças americanas porque Trump não acredita realmente nessas alianças ou, pelo menos, é cético com relação a elas. Então, a Europa está preocupada que possa, de repente, ficar por conta própria e não está preparada para isso. A Europa depende dos EUA para segurança basicamente desde 1942. Não vejo como a Europa pode fazer sem os Estados Unidos pelo menos pelos próximos dez anos. E nesse período terá que gastar muito mais em segurança do que tem gastado.

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É claro, se a Rússia vencer na Ucrânia, a grande questão é o que Vladimir Putin vai fazer depois. Por que ele moveu mísseis para Belarus? Então, em certo sentido, a ameaça vem de Putin, mas não seria uma ameaça séria para os Estados Unidos, desde que haja um apoio confiável à Ucrânia e um apoio confiável à Otan. A preocupação real é, na verdade, essa falta de certeza sobre o compromisso americano.

Soldado ucraniano dispara com obus de fabricação francesa em direção à posição russa em Donetsk.  Foto: AP / Libkos

Ainda na Europa, a extrema direita está em ascensão no continente. Como isso impacta nessa nova Guerra Fria?

Os partidos populistas de extrema direita tem ganhado terreno depois de um período em que pareciam perder. Em 2019, 2020, 2021, os populistas tiveram pouco progresso. Agora, eles ganharam na Holanda e contam com uma grande fatia do voto popular na Alemanha. Se você olha para o Alternativa para a Alemanha (AfD), é um partido amplamente anti-Ucrânia e pró-Rússia no que diz respeito à política externa. Na Europa como um todo, Giorgia Meloni é populista e seu partido, o Irmãos da Itália, é de extrema direita, mas ela tem sido bastante cautelosa. Não é tão ruim como se previu. Viktor Orbán é outro populista de extrema direita, que é simpático à Rússia e não ajuda muito no que diz respeito à Ucrânia, mas eu acho que o que ele está buscando são vantagens próprias. Então, os partidos populistas não são inequivocadamente ruins para Ucrânia como se pode esperar mas, ainda assim, a tendência na Europa não é muito amigável. Quanto mais esses partidos ganham terreno, mais difícil fica para Europa agir de forma unida. E a Europa precisa agir de forma unida, precisa de uma espécie de fundo de defesa, como fez com a recuperação econômica na pandemia.

Essa divisão empodera Putin?

Certamente. Putin pensa que o mundo está seguindo seu rumo, que os EUA estão divididos, que os europeus estão divididos que ele tem em Xi Jinping um aliado muito rico e poderoso. Assim como tem apoio de Teerã e de Pyongyang. Então, eu acho que Putin deve estar mais otimista hoje do que estava há um ano, dois anos.

Você mencionou a importância das lideranças para evitar a escalada dessa nova Guerra Fria e este ano nós temos cerca de 40 eleições espalhadas pelo mundo, incluindo os Estados Unidos. Como fica esse balanço de poder em um mundo tão conflituoso?

Obviamente, ter muitas eleições aponta para um mundo mais democrático. Isso é bom. Eu acho que o problema dessa eleição nos Estados Unidos é que há um certo nível de tédio porque é a mesma eleição de 2020, o que pode se traduzir em um resultado surpreendente se o comparecimento for baixo. Se você olhar para as pesquisas, é 50-50, é uma moeda lançada para cima, cara ou coroa. Mas que tem muitas consequências.

Se Biden vencer, serão mais quatro anos, eu acho, de um homem muito velho para ser presidente tomando decisões bem ruins que não detêm ninguém. Vamos pensar um pouco sobre isso. Ele entregou o Afeganistão de volta para o Taleban, falhou em deter (o presidente russo Vladimir) Putin de invadir a Ucrânia, falhou em deter o Irã (que financia o grupo terrorista Hamas) de atacar Israel. Eu não sei o que ele vai falhar em deter este ano, mas me preocupa. É um período sustentado de fraqueza americana e eu acho que mais quatro anos disso trará consequências negativas.

Se Donald Trump for eleito, provavelmente será mais forte e imprevisível. O que não é ruim, eu acho, do ponto de vista da política externa. Mas quão estável será a democracia americana se Trump voltar à Casa Branca depois do 6 de janeiro, quando ele se mostrou tão indiferente às normas? É uma escolha ruim de ter que fazer, é meio que escolher a força e uma política externa mais dura, mas perder a república, ou escolher o governo constitucional, mas perder a credibilidade americana no exterior. Esta é uma escolha muito ruim para se fazer, mas é a realidade.

Todo o resto no mundo é relativamente bem previsível por comparação. Eu posso dizer com bastante confiança que Narendra Modi vai vencer a eleição na Índia, posso dizer com certeza que Putin vai vencer na Rússia. Acredito que, no Reino Unido, Rishi Sunak vai perder para o Partido Trabalhista. A maior parte das eleições no mundo, na verdade, não é muito difícil de prever, mas uma exceção à essa regra é a eleição americana que vai ser muito acirrada e, provavelmente, será definida por uma pequena centena de milhares de votos em cinco Estados.

O que torna ainda mais complicada uma eventual derrota de Trump... se ele perder nesses termos, provavelmente vai alegar fraude, como já fez antes.

Eu acho que os dois lados vão disputar o resultado. Esse é o problema. Os resultados são muito apertados. Foi assim em 2016, foi assim em 2020 e será de novo este ano. Passamos boa parte dos últimos 20 anos minando a legitimidade dos resultados das eleições, isso desde 2000 (naquele ano, o democrata Al-Gore pediu recontagem dos votos e a disputa foi parar na Suprema Corte que confirmou, após 36 dias, a vitória do republicano George W. Bush). Foi algo que os democratas fizeram tanto quanto os republicanos e que Trump levou ao extremo, minando a estabilidade do sistema.

Eu me preocupo muito com o que vai acontecer no dia 5 de novembro (data da votação), no dia 6 e depois se o resultado for muito próximo e um lado se recusar a aceitar o resultado. Podemos imaginar protestos nas ruas de grandes cidades se Trump for declarado vencedor, mas também podemos imaginar protestos se ele for declarado perdedor. Acredito que será uma semana muito, muito tensa.

Donald Trump fala com apoiadores após vitória nas primárias de New Hampshire.  Foto: Jabin Botsford/The Washington Post

Trazendo a discussão para o Brasil, o governo parece ter dificuldade em encontrar o equilíbrio nesse mundo tão tenso. O presidente Lula foi muito criticado por declarações envolvendo a guerra na Ucrânia e, mais recentemente, o apoio à ação contra Israel por genocídio. Como você avalia a posição brasileira nesse cenário? Lula tomou um lado na nova Guerra Fria?

É curioso porque Jair Bolsonaro tomou lado, de forma muito decisiva, dos Estados Unidos a até mesmo de Taiwan. E Lula faz o contrário, aparece em Xangai, fala sobre uma moeda do BRICS. Como um homem de esquerda da América do Sul ele tem uma tendência instintiva anti-americana.

Mas eu não acho que nenhum dos dois represente o Brasil como um todo. Eu acho que a maioria dos brasileiros têm bastante orgulho de viver em uma democracia próspera, eu nem acho que seja verdade mais que o Brasil seja emergente. Acho que emergiu como uma economia dominante no Hemisfério Sul. E que os brasileiros não querem escolher. Gostam da democracia e gostam de vender para China e de vender para mundo. Eu não sinto realmente que precisam escolher. No sentido de que a China precisa do Brasil por ser um enorme fornecedor de produtos agrícolas, cada vez mais sofisticado. E o Ocidente precisa do Brasil porque precisa, de alguma forma, de sua contribuição para enfrentar os desafios das mudanças climáticas.

O Brasil é demandado. As pessoas querem investir aqui, querem fazer negócio aqui. Não precisa realmente fazer uma escolha. Não é como a Alemanha que é tão dependente dos Estados Unidos para segurança que não tem escolha. O Brasil, geograficamente, não está na linha de frente. Essa Guerra Fria é um fenômeno transpacífico no Hemisfério Norte e, em grande medida, o Brasil pode ficar de fora.

É um dos muito países que pode ser, não exatamente não-alinhado que era o termo na primeira Guerra Fria, mas “poliamoroso”. Ou seja, que em alguns momentos está com a China, em alguns momentos com os Estados Unidos. Às vezes em um date com o BRICS, às vezes em um date com o Tio Sam. Essa é a diferença: nessa Guerra Fria, é possível ser um pouco dos dois. Há uma enorme interdependência econômica, que não existia na primeira, a União Soviética era isolada, tinha a própria economia fechada. Isso não é verdade com a China.

Lula se torna, de certa forma, insensato quando age como se o BRICS fosse algo realmente sério e não é. O BRICS é propaganda chinesa agora e não faz nem fará nada de fato.

Sou inclinado a dizer que Lula deveria folhear o livro do Narendra Modi. Porque Modi é muito transacional, uma hora ele está em Washington, depois está na China, na África do Sul. Não dá para realmente defini-lo, não dá para realmente dizer que ele está do lado da China ou do lado dos EUA, ele está do lado da Índia. Acho que essa é a abordagem correta.

O historiador Niall Ferguson, alerta: o mundo já vive a nova Guerra Fria. A disputa dos Estados Unidos com a China evoca a relação conflituosa que os americanos tiveram com a antiga União Soviética e o problema da tensão entre as potências é que a escalada da crise resultaria em catástrofe. As guerras simultâneas na Ucrânia e na Faixa de Gaza são um lembrete constante desse risco.

“O mundo é um lugar perigoso porque a Guerra Fria é inerentemente perigosa”, disse em entrevista exclusiva ao Estadão , durante evento organizado pelo banco UBS. “A grande questão é o que nós podemos fazer para evitar que a Guerra Fria escale. E eu acho que depende muito dos líderes em Washington e Pequim”, acrescenta.

Do lado americano, a pergunta será respondida este ano. É dado como certo que a escolha se dará, de novo, entre Joe Biden e Donald Trump, mas nenhum dos dois parece uma boa escolha para Ferguson. O primeiro, afirma, falhou em deter os rivais americanos. Durante o governo democrata, lembra, o Taleban voltou ao poder no Afeganistão, a Rússia de Vladimir Putin invadiu a Ucrânia e o Hamas, apoiado pelo Irã, atacou Israel. O segundo ameaçou a estabilidade dos EUA em si no 6 de janeiro, quando seus apoiadores fiéis avançaram sobre o Capitólio, e coloca em dúvida o compromisso americano com a segurança dos aliados europeus. Isso além de ter se lançado em uma guerra comercial com a China.

É uma como escolher entre a força e uma política externa mais dura, mas perder a república, ou escolher o governo constitucional, mas perder a credibilidade americana no exterior.

Historiador Niall Ferguson

O professor da Universidade de Harvard e autor de mais de uma dezena de livros sobre história internacional, economia e finanças, Niall Ferguson participou esta semana de um evento promovido pela empresa de serviços financeiros UBS. Na passagem pelo Brasil, ele falou sobre como o País se insere nessa nova Guerra Fria. A avaliação do especialista é que o governo Luiz Inácio Lula da Silva tem tomado lado, assim como seu antecessor Jair Bolsonaro se alinhou ao lado oposto. O País, no entanto, não precisaria escolher, pode ser não-alinhado - como ficou conhecido o bloco que buscava a neutralidade durante a primeira Guerra Fria - ou “poliamoroso”.

Nessa nova Guerra Fria, argumenta Ferguson, Pequim não é isolada como era Moscou. E a interdependência entre as economias coloca o Brasil em uma posição privilegiada. Está geograficamente longe do foco dos conflitos, o Hemisfério Norte, ao mesmo tempo em pode fazer negócio com chineses e americanos.

“A China precisa do Brasil por ser um enorme fornecedor de produtos agrícolas, cada vez mais sofisticado. O Ocidente precisa da contribuição do Brasil para enfrentar os desafios das mudanças climáticas. O Brasil é demandado”, disse ele. “Não precisa escolher”, concluiu.

Presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da China, Xi Jinping, na Cúpula do BRICS, Johannesburg, África do Sul, 24 de agosto de 2023. Foto: EFE/EPA/YESHIEL PANCHIA

Ouvi você dizer, há um ano, que a Ucrânia era a primeira ‘guerra quente’ dessa nova Guerra Fria e alertar que o Oriente Médio poderia ser o próximo foco de conflito. E é nesse ponto que estamos agora. Como você avalia esses conflitos na perspectiva de uma nova Guerra Fria?

Eu comecei a dizer há cinco anos que nós estávamos em uma Guerra Fria e as pessoas eram céticas. Mas eu acho que está cada vez mais visível que os Estados Unidos e a China estão em uma relação muito parecida com a relação que os EUA tinham com a União Soviética na Guerra Fria.

A primeira Guerra Fria não era totalmente fria, houve uma guerra na Coreia. Para muitas pessoas, 1950 foi o momento em que elas perceberam a real natureza de divisão do mundo. Eu acredito que, da mesma forma, a guerra na Ucrânia revelou a natureza real do mundo. Os EUA e os seus aliados apoiam a Ucrânia. China, Irã e Coreia do Norte apoiam a Rússia. Essa não é apenas uma guerra regional, é um conflito global de certa forma.

Assim como na primeira Guerra Fria, havia o risco de outros conflitos locais. Quando a guerra no Oriente Médio explodiu, em 7 de outubro, não foi uma surpresa para mim. E há outros potenciais. Pode acontecer em Taiwan, pode acontecer entre as Coreias do Norte e do Sul. O mundo é um lugar perigoso porque a Guerra Fria é inerentemente perigosa.

Estamos nos aproximando de uma 3ª Guerra?

Eu acho que é inerente da Guerra Fria o potencial de se transformar em uma Guerra Mundial. Isso era verdade na primeira e é verdade agora. E todos nós devemos esperar que isso não aconteça porque, claramente, uma Guerra Mundial seria um desastre. A grande questão é: o que nós podemos fazer para evitar que a Guerra Fria escale? E eu acho que depende muito dos líderes em Washington e Pequim. Felizmente, tivemos sinais de distensionamento entre EUA e China no ano passado em São Francisco. (Joe Biden e Xi Jipping se encontraram às margens da cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, a APEC). Aquela cúpula correu muito bem então eu não estou em estado de pânico total. Eu acredito que é possível manegar a segunda Guerra Fria e evitar o risco de 3º Guerra Mundial.

A Otan citou a Rússia como ameaça ao anunciar o maior exercício militar desde a Guerra Fria. Quais são as grandes preocupações da Europa no que diz respeito à segurança?

A maior preocupação em segurança na Europa hoje é se os Estados Unidos vão retirar o apoio à Ucrânia ou, talvez até mesmo deixar a Otan. Muitas pessoas se preocupavam que, se o Donald Trump fosse eleito, a ajuda dos EUA à Ucrânia seria cortada. Isso já está acontecendo e ainda faltam nove meses para eleição.

Ninguém sabe o que Trump fará se for reeleito e, eu diria, tem 50% de chance de isso ocorrer, mas é improvável que seja bom para as alianças americanas porque Trump não acredita realmente nessas alianças ou, pelo menos, é cético com relação a elas. Então, a Europa está preocupada que possa, de repente, ficar por conta própria e não está preparada para isso. A Europa depende dos EUA para segurança basicamente desde 1942. Não vejo como a Europa pode fazer sem os Estados Unidos pelo menos pelos próximos dez anos. E nesse período terá que gastar muito mais em segurança do que tem gastado.

É claro, se a Rússia vencer na Ucrânia, a grande questão é o que Vladimir Putin vai fazer depois. Por que ele moveu mísseis para Belarus? Então, em certo sentido, a ameaça vem de Putin, mas não seria uma ameaça séria para os Estados Unidos, desde que haja um apoio confiável à Ucrânia e um apoio confiável à Otan. A preocupação real é, na verdade, essa falta de certeza sobre o compromisso americano.

Soldado ucraniano dispara com obus de fabricação francesa em direção à posição russa em Donetsk.  Foto: AP / Libkos

Ainda na Europa, a extrema direita está em ascensão no continente. Como isso impacta nessa nova Guerra Fria?

Os partidos populistas de extrema direita tem ganhado terreno depois de um período em que pareciam perder. Em 2019, 2020, 2021, os populistas tiveram pouco progresso. Agora, eles ganharam na Holanda e contam com uma grande fatia do voto popular na Alemanha. Se você olha para o Alternativa para a Alemanha (AfD), é um partido amplamente anti-Ucrânia e pró-Rússia no que diz respeito à política externa. Na Europa como um todo, Giorgia Meloni é populista e seu partido, o Irmãos da Itália, é de extrema direita, mas ela tem sido bastante cautelosa. Não é tão ruim como se previu. Viktor Orbán é outro populista de extrema direita, que é simpático à Rússia e não ajuda muito no que diz respeito à Ucrânia, mas eu acho que o que ele está buscando são vantagens próprias. Então, os partidos populistas não são inequivocadamente ruins para Ucrânia como se pode esperar mas, ainda assim, a tendência na Europa não é muito amigável. Quanto mais esses partidos ganham terreno, mais difícil fica para Europa agir de forma unida. E a Europa precisa agir de forma unida, precisa de uma espécie de fundo de defesa, como fez com a recuperação econômica na pandemia.

Essa divisão empodera Putin?

Certamente. Putin pensa que o mundo está seguindo seu rumo, que os EUA estão divididos, que os europeus estão divididos que ele tem em Xi Jinping um aliado muito rico e poderoso. Assim como tem apoio de Teerã e de Pyongyang. Então, eu acho que Putin deve estar mais otimista hoje do que estava há um ano, dois anos.

Você mencionou a importância das lideranças para evitar a escalada dessa nova Guerra Fria e este ano nós temos cerca de 40 eleições espalhadas pelo mundo, incluindo os Estados Unidos. Como fica esse balanço de poder em um mundo tão conflituoso?

Obviamente, ter muitas eleições aponta para um mundo mais democrático. Isso é bom. Eu acho que o problema dessa eleição nos Estados Unidos é que há um certo nível de tédio porque é a mesma eleição de 2020, o que pode se traduzir em um resultado surpreendente se o comparecimento for baixo. Se você olhar para as pesquisas, é 50-50, é uma moeda lançada para cima, cara ou coroa. Mas que tem muitas consequências.

Se Biden vencer, serão mais quatro anos, eu acho, de um homem muito velho para ser presidente tomando decisões bem ruins que não detêm ninguém. Vamos pensar um pouco sobre isso. Ele entregou o Afeganistão de volta para o Taleban, falhou em deter (o presidente russo Vladimir) Putin de invadir a Ucrânia, falhou em deter o Irã (que financia o grupo terrorista Hamas) de atacar Israel. Eu não sei o que ele vai falhar em deter este ano, mas me preocupa. É um período sustentado de fraqueza americana e eu acho que mais quatro anos disso trará consequências negativas.

Se Donald Trump for eleito, provavelmente será mais forte e imprevisível. O que não é ruim, eu acho, do ponto de vista da política externa. Mas quão estável será a democracia americana se Trump voltar à Casa Branca depois do 6 de janeiro, quando ele se mostrou tão indiferente às normas? É uma escolha ruim de ter que fazer, é meio que escolher a força e uma política externa mais dura, mas perder a república, ou escolher o governo constitucional, mas perder a credibilidade americana no exterior. Esta é uma escolha muito ruim para se fazer, mas é a realidade.

Todo o resto no mundo é relativamente bem previsível por comparação. Eu posso dizer com bastante confiança que Narendra Modi vai vencer a eleição na Índia, posso dizer com certeza que Putin vai vencer na Rússia. Acredito que, no Reino Unido, Rishi Sunak vai perder para o Partido Trabalhista. A maior parte das eleições no mundo, na verdade, não é muito difícil de prever, mas uma exceção à essa regra é a eleição americana que vai ser muito acirrada e, provavelmente, será definida por uma pequena centena de milhares de votos em cinco Estados.

O que torna ainda mais complicada uma eventual derrota de Trump... se ele perder nesses termos, provavelmente vai alegar fraude, como já fez antes.

Eu acho que os dois lados vão disputar o resultado. Esse é o problema. Os resultados são muito apertados. Foi assim em 2016, foi assim em 2020 e será de novo este ano. Passamos boa parte dos últimos 20 anos minando a legitimidade dos resultados das eleições, isso desde 2000 (naquele ano, o democrata Al-Gore pediu recontagem dos votos e a disputa foi parar na Suprema Corte que confirmou, após 36 dias, a vitória do republicano George W. Bush). Foi algo que os democratas fizeram tanto quanto os republicanos e que Trump levou ao extremo, minando a estabilidade do sistema.

Eu me preocupo muito com o que vai acontecer no dia 5 de novembro (data da votação), no dia 6 e depois se o resultado for muito próximo e um lado se recusar a aceitar o resultado. Podemos imaginar protestos nas ruas de grandes cidades se Trump for declarado vencedor, mas também podemos imaginar protestos se ele for declarado perdedor. Acredito que será uma semana muito, muito tensa.

Donald Trump fala com apoiadores após vitória nas primárias de New Hampshire.  Foto: Jabin Botsford/The Washington Post

Trazendo a discussão para o Brasil, o governo parece ter dificuldade em encontrar o equilíbrio nesse mundo tão tenso. O presidente Lula foi muito criticado por declarações envolvendo a guerra na Ucrânia e, mais recentemente, o apoio à ação contra Israel por genocídio. Como você avalia a posição brasileira nesse cenário? Lula tomou um lado na nova Guerra Fria?

É curioso porque Jair Bolsonaro tomou lado, de forma muito decisiva, dos Estados Unidos a até mesmo de Taiwan. E Lula faz o contrário, aparece em Xangai, fala sobre uma moeda do BRICS. Como um homem de esquerda da América do Sul ele tem uma tendência instintiva anti-americana.

Mas eu não acho que nenhum dos dois represente o Brasil como um todo. Eu acho que a maioria dos brasileiros têm bastante orgulho de viver em uma democracia próspera, eu nem acho que seja verdade mais que o Brasil seja emergente. Acho que emergiu como uma economia dominante no Hemisfério Sul. E que os brasileiros não querem escolher. Gostam da democracia e gostam de vender para China e de vender para mundo. Eu não sinto realmente que precisam escolher. No sentido de que a China precisa do Brasil por ser um enorme fornecedor de produtos agrícolas, cada vez mais sofisticado. E o Ocidente precisa do Brasil porque precisa, de alguma forma, de sua contribuição para enfrentar os desafios das mudanças climáticas.

O Brasil é demandado. As pessoas querem investir aqui, querem fazer negócio aqui. Não precisa realmente fazer uma escolha. Não é como a Alemanha que é tão dependente dos Estados Unidos para segurança que não tem escolha. O Brasil, geograficamente, não está na linha de frente. Essa Guerra Fria é um fenômeno transpacífico no Hemisfério Norte e, em grande medida, o Brasil pode ficar de fora.

É um dos muito países que pode ser, não exatamente não-alinhado que era o termo na primeira Guerra Fria, mas “poliamoroso”. Ou seja, que em alguns momentos está com a China, em alguns momentos com os Estados Unidos. Às vezes em um date com o BRICS, às vezes em um date com o Tio Sam. Essa é a diferença: nessa Guerra Fria, é possível ser um pouco dos dois. Há uma enorme interdependência econômica, que não existia na primeira, a União Soviética era isolada, tinha a própria economia fechada. Isso não é verdade com a China.

Lula se torna, de certa forma, insensato quando age como se o BRICS fosse algo realmente sério e não é. O BRICS é propaganda chinesa agora e não faz nem fará nada de fato.

Sou inclinado a dizer que Lula deveria folhear o livro do Narendra Modi. Porque Modi é muito transacional, uma hora ele está em Washington, depois está na China, na África do Sul. Não dá para realmente defini-lo, não dá para realmente dizer que ele está do lado da China ou do lado dos EUA, ele está do lado da Índia. Acho que essa é a abordagem correta.

O historiador Niall Ferguson, alerta: o mundo já vive a nova Guerra Fria. A disputa dos Estados Unidos com a China evoca a relação conflituosa que os americanos tiveram com a antiga União Soviética e o problema da tensão entre as potências é que a escalada da crise resultaria em catástrofe. As guerras simultâneas na Ucrânia e na Faixa de Gaza são um lembrete constante desse risco.

“O mundo é um lugar perigoso porque a Guerra Fria é inerentemente perigosa”, disse em entrevista exclusiva ao Estadão , durante evento organizado pelo banco UBS. “A grande questão é o que nós podemos fazer para evitar que a Guerra Fria escale. E eu acho que depende muito dos líderes em Washington e Pequim”, acrescenta.

Do lado americano, a pergunta será respondida este ano. É dado como certo que a escolha se dará, de novo, entre Joe Biden e Donald Trump, mas nenhum dos dois parece uma boa escolha para Ferguson. O primeiro, afirma, falhou em deter os rivais americanos. Durante o governo democrata, lembra, o Taleban voltou ao poder no Afeganistão, a Rússia de Vladimir Putin invadiu a Ucrânia e o Hamas, apoiado pelo Irã, atacou Israel. O segundo ameaçou a estabilidade dos EUA em si no 6 de janeiro, quando seus apoiadores fiéis avançaram sobre o Capitólio, e coloca em dúvida o compromisso americano com a segurança dos aliados europeus. Isso além de ter se lançado em uma guerra comercial com a China.

É uma como escolher entre a força e uma política externa mais dura, mas perder a república, ou escolher o governo constitucional, mas perder a credibilidade americana no exterior.

Historiador Niall Ferguson

O professor da Universidade de Harvard e autor de mais de uma dezena de livros sobre história internacional, economia e finanças, Niall Ferguson participou esta semana de um evento promovido pela empresa de serviços financeiros UBS. Na passagem pelo Brasil, ele falou sobre como o País se insere nessa nova Guerra Fria. A avaliação do especialista é que o governo Luiz Inácio Lula da Silva tem tomado lado, assim como seu antecessor Jair Bolsonaro se alinhou ao lado oposto. O País, no entanto, não precisaria escolher, pode ser não-alinhado - como ficou conhecido o bloco que buscava a neutralidade durante a primeira Guerra Fria - ou “poliamoroso”.

Nessa nova Guerra Fria, argumenta Ferguson, Pequim não é isolada como era Moscou. E a interdependência entre as economias coloca o Brasil em uma posição privilegiada. Está geograficamente longe do foco dos conflitos, o Hemisfério Norte, ao mesmo tempo em pode fazer negócio com chineses e americanos.

“A China precisa do Brasil por ser um enorme fornecedor de produtos agrícolas, cada vez mais sofisticado. O Ocidente precisa da contribuição do Brasil para enfrentar os desafios das mudanças climáticas. O Brasil é demandado”, disse ele. “Não precisa escolher”, concluiu.

Presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da China, Xi Jinping, na Cúpula do BRICS, Johannesburg, África do Sul, 24 de agosto de 2023. Foto: EFE/EPA/YESHIEL PANCHIA

Ouvi você dizer, há um ano, que a Ucrânia era a primeira ‘guerra quente’ dessa nova Guerra Fria e alertar que o Oriente Médio poderia ser o próximo foco de conflito. E é nesse ponto que estamos agora. Como você avalia esses conflitos na perspectiva de uma nova Guerra Fria?

Eu comecei a dizer há cinco anos que nós estávamos em uma Guerra Fria e as pessoas eram céticas. Mas eu acho que está cada vez mais visível que os Estados Unidos e a China estão em uma relação muito parecida com a relação que os EUA tinham com a União Soviética na Guerra Fria.

A primeira Guerra Fria não era totalmente fria, houve uma guerra na Coreia. Para muitas pessoas, 1950 foi o momento em que elas perceberam a real natureza de divisão do mundo. Eu acredito que, da mesma forma, a guerra na Ucrânia revelou a natureza real do mundo. Os EUA e os seus aliados apoiam a Ucrânia. China, Irã e Coreia do Norte apoiam a Rússia. Essa não é apenas uma guerra regional, é um conflito global de certa forma.

Assim como na primeira Guerra Fria, havia o risco de outros conflitos locais. Quando a guerra no Oriente Médio explodiu, em 7 de outubro, não foi uma surpresa para mim. E há outros potenciais. Pode acontecer em Taiwan, pode acontecer entre as Coreias do Norte e do Sul. O mundo é um lugar perigoso porque a Guerra Fria é inerentemente perigosa.

Estamos nos aproximando de uma 3ª Guerra?

Eu acho que é inerente da Guerra Fria o potencial de se transformar em uma Guerra Mundial. Isso era verdade na primeira e é verdade agora. E todos nós devemos esperar que isso não aconteça porque, claramente, uma Guerra Mundial seria um desastre. A grande questão é: o que nós podemos fazer para evitar que a Guerra Fria escale? E eu acho que depende muito dos líderes em Washington e Pequim. Felizmente, tivemos sinais de distensionamento entre EUA e China no ano passado em São Francisco. (Joe Biden e Xi Jipping se encontraram às margens da cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, a APEC). Aquela cúpula correu muito bem então eu não estou em estado de pânico total. Eu acredito que é possível manegar a segunda Guerra Fria e evitar o risco de 3º Guerra Mundial.

A Otan citou a Rússia como ameaça ao anunciar o maior exercício militar desde a Guerra Fria. Quais são as grandes preocupações da Europa no que diz respeito à segurança?

A maior preocupação em segurança na Europa hoje é se os Estados Unidos vão retirar o apoio à Ucrânia ou, talvez até mesmo deixar a Otan. Muitas pessoas se preocupavam que, se o Donald Trump fosse eleito, a ajuda dos EUA à Ucrânia seria cortada. Isso já está acontecendo e ainda faltam nove meses para eleição.

Ninguém sabe o que Trump fará se for reeleito e, eu diria, tem 50% de chance de isso ocorrer, mas é improvável que seja bom para as alianças americanas porque Trump não acredita realmente nessas alianças ou, pelo menos, é cético com relação a elas. Então, a Europa está preocupada que possa, de repente, ficar por conta própria e não está preparada para isso. A Europa depende dos EUA para segurança basicamente desde 1942. Não vejo como a Europa pode fazer sem os Estados Unidos pelo menos pelos próximos dez anos. E nesse período terá que gastar muito mais em segurança do que tem gastado.

É claro, se a Rússia vencer na Ucrânia, a grande questão é o que Vladimir Putin vai fazer depois. Por que ele moveu mísseis para Belarus? Então, em certo sentido, a ameaça vem de Putin, mas não seria uma ameaça séria para os Estados Unidos, desde que haja um apoio confiável à Ucrânia e um apoio confiável à Otan. A preocupação real é, na verdade, essa falta de certeza sobre o compromisso americano.

Soldado ucraniano dispara com obus de fabricação francesa em direção à posição russa em Donetsk.  Foto: AP / Libkos

Ainda na Europa, a extrema direita está em ascensão no continente. Como isso impacta nessa nova Guerra Fria?

Os partidos populistas de extrema direita tem ganhado terreno depois de um período em que pareciam perder. Em 2019, 2020, 2021, os populistas tiveram pouco progresso. Agora, eles ganharam na Holanda e contam com uma grande fatia do voto popular na Alemanha. Se você olha para o Alternativa para a Alemanha (AfD), é um partido amplamente anti-Ucrânia e pró-Rússia no que diz respeito à política externa. Na Europa como um todo, Giorgia Meloni é populista e seu partido, o Irmãos da Itália, é de extrema direita, mas ela tem sido bastante cautelosa. Não é tão ruim como se previu. Viktor Orbán é outro populista de extrema direita, que é simpático à Rússia e não ajuda muito no que diz respeito à Ucrânia, mas eu acho que o que ele está buscando são vantagens próprias. Então, os partidos populistas não são inequivocadamente ruins para Ucrânia como se pode esperar mas, ainda assim, a tendência na Europa não é muito amigável. Quanto mais esses partidos ganham terreno, mais difícil fica para Europa agir de forma unida. E a Europa precisa agir de forma unida, precisa de uma espécie de fundo de defesa, como fez com a recuperação econômica na pandemia.

Essa divisão empodera Putin?

Certamente. Putin pensa que o mundo está seguindo seu rumo, que os EUA estão divididos, que os europeus estão divididos que ele tem em Xi Jinping um aliado muito rico e poderoso. Assim como tem apoio de Teerã e de Pyongyang. Então, eu acho que Putin deve estar mais otimista hoje do que estava há um ano, dois anos.

Você mencionou a importância das lideranças para evitar a escalada dessa nova Guerra Fria e este ano nós temos cerca de 40 eleições espalhadas pelo mundo, incluindo os Estados Unidos. Como fica esse balanço de poder em um mundo tão conflituoso?

Obviamente, ter muitas eleições aponta para um mundo mais democrático. Isso é bom. Eu acho que o problema dessa eleição nos Estados Unidos é que há um certo nível de tédio porque é a mesma eleição de 2020, o que pode se traduzir em um resultado surpreendente se o comparecimento for baixo. Se você olhar para as pesquisas, é 50-50, é uma moeda lançada para cima, cara ou coroa. Mas que tem muitas consequências.

Se Biden vencer, serão mais quatro anos, eu acho, de um homem muito velho para ser presidente tomando decisões bem ruins que não detêm ninguém. Vamos pensar um pouco sobre isso. Ele entregou o Afeganistão de volta para o Taleban, falhou em deter (o presidente russo Vladimir) Putin de invadir a Ucrânia, falhou em deter o Irã (que financia o grupo terrorista Hamas) de atacar Israel. Eu não sei o que ele vai falhar em deter este ano, mas me preocupa. É um período sustentado de fraqueza americana e eu acho que mais quatro anos disso trará consequências negativas.

Se Donald Trump for eleito, provavelmente será mais forte e imprevisível. O que não é ruim, eu acho, do ponto de vista da política externa. Mas quão estável será a democracia americana se Trump voltar à Casa Branca depois do 6 de janeiro, quando ele se mostrou tão indiferente às normas? É uma escolha ruim de ter que fazer, é meio que escolher a força e uma política externa mais dura, mas perder a república, ou escolher o governo constitucional, mas perder a credibilidade americana no exterior. Esta é uma escolha muito ruim para se fazer, mas é a realidade.

Todo o resto no mundo é relativamente bem previsível por comparação. Eu posso dizer com bastante confiança que Narendra Modi vai vencer a eleição na Índia, posso dizer com certeza que Putin vai vencer na Rússia. Acredito que, no Reino Unido, Rishi Sunak vai perder para o Partido Trabalhista. A maior parte das eleições no mundo, na verdade, não é muito difícil de prever, mas uma exceção à essa regra é a eleição americana que vai ser muito acirrada e, provavelmente, será definida por uma pequena centena de milhares de votos em cinco Estados.

O que torna ainda mais complicada uma eventual derrota de Trump... se ele perder nesses termos, provavelmente vai alegar fraude, como já fez antes.

Eu acho que os dois lados vão disputar o resultado. Esse é o problema. Os resultados são muito apertados. Foi assim em 2016, foi assim em 2020 e será de novo este ano. Passamos boa parte dos últimos 20 anos minando a legitimidade dos resultados das eleições, isso desde 2000 (naquele ano, o democrata Al-Gore pediu recontagem dos votos e a disputa foi parar na Suprema Corte que confirmou, após 36 dias, a vitória do republicano George W. Bush). Foi algo que os democratas fizeram tanto quanto os republicanos e que Trump levou ao extremo, minando a estabilidade do sistema.

Eu me preocupo muito com o que vai acontecer no dia 5 de novembro (data da votação), no dia 6 e depois se o resultado for muito próximo e um lado se recusar a aceitar o resultado. Podemos imaginar protestos nas ruas de grandes cidades se Trump for declarado vencedor, mas também podemos imaginar protestos se ele for declarado perdedor. Acredito que será uma semana muito, muito tensa.

Donald Trump fala com apoiadores após vitória nas primárias de New Hampshire.  Foto: Jabin Botsford/The Washington Post

Trazendo a discussão para o Brasil, o governo parece ter dificuldade em encontrar o equilíbrio nesse mundo tão tenso. O presidente Lula foi muito criticado por declarações envolvendo a guerra na Ucrânia e, mais recentemente, o apoio à ação contra Israel por genocídio. Como você avalia a posição brasileira nesse cenário? Lula tomou um lado na nova Guerra Fria?

É curioso porque Jair Bolsonaro tomou lado, de forma muito decisiva, dos Estados Unidos a até mesmo de Taiwan. E Lula faz o contrário, aparece em Xangai, fala sobre uma moeda do BRICS. Como um homem de esquerda da América do Sul ele tem uma tendência instintiva anti-americana.

Mas eu não acho que nenhum dos dois represente o Brasil como um todo. Eu acho que a maioria dos brasileiros têm bastante orgulho de viver em uma democracia próspera, eu nem acho que seja verdade mais que o Brasil seja emergente. Acho que emergiu como uma economia dominante no Hemisfério Sul. E que os brasileiros não querem escolher. Gostam da democracia e gostam de vender para China e de vender para mundo. Eu não sinto realmente que precisam escolher. No sentido de que a China precisa do Brasil por ser um enorme fornecedor de produtos agrícolas, cada vez mais sofisticado. E o Ocidente precisa do Brasil porque precisa, de alguma forma, de sua contribuição para enfrentar os desafios das mudanças climáticas.

O Brasil é demandado. As pessoas querem investir aqui, querem fazer negócio aqui. Não precisa realmente fazer uma escolha. Não é como a Alemanha que é tão dependente dos Estados Unidos para segurança que não tem escolha. O Brasil, geograficamente, não está na linha de frente. Essa Guerra Fria é um fenômeno transpacífico no Hemisfério Norte e, em grande medida, o Brasil pode ficar de fora.

É um dos muito países que pode ser, não exatamente não-alinhado que era o termo na primeira Guerra Fria, mas “poliamoroso”. Ou seja, que em alguns momentos está com a China, em alguns momentos com os Estados Unidos. Às vezes em um date com o BRICS, às vezes em um date com o Tio Sam. Essa é a diferença: nessa Guerra Fria, é possível ser um pouco dos dois. Há uma enorme interdependência econômica, que não existia na primeira, a União Soviética era isolada, tinha a própria economia fechada. Isso não é verdade com a China.

Lula se torna, de certa forma, insensato quando age como se o BRICS fosse algo realmente sério e não é. O BRICS é propaganda chinesa agora e não faz nem fará nada de fato.

Sou inclinado a dizer que Lula deveria folhear o livro do Narendra Modi. Porque Modi é muito transacional, uma hora ele está em Washington, depois está na China, na África do Sul. Não dá para realmente defini-lo, não dá para realmente dizer que ele está do lado da China ou do lado dos EUA, ele está do lado da Índia. Acho que essa é a abordagem correta.

Entrevista por Jéssica Petrovna

Repórter da editoria de Internacional. É potiguar, formada em jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Foi trainee do Estadão (2018) e editora de internacional em Band Jornalismo e CNN Brasil.

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