Nunca testados, Charles III e Liz Truss terão de enfrentar problemas no Reino Unido; leia a análise


Reino Unido se vê equilibrado entre a escolha de enfrentar o futuro sozinho ou na companhia dos outros

Por Dan Balz
Atualização:

O Reino Unido está de luto, como estava 25 anos atrás. Na época, o país tinha acabado de se despedir da princesa Diana, a “princesa do povo”, como a descreveu o então primeiro-ministro Tony Blair horas após a morte dela em um acidente de carro em Paris. Diana foi sepultada em um dia de resplandecente beleza. Mais de um milhão de pessoas tinham formado fila nas ruas e parques de Londres para acompanhar seu cortejo fúnebre. A dor daquela morte continuava evidente dias depois.

A rainha Elizabeth II estava em Balmoral, sua casa de veraneio na Escócia, quando Diana morreu. Ela permaneceu ali no primeiro dia após o fato, e no dia seguinte, e no próximo. Com as flores dos enlutados se acumulando nos portões do Palácio de Buckingham e um país famoso pela frieza aristocrática se dissolvendo em lágrimas, a aparente indiferença de uma família real reservada foi simbolizada pelo mastro sem bandeira no alto do palácio, um ditame protocolar incompreensível para o público pesaroso.

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O povo tinha tomado o partido de Diana durante seu divórcio do então príncipe Charles, agora rei Charles III, e sua ruptura com a família real. A decisão de Elizabeth de permanecer na Escócia enquanto o país chorava foi vista como outra demonstração real de frieza. Os tabloides britânicos amplificaram a inquietação do público com manchetes gritantes: “Onde está nossa rainha? Onde está a bandeira dela?” dizia o Sun. “Mostre-nos que se importa”, dizia o Express. “Seu povo está sofrendo”, disse o Mirror. “Fale conosco, majestade.”

Hoje, o Reino Unido está novamente enlutado, dessa vez em resposta à morte da rainha, aos 96 anos, tendo reinado por 70 anos, marca que dificilmente será igualada por outro monarca, seja onde for. As homenagens vieram de todas as partes do mundo. Hoje, as flores empilhadas nos portões de Buckingham são em memória a Elizabeth.

Tamanha manifestação de afeto talvez parecesse improvável 25 anos atrás, quando a rainha estava em baixa e dúvidas em relação à durabilidade (e até necessidade) da própria monarquia agitavam o debate público. Hoje, em um momento de desconfiança na maioria das instituições britânicas, a monarquia é bem-quista, graças exclusivamente a Elizabeth.

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A rainha demonstrou ao longo de 70 anos esta capacidade de se adaptar e se modernizar. Como disse Blair em entrevista à CNN na sexta feira, depois que a rainha percebeu onde tinha errado em relação a Diana, ela conversou com a população “falando com sinceridade e, de certa forma, reaproximando o povo de si”.

A morte de Elizabeth ocorre em um momento de grandes desafios para o Reino Unido, tanto domésticos quanto internacionais. A liderança política do país enfrenta problemas econômicos em casa, dúvidas em relação ao papel britânico no mundo, relações tensas com a Europa e questões de longo prazo ligadas ao futuro da comunidade britânica. Um Reino Unido dividido enfrenta seu futuro sem a presença singular e unificadora que a rainha proporcionava.

Elizabeth II e a princesa Diana, em 1987  Foto: AP Photo/Martin Cleaver, File
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Polarização x estabilidade

“Estabilidade” e “continuidade” são duas palavras quase sempre presentes em tudo que foi dito e escrito desde que a notícia da morte da rainha correu o mundo. Ela viveu o bastante para participar em junho da celebração do seu jubileu de prata. Sobreviveu por 17 meses à morte do amado companheiro e marido, príncipe Philip, duque de Edimburgo. Dois dias antes de morrer, ela deu as boas-vindas à nova primeira-ministra britânica, Liz Truss, a 15ª pessoa a chefiar o governo durante o longo reinado dela (a primeira foi Winston Churchill). Ela desempenhou suas tarefas até o derradeiro fim.

Se ela foi um símbolo de continuidade, a rainha não foi capaz de trazer estabilidade ao seu país. O papel do monarca é cerimonial. Cabe aos políticos enfrentar os problemas, que foram muitos nos anos finais do reinado de Elizabeth. Apenas nos seis anos mais recentes, o governo britânico teve quatro primeiros-ministros diferentes, com Boris Johnson obrigado a renunciar em meados deste ano em meio a múltiplos escândalos.

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A rainha oferecia um contraponto para o caos e a divisão ao seu redor. Foi uma figura tão estável quanto reservada, jamais revelando o que realmente pensava dos primeiros-ministros, do passado da família e da agitação recente, da direção seguida pelos políticos e das políticas públicas. Tornou-se um símbolo das eras que passavam, com o Reino Unido evoluindo de um país que já comandou um controvertido império colonial para uma ilha mais humilde, cujo papel no mundo foi encolhendo gradualmente. No fim, ela se tornou objeto de respeito pela devoção demonstrada ao dever, um modelo de liderança em meio a um mundo bagunçado.

Tony Blair, Gordon Brown, Boris Johnson, David Cameron, Theresa May e John Major, além do líder trabalhista Keir Staimer, na proclamação de Charles III  Foto: Kirsty O'Connor/Pool via REUTERS

Com a saída dela, o Reino Unido se vê equilibrado entre a escolha de enfrentar o futuro sozinho ou na companhia dos outros. O país é um participante central da aliança da Otan que ajuda a Ucrânia na sua guerra contra a Rússia, mas não integra mais a União Europeia, optando por deixar o organismo em controvertida votação realizada em meados de 2016, declarando a própria independência econômica, nas palavras dos defensores da ideia. O plebiscito do Brexit manteve os britânicos divididos internamente e gerou conflitos duradouros com a UE.

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As constantes trocas de comando em 10 Downing Street sublinham o quanto essa decisão foi prejudicial para a estabilidade do país. David Cameron, o primeiro-ministro de deu espaço para o referendo do Brexit, deixou o cargo quando o resultado foi diferente do que o esperado por ele. Sua sucessora, Theresa May, teve dificuldade para implementar a ruptura e acabou renunciando, com o próprio partido dividido. O extravagante Johnson chegou com a promessa de finalizar o rompimento com a UE, mas questões difíceis envolvendo o futuro da Irlanda do Norte seguem sem solução (e causaram até tensões com o presidente Biden, um americano orgulhoso de sua ascendência irlandesa).

Inflação e escassez de energia

As pontas soltas do Brexit são apenas um dos problemas enfrentados pela nova primeira-ministra, sem ser necessariamente o mais urgente. A economia britânica se vê diante de imensos desafios, com a projeção de uma crise de energia no próximo inverno que poderia levar a inflação para perto de 20%. O crescimento lento e uma produtividade que deixa a desejar são fardos que os britânicos suportam há mais de uma década.

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Truss chega ao cargo sem ter passado por nenhum teste. Para vencer a disputa pela liderança do Partido Conservador que a conduziu ao cargo de primeira-ministra, ela buscou agradar um eleitorado muito específico e conservador que está longe de representar o país como um todo. Foi escolhida pelos votos de menos de 100 mil pessoas em um país de 67 milhões de habitantes e sem uma maioria conservadora no parlamento. Algumas das promessas que ela fez para conquistar esses votos foram ridicularizadas por especialistas. Ela assume o cargo com baixa popularidade e nenhuma responsabilidade real.

Enquanto isso, o partido de Truss está exausto. Os Tories estão no poder há 12 anos, e essa longevidade foi auxiliada em parte por um Partido Trabalhista cuja liderança se mostrou sistematicamente indesejada pelo eleitorado quando foram realizadas eleições gerais. O novo gabinete dela tem diversidade, mas a equipe foi pouco elogiada coletivamente. A revista Economist disse que um dos ministros dela, o secretário dos negócios Jacob Rees-Mogg, deveria ser “colocado em um museu, e não no comando de alguma coisa”.

Além das ameaças de alta no custo de vida e de um inverno de descontentamento, Truss enfrenta problemas no National Health Service, o perigo de instabilidade trabalhista e greves. Vai governar em um momento de desconfiança no governo, graças em parte à caótica liderança de Johnson. Agora, em um momento em que Truss deseja mostrar sua resistência e conquistar a confiança do público, a população está preocupada com a morte da rainha, com as cerimônias marcando o fim do seu reinado e a coroação de um novo rei, que precisa ele próprio conquistar a confiança do público.

Os desafios de Charles III

Faz tempo que Charles se prepara para suceder a mãe, sendo profundo conhecedor das responsabilidades de um chefe de estado. Aos 73 anos, ele conhece o mundo e muitos de seus líderes. Deixou claras algumas de suas preferências em se tratando de políticas públicas, especialmente no combate às mudanças climáticas, mas, enquanto monarca constitucional, deve limitar sua participação no debate público em relação a este e outros assuntos.

Começa seu reinado contando com a boa vontade do povo britânico, mas isso é diferente da confiança e do afeto que a rainha conquistou ao longo das décadas. Levará tempo para ele criar este vínculo com os britânicos e, importante notar, para que os povos do passado colonial britânico sustentem a comunidade.

O Reino Unido precisa agora de um novo começo. Por mais preparadas que as pessoas se considerassem para a morte de uma monarca de 96 anos, a realidade é bastante diferente. Com o prosseguimento dos eventos cerimoniais nos próximos dias e as homenagens à rainha, as questões envolvendo o futuro farão sombra na nova liderança do país. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

O Reino Unido está de luto, como estava 25 anos atrás. Na época, o país tinha acabado de se despedir da princesa Diana, a “princesa do povo”, como a descreveu o então primeiro-ministro Tony Blair horas após a morte dela em um acidente de carro em Paris. Diana foi sepultada em um dia de resplandecente beleza. Mais de um milhão de pessoas tinham formado fila nas ruas e parques de Londres para acompanhar seu cortejo fúnebre. A dor daquela morte continuava evidente dias depois.

A rainha Elizabeth II estava em Balmoral, sua casa de veraneio na Escócia, quando Diana morreu. Ela permaneceu ali no primeiro dia após o fato, e no dia seguinte, e no próximo. Com as flores dos enlutados se acumulando nos portões do Palácio de Buckingham e um país famoso pela frieza aristocrática se dissolvendo em lágrimas, a aparente indiferença de uma família real reservada foi simbolizada pelo mastro sem bandeira no alto do palácio, um ditame protocolar incompreensível para o público pesaroso.

O povo tinha tomado o partido de Diana durante seu divórcio do então príncipe Charles, agora rei Charles III, e sua ruptura com a família real. A decisão de Elizabeth de permanecer na Escócia enquanto o país chorava foi vista como outra demonstração real de frieza. Os tabloides britânicos amplificaram a inquietação do público com manchetes gritantes: “Onde está nossa rainha? Onde está a bandeira dela?” dizia o Sun. “Mostre-nos que se importa”, dizia o Express. “Seu povo está sofrendo”, disse o Mirror. “Fale conosco, majestade.”

Hoje, o Reino Unido está novamente enlutado, dessa vez em resposta à morte da rainha, aos 96 anos, tendo reinado por 70 anos, marca que dificilmente será igualada por outro monarca, seja onde for. As homenagens vieram de todas as partes do mundo. Hoje, as flores empilhadas nos portões de Buckingham são em memória a Elizabeth.

Tamanha manifestação de afeto talvez parecesse improvável 25 anos atrás, quando a rainha estava em baixa e dúvidas em relação à durabilidade (e até necessidade) da própria monarquia agitavam o debate público. Hoje, em um momento de desconfiança na maioria das instituições britânicas, a monarquia é bem-quista, graças exclusivamente a Elizabeth.

A rainha demonstrou ao longo de 70 anos esta capacidade de se adaptar e se modernizar. Como disse Blair em entrevista à CNN na sexta feira, depois que a rainha percebeu onde tinha errado em relação a Diana, ela conversou com a população “falando com sinceridade e, de certa forma, reaproximando o povo de si”.

A morte de Elizabeth ocorre em um momento de grandes desafios para o Reino Unido, tanto domésticos quanto internacionais. A liderança política do país enfrenta problemas econômicos em casa, dúvidas em relação ao papel britânico no mundo, relações tensas com a Europa e questões de longo prazo ligadas ao futuro da comunidade britânica. Um Reino Unido dividido enfrenta seu futuro sem a presença singular e unificadora que a rainha proporcionava.

Elizabeth II e a princesa Diana, em 1987  Foto: AP Photo/Martin Cleaver, File

Polarização x estabilidade

“Estabilidade” e “continuidade” são duas palavras quase sempre presentes em tudo que foi dito e escrito desde que a notícia da morte da rainha correu o mundo. Ela viveu o bastante para participar em junho da celebração do seu jubileu de prata. Sobreviveu por 17 meses à morte do amado companheiro e marido, príncipe Philip, duque de Edimburgo. Dois dias antes de morrer, ela deu as boas-vindas à nova primeira-ministra britânica, Liz Truss, a 15ª pessoa a chefiar o governo durante o longo reinado dela (a primeira foi Winston Churchill). Ela desempenhou suas tarefas até o derradeiro fim.

Se ela foi um símbolo de continuidade, a rainha não foi capaz de trazer estabilidade ao seu país. O papel do monarca é cerimonial. Cabe aos políticos enfrentar os problemas, que foram muitos nos anos finais do reinado de Elizabeth. Apenas nos seis anos mais recentes, o governo britânico teve quatro primeiros-ministros diferentes, com Boris Johnson obrigado a renunciar em meados deste ano em meio a múltiplos escândalos.

A rainha oferecia um contraponto para o caos e a divisão ao seu redor. Foi uma figura tão estável quanto reservada, jamais revelando o que realmente pensava dos primeiros-ministros, do passado da família e da agitação recente, da direção seguida pelos políticos e das políticas públicas. Tornou-se um símbolo das eras que passavam, com o Reino Unido evoluindo de um país que já comandou um controvertido império colonial para uma ilha mais humilde, cujo papel no mundo foi encolhendo gradualmente. No fim, ela se tornou objeto de respeito pela devoção demonstrada ao dever, um modelo de liderança em meio a um mundo bagunçado.

Tony Blair, Gordon Brown, Boris Johnson, David Cameron, Theresa May e John Major, além do líder trabalhista Keir Staimer, na proclamação de Charles III  Foto: Kirsty O'Connor/Pool via REUTERS

Com a saída dela, o Reino Unido se vê equilibrado entre a escolha de enfrentar o futuro sozinho ou na companhia dos outros. O país é um participante central da aliança da Otan que ajuda a Ucrânia na sua guerra contra a Rússia, mas não integra mais a União Europeia, optando por deixar o organismo em controvertida votação realizada em meados de 2016, declarando a própria independência econômica, nas palavras dos defensores da ideia. O plebiscito do Brexit manteve os britânicos divididos internamente e gerou conflitos duradouros com a UE.

As constantes trocas de comando em 10 Downing Street sublinham o quanto essa decisão foi prejudicial para a estabilidade do país. David Cameron, o primeiro-ministro de deu espaço para o referendo do Brexit, deixou o cargo quando o resultado foi diferente do que o esperado por ele. Sua sucessora, Theresa May, teve dificuldade para implementar a ruptura e acabou renunciando, com o próprio partido dividido. O extravagante Johnson chegou com a promessa de finalizar o rompimento com a UE, mas questões difíceis envolvendo o futuro da Irlanda do Norte seguem sem solução (e causaram até tensões com o presidente Biden, um americano orgulhoso de sua ascendência irlandesa).

Inflação e escassez de energia

As pontas soltas do Brexit são apenas um dos problemas enfrentados pela nova primeira-ministra, sem ser necessariamente o mais urgente. A economia britânica se vê diante de imensos desafios, com a projeção de uma crise de energia no próximo inverno que poderia levar a inflação para perto de 20%. O crescimento lento e uma produtividade que deixa a desejar são fardos que os britânicos suportam há mais de uma década.

Truss chega ao cargo sem ter passado por nenhum teste. Para vencer a disputa pela liderança do Partido Conservador que a conduziu ao cargo de primeira-ministra, ela buscou agradar um eleitorado muito específico e conservador que está longe de representar o país como um todo. Foi escolhida pelos votos de menos de 100 mil pessoas em um país de 67 milhões de habitantes e sem uma maioria conservadora no parlamento. Algumas das promessas que ela fez para conquistar esses votos foram ridicularizadas por especialistas. Ela assume o cargo com baixa popularidade e nenhuma responsabilidade real.

Enquanto isso, o partido de Truss está exausto. Os Tories estão no poder há 12 anos, e essa longevidade foi auxiliada em parte por um Partido Trabalhista cuja liderança se mostrou sistematicamente indesejada pelo eleitorado quando foram realizadas eleições gerais. O novo gabinete dela tem diversidade, mas a equipe foi pouco elogiada coletivamente. A revista Economist disse que um dos ministros dela, o secretário dos negócios Jacob Rees-Mogg, deveria ser “colocado em um museu, e não no comando de alguma coisa”.

Além das ameaças de alta no custo de vida e de um inverno de descontentamento, Truss enfrenta problemas no National Health Service, o perigo de instabilidade trabalhista e greves. Vai governar em um momento de desconfiança no governo, graças em parte à caótica liderança de Johnson. Agora, em um momento em que Truss deseja mostrar sua resistência e conquistar a confiança do público, a população está preocupada com a morte da rainha, com as cerimônias marcando o fim do seu reinado e a coroação de um novo rei, que precisa ele próprio conquistar a confiança do público.

Os desafios de Charles III

Faz tempo que Charles se prepara para suceder a mãe, sendo profundo conhecedor das responsabilidades de um chefe de estado. Aos 73 anos, ele conhece o mundo e muitos de seus líderes. Deixou claras algumas de suas preferências em se tratando de políticas públicas, especialmente no combate às mudanças climáticas, mas, enquanto monarca constitucional, deve limitar sua participação no debate público em relação a este e outros assuntos.

Começa seu reinado contando com a boa vontade do povo britânico, mas isso é diferente da confiança e do afeto que a rainha conquistou ao longo das décadas. Levará tempo para ele criar este vínculo com os britânicos e, importante notar, para que os povos do passado colonial britânico sustentem a comunidade.

O Reino Unido precisa agora de um novo começo. Por mais preparadas que as pessoas se considerassem para a morte de uma monarca de 96 anos, a realidade é bastante diferente. Com o prosseguimento dos eventos cerimoniais nos próximos dias e as homenagens à rainha, as questões envolvendo o futuro farão sombra na nova liderança do país. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

O Reino Unido está de luto, como estava 25 anos atrás. Na época, o país tinha acabado de se despedir da princesa Diana, a “princesa do povo”, como a descreveu o então primeiro-ministro Tony Blair horas após a morte dela em um acidente de carro em Paris. Diana foi sepultada em um dia de resplandecente beleza. Mais de um milhão de pessoas tinham formado fila nas ruas e parques de Londres para acompanhar seu cortejo fúnebre. A dor daquela morte continuava evidente dias depois.

A rainha Elizabeth II estava em Balmoral, sua casa de veraneio na Escócia, quando Diana morreu. Ela permaneceu ali no primeiro dia após o fato, e no dia seguinte, e no próximo. Com as flores dos enlutados se acumulando nos portões do Palácio de Buckingham e um país famoso pela frieza aristocrática se dissolvendo em lágrimas, a aparente indiferença de uma família real reservada foi simbolizada pelo mastro sem bandeira no alto do palácio, um ditame protocolar incompreensível para o público pesaroso.

O povo tinha tomado o partido de Diana durante seu divórcio do então príncipe Charles, agora rei Charles III, e sua ruptura com a família real. A decisão de Elizabeth de permanecer na Escócia enquanto o país chorava foi vista como outra demonstração real de frieza. Os tabloides britânicos amplificaram a inquietação do público com manchetes gritantes: “Onde está nossa rainha? Onde está a bandeira dela?” dizia o Sun. “Mostre-nos que se importa”, dizia o Express. “Seu povo está sofrendo”, disse o Mirror. “Fale conosco, majestade.”

Hoje, o Reino Unido está novamente enlutado, dessa vez em resposta à morte da rainha, aos 96 anos, tendo reinado por 70 anos, marca que dificilmente será igualada por outro monarca, seja onde for. As homenagens vieram de todas as partes do mundo. Hoje, as flores empilhadas nos portões de Buckingham são em memória a Elizabeth.

Tamanha manifestação de afeto talvez parecesse improvável 25 anos atrás, quando a rainha estava em baixa e dúvidas em relação à durabilidade (e até necessidade) da própria monarquia agitavam o debate público. Hoje, em um momento de desconfiança na maioria das instituições britânicas, a monarquia é bem-quista, graças exclusivamente a Elizabeth.

A rainha demonstrou ao longo de 70 anos esta capacidade de se adaptar e se modernizar. Como disse Blair em entrevista à CNN na sexta feira, depois que a rainha percebeu onde tinha errado em relação a Diana, ela conversou com a população “falando com sinceridade e, de certa forma, reaproximando o povo de si”.

A morte de Elizabeth ocorre em um momento de grandes desafios para o Reino Unido, tanto domésticos quanto internacionais. A liderança política do país enfrenta problemas econômicos em casa, dúvidas em relação ao papel britânico no mundo, relações tensas com a Europa e questões de longo prazo ligadas ao futuro da comunidade britânica. Um Reino Unido dividido enfrenta seu futuro sem a presença singular e unificadora que a rainha proporcionava.

Elizabeth II e a princesa Diana, em 1987  Foto: AP Photo/Martin Cleaver, File

Polarização x estabilidade

“Estabilidade” e “continuidade” são duas palavras quase sempre presentes em tudo que foi dito e escrito desde que a notícia da morte da rainha correu o mundo. Ela viveu o bastante para participar em junho da celebração do seu jubileu de prata. Sobreviveu por 17 meses à morte do amado companheiro e marido, príncipe Philip, duque de Edimburgo. Dois dias antes de morrer, ela deu as boas-vindas à nova primeira-ministra britânica, Liz Truss, a 15ª pessoa a chefiar o governo durante o longo reinado dela (a primeira foi Winston Churchill). Ela desempenhou suas tarefas até o derradeiro fim.

Se ela foi um símbolo de continuidade, a rainha não foi capaz de trazer estabilidade ao seu país. O papel do monarca é cerimonial. Cabe aos políticos enfrentar os problemas, que foram muitos nos anos finais do reinado de Elizabeth. Apenas nos seis anos mais recentes, o governo britânico teve quatro primeiros-ministros diferentes, com Boris Johnson obrigado a renunciar em meados deste ano em meio a múltiplos escândalos.

A rainha oferecia um contraponto para o caos e a divisão ao seu redor. Foi uma figura tão estável quanto reservada, jamais revelando o que realmente pensava dos primeiros-ministros, do passado da família e da agitação recente, da direção seguida pelos políticos e das políticas públicas. Tornou-se um símbolo das eras que passavam, com o Reino Unido evoluindo de um país que já comandou um controvertido império colonial para uma ilha mais humilde, cujo papel no mundo foi encolhendo gradualmente. No fim, ela se tornou objeto de respeito pela devoção demonstrada ao dever, um modelo de liderança em meio a um mundo bagunçado.

Tony Blair, Gordon Brown, Boris Johnson, David Cameron, Theresa May e John Major, além do líder trabalhista Keir Staimer, na proclamação de Charles III  Foto: Kirsty O'Connor/Pool via REUTERS

Com a saída dela, o Reino Unido se vê equilibrado entre a escolha de enfrentar o futuro sozinho ou na companhia dos outros. O país é um participante central da aliança da Otan que ajuda a Ucrânia na sua guerra contra a Rússia, mas não integra mais a União Europeia, optando por deixar o organismo em controvertida votação realizada em meados de 2016, declarando a própria independência econômica, nas palavras dos defensores da ideia. O plebiscito do Brexit manteve os britânicos divididos internamente e gerou conflitos duradouros com a UE.

As constantes trocas de comando em 10 Downing Street sublinham o quanto essa decisão foi prejudicial para a estabilidade do país. David Cameron, o primeiro-ministro de deu espaço para o referendo do Brexit, deixou o cargo quando o resultado foi diferente do que o esperado por ele. Sua sucessora, Theresa May, teve dificuldade para implementar a ruptura e acabou renunciando, com o próprio partido dividido. O extravagante Johnson chegou com a promessa de finalizar o rompimento com a UE, mas questões difíceis envolvendo o futuro da Irlanda do Norte seguem sem solução (e causaram até tensões com o presidente Biden, um americano orgulhoso de sua ascendência irlandesa).

Inflação e escassez de energia

As pontas soltas do Brexit são apenas um dos problemas enfrentados pela nova primeira-ministra, sem ser necessariamente o mais urgente. A economia britânica se vê diante de imensos desafios, com a projeção de uma crise de energia no próximo inverno que poderia levar a inflação para perto de 20%. O crescimento lento e uma produtividade que deixa a desejar são fardos que os britânicos suportam há mais de uma década.

Truss chega ao cargo sem ter passado por nenhum teste. Para vencer a disputa pela liderança do Partido Conservador que a conduziu ao cargo de primeira-ministra, ela buscou agradar um eleitorado muito específico e conservador que está longe de representar o país como um todo. Foi escolhida pelos votos de menos de 100 mil pessoas em um país de 67 milhões de habitantes e sem uma maioria conservadora no parlamento. Algumas das promessas que ela fez para conquistar esses votos foram ridicularizadas por especialistas. Ela assume o cargo com baixa popularidade e nenhuma responsabilidade real.

Enquanto isso, o partido de Truss está exausto. Os Tories estão no poder há 12 anos, e essa longevidade foi auxiliada em parte por um Partido Trabalhista cuja liderança se mostrou sistematicamente indesejada pelo eleitorado quando foram realizadas eleições gerais. O novo gabinete dela tem diversidade, mas a equipe foi pouco elogiada coletivamente. A revista Economist disse que um dos ministros dela, o secretário dos negócios Jacob Rees-Mogg, deveria ser “colocado em um museu, e não no comando de alguma coisa”.

Além das ameaças de alta no custo de vida e de um inverno de descontentamento, Truss enfrenta problemas no National Health Service, o perigo de instabilidade trabalhista e greves. Vai governar em um momento de desconfiança no governo, graças em parte à caótica liderança de Johnson. Agora, em um momento em que Truss deseja mostrar sua resistência e conquistar a confiança do público, a população está preocupada com a morte da rainha, com as cerimônias marcando o fim do seu reinado e a coroação de um novo rei, que precisa ele próprio conquistar a confiança do público.

Os desafios de Charles III

Faz tempo que Charles se prepara para suceder a mãe, sendo profundo conhecedor das responsabilidades de um chefe de estado. Aos 73 anos, ele conhece o mundo e muitos de seus líderes. Deixou claras algumas de suas preferências em se tratando de políticas públicas, especialmente no combate às mudanças climáticas, mas, enquanto monarca constitucional, deve limitar sua participação no debate público em relação a este e outros assuntos.

Começa seu reinado contando com a boa vontade do povo britânico, mas isso é diferente da confiança e do afeto que a rainha conquistou ao longo das décadas. Levará tempo para ele criar este vínculo com os britânicos e, importante notar, para que os povos do passado colonial britânico sustentem a comunidade.

O Reino Unido precisa agora de um novo começo. Por mais preparadas que as pessoas se considerassem para a morte de uma monarca de 96 anos, a realidade é bastante diferente. Com o prosseguimento dos eventos cerimoniais nos próximos dias e as homenagens à rainha, as questões envolvendo o futuro farão sombra na nova liderança do país. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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