Número de guerras é o maior desde 1989; veja quais são os conflitos esquecidos pelo mundo


Em 2022 foram 55 conflitos envolvendo Estados em 38 países, sendo 8 considerados guerras; Sudão deve entrar para a lista no relatório de 2023 e se tornar a nona

Por Carolina Marins e Jéssica Petrovna
Atualização: Correção:

Neste momento, oito guerras acontecem ao redor do mundo. É o maior número desde o fim da Guerra Fria. Pelo fato ser a primeira guerra direta entre duas nações, sendo uma delas nucleares, a guerra da Ucrânia ocupa coberturas de destaque, mas conflitos na Etiópia, Iêmen, República Democrática do Congo e Mianmar criam cada vez mais crises humanitárias “silenciosas”.

Os dados de mortes em conflitos são difíceis de precisar devido à dificuldade de acesso a informações confiáveis, bem como visualizar os cenários reais nos campos de batalhas. Por vezes, atores ocultam ou então superestimam números de fatalidades para fins de propaganda de guerra. Por isso, dados como os levantados pelo Programa de Dados de Conflitos da Universidade de Uppsala (UCDP), na Suécia, e pela ONU são estimativas, muitas vezes conservadoras.

Para além dos números de mortos, as guerras também provocam um alto custo humanitário de deslocamentos internos, migrações internacionais e pobreza extrema. Segundo dados da Acnur, mais de 108,4 milhões de pessoas foram forçadas a migrar em 2022 devido a conflitos. No Iêmen, que vive uma guerra de procuração entre Arábia Saudita e Irã desde 2015, cerca de 80% da população se encontra abaixo da linha da pobreza e imagens de crianças em estado de inanição se tornaram comuns.

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Crianças tentam encher galões em meio ao desabastecimento de água nos acampamentos improvisados por pessoas que fugiram da guerra do Iêmen, 22 de agosto de 2023. Foto: KHALED ZIAD / AFP

Só em 2022 foram registrados 55 conflitos em 38 países, sendo que 8 deles são considerados guerras, em que há mais de mil mortes relacionadas por ano, contra 5 no ano anterior. As oitos guerras de 2022 foram: Etiópia, Ucrânia, Somália, Iêmen, Burkina Faso, Mali, Mianmar e Nigéria. Mas conflitos antigos, como a guerra da Síria, continuam a causar vítimas mesmo anos depois de seu ápice, embora em números menores hoje em dia.

Os tipos de conflitos mais comuns são os não-estatais, geralmente envolvendo grupos criminosos armados e terroristas. Mas o número de conflitos com envolvimento de países tem crescido ano a ano, e 2022 registrou o maior número de mortes neste tipo de batalha desde 1994, quando ocorreu o sangrento genocídio de Ruanda, segundo o Instituto de Pesquisa para a Paz de Oslo (Prio, na sigla em inglês), na Noruega.

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De acordo com os pesquisadores, têm se tornado mais comum que nações enviem tropas de apoio a grupos rebeldes que lutam contra governos, o que faz com que Exércitos nacionais lutem entre si. O envolvimento de Forças Armadas nacionais, apontam, tende a tornar as batalhas mais mortais. Além disso, a expansão do grupo terrorista Estado Islâmico tem sido uma das principais causas de mortes na África, Ásia e Oriente Médio.

Enquanto isso, 2023 viu um novo conflito eclodir no Sudão, quando dois generais das Forças Armadas entraram em disputa para ocupar o vácuo de poder criado pela queda do ditador Omar Al Bashir. Ao mesmo tempo, o longo conflito entre palestinos e israelenses voltou a escalar após a eleição da coalizão mais extremista-religiosa da história de Israel.

A própria invasão da Rússia à Ucrânia reacendeu antigas disputas territoriais como na pequena região de Nagorno-Karabakh, que viveu novos focos de conflitos em 2022.

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“Há uma série de mudanças globais que contribuem para esse aumento de tensões e uma principal é a crise econômica de 2008″, afirma Magnus Öberg, professor do Departamento de Pesquisa de Paz e Conflitos da Universidade de Uppsala e diretor do Programa de Dados de Conflitos, em entrevista ao Estadão. “Sempre vemos um crescimento no número de conflitos nos anos que seguem uma crise econômica”.

A globalização, bem como maior fluxo de armas e emergência de novas superpotências também explicam o clima de conflito recente. Mas a polarização é com certeza um dos principais fatores, segundo o pesquisador.

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“Estamos vendo agora uma piora da economia global e recessões econômicas tendem a impulsionar conflitos, e adicione a covid-19 nesta conta. Então, os recentes problemas que tivemos, a pandemia, a alta da inflação, a piora econômica, tudo isso cria uma tendência de aumentar a violência nos anos seguintes”, completa.

As maiores guerras sendo travadas hoje têm motivações diferentes, entre batalhas por território, por conflitos étnicos e por ocupação de vácuo de poder, em sua maioria na África e na Ásia. Não é incomum encontrar dois ou três fatores combinados. “E importante destacar que as guerras mudaram a suas características e hoje elas não envolvem necessariamente mais as potências”, afirma Christopher Mendonça, professor de Relações Internacionais do Ibmec-BH.

Além da Ucrânia, os principais conflitos em andamento no mundo são:

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Etiópia e a pior guerra do mundo

Embora muito menos midiática, a guerra civil etíope registrou mais mortes em 2022 que a guerra da Ucrânia, e é classificada por organizações internacionais como uma das piores guerras da atualidade, tanto em número de baixas quanto em brutalidade dos combates. Apesar de ser uma guerra civil, pesquisadores a chamam de “guerra civil internacionalizada”, devido ao envolvimento de atores internacionais, principalmente da Eritreia.

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Mais de 100 mil pessoas morreram no conflito no ano passado e mais de 385 mil desde que os combates começaram. As estimativas, porém, podem chegar a 600 mil, segundo a ONU, já que é difícil contabilizar as fatalidades no conflito em que o governo controla as informações.

Filimon Gebremedhin, 18, membro da Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF) foi ferido e capturado como prisioneiro de guerra, 24 de fevereiro de 2022. Foto: REUTERS/Tiksa Negeri

A batalha se centra na região do Tigré, que luta por independência desde pelo menos os anos 1200. Em 1991, a Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF) derrubou o governo e permaneceu no poder até 2018, quando foi retirado e isolado do cenário político etíope. A situação elevou as tensões, que explodiram em uma guerra aberta em 2020, quando o TPFL engajou contra o governo central.

Com características que lembram a 1ª Guerra, o conflito atingiu seu ápice em 2022 e, além do alto número de mortos, provocou uma enorme crise humanitária na África. A guerra também tem um caráter de violência unilateral, em que civis são deliberadamente atacados em extensas violações de crimes de guerra, apontam relatórios.

Um acordo de cessar-fogo foi assinado em novembro de 2022, mas não houve sinais claros de implementação. Organizações denunciam em 2023 que a região do Tigré continua isolada de informações, atrapalhando o acompanhamento do conflito. Enquanto isso, as tensões cresceram na região vizinha, Amhara, que teme uma nova escala de guerra civil.

Mais de 10 anos de guerra na Síria

Se há 12 anos as imagens de centenas de milhares de refugiados fugindo do Oriente Médio para a Europa ganhavam o mundo, hoje a guerra na Síria parece ter caído no esquecimento. O conflito continua, em escala muito menor que os números dos anos 2011 e 2013, no seu ápice, e agora ganhou contornos de uma guerra de procuração, com diversos países envolvidos.

Segundo a ONU, mais de 300 mil pessoas morreram desde o início das batalhas entre o governo de Bashar al-Assad e grupos rebeldes. A guerra começou na esteira da Primavera Árabe, quando vários países da região do Oriente Médio experimentaram levantes contra governos ditatoriais.

Enquanto em alguns locais os governos caíram, como na Líbia, na Síria a resistência da família Assad - no poder desde meados dos anos 1960 - jogou o país em uma guerra civil. Além da batalha do governo com grupos rebeldes, levantes começaram nas regiões curdas e o Estado Islâmico aproveitou a instabilidade para iniciar uma batalha por territórios.

Um combatente sírio veste uma roupa de camuflagem durante um treinamento militar em Aleppo, na Síria, em 29 de agosto Foto: OMAR HAJ KADOUR/AFP

Hoje o conflito é considerado adormecido, apesar de ainda ocorrer batalhas e mortes, mas não nos níveis de antes. Desde 2018, as batalhas estão concentradas nas regiões de Idlib, Aleppo e Lataquia. Pesquisadores do Prio classificam o momento atual do conflito como uma desescalada, mas ressaltam que a população sofre nas mãos do governo sírio (em níveis semelhantes aos afegãos sob o Taleban). A guerra civil também é considerada internacionalizada com presença da Rússia, Irã, Estados Unidos, Turquia e China.

Sudão, o novo conflito de 2023

Enquanto as antigas batalhas seguem em aberto, surgem as novas, como a do Sudão, onde as estimativas são de 3 mil mortos. A disputa começou há cinco meses, quando os paramilitares das Forças de Apoio Rápido (FAR), liderados pelo general Mohammed Hamdan Dagalo, se rebelaram contra o exército sob o comando de outro general, Abdel-Fattah Burhan.

Os militares que hoje travam uma batalha sangrenta são antigos aliados. Em 2019, eles estiveram ao mesmo lado no levante que derrubou o ditador Omar al-Bashid, depois de três décadas no poder. Em 2021, os generais deram um golpe nos civis do governo de transição e governaram juntos até o desentendimento que mergulhou todo país em uma guerra por poder.

O resultado disso, afirma a ONU, são cerca de 5 milhões de pessoas forçadas a sair de casa, incluindo quase 1 milhão que fugiram para países vizinhos. A crise ganha contornos ainda mais dramáticos porque o Sudão – que faz fronteira com Etiópia e Eritreia – já abrigava muitos refugiados antes de ter o próprio conflito deflagrado. São pessoas que escaparam de uma guerra e caíram em outra.

Combatente pula de carro e movimento no Sudão, 30 de agosto de 2023.  Foto: AFP

A esquecida crise humanitária do Iêmen

A guerra no Iêmen começou em 2014 e viu seu pior momento em 2021, quando mais de 20 mil pessoas morreram diretamente pelo conflito. A guerra, porém, é marcada por causar a pior crise humanitária da atualidade, com mais de 80% da população vivendo abaixo da linha da pobreza e histórias frequentes de pessoas - principalmente crianças - morrendo de fome extrema.

Enquanto o número de mortes diretas e que puderam ser confirmadas pelos pesquisadores do UCDP gira em torno de 64 mil até 2022, a ONU estima que mais de 377 mil pessoas morreram indiretamente pelo conflito. A principal causa seria fome e doenças, com o paí sendo gravemente atingido pela cólera.

A guerra eclodiu quando o grupo Ansar allah, amplamente conhecido como Houtis, capturou a capital Sanaa e derrubou o governo de Abdrabbuh Mansur Hadi. O novo governo, sob os Houtis, passou a lutar contra as Forças de Hadi, que receberam o apoio direto da Arábia Saudita. O Irã, por sua parte, passou a apoiar os Houtis, transformando o conflito em uma das mais emblemáticas guerras de procuração.

O pequeno país, um dos mais pobres do mundo, se tornou palco da disputa por influência entre Irã e Arábia Saudita no Oriente Médio. Outros países também se envolveram no conflito, a maioria do lado de Hadi, entre eles: Egito, Marrocos, Jordânia, Sudão, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Catar e Bahrein.

Em abril de 2022, as partes concordaram com um cessar-fogo e Hadi, considerado internacionalmente como o presidente de fato do país, entregou a liderança para um conselho formado por oito membros. O cessar-fogo foi sendo estendido ao longo do ano e as baixas passaram a diminuir, embora ainda tenham ficado acima de 2 mil naquele ano. Ainda assim, a crise humanitária segue.

Crianças sofrendo de desnutrição em um centro médico em Aslam, no Iemên, em 2018 Foto: Tyler Hicks/NYT

Re-escalada de Israel e Palestina

Um conflito que existe desde a formação do Estado de Israel em 1946 e ganhou proporções de guerra em 2001 durante a Segunda Intifada. Desde então, o conflito estava menos intenso com episódios de confrontos entre o governo israleneses e grupos palestinos como Hamas, Fatah e Jihad Islâmica.

Mas este ano, sob um novo governo de Binyamin Netanyahu, agora com uma coalizão composta por ultraortodoxos, os níveis de violência voltaram a subir com batalhas que levantaram preocupações de uma terceira intifada, principalmente na região da Cisjordânia. Mais de 7800 pessoas já morreram no conflito, a maioria palestinos e em 2023 os números de mortos já passaram de 200.

Nagorno-Karabakh, o cessar-fogo que não durou

Essa também é uma antiga disputa por território, que voltou a ganhar força recentemente. O conflito começou com a queda da antiga União Soviética e a independência de uma de suas ex-repúblicas, o Azerbaijão. É lá que fica o Nagorno-Karabakh, um enclave montanhoso que foi conquistado pela Armênia na década de 1990.

Em uma nova ofensiva em 2020, o Azerbaijão tomou de volta grande parte desse território. A batalha durou 44 dias e terminou com um cessar-fogo costurado por Moscou, mas que não durou muito tempo. No final do ano passado, enquanto a Rússia estava concentrada na sua própria guerra, o Nagorno-Karabakh foi palco de novos confrontos, que acenderam um alerta para a instabilidade cada vez maior na região. Sem paz duradoura, o conflito já tem mais de 13 mil mortes estimadas.

Somália e a luta contra um califado

O governo da Somália trava uma batalha contra a instauração de um califado pelo grupo extremista islâmico Al-Shabaab desde 2008. O país vive em guerra civil desde o colapso de seu governo central em 1991, mas apenas a partir do 2008, com o estabelecimento do Al-Shabaab a guerra ganhou as características que tem hoje.

O grupo, que é apoiado pela Al-Qaeda, quer estabelecer um governo sob regras da Sharia, a lei mais radical islâmica. O conflito ganhou novos contornos em 2022, quando o recém eleito presidente Hassan Sheikh Mohamud declarou “guerra total” ao grupo. O governo somali conta com apoio dos EUA, bem como possui uma missão de paz organizada pelo Conselho de Segurança das ONU, composta por tropas do Burundi, Djibuti, Etiópia, Quênia, Uganda e Serra Leoa.

Mianmar e a luta contra repressão

O Mianmar enfrenta uma escalada da violência desde o golpe militar, que prendeu Aung San Suu Kyi, a vencedora do Nobel da Paz e matriarca da democracia no país, que era considerada a governante de fato, mesmo fora da Presidência. Depois de tomar o poder, em 2021, os militares passaram a reprimir com mão de ferro os dissidentes, que aprenderam a usar táticas de guerra para enfrentar o regime. No mês passado, o Conselho de Segurança da ONU condenou a morte de civis, ao pedir o fim dos ataques e libertação dos políticos presos.

As Nações Unidas também expressaram preocupação com a crise humanitária que atinge os muçulmanos rohingya. Minoria em um país budista, eles enfrentam uma perseguição histórica que perpassou diferentes governos da antiga Birmânia — inclusive o de Suu Kyi — e ganhou força depois do golpe.

República Democrática do Congo

Quarto país mais populoso da África, a República Democrática do Congo é palco de uma crise complexa, que a ONU descreveu como “cada vez mais dramática”. A violência escalou no ano passado com os combates entre o grupo armado M23 e as forças armadas, mas tem as suas raízes no genocídio da vizinha Ruanda há quase 30 anos.

Em 1994, a perseguição dos extremistas da etnia Hutu contra os Tutsi e os Hutu moderados levou uma onda de refugiados para a República Democrática do Congo (que na época chamava Zaire). Lá, esses grupos étnicos se armaram temendo que a disputa que enfrentaram dentro de casa cruzasse a fronteira. Quando os Tutsi chegaram ao poder na Ruanda apoiaram no Zaire o líder da oposição Laurent Kabila sob o argumento de que a presença dos rebeldes Hutu no país era uma ameaça.

Kabila saiu vencedor dessa primeira guerra que derrubou o regime do Zaire e formou a República Democrática do Congo, marcada desde então pela instabilidade. No final da década de 90, em uma mudança de alianças, Kabila expulsou as tropas estrangeiras e permitiu a organização dos grupos Hutu, o que deu início a segunda guerra. No auge da crise, o presidente foi assassinado em uma tentativa fracassada de golpe e seu filho Joseph Kabila assumiu. A guerra terminou oficialmente no início dos anos 2000, mas tensões étnicas nunca cessaram de fato. O M23 que hoje enfrenta o exército é um dos 120 grupos armados que luta no país e surgiu há dez anos com a justificativa oficial de proteger os Tutsi.

As eleições previstas para o fim deste ano acirram ainda mais os ânimos. Membros da comunidade Tutsi afirmam que têm sido impedidos de se registrar para votar. Isso alimenta o sentimento de que eles seriam vistos como cidadãos de segunda classe no país e dá ao M23 uma desculpa para escalar a violência. Como consequência dos ataques contra civis, os rivais ficam ainda mais furiosos, o que aumenta o temor de que a República Democrática do Congo pode entrar na sua terceira guerra e arrastar para o conflito a região inteira.

Neste momento, oito guerras acontecem ao redor do mundo. É o maior número desde o fim da Guerra Fria. Pelo fato ser a primeira guerra direta entre duas nações, sendo uma delas nucleares, a guerra da Ucrânia ocupa coberturas de destaque, mas conflitos na Etiópia, Iêmen, República Democrática do Congo e Mianmar criam cada vez mais crises humanitárias “silenciosas”.

Os dados de mortes em conflitos são difíceis de precisar devido à dificuldade de acesso a informações confiáveis, bem como visualizar os cenários reais nos campos de batalhas. Por vezes, atores ocultam ou então superestimam números de fatalidades para fins de propaganda de guerra. Por isso, dados como os levantados pelo Programa de Dados de Conflitos da Universidade de Uppsala (UCDP), na Suécia, e pela ONU são estimativas, muitas vezes conservadoras.

Para além dos números de mortos, as guerras também provocam um alto custo humanitário de deslocamentos internos, migrações internacionais e pobreza extrema. Segundo dados da Acnur, mais de 108,4 milhões de pessoas foram forçadas a migrar em 2022 devido a conflitos. No Iêmen, que vive uma guerra de procuração entre Arábia Saudita e Irã desde 2015, cerca de 80% da população se encontra abaixo da linha da pobreza e imagens de crianças em estado de inanição se tornaram comuns.

Crianças tentam encher galões em meio ao desabastecimento de água nos acampamentos improvisados por pessoas que fugiram da guerra do Iêmen, 22 de agosto de 2023. Foto: KHALED ZIAD / AFP

Só em 2022 foram registrados 55 conflitos em 38 países, sendo que 8 deles são considerados guerras, em que há mais de mil mortes relacionadas por ano, contra 5 no ano anterior. As oitos guerras de 2022 foram: Etiópia, Ucrânia, Somália, Iêmen, Burkina Faso, Mali, Mianmar e Nigéria. Mas conflitos antigos, como a guerra da Síria, continuam a causar vítimas mesmo anos depois de seu ápice, embora em números menores hoje em dia.

Os tipos de conflitos mais comuns são os não-estatais, geralmente envolvendo grupos criminosos armados e terroristas. Mas o número de conflitos com envolvimento de países tem crescido ano a ano, e 2022 registrou o maior número de mortes neste tipo de batalha desde 1994, quando ocorreu o sangrento genocídio de Ruanda, segundo o Instituto de Pesquisa para a Paz de Oslo (Prio, na sigla em inglês), na Noruega.

De acordo com os pesquisadores, têm se tornado mais comum que nações enviem tropas de apoio a grupos rebeldes que lutam contra governos, o que faz com que Exércitos nacionais lutem entre si. O envolvimento de Forças Armadas nacionais, apontam, tende a tornar as batalhas mais mortais. Além disso, a expansão do grupo terrorista Estado Islâmico tem sido uma das principais causas de mortes na África, Ásia e Oriente Médio.

Enquanto isso, 2023 viu um novo conflito eclodir no Sudão, quando dois generais das Forças Armadas entraram em disputa para ocupar o vácuo de poder criado pela queda do ditador Omar Al Bashir. Ao mesmo tempo, o longo conflito entre palestinos e israelenses voltou a escalar após a eleição da coalizão mais extremista-religiosa da história de Israel.

A própria invasão da Rússia à Ucrânia reacendeu antigas disputas territoriais como na pequena região de Nagorno-Karabakh, que viveu novos focos de conflitos em 2022.

“Há uma série de mudanças globais que contribuem para esse aumento de tensões e uma principal é a crise econômica de 2008″, afirma Magnus Öberg, professor do Departamento de Pesquisa de Paz e Conflitos da Universidade de Uppsala e diretor do Programa de Dados de Conflitos, em entrevista ao Estadão. “Sempre vemos um crescimento no número de conflitos nos anos que seguem uma crise econômica”.

A globalização, bem como maior fluxo de armas e emergência de novas superpotências também explicam o clima de conflito recente. Mas a polarização é com certeza um dos principais fatores, segundo o pesquisador.

“Estamos vendo agora uma piora da economia global e recessões econômicas tendem a impulsionar conflitos, e adicione a covid-19 nesta conta. Então, os recentes problemas que tivemos, a pandemia, a alta da inflação, a piora econômica, tudo isso cria uma tendência de aumentar a violência nos anos seguintes”, completa.

As maiores guerras sendo travadas hoje têm motivações diferentes, entre batalhas por território, por conflitos étnicos e por ocupação de vácuo de poder, em sua maioria na África e na Ásia. Não é incomum encontrar dois ou três fatores combinados. “E importante destacar que as guerras mudaram a suas características e hoje elas não envolvem necessariamente mais as potências”, afirma Christopher Mendonça, professor de Relações Internacionais do Ibmec-BH.

Além da Ucrânia, os principais conflitos em andamento no mundo são:

Etiópia e a pior guerra do mundo

Embora muito menos midiática, a guerra civil etíope registrou mais mortes em 2022 que a guerra da Ucrânia, e é classificada por organizações internacionais como uma das piores guerras da atualidade, tanto em número de baixas quanto em brutalidade dos combates. Apesar de ser uma guerra civil, pesquisadores a chamam de “guerra civil internacionalizada”, devido ao envolvimento de atores internacionais, principalmente da Eritreia.

Mais de 100 mil pessoas morreram no conflito no ano passado e mais de 385 mil desde que os combates começaram. As estimativas, porém, podem chegar a 600 mil, segundo a ONU, já que é difícil contabilizar as fatalidades no conflito em que o governo controla as informações.

Filimon Gebremedhin, 18, membro da Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF) foi ferido e capturado como prisioneiro de guerra, 24 de fevereiro de 2022. Foto: REUTERS/Tiksa Negeri

A batalha se centra na região do Tigré, que luta por independência desde pelo menos os anos 1200. Em 1991, a Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF) derrubou o governo e permaneceu no poder até 2018, quando foi retirado e isolado do cenário político etíope. A situação elevou as tensões, que explodiram em uma guerra aberta em 2020, quando o TPFL engajou contra o governo central.

Com características que lembram a 1ª Guerra, o conflito atingiu seu ápice em 2022 e, além do alto número de mortos, provocou uma enorme crise humanitária na África. A guerra também tem um caráter de violência unilateral, em que civis são deliberadamente atacados em extensas violações de crimes de guerra, apontam relatórios.

Um acordo de cessar-fogo foi assinado em novembro de 2022, mas não houve sinais claros de implementação. Organizações denunciam em 2023 que a região do Tigré continua isolada de informações, atrapalhando o acompanhamento do conflito. Enquanto isso, as tensões cresceram na região vizinha, Amhara, que teme uma nova escala de guerra civil.

Mais de 10 anos de guerra na Síria

Se há 12 anos as imagens de centenas de milhares de refugiados fugindo do Oriente Médio para a Europa ganhavam o mundo, hoje a guerra na Síria parece ter caído no esquecimento. O conflito continua, em escala muito menor que os números dos anos 2011 e 2013, no seu ápice, e agora ganhou contornos de uma guerra de procuração, com diversos países envolvidos.

Segundo a ONU, mais de 300 mil pessoas morreram desde o início das batalhas entre o governo de Bashar al-Assad e grupos rebeldes. A guerra começou na esteira da Primavera Árabe, quando vários países da região do Oriente Médio experimentaram levantes contra governos ditatoriais.

Enquanto em alguns locais os governos caíram, como na Líbia, na Síria a resistência da família Assad - no poder desde meados dos anos 1960 - jogou o país em uma guerra civil. Além da batalha do governo com grupos rebeldes, levantes começaram nas regiões curdas e o Estado Islâmico aproveitou a instabilidade para iniciar uma batalha por territórios.

Um combatente sírio veste uma roupa de camuflagem durante um treinamento militar em Aleppo, na Síria, em 29 de agosto Foto: OMAR HAJ KADOUR/AFP

Hoje o conflito é considerado adormecido, apesar de ainda ocorrer batalhas e mortes, mas não nos níveis de antes. Desde 2018, as batalhas estão concentradas nas regiões de Idlib, Aleppo e Lataquia. Pesquisadores do Prio classificam o momento atual do conflito como uma desescalada, mas ressaltam que a população sofre nas mãos do governo sírio (em níveis semelhantes aos afegãos sob o Taleban). A guerra civil também é considerada internacionalizada com presença da Rússia, Irã, Estados Unidos, Turquia e China.

Sudão, o novo conflito de 2023

Enquanto as antigas batalhas seguem em aberto, surgem as novas, como a do Sudão, onde as estimativas são de 3 mil mortos. A disputa começou há cinco meses, quando os paramilitares das Forças de Apoio Rápido (FAR), liderados pelo general Mohammed Hamdan Dagalo, se rebelaram contra o exército sob o comando de outro general, Abdel-Fattah Burhan.

Os militares que hoje travam uma batalha sangrenta são antigos aliados. Em 2019, eles estiveram ao mesmo lado no levante que derrubou o ditador Omar al-Bashid, depois de três décadas no poder. Em 2021, os generais deram um golpe nos civis do governo de transição e governaram juntos até o desentendimento que mergulhou todo país em uma guerra por poder.

O resultado disso, afirma a ONU, são cerca de 5 milhões de pessoas forçadas a sair de casa, incluindo quase 1 milhão que fugiram para países vizinhos. A crise ganha contornos ainda mais dramáticos porque o Sudão – que faz fronteira com Etiópia e Eritreia – já abrigava muitos refugiados antes de ter o próprio conflito deflagrado. São pessoas que escaparam de uma guerra e caíram em outra.

Combatente pula de carro e movimento no Sudão, 30 de agosto de 2023.  Foto: AFP

A esquecida crise humanitária do Iêmen

A guerra no Iêmen começou em 2014 e viu seu pior momento em 2021, quando mais de 20 mil pessoas morreram diretamente pelo conflito. A guerra, porém, é marcada por causar a pior crise humanitária da atualidade, com mais de 80% da população vivendo abaixo da linha da pobreza e histórias frequentes de pessoas - principalmente crianças - morrendo de fome extrema.

Enquanto o número de mortes diretas e que puderam ser confirmadas pelos pesquisadores do UCDP gira em torno de 64 mil até 2022, a ONU estima que mais de 377 mil pessoas morreram indiretamente pelo conflito. A principal causa seria fome e doenças, com o paí sendo gravemente atingido pela cólera.

A guerra eclodiu quando o grupo Ansar allah, amplamente conhecido como Houtis, capturou a capital Sanaa e derrubou o governo de Abdrabbuh Mansur Hadi. O novo governo, sob os Houtis, passou a lutar contra as Forças de Hadi, que receberam o apoio direto da Arábia Saudita. O Irã, por sua parte, passou a apoiar os Houtis, transformando o conflito em uma das mais emblemáticas guerras de procuração.

O pequeno país, um dos mais pobres do mundo, se tornou palco da disputa por influência entre Irã e Arábia Saudita no Oriente Médio. Outros países também se envolveram no conflito, a maioria do lado de Hadi, entre eles: Egito, Marrocos, Jordânia, Sudão, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Catar e Bahrein.

Em abril de 2022, as partes concordaram com um cessar-fogo e Hadi, considerado internacionalmente como o presidente de fato do país, entregou a liderança para um conselho formado por oito membros. O cessar-fogo foi sendo estendido ao longo do ano e as baixas passaram a diminuir, embora ainda tenham ficado acima de 2 mil naquele ano. Ainda assim, a crise humanitária segue.

Crianças sofrendo de desnutrição em um centro médico em Aslam, no Iemên, em 2018 Foto: Tyler Hicks/NYT

Re-escalada de Israel e Palestina

Um conflito que existe desde a formação do Estado de Israel em 1946 e ganhou proporções de guerra em 2001 durante a Segunda Intifada. Desde então, o conflito estava menos intenso com episódios de confrontos entre o governo israleneses e grupos palestinos como Hamas, Fatah e Jihad Islâmica.

Mas este ano, sob um novo governo de Binyamin Netanyahu, agora com uma coalizão composta por ultraortodoxos, os níveis de violência voltaram a subir com batalhas que levantaram preocupações de uma terceira intifada, principalmente na região da Cisjordânia. Mais de 7800 pessoas já morreram no conflito, a maioria palestinos e em 2023 os números de mortos já passaram de 200.

Nagorno-Karabakh, o cessar-fogo que não durou

Essa também é uma antiga disputa por território, que voltou a ganhar força recentemente. O conflito começou com a queda da antiga União Soviética e a independência de uma de suas ex-repúblicas, o Azerbaijão. É lá que fica o Nagorno-Karabakh, um enclave montanhoso que foi conquistado pela Armênia na década de 1990.

Em uma nova ofensiva em 2020, o Azerbaijão tomou de volta grande parte desse território. A batalha durou 44 dias e terminou com um cessar-fogo costurado por Moscou, mas que não durou muito tempo. No final do ano passado, enquanto a Rússia estava concentrada na sua própria guerra, o Nagorno-Karabakh foi palco de novos confrontos, que acenderam um alerta para a instabilidade cada vez maior na região. Sem paz duradoura, o conflito já tem mais de 13 mil mortes estimadas.

Somália e a luta contra um califado

O governo da Somália trava uma batalha contra a instauração de um califado pelo grupo extremista islâmico Al-Shabaab desde 2008. O país vive em guerra civil desde o colapso de seu governo central em 1991, mas apenas a partir do 2008, com o estabelecimento do Al-Shabaab a guerra ganhou as características que tem hoje.

O grupo, que é apoiado pela Al-Qaeda, quer estabelecer um governo sob regras da Sharia, a lei mais radical islâmica. O conflito ganhou novos contornos em 2022, quando o recém eleito presidente Hassan Sheikh Mohamud declarou “guerra total” ao grupo. O governo somali conta com apoio dos EUA, bem como possui uma missão de paz organizada pelo Conselho de Segurança das ONU, composta por tropas do Burundi, Djibuti, Etiópia, Quênia, Uganda e Serra Leoa.

Mianmar e a luta contra repressão

O Mianmar enfrenta uma escalada da violência desde o golpe militar, que prendeu Aung San Suu Kyi, a vencedora do Nobel da Paz e matriarca da democracia no país, que era considerada a governante de fato, mesmo fora da Presidência. Depois de tomar o poder, em 2021, os militares passaram a reprimir com mão de ferro os dissidentes, que aprenderam a usar táticas de guerra para enfrentar o regime. No mês passado, o Conselho de Segurança da ONU condenou a morte de civis, ao pedir o fim dos ataques e libertação dos políticos presos.

As Nações Unidas também expressaram preocupação com a crise humanitária que atinge os muçulmanos rohingya. Minoria em um país budista, eles enfrentam uma perseguição histórica que perpassou diferentes governos da antiga Birmânia — inclusive o de Suu Kyi — e ganhou força depois do golpe.

República Democrática do Congo

Quarto país mais populoso da África, a República Democrática do Congo é palco de uma crise complexa, que a ONU descreveu como “cada vez mais dramática”. A violência escalou no ano passado com os combates entre o grupo armado M23 e as forças armadas, mas tem as suas raízes no genocídio da vizinha Ruanda há quase 30 anos.

Em 1994, a perseguição dos extremistas da etnia Hutu contra os Tutsi e os Hutu moderados levou uma onda de refugiados para a República Democrática do Congo (que na época chamava Zaire). Lá, esses grupos étnicos se armaram temendo que a disputa que enfrentaram dentro de casa cruzasse a fronteira. Quando os Tutsi chegaram ao poder na Ruanda apoiaram no Zaire o líder da oposição Laurent Kabila sob o argumento de que a presença dos rebeldes Hutu no país era uma ameaça.

Kabila saiu vencedor dessa primeira guerra que derrubou o regime do Zaire e formou a República Democrática do Congo, marcada desde então pela instabilidade. No final da década de 90, em uma mudança de alianças, Kabila expulsou as tropas estrangeiras e permitiu a organização dos grupos Hutu, o que deu início a segunda guerra. No auge da crise, o presidente foi assassinado em uma tentativa fracassada de golpe e seu filho Joseph Kabila assumiu. A guerra terminou oficialmente no início dos anos 2000, mas tensões étnicas nunca cessaram de fato. O M23 que hoje enfrenta o exército é um dos 120 grupos armados que luta no país e surgiu há dez anos com a justificativa oficial de proteger os Tutsi.

As eleições previstas para o fim deste ano acirram ainda mais os ânimos. Membros da comunidade Tutsi afirmam que têm sido impedidos de se registrar para votar. Isso alimenta o sentimento de que eles seriam vistos como cidadãos de segunda classe no país e dá ao M23 uma desculpa para escalar a violência. Como consequência dos ataques contra civis, os rivais ficam ainda mais furiosos, o que aumenta o temor de que a República Democrática do Congo pode entrar na sua terceira guerra e arrastar para o conflito a região inteira.

Neste momento, oito guerras acontecem ao redor do mundo. É o maior número desde o fim da Guerra Fria. Pelo fato ser a primeira guerra direta entre duas nações, sendo uma delas nucleares, a guerra da Ucrânia ocupa coberturas de destaque, mas conflitos na Etiópia, Iêmen, República Democrática do Congo e Mianmar criam cada vez mais crises humanitárias “silenciosas”.

Os dados de mortes em conflitos são difíceis de precisar devido à dificuldade de acesso a informações confiáveis, bem como visualizar os cenários reais nos campos de batalhas. Por vezes, atores ocultam ou então superestimam números de fatalidades para fins de propaganda de guerra. Por isso, dados como os levantados pelo Programa de Dados de Conflitos da Universidade de Uppsala (UCDP), na Suécia, e pela ONU são estimativas, muitas vezes conservadoras.

Para além dos números de mortos, as guerras também provocam um alto custo humanitário de deslocamentos internos, migrações internacionais e pobreza extrema. Segundo dados da Acnur, mais de 108,4 milhões de pessoas foram forçadas a migrar em 2022 devido a conflitos. No Iêmen, que vive uma guerra de procuração entre Arábia Saudita e Irã desde 2015, cerca de 80% da população se encontra abaixo da linha da pobreza e imagens de crianças em estado de inanição se tornaram comuns.

Crianças tentam encher galões em meio ao desabastecimento de água nos acampamentos improvisados por pessoas que fugiram da guerra do Iêmen, 22 de agosto de 2023. Foto: KHALED ZIAD / AFP

Só em 2022 foram registrados 55 conflitos em 38 países, sendo que 8 deles são considerados guerras, em que há mais de mil mortes relacionadas por ano, contra 5 no ano anterior. As oitos guerras de 2022 foram: Etiópia, Ucrânia, Somália, Iêmen, Burkina Faso, Mali, Mianmar e Nigéria. Mas conflitos antigos, como a guerra da Síria, continuam a causar vítimas mesmo anos depois de seu ápice, embora em números menores hoje em dia.

Os tipos de conflitos mais comuns são os não-estatais, geralmente envolvendo grupos criminosos armados e terroristas. Mas o número de conflitos com envolvimento de países tem crescido ano a ano, e 2022 registrou o maior número de mortes neste tipo de batalha desde 1994, quando ocorreu o sangrento genocídio de Ruanda, segundo o Instituto de Pesquisa para a Paz de Oslo (Prio, na sigla em inglês), na Noruega.

De acordo com os pesquisadores, têm se tornado mais comum que nações enviem tropas de apoio a grupos rebeldes que lutam contra governos, o que faz com que Exércitos nacionais lutem entre si. O envolvimento de Forças Armadas nacionais, apontam, tende a tornar as batalhas mais mortais. Além disso, a expansão do grupo terrorista Estado Islâmico tem sido uma das principais causas de mortes na África, Ásia e Oriente Médio.

Enquanto isso, 2023 viu um novo conflito eclodir no Sudão, quando dois generais das Forças Armadas entraram em disputa para ocupar o vácuo de poder criado pela queda do ditador Omar Al Bashir. Ao mesmo tempo, o longo conflito entre palestinos e israelenses voltou a escalar após a eleição da coalizão mais extremista-religiosa da história de Israel.

A própria invasão da Rússia à Ucrânia reacendeu antigas disputas territoriais como na pequena região de Nagorno-Karabakh, que viveu novos focos de conflitos em 2022.

“Há uma série de mudanças globais que contribuem para esse aumento de tensões e uma principal é a crise econômica de 2008″, afirma Magnus Öberg, professor do Departamento de Pesquisa de Paz e Conflitos da Universidade de Uppsala e diretor do Programa de Dados de Conflitos, em entrevista ao Estadão. “Sempre vemos um crescimento no número de conflitos nos anos que seguem uma crise econômica”.

A globalização, bem como maior fluxo de armas e emergência de novas superpotências também explicam o clima de conflito recente. Mas a polarização é com certeza um dos principais fatores, segundo o pesquisador.

“Estamos vendo agora uma piora da economia global e recessões econômicas tendem a impulsionar conflitos, e adicione a covid-19 nesta conta. Então, os recentes problemas que tivemos, a pandemia, a alta da inflação, a piora econômica, tudo isso cria uma tendência de aumentar a violência nos anos seguintes”, completa.

As maiores guerras sendo travadas hoje têm motivações diferentes, entre batalhas por território, por conflitos étnicos e por ocupação de vácuo de poder, em sua maioria na África e na Ásia. Não é incomum encontrar dois ou três fatores combinados. “E importante destacar que as guerras mudaram a suas características e hoje elas não envolvem necessariamente mais as potências”, afirma Christopher Mendonça, professor de Relações Internacionais do Ibmec-BH.

Além da Ucrânia, os principais conflitos em andamento no mundo são:

Etiópia e a pior guerra do mundo

Embora muito menos midiática, a guerra civil etíope registrou mais mortes em 2022 que a guerra da Ucrânia, e é classificada por organizações internacionais como uma das piores guerras da atualidade, tanto em número de baixas quanto em brutalidade dos combates. Apesar de ser uma guerra civil, pesquisadores a chamam de “guerra civil internacionalizada”, devido ao envolvimento de atores internacionais, principalmente da Eritreia.

Mais de 100 mil pessoas morreram no conflito no ano passado e mais de 385 mil desde que os combates começaram. As estimativas, porém, podem chegar a 600 mil, segundo a ONU, já que é difícil contabilizar as fatalidades no conflito em que o governo controla as informações.

Filimon Gebremedhin, 18, membro da Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF) foi ferido e capturado como prisioneiro de guerra, 24 de fevereiro de 2022. Foto: REUTERS/Tiksa Negeri

A batalha se centra na região do Tigré, que luta por independência desde pelo menos os anos 1200. Em 1991, a Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF) derrubou o governo e permaneceu no poder até 2018, quando foi retirado e isolado do cenário político etíope. A situação elevou as tensões, que explodiram em uma guerra aberta em 2020, quando o TPFL engajou contra o governo central.

Com características que lembram a 1ª Guerra, o conflito atingiu seu ápice em 2022 e, além do alto número de mortos, provocou uma enorme crise humanitária na África. A guerra também tem um caráter de violência unilateral, em que civis são deliberadamente atacados em extensas violações de crimes de guerra, apontam relatórios.

Um acordo de cessar-fogo foi assinado em novembro de 2022, mas não houve sinais claros de implementação. Organizações denunciam em 2023 que a região do Tigré continua isolada de informações, atrapalhando o acompanhamento do conflito. Enquanto isso, as tensões cresceram na região vizinha, Amhara, que teme uma nova escala de guerra civil.

Mais de 10 anos de guerra na Síria

Se há 12 anos as imagens de centenas de milhares de refugiados fugindo do Oriente Médio para a Europa ganhavam o mundo, hoje a guerra na Síria parece ter caído no esquecimento. O conflito continua, em escala muito menor que os números dos anos 2011 e 2013, no seu ápice, e agora ganhou contornos de uma guerra de procuração, com diversos países envolvidos.

Segundo a ONU, mais de 300 mil pessoas morreram desde o início das batalhas entre o governo de Bashar al-Assad e grupos rebeldes. A guerra começou na esteira da Primavera Árabe, quando vários países da região do Oriente Médio experimentaram levantes contra governos ditatoriais.

Enquanto em alguns locais os governos caíram, como na Líbia, na Síria a resistência da família Assad - no poder desde meados dos anos 1960 - jogou o país em uma guerra civil. Além da batalha do governo com grupos rebeldes, levantes começaram nas regiões curdas e o Estado Islâmico aproveitou a instabilidade para iniciar uma batalha por territórios.

Um combatente sírio veste uma roupa de camuflagem durante um treinamento militar em Aleppo, na Síria, em 29 de agosto Foto: OMAR HAJ KADOUR/AFP

Hoje o conflito é considerado adormecido, apesar de ainda ocorrer batalhas e mortes, mas não nos níveis de antes. Desde 2018, as batalhas estão concentradas nas regiões de Idlib, Aleppo e Lataquia. Pesquisadores do Prio classificam o momento atual do conflito como uma desescalada, mas ressaltam que a população sofre nas mãos do governo sírio (em níveis semelhantes aos afegãos sob o Taleban). A guerra civil também é considerada internacionalizada com presença da Rússia, Irã, Estados Unidos, Turquia e China.

Sudão, o novo conflito de 2023

Enquanto as antigas batalhas seguem em aberto, surgem as novas, como a do Sudão, onde as estimativas são de 3 mil mortos. A disputa começou há cinco meses, quando os paramilitares das Forças de Apoio Rápido (FAR), liderados pelo general Mohammed Hamdan Dagalo, se rebelaram contra o exército sob o comando de outro general, Abdel-Fattah Burhan.

Os militares que hoje travam uma batalha sangrenta são antigos aliados. Em 2019, eles estiveram ao mesmo lado no levante que derrubou o ditador Omar al-Bashid, depois de três décadas no poder. Em 2021, os generais deram um golpe nos civis do governo de transição e governaram juntos até o desentendimento que mergulhou todo país em uma guerra por poder.

O resultado disso, afirma a ONU, são cerca de 5 milhões de pessoas forçadas a sair de casa, incluindo quase 1 milhão que fugiram para países vizinhos. A crise ganha contornos ainda mais dramáticos porque o Sudão – que faz fronteira com Etiópia e Eritreia – já abrigava muitos refugiados antes de ter o próprio conflito deflagrado. São pessoas que escaparam de uma guerra e caíram em outra.

Combatente pula de carro e movimento no Sudão, 30 de agosto de 2023.  Foto: AFP

A esquecida crise humanitária do Iêmen

A guerra no Iêmen começou em 2014 e viu seu pior momento em 2021, quando mais de 20 mil pessoas morreram diretamente pelo conflito. A guerra, porém, é marcada por causar a pior crise humanitária da atualidade, com mais de 80% da população vivendo abaixo da linha da pobreza e histórias frequentes de pessoas - principalmente crianças - morrendo de fome extrema.

Enquanto o número de mortes diretas e que puderam ser confirmadas pelos pesquisadores do UCDP gira em torno de 64 mil até 2022, a ONU estima que mais de 377 mil pessoas morreram indiretamente pelo conflito. A principal causa seria fome e doenças, com o paí sendo gravemente atingido pela cólera.

A guerra eclodiu quando o grupo Ansar allah, amplamente conhecido como Houtis, capturou a capital Sanaa e derrubou o governo de Abdrabbuh Mansur Hadi. O novo governo, sob os Houtis, passou a lutar contra as Forças de Hadi, que receberam o apoio direto da Arábia Saudita. O Irã, por sua parte, passou a apoiar os Houtis, transformando o conflito em uma das mais emblemáticas guerras de procuração.

O pequeno país, um dos mais pobres do mundo, se tornou palco da disputa por influência entre Irã e Arábia Saudita no Oriente Médio. Outros países também se envolveram no conflito, a maioria do lado de Hadi, entre eles: Egito, Marrocos, Jordânia, Sudão, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Catar e Bahrein.

Em abril de 2022, as partes concordaram com um cessar-fogo e Hadi, considerado internacionalmente como o presidente de fato do país, entregou a liderança para um conselho formado por oito membros. O cessar-fogo foi sendo estendido ao longo do ano e as baixas passaram a diminuir, embora ainda tenham ficado acima de 2 mil naquele ano. Ainda assim, a crise humanitária segue.

Crianças sofrendo de desnutrição em um centro médico em Aslam, no Iemên, em 2018 Foto: Tyler Hicks/NYT

Re-escalada de Israel e Palestina

Um conflito que existe desde a formação do Estado de Israel em 1946 e ganhou proporções de guerra em 2001 durante a Segunda Intifada. Desde então, o conflito estava menos intenso com episódios de confrontos entre o governo israleneses e grupos palestinos como Hamas, Fatah e Jihad Islâmica.

Mas este ano, sob um novo governo de Binyamin Netanyahu, agora com uma coalizão composta por ultraortodoxos, os níveis de violência voltaram a subir com batalhas que levantaram preocupações de uma terceira intifada, principalmente na região da Cisjordânia. Mais de 7800 pessoas já morreram no conflito, a maioria palestinos e em 2023 os números de mortos já passaram de 200.

Nagorno-Karabakh, o cessar-fogo que não durou

Essa também é uma antiga disputa por território, que voltou a ganhar força recentemente. O conflito começou com a queda da antiga União Soviética e a independência de uma de suas ex-repúblicas, o Azerbaijão. É lá que fica o Nagorno-Karabakh, um enclave montanhoso que foi conquistado pela Armênia na década de 1990.

Em uma nova ofensiva em 2020, o Azerbaijão tomou de volta grande parte desse território. A batalha durou 44 dias e terminou com um cessar-fogo costurado por Moscou, mas que não durou muito tempo. No final do ano passado, enquanto a Rússia estava concentrada na sua própria guerra, o Nagorno-Karabakh foi palco de novos confrontos, que acenderam um alerta para a instabilidade cada vez maior na região. Sem paz duradoura, o conflito já tem mais de 13 mil mortes estimadas.

Somália e a luta contra um califado

O governo da Somália trava uma batalha contra a instauração de um califado pelo grupo extremista islâmico Al-Shabaab desde 2008. O país vive em guerra civil desde o colapso de seu governo central em 1991, mas apenas a partir do 2008, com o estabelecimento do Al-Shabaab a guerra ganhou as características que tem hoje.

O grupo, que é apoiado pela Al-Qaeda, quer estabelecer um governo sob regras da Sharia, a lei mais radical islâmica. O conflito ganhou novos contornos em 2022, quando o recém eleito presidente Hassan Sheikh Mohamud declarou “guerra total” ao grupo. O governo somali conta com apoio dos EUA, bem como possui uma missão de paz organizada pelo Conselho de Segurança das ONU, composta por tropas do Burundi, Djibuti, Etiópia, Quênia, Uganda e Serra Leoa.

Mianmar e a luta contra repressão

O Mianmar enfrenta uma escalada da violência desde o golpe militar, que prendeu Aung San Suu Kyi, a vencedora do Nobel da Paz e matriarca da democracia no país, que era considerada a governante de fato, mesmo fora da Presidência. Depois de tomar o poder, em 2021, os militares passaram a reprimir com mão de ferro os dissidentes, que aprenderam a usar táticas de guerra para enfrentar o regime. No mês passado, o Conselho de Segurança da ONU condenou a morte de civis, ao pedir o fim dos ataques e libertação dos políticos presos.

As Nações Unidas também expressaram preocupação com a crise humanitária que atinge os muçulmanos rohingya. Minoria em um país budista, eles enfrentam uma perseguição histórica que perpassou diferentes governos da antiga Birmânia — inclusive o de Suu Kyi — e ganhou força depois do golpe.

República Democrática do Congo

Quarto país mais populoso da África, a República Democrática do Congo é palco de uma crise complexa, que a ONU descreveu como “cada vez mais dramática”. A violência escalou no ano passado com os combates entre o grupo armado M23 e as forças armadas, mas tem as suas raízes no genocídio da vizinha Ruanda há quase 30 anos.

Em 1994, a perseguição dos extremistas da etnia Hutu contra os Tutsi e os Hutu moderados levou uma onda de refugiados para a República Democrática do Congo (que na época chamava Zaire). Lá, esses grupos étnicos se armaram temendo que a disputa que enfrentaram dentro de casa cruzasse a fronteira. Quando os Tutsi chegaram ao poder na Ruanda apoiaram no Zaire o líder da oposição Laurent Kabila sob o argumento de que a presença dos rebeldes Hutu no país era uma ameaça.

Kabila saiu vencedor dessa primeira guerra que derrubou o regime do Zaire e formou a República Democrática do Congo, marcada desde então pela instabilidade. No final da década de 90, em uma mudança de alianças, Kabila expulsou as tropas estrangeiras e permitiu a organização dos grupos Hutu, o que deu início a segunda guerra. No auge da crise, o presidente foi assassinado em uma tentativa fracassada de golpe e seu filho Joseph Kabila assumiu. A guerra terminou oficialmente no início dos anos 2000, mas tensões étnicas nunca cessaram de fato. O M23 que hoje enfrenta o exército é um dos 120 grupos armados que luta no país e surgiu há dez anos com a justificativa oficial de proteger os Tutsi.

As eleições previstas para o fim deste ano acirram ainda mais os ânimos. Membros da comunidade Tutsi afirmam que têm sido impedidos de se registrar para votar. Isso alimenta o sentimento de que eles seriam vistos como cidadãos de segunda classe no país e dá ao M23 uma desculpa para escalar a violência. Como consequência dos ataques contra civis, os rivais ficam ainda mais furiosos, o que aumenta o temor de que a República Democrática do Congo pode entrar na sua terceira guerra e arrastar para o conflito a região inteira.

Neste momento, oito guerras acontecem ao redor do mundo. É o maior número desde o fim da Guerra Fria. Pelo fato ser a primeira guerra direta entre duas nações, sendo uma delas nucleares, a guerra da Ucrânia ocupa coberturas de destaque, mas conflitos na Etiópia, Iêmen, República Democrática do Congo e Mianmar criam cada vez mais crises humanitárias “silenciosas”.

Os dados de mortes em conflitos são difíceis de precisar devido à dificuldade de acesso a informações confiáveis, bem como visualizar os cenários reais nos campos de batalhas. Por vezes, atores ocultam ou então superestimam números de fatalidades para fins de propaganda de guerra. Por isso, dados como os levantados pelo Programa de Dados de Conflitos da Universidade de Uppsala (UCDP), na Suécia, e pela ONU são estimativas, muitas vezes conservadoras.

Para além dos números de mortos, as guerras também provocam um alto custo humanitário de deslocamentos internos, migrações internacionais e pobreza extrema. Segundo dados da Acnur, mais de 108,4 milhões de pessoas foram forçadas a migrar em 2022 devido a conflitos. No Iêmen, que vive uma guerra de procuração entre Arábia Saudita e Irã desde 2015, cerca de 80% da população se encontra abaixo da linha da pobreza e imagens de crianças em estado de inanição se tornaram comuns.

Crianças tentam encher galões em meio ao desabastecimento de água nos acampamentos improvisados por pessoas que fugiram da guerra do Iêmen, 22 de agosto de 2023. Foto: KHALED ZIAD / AFP

Só em 2022 foram registrados 55 conflitos em 38 países, sendo que 8 deles são considerados guerras, em que há mais de mil mortes relacionadas por ano, contra 5 no ano anterior. As oitos guerras de 2022 foram: Etiópia, Ucrânia, Somália, Iêmen, Burkina Faso, Mali, Mianmar e Nigéria. Mas conflitos antigos, como a guerra da Síria, continuam a causar vítimas mesmo anos depois de seu ápice, embora em números menores hoje em dia.

Os tipos de conflitos mais comuns são os não-estatais, geralmente envolvendo grupos criminosos armados e terroristas. Mas o número de conflitos com envolvimento de países tem crescido ano a ano, e 2022 registrou o maior número de mortes neste tipo de batalha desde 1994, quando ocorreu o sangrento genocídio de Ruanda, segundo o Instituto de Pesquisa para a Paz de Oslo (Prio, na sigla em inglês), na Noruega.

De acordo com os pesquisadores, têm se tornado mais comum que nações enviem tropas de apoio a grupos rebeldes que lutam contra governos, o que faz com que Exércitos nacionais lutem entre si. O envolvimento de Forças Armadas nacionais, apontam, tende a tornar as batalhas mais mortais. Além disso, a expansão do grupo terrorista Estado Islâmico tem sido uma das principais causas de mortes na África, Ásia e Oriente Médio.

Enquanto isso, 2023 viu um novo conflito eclodir no Sudão, quando dois generais das Forças Armadas entraram em disputa para ocupar o vácuo de poder criado pela queda do ditador Omar Al Bashir. Ao mesmo tempo, o longo conflito entre palestinos e israelenses voltou a escalar após a eleição da coalizão mais extremista-religiosa da história de Israel.

A própria invasão da Rússia à Ucrânia reacendeu antigas disputas territoriais como na pequena região de Nagorno-Karabakh, que viveu novos focos de conflitos em 2022.

“Há uma série de mudanças globais que contribuem para esse aumento de tensões e uma principal é a crise econômica de 2008″, afirma Magnus Öberg, professor do Departamento de Pesquisa de Paz e Conflitos da Universidade de Uppsala e diretor do Programa de Dados de Conflitos, em entrevista ao Estadão. “Sempre vemos um crescimento no número de conflitos nos anos que seguem uma crise econômica”.

A globalização, bem como maior fluxo de armas e emergência de novas superpotências também explicam o clima de conflito recente. Mas a polarização é com certeza um dos principais fatores, segundo o pesquisador.

“Estamos vendo agora uma piora da economia global e recessões econômicas tendem a impulsionar conflitos, e adicione a covid-19 nesta conta. Então, os recentes problemas que tivemos, a pandemia, a alta da inflação, a piora econômica, tudo isso cria uma tendência de aumentar a violência nos anos seguintes”, completa.

As maiores guerras sendo travadas hoje têm motivações diferentes, entre batalhas por território, por conflitos étnicos e por ocupação de vácuo de poder, em sua maioria na África e na Ásia. Não é incomum encontrar dois ou três fatores combinados. “E importante destacar que as guerras mudaram a suas características e hoje elas não envolvem necessariamente mais as potências”, afirma Christopher Mendonça, professor de Relações Internacionais do Ibmec-BH.

Além da Ucrânia, os principais conflitos em andamento no mundo são:

Etiópia e a pior guerra do mundo

Embora muito menos midiática, a guerra civil etíope registrou mais mortes em 2022 que a guerra da Ucrânia, e é classificada por organizações internacionais como uma das piores guerras da atualidade, tanto em número de baixas quanto em brutalidade dos combates. Apesar de ser uma guerra civil, pesquisadores a chamam de “guerra civil internacionalizada”, devido ao envolvimento de atores internacionais, principalmente da Eritreia.

Mais de 100 mil pessoas morreram no conflito no ano passado e mais de 385 mil desde que os combates começaram. As estimativas, porém, podem chegar a 600 mil, segundo a ONU, já que é difícil contabilizar as fatalidades no conflito em que o governo controla as informações.

Filimon Gebremedhin, 18, membro da Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF) foi ferido e capturado como prisioneiro de guerra, 24 de fevereiro de 2022. Foto: REUTERS/Tiksa Negeri

A batalha se centra na região do Tigré, que luta por independência desde pelo menos os anos 1200. Em 1991, a Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF) derrubou o governo e permaneceu no poder até 2018, quando foi retirado e isolado do cenário político etíope. A situação elevou as tensões, que explodiram em uma guerra aberta em 2020, quando o TPFL engajou contra o governo central.

Com características que lembram a 1ª Guerra, o conflito atingiu seu ápice em 2022 e, além do alto número de mortos, provocou uma enorme crise humanitária na África. A guerra também tem um caráter de violência unilateral, em que civis são deliberadamente atacados em extensas violações de crimes de guerra, apontam relatórios.

Um acordo de cessar-fogo foi assinado em novembro de 2022, mas não houve sinais claros de implementação. Organizações denunciam em 2023 que a região do Tigré continua isolada de informações, atrapalhando o acompanhamento do conflito. Enquanto isso, as tensões cresceram na região vizinha, Amhara, que teme uma nova escala de guerra civil.

Mais de 10 anos de guerra na Síria

Se há 12 anos as imagens de centenas de milhares de refugiados fugindo do Oriente Médio para a Europa ganhavam o mundo, hoje a guerra na Síria parece ter caído no esquecimento. O conflito continua, em escala muito menor que os números dos anos 2011 e 2013, no seu ápice, e agora ganhou contornos de uma guerra de procuração, com diversos países envolvidos.

Segundo a ONU, mais de 300 mil pessoas morreram desde o início das batalhas entre o governo de Bashar al-Assad e grupos rebeldes. A guerra começou na esteira da Primavera Árabe, quando vários países da região do Oriente Médio experimentaram levantes contra governos ditatoriais.

Enquanto em alguns locais os governos caíram, como na Líbia, na Síria a resistência da família Assad - no poder desde meados dos anos 1960 - jogou o país em uma guerra civil. Além da batalha do governo com grupos rebeldes, levantes começaram nas regiões curdas e o Estado Islâmico aproveitou a instabilidade para iniciar uma batalha por territórios.

Um combatente sírio veste uma roupa de camuflagem durante um treinamento militar em Aleppo, na Síria, em 29 de agosto Foto: OMAR HAJ KADOUR/AFP

Hoje o conflito é considerado adormecido, apesar de ainda ocorrer batalhas e mortes, mas não nos níveis de antes. Desde 2018, as batalhas estão concentradas nas regiões de Idlib, Aleppo e Lataquia. Pesquisadores do Prio classificam o momento atual do conflito como uma desescalada, mas ressaltam que a população sofre nas mãos do governo sírio (em níveis semelhantes aos afegãos sob o Taleban). A guerra civil também é considerada internacionalizada com presença da Rússia, Irã, Estados Unidos, Turquia e China.

Sudão, o novo conflito de 2023

Enquanto as antigas batalhas seguem em aberto, surgem as novas, como a do Sudão, onde as estimativas são de 3 mil mortos. A disputa começou há cinco meses, quando os paramilitares das Forças de Apoio Rápido (FAR), liderados pelo general Mohammed Hamdan Dagalo, se rebelaram contra o exército sob o comando de outro general, Abdel-Fattah Burhan.

Os militares que hoje travam uma batalha sangrenta são antigos aliados. Em 2019, eles estiveram ao mesmo lado no levante que derrubou o ditador Omar al-Bashid, depois de três décadas no poder. Em 2021, os generais deram um golpe nos civis do governo de transição e governaram juntos até o desentendimento que mergulhou todo país em uma guerra por poder.

O resultado disso, afirma a ONU, são cerca de 5 milhões de pessoas forçadas a sair de casa, incluindo quase 1 milhão que fugiram para países vizinhos. A crise ganha contornos ainda mais dramáticos porque o Sudão – que faz fronteira com Etiópia e Eritreia – já abrigava muitos refugiados antes de ter o próprio conflito deflagrado. São pessoas que escaparam de uma guerra e caíram em outra.

Combatente pula de carro e movimento no Sudão, 30 de agosto de 2023.  Foto: AFP

A esquecida crise humanitária do Iêmen

A guerra no Iêmen começou em 2014 e viu seu pior momento em 2021, quando mais de 20 mil pessoas morreram diretamente pelo conflito. A guerra, porém, é marcada por causar a pior crise humanitária da atualidade, com mais de 80% da população vivendo abaixo da linha da pobreza e histórias frequentes de pessoas - principalmente crianças - morrendo de fome extrema.

Enquanto o número de mortes diretas e que puderam ser confirmadas pelos pesquisadores do UCDP gira em torno de 64 mil até 2022, a ONU estima que mais de 377 mil pessoas morreram indiretamente pelo conflito. A principal causa seria fome e doenças, com o paí sendo gravemente atingido pela cólera.

A guerra eclodiu quando o grupo Ansar allah, amplamente conhecido como Houtis, capturou a capital Sanaa e derrubou o governo de Abdrabbuh Mansur Hadi. O novo governo, sob os Houtis, passou a lutar contra as Forças de Hadi, que receberam o apoio direto da Arábia Saudita. O Irã, por sua parte, passou a apoiar os Houtis, transformando o conflito em uma das mais emblemáticas guerras de procuração.

O pequeno país, um dos mais pobres do mundo, se tornou palco da disputa por influência entre Irã e Arábia Saudita no Oriente Médio. Outros países também se envolveram no conflito, a maioria do lado de Hadi, entre eles: Egito, Marrocos, Jordânia, Sudão, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Catar e Bahrein.

Em abril de 2022, as partes concordaram com um cessar-fogo e Hadi, considerado internacionalmente como o presidente de fato do país, entregou a liderança para um conselho formado por oito membros. O cessar-fogo foi sendo estendido ao longo do ano e as baixas passaram a diminuir, embora ainda tenham ficado acima de 2 mil naquele ano. Ainda assim, a crise humanitária segue.

Crianças sofrendo de desnutrição em um centro médico em Aslam, no Iemên, em 2018 Foto: Tyler Hicks/NYT

Re-escalada de Israel e Palestina

Um conflito que existe desde a formação do Estado de Israel em 1946 e ganhou proporções de guerra em 2001 durante a Segunda Intifada. Desde então, o conflito estava menos intenso com episódios de confrontos entre o governo israleneses e grupos palestinos como Hamas, Fatah e Jihad Islâmica.

Mas este ano, sob um novo governo de Binyamin Netanyahu, agora com uma coalizão composta por ultraortodoxos, os níveis de violência voltaram a subir com batalhas que levantaram preocupações de uma terceira intifada, principalmente na região da Cisjordânia. Mais de 7800 pessoas já morreram no conflito, a maioria palestinos e em 2023 os números de mortos já passaram de 200.

Nagorno-Karabakh, o cessar-fogo que não durou

Essa também é uma antiga disputa por território, que voltou a ganhar força recentemente. O conflito começou com a queda da antiga União Soviética e a independência de uma de suas ex-repúblicas, o Azerbaijão. É lá que fica o Nagorno-Karabakh, um enclave montanhoso que foi conquistado pela Armênia na década de 1990.

Em uma nova ofensiva em 2020, o Azerbaijão tomou de volta grande parte desse território. A batalha durou 44 dias e terminou com um cessar-fogo costurado por Moscou, mas que não durou muito tempo. No final do ano passado, enquanto a Rússia estava concentrada na sua própria guerra, o Nagorno-Karabakh foi palco de novos confrontos, que acenderam um alerta para a instabilidade cada vez maior na região. Sem paz duradoura, o conflito já tem mais de 13 mil mortes estimadas.

Somália e a luta contra um califado

O governo da Somália trava uma batalha contra a instauração de um califado pelo grupo extremista islâmico Al-Shabaab desde 2008. O país vive em guerra civil desde o colapso de seu governo central em 1991, mas apenas a partir do 2008, com o estabelecimento do Al-Shabaab a guerra ganhou as características que tem hoje.

O grupo, que é apoiado pela Al-Qaeda, quer estabelecer um governo sob regras da Sharia, a lei mais radical islâmica. O conflito ganhou novos contornos em 2022, quando o recém eleito presidente Hassan Sheikh Mohamud declarou “guerra total” ao grupo. O governo somali conta com apoio dos EUA, bem como possui uma missão de paz organizada pelo Conselho de Segurança das ONU, composta por tropas do Burundi, Djibuti, Etiópia, Quênia, Uganda e Serra Leoa.

Mianmar e a luta contra repressão

O Mianmar enfrenta uma escalada da violência desde o golpe militar, que prendeu Aung San Suu Kyi, a vencedora do Nobel da Paz e matriarca da democracia no país, que era considerada a governante de fato, mesmo fora da Presidência. Depois de tomar o poder, em 2021, os militares passaram a reprimir com mão de ferro os dissidentes, que aprenderam a usar táticas de guerra para enfrentar o regime. No mês passado, o Conselho de Segurança da ONU condenou a morte de civis, ao pedir o fim dos ataques e libertação dos políticos presos.

As Nações Unidas também expressaram preocupação com a crise humanitária que atinge os muçulmanos rohingya. Minoria em um país budista, eles enfrentam uma perseguição histórica que perpassou diferentes governos da antiga Birmânia — inclusive o de Suu Kyi — e ganhou força depois do golpe.

República Democrática do Congo

Quarto país mais populoso da África, a República Democrática do Congo é palco de uma crise complexa, que a ONU descreveu como “cada vez mais dramática”. A violência escalou no ano passado com os combates entre o grupo armado M23 e as forças armadas, mas tem as suas raízes no genocídio da vizinha Ruanda há quase 30 anos.

Em 1994, a perseguição dos extremistas da etnia Hutu contra os Tutsi e os Hutu moderados levou uma onda de refugiados para a República Democrática do Congo (que na época chamava Zaire). Lá, esses grupos étnicos se armaram temendo que a disputa que enfrentaram dentro de casa cruzasse a fronteira. Quando os Tutsi chegaram ao poder na Ruanda apoiaram no Zaire o líder da oposição Laurent Kabila sob o argumento de que a presença dos rebeldes Hutu no país era uma ameaça.

Kabila saiu vencedor dessa primeira guerra que derrubou o regime do Zaire e formou a República Democrática do Congo, marcada desde então pela instabilidade. No final da década de 90, em uma mudança de alianças, Kabila expulsou as tropas estrangeiras e permitiu a organização dos grupos Hutu, o que deu início a segunda guerra. No auge da crise, o presidente foi assassinado em uma tentativa fracassada de golpe e seu filho Joseph Kabila assumiu. A guerra terminou oficialmente no início dos anos 2000, mas tensões étnicas nunca cessaram de fato. O M23 que hoje enfrenta o exército é um dos 120 grupos armados que luta no país e surgiu há dez anos com a justificativa oficial de proteger os Tutsi.

As eleições previstas para o fim deste ano acirram ainda mais os ânimos. Membros da comunidade Tutsi afirmam que têm sido impedidos de se registrar para votar. Isso alimenta o sentimento de que eles seriam vistos como cidadãos de segunda classe no país e dá ao M23 uma desculpa para escalar a violência. Como consequência dos ataques contra civis, os rivais ficam ainda mais furiosos, o que aumenta o temor de que a República Democrática do Congo pode entrar na sua terceira guerra e arrastar para o conflito a região inteira.

Neste momento, oito guerras acontecem ao redor do mundo. É o maior número desde o fim da Guerra Fria. Pelo fato ser a primeira guerra direta entre duas nações, sendo uma delas nucleares, a guerra da Ucrânia ocupa coberturas de destaque, mas conflitos na Etiópia, Iêmen, República Democrática do Congo e Mianmar criam cada vez mais crises humanitárias “silenciosas”.

Os dados de mortes em conflitos são difíceis de precisar devido à dificuldade de acesso a informações confiáveis, bem como visualizar os cenários reais nos campos de batalhas. Por vezes, atores ocultam ou então superestimam números de fatalidades para fins de propaganda de guerra. Por isso, dados como os levantados pelo Programa de Dados de Conflitos da Universidade de Uppsala (UCDP), na Suécia, e pela ONU são estimativas, muitas vezes conservadoras.

Para além dos números de mortos, as guerras também provocam um alto custo humanitário de deslocamentos internos, migrações internacionais e pobreza extrema. Segundo dados da Acnur, mais de 108,4 milhões de pessoas foram forçadas a migrar em 2022 devido a conflitos. No Iêmen, que vive uma guerra de procuração entre Arábia Saudita e Irã desde 2015, cerca de 80% da população se encontra abaixo da linha da pobreza e imagens de crianças em estado de inanição se tornaram comuns.

Crianças tentam encher galões em meio ao desabastecimento de água nos acampamentos improvisados por pessoas que fugiram da guerra do Iêmen, 22 de agosto de 2023. Foto: KHALED ZIAD / AFP

Só em 2022 foram registrados 55 conflitos em 38 países, sendo que 8 deles são considerados guerras, em que há mais de mil mortes relacionadas por ano, contra 5 no ano anterior. As oitos guerras de 2022 foram: Etiópia, Ucrânia, Somália, Iêmen, Burkina Faso, Mali, Mianmar e Nigéria. Mas conflitos antigos, como a guerra da Síria, continuam a causar vítimas mesmo anos depois de seu ápice, embora em números menores hoje em dia.

Os tipos de conflitos mais comuns são os não-estatais, geralmente envolvendo grupos criminosos armados e terroristas. Mas o número de conflitos com envolvimento de países tem crescido ano a ano, e 2022 registrou o maior número de mortes neste tipo de batalha desde 1994, quando ocorreu o sangrento genocídio de Ruanda, segundo o Instituto de Pesquisa para a Paz de Oslo (Prio, na sigla em inglês), na Noruega.

De acordo com os pesquisadores, têm se tornado mais comum que nações enviem tropas de apoio a grupos rebeldes que lutam contra governos, o que faz com que Exércitos nacionais lutem entre si. O envolvimento de Forças Armadas nacionais, apontam, tende a tornar as batalhas mais mortais. Além disso, a expansão do grupo terrorista Estado Islâmico tem sido uma das principais causas de mortes na África, Ásia e Oriente Médio.

Enquanto isso, 2023 viu um novo conflito eclodir no Sudão, quando dois generais das Forças Armadas entraram em disputa para ocupar o vácuo de poder criado pela queda do ditador Omar Al Bashir. Ao mesmo tempo, o longo conflito entre palestinos e israelenses voltou a escalar após a eleição da coalizão mais extremista-religiosa da história de Israel.

A própria invasão da Rússia à Ucrânia reacendeu antigas disputas territoriais como na pequena região de Nagorno-Karabakh, que viveu novos focos de conflitos em 2022.

“Há uma série de mudanças globais que contribuem para esse aumento de tensões e uma principal é a crise econômica de 2008″, afirma Magnus Öberg, professor do Departamento de Pesquisa de Paz e Conflitos da Universidade de Uppsala e diretor do Programa de Dados de Conflitos, em entrevista ao Estadão. “Sempre vemos um crescimento no número de conflitos nos anos que seguem uma crise econômica”.

A globalização, bem como maior fluxo de armas e emergência de novas superpotências também explicam o clima de conflito recente. Mas a polarização é com certeza um dos principais fatores, segundo o pesquisador.

“Estamos vendo agora uma piora da economia global e recessões econômicas tendem a impulsionar conflitos, e adicione a covid-19 nesta conta. Então, os recentes problemas que tivemos, a pandemia, a alta da inflação, a piora econômica, tudo isso cria uma tendência de aumentar a violência nos anos seguintes”, completa.

As maiores guerras sendo travadas hoje têm motivações diferentes, entre batalhas por território, por conflitos étnicos e por ocupação de vácuo de poder, em sua maioria na África e na Ásia. Não é incomum encontrar dois ou três fatores combinados. “E importante destacar que as guerras mudaram a suas características e hoje elas não envolvem necessariamente mais as potências”, afirma Christopher Mendonça, professor de Relações Internacionais do Ibmec-BH.

Além da Ucrânia, os principais conflitos em andamento no mundo são:

Etiópia e a pior guerra do mundo

Embora muito menos midiática, a guerra civil etíope registrou mais mortes em 2022 que a guerra da Ucrânia, e é classificada por organizações internacionais como uma das piores guerras da atualidade, tanto em número de baixas quanto em brutalidade dos combates. Apesar de ser uma guerra civil, pesquisadores a chamam de “guerra civil internacionalizada”, devido ao envolvimento de atores internacionais, principalmente da Eritreia.

Mais de 100 mil pessoas morreram no conflito no ano passado e mais de 385 mil desde que os combates começaram. As estimativas, porém, podem chegar a 600 mil, segundo a ONU, já que é difícil contabilizar as fatalidades no conflito em que o governo controla as informações.

Filimon Gebremedhin, 18, membro da Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF) foi ferido e capturado como prisioneiro de guerra, 24 de fevereiro de 2022. Foto: REUTERS/Tiksa Negeri

A batalha se centra na região do Tigré, que luta por independência desde pelo menos os anos 1200. Em 1991, a Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF) derrubou o governo e permaneceu no poder até 2018, quando foi retirado e isolado do cenário político etíope. A situação elevou as tensões, que explodiram em uma guerra aberta em 2020, quando o TPFL engajou contra o governo central.

Com características que lembram a 1ª Guerra, o conflito atingiu seu ápice em 2022 e, além do alto número de mortos, provocou uma enorme crise humanitária na África. A guerra também tem um caráter de violência unilateral, em que civis são deliberadamente atacados em extensas violações de crimes de guerra, apontam relatórios.

Um acordo de cessar-fogo foi assinado em novembro de 2022, mas não houve sinais claros de implementação. Organizações denunciam em 2023 que a região do Tigré continua isolada de informações, atrapalhando o acompanhamento do conflito. Enquanto isso, as tensões cresceram na região vizinha, Amhara, que teme uma nova escala de guerra civil.

Mais de 10 anos de guerra na Síria

Se há 12 anos as imagens de centenas de milhares de refugiados fugindo do Oriente Médio para a Europa ganhavam o mundo, hoje a guerra na Síria parece ter caído no esquecimento. O conflito continua, em escala muito menor que os números dos anos 2011 e 2013, no seu ápice, e agora ganhou contornos de uma guerra de procuração, com diversos países envolvidos.

Segundo a ONU, mais de 300 mil pessoas morreram desde o início das batalhas entre o governo de Bashar al-Assad e grupos rebeldes. A guerra começou na esteira da Primavera Árabe, quando vários países da região do Oriente Médio experimentaram levantes contra governos ditatoriais.

Enquanto em alguns locais os governos caíram, como na Líbia, na Síria a resistência da família Assad - no poder desde meados dos anos 1960 - jogou o país em uma guerra civil. Além da batalha do governo com grupos rebeldes, levantes começaram nas regiões curdas e o Estado Islâmico aproveitou a instabilidade para iniciar uma batalha por territórios.

Um combatente sírio veste uma roupa de camuflagem durante um treinamento militar em Aleppo, na Síria, em 29 de agosto Foto: OMAR HAJ KADOUR/AFP

Hoje o conflito é considerado adormecido, apesar de ainda ocorrer batalhas e mortes, mas não nos níveis de antes. Desde 2018, as batalhas estão concentradas nas regiões de Idlib, Aleppo e Lataquia. Pesquisadores do Prio classificam o momento atual do conflito como uma desescalada, mas ressaltam que a população sofre nas mãos do governo sírio (em níveis semelhantes aos afegãos sob o Taleban). A guerra civil também é considerada internacionalizada com presença da Rússia, Irã, Estados Unidos, Turquia e China.

Sudão, o novo conflito de 2023

Enquanto as antigas batalhas seguem em aberto, surgem as novas, como a do Sudão, onde as estimativas são de 3 mil mortos. A disputa começou há cinco meses, quando os paramilitares das Forças de Apoio Rápido (FAR), liderados pelo general Mohammed Hamdan Dagalo, se rebelaram contra o exército sob o comando de outro general, Abdel-Fattah Burhan.

Os militares que hoje travam uma batalha sangrenta são antigos aliados. Em 2019, eles estiveram ao mesmo lado no levante que derrubou o ditador Omar al-Bashid, depois de três décadas no poder. Em 2021, os generais deram um golpe nos civis do governo de transição e governaram juntos até o desentendimento que mergulhou todo país em uma guerra por poder.

O resultado disso, afirma a ONU, são cerca de 5 milhões de pessoas forçadas a sair de casa, incluindo quase 1 milhão que fugiram para países vizinhos. A crise ganha contornos ainda mais dramáticos porque o Sudão – que faz fronteira com Etiópia e Eritreia – já abrigava muitos refugiados antes de ter o próprio conflito deflagrado. São pessoas que escaparam de uma guerra e caíram em outra.

Combatente pula de carro e movimento no Sudão, 30 de agosto de 2023.  Foto: AFP

A esquecida crise humanitária do Iêmen

A guerra no Iêmen começou em 2014 e viu seu pior momento em 2021, quando mais de 20 mil pessoas morreram diretamente pelo conflito. A guerra, porém, é marcada por causar a pior crise humanitária da atualidade, com mais de 80% da população vivendo abaixo da linha da pobreza e histórias frequentes de pessoas - principalmente crianças - morrendo de fome extrema.

Enquanto o número de mortes diretas e que puderam ser confirmadas pelos pesquisadores do UCDP gira em torno de 64 mil até 2022, a ONU estima que mais de 377 mil pessoas morreram indiretamente pelo conflito. A principal causa seria fome e doenças, com o paí sendo gravemente atingido pela cólera.

A guerra eclodiu quando o grupo Ansar allah, amplamente conhecido como Houtis, capturou a capital Sanaa e derrubou o governo de Abdrabbuh Mansur Hadi. O novo governo, sob os Houtis, passou a lutar contra as Forças de Hadi, que receberam o apoio direto da Arábia Saudita. O Irã, por sua parte, passou a apoiar os Houtis, transformando o conflito em uma das mais emblemáticas guerras de procuração.

O pequeno país, um dos mais pobres do mundo, se tornou palco da disputa por influência entre Irã e Arábia Saudita no Oriente Médio. Outros países também se envolveram no conflito, a maioria do lado de Hadi, entre eles: Egito, Marrocos, Jordânia, Sudão, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Catar e Bahrein.

Em abril de 2022, as partes concordaram com um cessar-fogo e Hadi, considerado internacionalmente como o presidente de fato do país, entregou a liderança para um conselho formado por oito membros. O cessar-fogo foi sendo estendido ao longo do ano e as baixas passaram a diminuir, embora ainda tenham ficado acima de 2 mil naquele ano. Ainda assim, a crise humanitária segue.

Crianças sofrendo de desnutrição em um centro médico em Aslam, no Iemên, em 2018 Foto: Tyler Hicks/NYT

Re-escalada de Israel e Palestina

Um conflito que existe desde a formação do Estado de Israel em 1946 e ganhou proporções de guerra em 2001 durante a Segunda Intifada. Desde então, o conflito estava menos intenso com episódios de confrontos entre o governo israleneses e grupos palestinos como Hamas, Fatah e Jihad Islâmica.

Mas este ano, sob um novo governo de Binyamin Netanyahu, agora com uma coalizão composta por ultraortodoxos, os níveis de violência voltaram a subir com batalhas que levantaram preocupações de uma terceira intifada, principalmente na região da Cisjordânia. Mais de 7800 pessoas já morreram no conflito, a maioria palestinos e em 2023 os números de mortos já passaram de 200.

Nagorno-Karabakh, o cessar-fogo que não durou

Essa também é uma antiga disputa por território, que voltou a ganhar força recentemente. O conflito começou com a queda da antiga União Soviética e a independência de uma de suas ex-repúblicas, o Azerbaijão. É lá que fica o Nagorno-Karabakh, um enclave montanhoso que foi conquistado pela Armênia na década de 1990.

Em uma nova ofensiva em 2020, o Azerbaijão tomou de volta grande parte desse território. A batalha durou 44 dias e terminou com um cessar-fogo costurado por Moscou, mas que não durou muito tempo. No final do ano passado, enquanto a Rússia estava concentrada na sua própria guerra, o Nagorno-Karabakh foi palco de novos confrontos, que acenderam um alerta para a instabilidade cada vez maior na região. Sem paz duradoura, o conflito já tem mais de 13 mil mortes estimadas.

Somália e a luta contra um califado

O governo da Somália trava uma batalha contra a instauração de um califado pelo grupo extremista islâmico Al-Shabaab desde 2008. O país vive em guerra civil desde o colapso de seu governo central em 1991, mas apenas a partir do 2008, com o estabelecimento do Al-Shabaab a guerra ganhou as características que tem hoje.

O grupo, que é apoiado pela Al-Qaeda, quer estabelecer um governo sob regras da Sharia, a lei mais radical islâmica. O conflito ganhou novos contornos em 2022, quando o recém eleito presidente Hassan Sheikh Mohamud declarou “guerra total” ao grupo. O governo somali conta com apoio dos EUA, bem como possui uma missão de paz organizada pelo Conselho de Segurança das ONU, composta por tropas do Burundi, Djibuti, Etiópia, Quênia, Uganda e Serra Leoa.

Mianmar e a luta contra repressão

O Mianmar enfrenta uma escalada da violência desde o golpe militar, que prendeu Aung San Suu Kyi, a vencedora do Nobel da Paz e matriarca da democracia no país, que era considerada a governante de fato, mesmo fora da Presidência. Depois de tomar o poder, em 2021, os militares passaram a reprimir com mão de ferro os dissidentes, que aprenderam a usar táticas de guerra para enfrentar o regime. No mês passado, o Conselho de Segurança da ONU condenou a morte de civis, ao pedir o fim dos ataques e libertação dos políticos presos.

As Nações Unidas também expressaram preocupação com a crise humanitária que atinge os muçulmanos rohingya. Minoria em um país budista, eles enfrentam uma perseguição histórica que perpassou diferentes governos da antiga Birmânia — inclusive o de Suu Kyi — e ganhou força depois do golpe.

República Democrática do Congo

Quarto país mais populoso da África, a República Democrática do Congo é palco de uma crise complexa, que a ONU descreveu como “cada vez mais dramática”. A violência escalou no ano passado com os combates entre o grupo armado M23 e as forças armadas, mas tem as suas raízes no genocídio da vizinha Ruanda há quase 30 anos.

Em 1994, a perseguição dos extremistas da etnia Hutu contra os Tutsi e os Hutu moderados levou uma onda de refugiados para a República Democrática do Congo (que na época chamava Zaire). Lá, esses grupos étnicos se armaram temendo que a disputa que enfrentaram dentro de casa cruzasse a fronteira. Quando os Tutsi chegaram ao poder na Ruanda apoiaram no Zaire o líder da oposição Laurent Kabila sob o argumento de que a presença dos rebeldes Hutu no país era uma ameaça.

Kabila saiu vencedor dessa primeira guerra que derrubou o regime do Zaire e formou a República Democrática do Congo, marcada desde então pela instabilidade. No final da década de 90, em uma mudança de alianças, Kabila expulsou as tropas estrangeiras e permitiu a organização dos grupos Hutu, o que deu início a segunda guerra. No auge da crise, o presidente foi assassinado em uma tentativa fracassada de golpe e seu filho Joseph Kabila assumiu. A guerra terminou oficialmente no início dos anos 2000, mas tensões étnicas nunca cessaram de fato. O M23 que hoje enfrenta o exército é um dos 120 grupos armados que luta no país e surgiu há dez anos com a justificativa oficial de proteger os Tutsi.

As eleições previstas para o fim deste ano acirram ainda mais os ânimos. Membros da comunidade Tutsi afirmam que têm sido impedidos de se registrar para votar. Isso alimenta o sentimento de que eles seriam vistos como cidadãos de segunda classe no país e dá ao M23 uma desculpa para escalar a violência. Como consequência dos ataques contra civis, os rivais ficam ainda mais furiosos, o que aumenta o temor de que a República Democrática do Congo pode entrar na sua terceira guerra e arrastar para o conflito a região inteira.

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