O absurdo de uma guerra fria com a China


China é rotulada como uma ameaça “existencial” para os EUA e se fala de uma nova guerra fria, mas aproximação cultural entre os dois países é maior do que parece

Por Jacob Dreyer*

XANGAI — Eu usei cuecas vermelhas durante grande parte do ano passado.

Era Ano do Tigre, meu signo zodíaco chinês, quando a tradição afirma que a má sorte nos espreita. Roupas de baixo vermelhas são destinadas a manter a gente a salvo, porque os demônios chineses supostamente odeiam a cor.

Não funcionou.

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O ano foi difícil. Ao longo da maior parte de 2022 nós permanecemos extirpados do mundo, trancados pela estrita política pandêmica da China. Xangai, meu lar na década recente, foi submetida a um lockdown anticovid particularmente traumático, que nos manteve confinados em nossas residências por dois meses, a partir do fim de março, com dificuldades para obter alimentos. Quando estávamos trancados, nós descobrimos que minha mulher, que é chinesa, estava grávida. Foi necessária uma combinação entre ruído estridente e pedidos desesperados para as autoridades locais nos levarem até um hospital para exames de pré-natal.

Mulher caminha em parque público de Pequim, na China, em imagem do dia 23 de março. Relações tensas entre EUA e China desconsideram similaridades entre as duas nações Foto: Mark Schiefelbein/Associated Press

Quando o lockdown acabou, em junho, eu emergi de olhos cerrados, ofuscados pela luz do sol, para descobrir que a China tinha sido transformada em inimiga dos Estados Unidos. O secretário de Estado americano, Antony Blinken, classificava a China como uma ameaça a “valores universais”, em uma terminologia que me fez pensar a respeito da política de contenção dos EUA em relação à ex-União Soviética. A retórica só fez endurecer desde então. Hoje, a China é rotulada como uma ameaça “existencial” para os EUA; fala-se de uma nova guerra fria.

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É mesmo? Nós temos então de travar uma nova guerra fria?

De Xangai, a ideia parece absurda. O povo da cidade é submerso na cultura americana, todos cresceram usando iPhones, tomando café Starbucks, acompanhando os jogos da NBA e aperfeiçoando seu inglês coloquial assistindo “Friends” (existe até um café com a temática “Friends” em Xangai, projetado para se parecer com a Central Perk, a cafeteria da série).

Tenho amigos chineses que estudaram nos EUA e ouvem música pop americana. Minha mulher assistia vídeos de influenciadores americanos sobre cuidados parentais. Lojas de roupas vintage, um clube de jazz e blues chamado Jazz at Lincoln Center Shanghai, o campus da NYU em Xangai — a cidade se compara incessantemente e autoconscientemente com Nova York. Os estilos de vida e percepções de muitos chineses urbanos são mais parecidos aos americanos do que aos de seus pais (e de maneira similar, muitos jovens americanos têm visões mais favoráveis à China do que a geração anterior).

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Meu trabalho se situa na intersecção desses mundos. Eu edito livros de escritores chineses sobre a política e a economia de seu país, publicando-os em inglês para que o Ocidente seja capaz de compreender sua visão. Nós temos de tentar entender o que eles estão pensando; eles herdaram medos, traumas, ressentimentos e conflitos intergeracionais que moldam a maneira que interagem conosco.

Os slogans da Revolução Cultural estão sob a tinta das fachadas dos novos restaurantes descolados de Xangai, ainda visíveis em certos pontos, apesar de quase totalmente apagados, como cicatrizes na psique de uma geração mais velha que contribui para um conservadorismo paranoico. Esse trauma é pouquíssimo compreendido pelos chineses mais jovens, sob o escudo da censura e de um código de silêncio por conhecer em detalhe os horrores do passado recente da China. A China é uma sociedade diversa, com visões em disputa para o futuro, uma nação que se reconstrói constantemente.

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Os influentes acadêmicos chineses com os quais eu trabalho ainda mantêm um profundo respeito pelos EUA, seus valores e sua sociedade civil. De fato, muitos dos chineses que conheço confiam mais na durabilidade dos EUA do que alguns colegas ansiosos dentro do país, que se inquietam com o trumpismo e o que eles percebem como outras ameaças à democracia e aos valores liberais.

Trânsito de Pequim em imagem do dia 17 de março deste ano. China foi profundamente influenciada pela sociedade e a cultura dos EUA Foto: Mark Schiefelbein/Associated Press

Zheng Yongnian, professor com PhD em Princeton e especialista na posição chinesa em mutação no mundo, disse-me que a visão nacionalista chinesa de uma China em ascensão e os EUA em declínio está longe de ser universalmente aceita por aqui — e que “muita gente, eu incluído, continua positiva em relação aos EUA”. O economista Yao Yang, que defende um fortalecimento dos sistemas de seguridade e previdência social na China, inspirou-se com as ideias do político progressista Robert La Follette, de Wisconsin, onde Yao cursou seu doutorado.

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Alguns intelectuais importantes dizem-me que se ressentem de influenciadores chineses online e nacionalistas em redes sociais pela mesma razão que a Fox News me desagrada: eles são oportunistas, enfraquecendo seu país com mentiras.

Nacionalistas chineses, esquerdistas, economistas liberais — é difícil encontrar algum pensador chinês vivo que não tenha sido profundamente influenciado pela sociedade e a cultura dos EUA. Os americanos foram uma das estrelas-guia da China ao longo de sua era de reforma, que começou no fim dos anos 70 e continua a transformar o país. Para os que visitaram os EUA, com frequência como estudantes, essa foi a experiência de aprendizagem mais transformadora de suas vidas, nutrindo um impulso de tornar seu país mais moderno, mais forte, melhor.

A história revisionista empunhada por conservadores tanto na China quanto nos EUA ameaça trazer de volta o temerário militarismo da Guerra Fria original, com golpes de Estado e conflitos por procuração. Os americanos dizem para si mesmos que venceram porque eram os caras do bem, uma terminologia simplista que tem sido ressuscitada no Congresso.

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Mas nós só podemos ter esperança de continuar a ser os sujeitos do bem nos apegando a valores como liberdade de expressão, generosidade e confiança de que nossa cultura é capaz de resistir a desafios. Infelizmente, esses valores são ameaçados quando a lealdade aos EUA da deputada americana de ascendência chinesa Judy Chu é questionada por um de seus colegas no Congresso. Eles são ameaçados quando um projeto de lei apresentado à legislatura do Texas pretende banir estudantes chineses das universidades do Estado. E quando nós aprofundamos relações com líderes duvidosos, como o presidente Ferdinand Marcos Jr, das Filipinas, filho do ex-ditador corrupto e brutal, e aumentamos nossa presença militar em seu país.

Nós poderíamos vencer uma guerra fria com a China mas ainda assim perder parte do que nos torna grandes. Nós derrubamos Saddam Hussein e incapacitamos a Al-Qaeda, mas sob o custo de menos liberdade dentro dos EUA por meio de poderes ampliados para a NSA, da Lei Patriota e da ferida purulenta da Baía de Guantánamo.

Os EUA podem importunar o quanto quiserem a China sobre suas falhas. Mas nosso objetivo em última instância é marcar pontos políticos ou viver em um mundo pacífico, no qual cooperamos em relação a problemas reais, como as mudanças climáticas? Os EUA são mais fortes quando lideram dando exemplo, permanecendo abertos, generosos e livres.

Meu filho, produto dessas duas grandes nações, nasceu em Xangai, em novembro. Quando o seguro no colo, eu imagino se uma guerra ou outros problemas poderiam levar à nossa deportação ou forçar escolhas difíceis sobre seu pai americano e sua mãe chinesa. O povo chinês ainda é acolhedor: desconhecidos às vezes se aproximam de mim para dizer que gostam de ter estrangeiros em seu país; ou para dizer “USA, number one!” (EUA, número um!).

Esses momentos carinhosos e encorajadores não têm de desaparecer. Mas nós temos de fazer escolhas inteligentes. Nós escolhemos cancelar uma importante visita diplomática à China por causa de um balão; mas poderíamos ter escolhido seguir adiante.

Eu acabo de retornar para Xangai de minha primeira viagem à Virgínia, onde nasci, em três anos. E fiquei aliviado ao não sentir nenhuma beligerância em relação à China por lá. Muitos concordaram comigo na opinião de que nossas atitudes e retóricas políticas não fazem nenhum sentido.

Talvez encontremos uma maneira melhor de avançar. Mas continuarei usando cuecas vermelhas, só para garantir. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

XANGAI — Eu usei cuecas vermelhas durante grande parte do ano passado.

Era Ano do Tigre, meu signo zodíaco chinês, quando a tradição afirma que a má sorte nos espreita. Roupas de baixo vermelhas são destinadas a manter a gente a salvo, porque os demônios chineses supostamente odeiam a cor.

Não funcionou.

O ano foi difícil. Ao longo da maior parte de 2022 nós permanecemos extirpados do mundo, trancados pela estrita política pandêmica da China. Xangai, meu lar na década recente, foi submetida a um lockdown anticovid particularmente traumático, que nos manteve confinados em nossas residências por dois meses, a partir do fim de março, com dificuldades para obter alimentos. Quando estávamos trancados, nós descobrimos que minha mulher, que é chinesa, estava grávida. Foi necessária uma combinação entre ruído estridente e pedidos desesperados para as autoridades locais nos levarem até um hospital para exames de pré-natal.

Mulher caminha em parque público de Pequim, na China, em imagem do dia 23 de março. Relações tensas entre EUA e China desconsideram similaridades entre as duas nações Foto: Mark Schiefelbein/Associated Press

Quando o lockdown acabou, em junho, eu emergi de olhos cerrados, ofuscados pela luz do sol, para descobrir que a China tinha sido transformada em inimiga dos Estados Unidos. O secretário de Estado americano, Antony Blinken, classificava a China como uma ameaça a “valores universais”, em uma terminologia que me fez pensar a respeito da política de contenção dos EUA em relação à ex-União Soviética. A retórica só fez endurecer desde então. Hoje, a China é rotulada como uma ameaça “existencial” para os EUA; fala-se de uma nova guerra fria.

É mesmo? Nós temos então de travar uma nova guerra fria?

De Xangai, a ideia parece absurda. O povo da cidade é submerso na cultura americana, todos cresceram usando iPhones, tomando café Starbucks, acompanhando os jogos da NBA e aperfeiçoando seu inglês coloquial assistindo “Friends” (existe até um café com a temática “Friends” em Xangai, projetado para se parecer com a Central Perk, a cafeteria da série).

Tenho amigos chineses que estudaram nos EUA e ouvem música pop americana. Minha mulher assistia vídeos de influenciadores americanos sobre cuidados parentais. Lojas de roupas vintage, um clube de jazz e blues chamado Jazz at Lincoln Center Shanghai, o campus da NYU em Xangai — a cidade se compara incessantemente e autoconscientemente com Nova York. Os estilos de vida e percepções de muitos chineses urbanos são mais parecidos aos americanos do que aos de seus pais (e de maneira similar, muitos jovens americanos têm visões mais favoráveis à China do que a geração anterior).

Meu trabalho se situa na intersecção desses mundos. Eu edito livros de escritores chineses sobre a política e a economia de seu país, publicando-os em inglês para que o Ocidente seja capaz de compreender sua visão. Nós temos de tentar entender o que eles estão pensando; eles herdaram medos, traumas, ressentimentos e conflitos intergeracionais que moldam a maneira que interagem conosco.

Os slogans da Revolução Cultural estão sob a tinta das fachadas dos novos restaurantes descolados de Xangai, ainda visíveis em certos pontos, apesar de quase totalmente apagados, como cicatrizes na psique de uma geração mais velha que contribui para um conservadorismo paranoico. Esse trauma é pouquíssimo compreendido pelos chineses mais jovens, sob o escudo da censura e de um código de silêncio por conhecer em detalhe os horrores do passado recente da China. A China é uma sociedade diversa, com visões em disputa para o futuro, uma nação que se reconstrói constantemente.

Os influentes acadêmicos chineses com os quais eu trabalho ainda mantêm um profundo respeito pelos EUA, seus valores e sua sociedade civil. De fato, muitos dos chineses que conheço confiam mais na durabilidade dos EUA do que alguns colegas ansiosos dentro do país, que se inquietam com o trumpismo e o que eles percebem como outras ameaças à democracia e aos valores liberais.

Trânsito de Pequim em imagem do dia 17 de março deste ano. China foi profundamente influenciada pela sociedade e a cultura dos EUA Foto: Mark Schiefelbein/Associated Press

Zheng Yongnian, professor com PhD em Princeton e especialista na posição chinesa em mutação no mundo, disse-me que a visão nacionalista chinesa de uma China em ascensão e os EUA em declínio está longe de ser universalmente aceita por aqui — e que “muita gente, eu incluído, continua positiva em relação aos EUA”. O economista Yao Yang, que defende um fortalecimento dos sistemas de seguridade e previdência social na China, inspirou-se com as ideias do político progressista Robert La Follette, de Wisconsin, onde Yao cursou seu doutorado.

Alguns intelectuais importantes dizem-me que se ressentem de influenciadores chineses online e nacionalistas em redes sociais pela mesma razão que a Fox News me desagrada: eles são oportunistas, enfraquecendo seu país com mentiras.

Nacionalistas chineses, esquerdistas, economistas liberais — é difícil encontrar algum pensador chinês vivo que não tenha sido profundamente influenciado pela sociedade e a cultura dos EUA. Os americanos foram uma das estrelas-guia da China ao longo de sua era de reforma, que começou no fim dos anos 70 e continua a transformar o país. Para os que visitaram os EUA, com frequência como estudantes, essa foi a experiência de aprendizagem mais transformadora de suas vidas, nutrindo um impulso de tornar seu país mais moderno, mais forte, melhor.

A história revisionista empunhada por conservadores tanto na China quanto nos EUA ameaça trazer de volta o temerário militarismo da Guerra Fria original, com golpes de Estado e conflitos por procuração. Os americanos dizem para si mesmos que venceram porque eram os caras do bem, uma terminologia simplista que tem sido ressuscitada no Congresso.

Mas nós só podemos ter esperança de continuar a ser os sujeitos do bem nos apegando a valores como liberdade de expressão, generosidade e confiança de que nossa cultura é capaz de resistir a desafios. Infelizmente, esses valores são ameaçados quando a lealdade aos EUA da deputada americana de ascendência chinesa Judy Chu é questionada por um de seus colegas no Congresso. Eles são ameaçados quando um projeto de lei apresentado à legislatura do Texas pretende banir estudantes chineses das universidades do Estado. E quando nós aprofundamos relações com líderes duvidosos, como o presidente Ferdinand Marcos Jr, das Filipinas, filho do ex-ditador corrupto e brutal, e aumentamos nossa presença militar em seu país.

Nós poderíamos vencer uma guerra fria com a China mas ainda assim perder parte do que nos torna grandes. Nós derrubamos Saddam Hussein e incapacitamos a Al-Qaeda, mas sob o custo de menos liberdade dentro dos EUA por meio de poderes ampliados para a NSA, da Lei Patriota e da ferida purulenta da Baía de Guantánamo.

Os EUA podem importunar o quanto quiserem a China sobre suas falhas. Mas nosso objetivo em última instância é marcar pontos políticos ou viver em um mundo pacífico, no qual cooperamos em relação a problemas reais, como as mudanças climáticas? Os EUA são mais fortes quando lideram dando exemplo, permanecendo abertos, generosos e livres.

Meu filho, produto dessas duas grandes nações, nasceu em Xangai, em novembro. Quando o seguro no colo, eu imagino se uma guerra ou outros problemas poderiam levar à nossa deportação ou forçar escolhas difíceis sobre seu pai americano e sua mãe chinesa. O povo chinês ainda é acolhedor: desconhecidos às vezes se aproximam de mim para dizer que gostam de ter estrangeiros em seu país; ou para dizer “USA, number one!” (EUA, número um!).

Esses momentos carinhosos e encorajadores não têm de desaparecer. Mas nós temos de fazer escolhas inteligentes. Nós escolhemos cancelar uma importante visita diplomática à China por causa de um balão; mas poderíamos ter escolhido seguir adiante.

Eu acabo de retornar para Xangai de minha primeira viagem à Virgínia, onde nasci, em três anos. E fiquei aliviado ao não sentir nenhuma beligerância em relação à China por lá. Muitos concordaram comigo na opinião de que nossas atitudes e retóricas políticas não fazem nenhum sentido.

Talvez encontremos uma maneira melhor de avançar. Mas continuarei usando cuecas vermelhas, só para garantir. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

XANGAI — Eu usei cuecas vermelhas durante grande parte do ano passado.

Era Ano do Tigre, meu signo zodíaco chinês, quando a tradição afirma que a má sorte nos espreita. Roupas de baixo vermelhas são destinadas a manter a gente a salvo, porque os demônios chineses supostamente odeiam a cor.

Não funcionou.

O ano foi difícil. Ao longo da maior parte de 2022 nós permanecemos extirpados do mundo, trancados pela estrita política pandêmica da China. Xangai, meu lar na década recente, foi submetida a um lockdown anticovid particularmente traumático, que nos manteve confinados em nossas residências por dois meses, a partir do fim de março, com dificuldades para obter alimentos. Quando estávamos trancados, nós descobrimos que minha mulher, que é chinesa, estava grávida. Foi necessária uma combinação entre ruído estridente e pedidos desesperados para as autoridades locais nos levarem até um hospital para exames de pré-natal.

Mulher caminha em parque público de Pequim, na China, em imagem do dia 23 de março. Relações tensas entre EUA e China desconsideram similaridades entre as duas nações Foto: Mark Schiefelbein/Associated Press

Quando o lockdown acabou, em junho, eu emergi de olhos cerrados, ofuscados pela luz do sol, para descobrir que a China tinha sido transformada em inimiga dos Estados Unidos. O secretário de Estado americano, Antony Blinken, classificava a China como uma ameaça a “valores universais”, em uma terminologia que me fez pensar a respeito da política de contenção dos EUA em relação à ex-União Soviética. A retórica só fez endurecer desde então. Hoje, a China é rotulada como uma ameaça “existencial” para os EUA; fala-se de uma nova guerra fria.

É mesmo? Nós temos então de travar uma nova guerra fria?

De Xangai, a ideia parece absurda. O povo da cidade é submerso na cultura americana, todos cresceram usando iPhones, tomando café Starbucks, acompanhando os jogos da NBA e aperfeiçoando seu inglês coloquial assistindo “Friends” (existe até um café com a temática “Friends” em Xangai, projetado para se parecer com a Central Perk, a cafeteria da série).

Tenho amigos chineses que estudaram nos EUA e ouvem música pop americana. Minha mulher assistia vídeos de influenciadores americanos sobre cuidados parentais. Lojas de roupas vintage, um clube de jazz e blues chamado Jazz at Lincoln Center Shanghai, o campus da NYU em Xangai — a cidade se compara incessantemente e autoconscientemente com Nova York. Os estilos de vida e percepções de muitos chineses urbanos são mais parecidos aos americanos do que aos de seus pais (e de maneira similar, muitos jovens americanos têm visões mais favoráveis à China do que a geração anterior).

Meu trabalho se situa na intersecção desses mundos. Eu edito livros de escritores chineses sobre a política e a economia de seu país, publicando-os em inglês para que o Ocidente seja capaz de compreender sua visão. Nós temos de tentar entender o que eles estão pensando; eles herdaram medos, traumas, ressentimentos e conflitos intergeracionais que moldam a maneira que interagem conosco.

Os slogans da Revolução Cultural estão sob a tinta das fachadas dos novos restaurantes descolados de Xangai, ainda visíveis em certos pontos, apesar de quase totalmente apagados, como cicatrizes na psique de uma geração mais velha que contribui para um conservadorismo paranoico. Esse trauma é pouquíssimo compreendido pelos chineses mais jovens, sob o escudo da censura e de um código de silêncio por conhecer em detalhe os horrores do passado recente da China. A China é uma sociedade diversa, com visões em disputa para o futuro, uma nação que se reconstrói constantemente.

Os influentes acadêmicos chineses com os quais eu trabalho ainda mantêm um profundo respeito pelos EUA, seus valores e sua sociedade civil. De fato, muitos dos chineses que conheço confiam mais na durabilidade dos EUA do que alguns colegas ansiosos dentro do país, que se inquietam com o trumpismo e o que eles percebem como outras ameaças à democracia e aos valores liberais.

Trânsito de Pequim em imagem do dia 17 de março deste ano. China foi profundamente influenciada pela sociedade e a cultura dos EUA Foto: Mark Schiefelbein/Associated Press

Zheng Yongnian, professor com PhD em Princeton e especialista na posição chinesa em mutação no mundo, disse-me que a visão nacionalista chinesa de uma China em ascensão e os EUA em declínio está longe de ser universalmente aceita por aqui — e que “muita gente, eu incluído, continua positiva em relação aos EUA”. O economista Yao Yang, que defende um fortalecimento dos sistemas de seguridade e previdência social na China, inspirou-se com as ideias do político progressista Robert La Follette, de Wisconsin, onde Yao cursou seu doutorado.

Alguns intelectuais importantes dizem-me que se ressentem de influenciadores chineses online e nacionalistas em redes sociais pela mesma razão que a Fox News me desagrada: eles são oportunistas, enfraquecendo seu país com mentiras.

Nacionalistas chineses, esquerdistas, economistas liberais — é difícil encontrar algum pensador chinês vivo que não tenha sido profundamente influenciado pela sociedade e a cultura dos EUA. Os americanos foram uma das estrelas-guia da China ao longo de sua era de reforma, que começou no fim dos anos 70 e continua a transformar o país. Para os que visitaram os EUA, com frequência como estudantes, essa foi a experiência de aprendizagem mais transformadora de suas vidas, nutrindo um impulso de tornar seu país mais moderno, mais forte, melhor.

A história revisionista empunhada por conservadores tanto na China quanto nos EUA ameaça trazer de volta o temerário militarismo da Guerra Fria original, com golpes de Estado e conflitos por procuração. Os americanos dizem para si mesmos que venceram porque eram os caras do bem, uma terminologia simplista que tem sido ressuscitada no Congresso.

Mas nós só podemos ter esperança de continuar a ser os sujeitos do bem nos apegando a valores como liberdade de expressão, generosidade e confiança de que nossa cultura é capaz de resistir a desafios. Infelizmente, esses valores são ameaçados quando a lealdade aos EUA da deputada americana de ascendência chinesa Judy Chu é questionada por um de seus colegas no Congresso. Eles são ameaçados quando um projeto de lei apresentado à legislatura do Texas pretende banir estudantes chineses das universidades do Estado. E quando nós aprofundamos relações com líderes duvidosos, como o presidente Ferdinand Marcos Jr, das Filipinas, filho do ex-ditador corrupto e brutal, e aumentamos nossa presença militar em seu país.

Nós poderíamos vencer uma guerra fria com a China mas ainda assim perder parte do que nos torna grandes. Nós derrubamos Saddam Hussein e incapacitamos a Al-Qaeda, mas sob o custo de menos liberdade dentro dos EUA por meio de poderes ampliados para a NSA, da Lei Patriota e da ferida purulenta da Baía de Guantánamo.

Os EUA podem importunar o quanto quiserem a China sobre suas falhas. Mas nosso objetivo em última instância é marcar pontos políticos ou viver em um mundo pacífico, no qual cooperamos em relação a problemas reais, como as mudanças climáticas? Os EUA são mais fortes quando lideram dando exemplo, permanecendo abertos, generosos e livres.

Meu filho, produto dessas duas grandes nações, nasceu em Xangai, em novembro. Quando o seguro no colo, eu imagino se uma guerra ou outros problemas poderiam levar à nossa deportação ou forçar escolhas difíceis sobre seu pai americano e sua mãe chinesa. O povo chinês ainda é acolhedor: desconhecidos às vezes se aproximam de mim para dizer que gostam de ter estrangeiros em seu país; ou para dizer “USA, number one!” (EUA, número um!).

Esses momentos carinhosos e encorajadores não têm de desaparecer. Mas nós temos de fazer escolhas inteligentes. Nós escolhemos cancelar uma importante visita diplomática à China por causa de um balão; mas poderíamos ter escolhido seguir adiante.

Eu acabo de retornar para Xangai de minha primeira viagem à Virgínia, onde nasci, em três anos. E fiquei aliviado ao não sentir nenhuma beligerância em relação à China por lá. Muitos concordaram comigo na opinião de que nossas atitudes e retóricas políticas não fazem nenhum sentido.

Talvez encontremos uma maneira melhor de avançar. Mas continuarei usando cuecas vermelhas, só para garantir. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

XANGAI — Eu usei cuecas vermelhas durante grande parte do ano passado.

Era Ano do Tigre, meu signo zodíaco chinês, quando a tradição afirma que a má sorte nos espreita. Roupas de baixo vermelhas são destinadas a manter a gente a salvo, porque os demônios chineses supostamente odeiam a cor.

Não funcionou.

O ano foi difícil. Ao longo da maior parte de 2022 nós permanecemos extirpados do mundo, trancados pela estrita política pandêmica da China. Xangai, meu lar na década recente, foi submetida a um lockdown anticovid particularmente traumático, que nos manteve confinados em nossas residências por dois meses, a partir do fim de março, com dificuldades para obter alimentos. Quando estávamos trancados, nós descobrimos que minha mulher, que é chinesa, estava grávida. Foi necessária uma combinação entre ruído estridente e pedidos desesperados para as autoridades locais nos levarem até um hospital para exames de pré-natal.

Mulher caminha em parque público de Pequim, na China, em imagem do dia 23 de março. Relações tensas entre EUA e China desconsideram similaridades entre as duas nações Foto: Mark Schiefelbein/Associated Press

Quando o lockdown acabou, em junho, eu emergi de olhos cerrados, ofuscados pela luz do sol, para descobrir que a China tinha sido transformada em inimiga dos Estados Unidos. O secretário de Estado americano, Antony Blinken, classificava a China como uma ameaça a “valores universais”, em uma terminologia que me fez pensar a respeito da política de contenção dos EUA em relação à ex-União Soviética. A retórica só fez endurecer desde então. Hoje, a China é rotulada como uma ameaça “existencial” para os EUA; fala-se de uma nova guerra fria.

É mesmo? Nós temos então de travar uma nova guerra fria?

De Xangai, a ideia parece absurda. O povo da cidade é submerso na cultura americana, todos cresceram usando iPhones, tomando café Starbucks, acompanhando os jogos da NBA e aperfeiçoando seu inglês coloquial assistindo “Friends” (existe até um café com a temática “Friends” em Xangai, projetado para se parecer com a Central Perk, a cafeteria da série).

Tenho amigos chineses que estudaram nos EUA e ouvem música pop americana. Minha mulher assistia vídeos de influenciadores americanos sobre cuidados parentais. Lojas de roupas vintage, um clube de jazz e blues chamado Jazz at Lincoln Center Shanghai, o campus da NYU em Xangai — a cidade se compara incessantemente e autoconscientemente com Nova York. Os estilos de vida e percepções de muitos chineses urbanos são mais parecidos aos americanos do que aos de seus pais (e de maneira similar, muitos jovens americanos têm visões mais favoráveis à China do que a geração anterior).

Meu trabalho se situa na intersecção desses mundos. Eu edito livros de escritores chineses sobre a política e a economia de seu país, publicando-os em inglês para que o Ocidente seja capaz de compreender sua visão. Nós temos de tentar entender o que eles estão pensando; eles herdaram medos, traumas, ressentimentos e conflitos intergeracionais que moldam a maneira que interagem conosco.

Os slogans da Revolução Cultural estão sob a tinta das fachadas dos novos restaurantes descolados de Xangai, ainda visíveis em certos pontos, apesar de quase totalmente apagados, como cicatrizes na psique de uma geração mais velha que contribui para um conservadorismo paranoico. Esse trauma é pouquíssimo compreendido pelos chineses mais jovens, sob o escudo da censura e de um código de silêncio por conhecer em detalhe os horrores do passado recente da China. A China é uma sociedade diversa, com visões em disputa para o futuro, uma nação que se reconstrói constantemente.

Os influentes acadêmicos chineses com os quais eu trabalho ainda mantêm um profundo respeito pelos EUA, seus valores e sua sociedade civil. De fato, muitos dos chineses que conheço confiam mais na durabilidade dos EUA do que alguns colegas ansiosos dentro do país, que se inquietam com o trumpismo e o que eles percebem como outras ameaças à democracia e aos valores liberais.

Trânsito de Pequim em imagem do dia 17 de março deste ano. China foi profundamente influenciada pela sociedade e a cultura dos EUA Foto: Mark Schiefelbein/Associated Press

Zheng Yongnian, professor com PhD em Princeton e especialista na posição chinesa em mutação no mundo, disse-me que a visão nacionalista chinesa de uma China em ascensão e os EUA em declínio está longe de ser universalmente aceita por aqui — e que “muita gente, eu incluído, continua positiva em relação aos EUA”. O economista Yao Yang, que defende um fortalecimento dos sistemas de seguridade e previdência social na China, inspirou-se com as ideias do político progressista Robert La Follette, de Wisconsin, onde Yao cursou seu doutorado.

Alguns intelectuais importantes dizem-me que se ressentem de influenciadores chineses online e nacionalistas em redes sociais pela mesma razão que a Fox News me desagrada: eles são oportunistas, enfraquecendo seu país com mentiras.

Nacionalistas chineses, esquerdistas, economistas liberais — é difícil encontrar algum pensador chinês vivo que não tenha sido profundamente influenciado pela sociedade e a cultura dos EUA. Os americanos foram uma das estrelas-guia da China ao longo de sua era de reforma, que começou no fim dos anos 70 e continua a transformar o país. Para os que visitaram os EUA, com frequência como estudantes, essa foi a experiência de aprendizagem mais transformadora de suas vidas, nutrindo um impulso de tornar seu país mais moderno, mais forte, melhor.

A história revisionista empunhada por conservadores tanto na China quanto nos EUA ameaça trazer de volta o temerário militarismo da Guerra Fria original, com golpes de Estado e conflitos por procuração. Os americanos dizem para si mesmos que venceram porque eram os caras do bem, uma terminologia simplista que tem sido ressuscitada no Congresso.

Mas nós só podemos ter esperança de continuar a ser os sujeitos do bem nos apegando a valores como liberdade de expressão, generosidade e confiança de que nossa cultura é capaz de resistir a desafios. Infelizmente, esses valores são ameaçados quando a lealdade aos EUA da deputada americana de ascendência chinesa Judy Chu é questionada por um de seus colegas no Congresso. Eles são ameaçados quando um projeto de lei apresentado à legislatura do Texas pretende banir estudantes chineses das universidades do Estado. E quando nós aprofundamos relações com líderes duvidosos, como o presidente Ferdinand Marcos Jr, das Filipinas, filho do ex-ditador corrupto e brutal, e aumentamos nossa presença militar em seu país.

Nós poderíamos vencer uma guerra fria com a China mas ainda assim perder parte do que nos torna grandes. Nós derrubamos Saddam Hussein e incapacitamos a Al-Qaeda, mas sob o custo de menos liberdade dentro dos EUA por meio de poderes ampliados para a NSA, da Lei Patriota e da ferida purulenta da Baía de Guantánamo.

Os EUA podem importunar o quanto quiserem a China sobre suas falhas. Mas nosso objetivo em última instância é marcar pontos políticos ou viver em um mundo pacífico, no qual cooperamos em relação a problemas reais, como as mudanças climáticas? Os EUA são mais fortes quando lideram dando exemplo, permanecendo abertos, generosos e livres.

Meu filho, produto dessas duas grandes nações, nasceu em Xangai, em novembro. Quando o seguro no colo, eu imagino se uma guerra ou outros problemas poderiam levar à nossa deportação ou forçar escolhas difíceis sobre seu pai americano e sua mãe chinesa. O povo chinês ainda é acolhedor: desconhecidos às vezes se aproximam de mim para dizer que gostam de ter estrangeiros em seu país; ou para dizer “USA, number one!” (EUA, número um!).

Esses momentos carinhosos e encorajadores não têm de desaparecer. Mas nós temos de fazer escolhas inteligentes. Nós escolhemos cancelar uma importante visita diplomática à China por causa de um balão; mas poderíamos ter escolhido seguir adiante.

Eu acabo de retornar para Xangai de minha primeira viagem à Virgínia, onde nasci, em três anos. E fiquei aliviado ao não sentir nenhuma beligerância em relação à China por lá. Muitos concordaram comigo na opinião de que nossas atitudes e retóricas políticas não fazem nenhum sentido.

Talvez encontremos uma maneira melhor de avançar. Mas continuarei usando cuecas vermelhas, só para garantir. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

XANGAI — Eu usei cuecas vermelhas durante grande parte do ano passado.

Era Ano do Tigre, meu signo zodíaco chinês, quando a tradição afirma que a má sorte nos espreita. Roupas de baixo vermelhas são destinadas a manter a gente a salvo, porque os demônios chineses supostamente odeiam a cor.

Não funcionou.

O ano foi difícil. Ao longo da maior parte de 2022 nós permanecemos extirpados do mundo, trancados pela estrita política pandêmica da China. Xangai, meu lar na década recente, foi submetida a um lockdown anticovid particularmente traumático, que nos manteve confinados em nossas residências por dois meses, a partir do fim de março, com dificuldades para obter alimentos. Quando estávamos trancados, nós descobrimos que minha mulher, que é chinesa, estava grávida. Foi necessária uma combinação entre ruído estridente e pedidos desesperados para as autoridades locais nos levarem até um hospital para exames de pré-natal.

Mulher caminha em parque público de Pequim, na China, em imagem do dia 23 de março. Relações tensas entre EUA e China desconsideram similaridades entre as duas nações Foto: Mark Schiefelbein/Associated Press

Quando o lockdown acabou, em junho, eu emergi de olhos cerrados, ofuscados pela luz do sol, para descobrir que a China tinha sido transformada em inimiga dos Estados Unidos. O secretário de Estado americano, Antony Blinken, classificava a China como uma ameaça a “valores universais”, em uma terminologia que me fez pensar a respeito da política de contenção dos EUA em relação à ex-União Soviética. A retórica só fez endurecer desde então. Hoje, a China é rotulada como uma ameaça “existencial” para os EUA; fala-se de uma nova guerra fria.

É mesmo? Nós temos então de travar uma nova guerra fria?

De Xangai, a ideia parece absurda. O povo da cidade é submerso na cultura americana, todos cresceram usando iPhones, tomando café Starbucks, acompanhando os jogos da NBA e aperfeiçoando seu inglês coloquial assistindo “Friends” (existe até um café com a temática “Friends” em Xangai, projetado para se parecer com a Central Perk, a cafeteria da série).

Tenho amigos chineses que estudaram nos EUA e ouvem música pop americana. Minha mulher assistia vídeos de influenciadores americanos sobre cuidados parentais. Lojas de roupas vintage, um clube de jazz e blues chamado Jazz at Lincoln Center Shanghai, o campus da NYU em Xangai — a cidade se compara incessantemente e autoconscientemente com Nova York. Os estilos de vida e percepções de muitos chineses urbanos são mais parecidos aos americanos do que aos de seus pais (e de maneira similar, muitos jovens americanos têm visões mais favoráveis à China do que a geração anterior).

Meu trabalho se situa na intersecção desses mundos. Eu edito livros de escritores chineses sobre a política e a economia de seu país, publicando-os em inglês para que o Ocidente seja capaz de compreender sua visão. Nós temos de tentar entender o que eles estão pensando; eles herdaram medos, traumas, ressentimentos e conflitos intergeracionais que moldam a maneira que interagem conosco.

Os slogans da Revolução Cultural estão sob a tinta das fachadas dos novos restaurantes descolados de Xangai, ainda visíveis em certos pontos, apesar de quase totalmente apagados, como cicatrizes na psique de uma geração mais velha que contribui para um conservadorismo paranoico. Esse trauma é pouquíssimo compreendido pelos chineses mais jovens, sob o escudo da censura e de um código de silêncio por conhecer em detalhe os horrores do passado recente da China. A China é uma sociedade diversa, com visões em disputa para o futuro, uma nação que se reconstrói constantemente.

Os influentes acadêmicos chineses com os quais eu trabalho ainda mantêm um profundo respeito pelos EUA, seus valores e sua sociedade civil. De fato, muitos dos chineses que conheço confiam mais na durabilidade dos EUA do que alguns colegas ansiosos dentro do país, que se inquietam com o trumpismo e o que eles percebem como outras ameaças à democracia e aos valores liberais.

Trânsito de Pequim em imagem do dia 17 de março deste ano. China foi profundamente influenciada pela sociedade e a cultura dos EUA Foto: Mark Schiefelbein/Associated Press

Zheng Yongnian, professor com PhD em Princeton e especialista na posição chinesa em mutação no mundo, disse-me que a visão nacionalista chinesa de uma China em ascensão e os EUA em declínio está longe de ser universalmente aceita por aqui — e que “muita gente, eu incluído, continua positiva em relação aos EUA”. O economista Yao Yang, que defende um fortalecimento dos sistemas de seguridade e previdência social na China, inspirou-se com as ideias do político progressista Robert La Follette, de Wisconsin, onde Yao cursou seu doutorado.

Alguns intelectuais importantes dizem-me que se ressentem de influenciadores chineses online e nacionalistas em redes sociais pela mesma razão que a Fox News me desagrada: eles são oportunistas, enfraquecendo seu país com mentiras.

Nacionalistas chineses, esquerdistas, economistas liberais — é difícil encontrar algum pensador chinês vivo que não tenha sido profundamente influenciado pela sociedade e a cultura dos EUA. Os americanos foram uma das estrelas-guia da China ao longo de sua era de reforma, que começou no fim dos anos 70 e continua a transformar o país. Para os que visitaram os EUA, com frequência como estudantes, essa foi a experiência de aprendizagem mais transformadora de suas vidas, nutrindo um impulso de tornar seu país mais moderno, mais forte, melhor.

A história revisionista empunhada por conservadores tanto na China quanto nos EUA ameaça trazer de volta o temerário militarismo da Guerra Fria original, com golpes de Estado e conflitos por procuração. Os americanos dizem para si mesmos que venceram porque eram os caras do bem, uma terminologia simplista que tem sido ressuscitada no Congresso.

Mas nós só podemos ter esperança de continuar a ser os sujeitos do bem nos apegando a valores como liberdade de expressão, generosidade e confiança de que nossa cultura é capaz de resistir a desafios. Infelizmente, esses valores são ameaçados quando a lealdade aos EUA da deputada americana de ascendência chinesa Judy Chu é questionada por um de seus colegas no Congresso. Eles são ameaçados quando um projeto de lei apresentado à legislatura do Texas pretende banir estudantes chineses das universidades do Estado. E quando nós aprofundamos relações com líderes duvidosos, como o presidente Ferdinand Marcos Jr, das Filipinas, filho do ex-ditador corrupto e brutal, e aumentamos nossa presença militar em seu país.

Nós poderíamos vencer uma guerra fria com a China mas ainda assim perder parte do que nos torna grandes. Nós derrubamos Saddam Hussein e incapacitamos a Al-Qaeda, mas sob o custo de menos liberdade dentro dos EUA por meio de poderes ampliados para a NSA, da Lei Patriota e da ferida purulenta da Baía de Guantánamo.

Os EUA podem importunar o quanto quiserem a China sobre suas falhas. Mas nosso objetivo em última instância é marcar pontos políticos ou viver em um mundo pacífico, no qual cooperamos em relação a problemas reais, como as mudanças climáticas? Os EUA são mais fortes quando lideram dando exemplo, permanecendo abertos, generosos e livres.

Meu filho, produto dessas duas grandes nações, nasceu em Xangai, em novembro. Quando o seguro no colo, eu imagino se uma guerra ou outros problemas poderiam levar à nossa deportação ou forçar escolhas difíceis sobre seu pai americano e sua mãe chinesa. O povo chinês ainda é acolhedor: desconhecidos às vezes se aproximam de mim para dizer que gostam de ter estrangeiros em seu país; ou para dizer “USA, number one!” (EUA, número um!).

Esses momentos carinhosos e encorajadores não têm de desaparecer. Mas nós temos de fazer escolhas inteligentes. Nós escolhemos cancelar uma importante visita diplomática à China por causa de um balão; mas poderíamos ter escolhido seguir adiante.

Eu acabo de retornar para Xangai de minha primeira viagem à Virgínia, onde nasci, em três anos. E fiquei aliviado ao não sentir nenhuma beligerância em relação à China por lá. Muitos concordaram comigo na opinião de que nossas atitudes e retóricas políticas não fazem nenhum sentido.

Talvez encontremos uma maneira melhor de avançar. Mas continuarei usando cuecas vermelhas, só para garantir. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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