As derrotas táticas da Rússia na Ucrânia indicam que as disfuncionalidades do regime russo se refletem em suas Forças Armadas. Essa é uma constatação fundamental, na análise do balanço de forças entre democracias e autocracias – o grande embate de nosso tempo.
Antes da invasão, analistas militares ocidentais calculavam que as forças mobilizadas pela Rússia não eram suficientes para dominar o lado ocidental do Rio Dnipro, que divide a Ucrânia ao meio e banha Kiev. Elas poderiam ocupar o leste e a costa sul.
Essa estimativa nem sequer levava em conta duas informações, que só se revelaram depois da invasão: a capacidade dos soldados ucranianos de fazer bom uso do armamento portátil a sua disposição, em especial os mísseis antiaéreos americanos Stinger, os mísseis antitanque Javalin (também americanos) e NLAW (anglo-suecos) e os drones turcos Bayraktar; as falhas de comando e controle, planejamento e logística, somadas à qualidade e moral baixos dos militares russos.
Ignorando todos esses cálculos e também os fatores adversos que sobreviriam, o presidente Vladimir Putin lançou uma campanha para tomar toda a Ucrânia. No início de março, já na segunda semana da ofensiva, ficou evidente que as forças terrestres russas não conseguiam avançar. Os grupos russos de batalhões táticos foram parados pelas forças ucranianas, e sofreram pesadas baixas e perdas materiais. Para compensar o insucesso no terreno, os militares russos intensificaram os bombardeios, sobretudo de áreas civis. A isso se somaram os cercos de algumas cidades, os cortes de suprimentos de água, alimentos e energia para aquecimento.
Todo o horror causado na população não teve o efeito esperado, de obrigar as autoridades locais a se renderem. Os russos então firmaram acordos de tréguas para a saída de civis, e os violaram, atacando os comboios humanitários, para agravar o desespero. Mas os ucranianos continuaram impondo-lhes derrotas.
Foi por isso que o Estado-Maior do Exército russo anunciou a retirada das tropas do território ocidental e a concentração dos esforços no leste. Não se sabe se a revisão dos objetivos é tática ou permanente.
A retirada assegura as linhas de suprimento dos países da Otan para a Ucrânia, que com isso poderá manter e talvez elevar o esforço de guerra. O ataque por dois helicópteros a um depósito de combustível que era usado para abastecer os veículos militares russos em Belgorod, perto da fronteira, pode ser sinal da elevação do poder de contraofensiva.
O Exército russo é capaz de destruir, mas não de dominar, como pretendia Putin. Em parte, é o custo da opacidade e autoritarismo do regime. Os comandantes russos não têm informações suficientes da liderança civil para preparar adequadamente suas tropas para as missões. Recebem a tarefa, mas não entendem o propósito.
* É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS