SAMARA, RÚSSIA - Ela entrou no necrotério do hospital, e havia corpos por todo lado, cerca de uma dúzia dentro de sacos pretos estendidos sobre macas. Ela foi direto para a sala de autópsias e suplicou ao guarda de jaqueta preta: “Posso falar com o médico que abriu o corpo de meu pai?”
O pai de Olga Kagarlitskaya tinha sido internado semanas antes numa enfermaria de doentes de covid-19. Agora, estava morto, e a causa da morte havia sido dada como “pneumonia viral inespecífica”. Gravando a cena com seu smartphone, Kagarlitskaya queria saber a verdade. Mas o guarda a mandou embora.
Estatísticas do governo russo revelam que houve milhares de casos semelhantes em todo o país no ano passado. Pelo menos 300 mil pessoas a mais morreram durante a pandemia no ano passado do que refletem as estatísticas oficiais mais amplamente citadas sobre a Rússia.
Nem todas essas mortes se deveram necessariamente ao vírus. Mas elas desmentem o presidente Vladimir Putin quando ele diz que seu país vem controlando o vírus melhor do que a maioria.
Na realidade, uma análise feita pelo The New York Times dos índices de mortalidade mostra que as mortes na Rússia durante a pandemia no ano passado ultrapassaram a média em 28% —um aumento superior ao que foi visto nos Estados Unidos e na maioria dos países da Europa.
“As pessoas desconheciam a situação objetiva”, disse Kagarlitskaya. “E, se você desconhece a situação objetiva, não sente medo.”
Por boa parte do ano passado a Rússia pareceu mais interessada nos aspectos econômicos e de relações públicas da pandemia do que em combater o vírus propriamente dito.
Após um lockdown rígido de dois meses na primavera passada, o governo cancelou quase todas as restrições no verão. A medida foi salutar para a opinião pública e a economia, mas a doença se alastrou mais rapidamente.
Quando o outono chegou, cientistas russos haviam desenvolvido uma vacina contra a covid-19 vista amplamente como uma das melhores do mundo. Mas o Kremlin vem dando ênfase maior ao uso da vacina Sputnik V para marcar pontos geopolíticos do que para imunizar a população.
Entretanto, o indício mais claro de quais são as prioridades do Estado é a minimização da taxa de mortos pelo coronavírus. Para muitos críticos, isso levou boa parte do público a desconhecer os perigos da doença e a importância de receber a vacina.
A contagem oficial de mortos pelo coronavírus na Rússia foi de 102.649 até o sábado, 10. Ajustado para as respectivas populações, esse número, divulgado pela televisão estatal e pela OMS (Organização Mundial da Saúde), é muito inferior ao dos Estados Unidos e da maior parte da Europa ocidental.
Mas a agência oficial de notícias Rosstat, que contabiliza as mortes por todas as causas, conta uma história muito diferente.
Segundo uma análise feita pelo NYT de dados históricos, entre abril e dezembro de 2020 o número de mortes na Rússia ultrapassou o normal em 360 mil. Dados da Rosstat para janeiro e fevereiro deste ano mostram que o número agora passa de 400 mil mortes acima da média.
Nos EUA, com mais que o dobro da população da Rússia, essas “mortes em excesso” desde o início da pandemia chegam a 574 mil.
Segundo essa medida, que muitos demógrafos veem como a maneira mais precisa de avaliar o total de mortos por covid, a pandemia matou cerca de uma pessoa em cada 400 na Rússia, sendo que nos EUA matou uma em cada 600 pessoas.
“É difícil encontrar um país com desenvolvimento pior” em matéria de mortalidade por covid, disse o demógrafo independente Aleksei Raksha, em Moscou. “O governo está fazendo tudo que pode para evitar chamar a atenção para esses fatos.”
O governo russo diz que sua contagem oficial inclui apenas óbitos que confirmadamente foram causados diretamente pelo coronavírus. Casos adicionais confirmados por autópsias fazem parte de uma contagem separada divulgada mensalmente pela Rosstat. Elas haviam chegado a 162.429 até o final do ano passado e e ultrapassado os 225 mil até fevereiro.
Mas grandes disparidades regionais contrariam a ideia de que a razão da baixa contagem oficial seja apenas de natureza metodológica.
A cidade de Moscou teve 28.233 mortes excedentes em 2020, segundo cifras da Rosstat, e contabilizou 11.209 mortes confirmadas por covid como parte da contagem oficial.
A região de Samara –uma área relativamente próspera onde o rio Volga se aproxima do Cazaquistão, passando por campos petrolíferos e fábricas de carros—teve 10.596 mortes excedentes, um salto de 25% a mais que a taxa de mortalidade de 2019. Mas apenas 606 mortes por coronavírus foram notificadas oficialmente na região no ano passado.
“Os números publicados são confiáveis”, disse Armen Benyan, o ministro da Saúde de Samara. “E são o que são.”
Ele reconheceu que a maioria das mortes excedentes em sua região foi de fato causada pela pandemia, de uma maneira ou outra. Um paciente com coronavírus que sofresse um ataque cardíaco, por exemplo, não teria aparecido na contagem oficial.
O baixo número oficial de mortos contribui para fazer os russos minimizarem os perigos, em alguns casos –e a desconfiarem profundamente das mensagens do governo sobre a pandemia.
Uma sondagem de opinião feita em outubro passado revelou que a maioria dos russos não acredita nos números divulgados pelo governo sobre os casos de coronavírus. E metade dos que não acreditam acham que o número oficial é alto demais, metade pensa que é baixo demais.
Outra pesquisa de opinião, esta em fevereiro, constatou que 60% dos russos não pretendiam tomar a vacina russa Sputnik V e que a maioria acreditava que o coronavírus é uma arma biológica.
Na região de Samara, a mãe de Inna Pogozheva, ginecologista e obstetra, morreu em novembro depois de ser hospitalizada por covid-19, com base em uma tomografia.
Usando botas de borracha e roupas protetoras, os funcionários da funerária levaram o corpo da mãe dela do necrotério para o carro funerário em um féretro fechado, depois borrifaram desinfetante um sobre o outro. Mas o atestado de óbito não mencionou o vírus.
Pogozheva disse que não sabe o que acreditar em relação à pandemia. Ela não sabe se deve acreditar que a Fundação Gates pode estar por trás dela, como dizem teorias conspiratórias falsas que circulam amplamente.
Mas uma coisa é certa, falou: ela não se fará vacinar, mesmo depois de ver de perto a devastação provocada pela covid. Afinal, se não pode acreditar no atestado de óbito de sua mãe, emitido pelo Estado, por que deveria acreditar no que o governo russo diz sobre a segurança da vacina?
“Quem sabe o que misturaram nessa vacina?”, questionou ela. “Não dá para confiar em ninguém, especialmente quando se trata desta situação.”
Pogozheva apresentou um pedido de que a causa da morte de sua mãe seja investigado. Os familiares de um profissional médico que comprovadamente morreu de covid-19 contraído no trabalho estão intitulados a um auxílio especial pago pelo Estado.
Kagarlistkaya, cujo pai era paramédico, conseguiu que a causa da morte dele fosse mudada para covid-19 depois de sua indignação viralizar no Instagram e o governador de Samara intervir pessoalmente em seu favor.
Apesar de todas as mortes, a oposição na Rússia à decisão do governo de manter as empresas abertas no outono e inverno passados foi mínima, mesmo entre os críticos de Putin. Algumas pessoas atribuem isso a um estoicismo ou fatalismo russos, ou então à falta de alternativa a manter a economia funcionando, em vista da assistência pública mínima.
Na região de Samara, de acordo com as estatísticas sobre as mortes excedentes, a pandemia matou até uma em cada 250 pessoas. Viktor Dolonko, editor de um jornal de cultura na cidade de Samara, diz que cerca de 50 pessoas que ele conhecia, muitas delas parte do vibrante cenário artístico da região, morreram durante a pandemia.
Mas Dolonko acha que Samara não deveria ter fechado seus teatros para frear a propagação da doença. No momento, os teatros estão autorizados a funcionar com 50% da plateia normal.
Ele considera que as mortes na pandemia são trágicas, mas que ocorreram principalmente entre pessoas mais velhas ou que tinham outros problemas de saúde, sem relação com o vírus. Dolonko, 62, disse que usa máscara em lugares lotados e lava as mãos com frequência –e que vai a exposições e vernissages em galerias regularmente.
“Você pode optar entre continuar a viver a vida, com cuidado, ou fechar-se em casa e parar de viver”, ele explicou. “Diferentemente de vocês [ocidentais], os russos sabemos o que é viver em condições extremas.