O Mar do Norte tem capacidade para se tornar a nova potência econômica da Europa?


O mais turbulento corpo d’água do continente está encontrando novos usos

Por The Economist

Imagine um kit Meccano, mas feito para os deuses. Lâminas da altura do Big Ben, rotores e seções de torres do tamanho de prédios escolares, eixos e geradores tão pesados que têm de ser rotacionados a cada 20 minutos para não acabar esmagados pelo próprio peso — todos esses componentes estão espalhados por uma área do tamanho de 150 campos de futebol. Montados, eles formam edificações equiparáveis à Torre Eiffel, porém mais úteis: turbinas eólicas a serem instaladas em algum ponto do Mar do Norte.

Bem-vindos a Esbjerg, o polo da indústria eólica-offshore europeia. Dois terços das turbinas girando atualmente nas costas da Europa, o suficiente para fornecer eletricidade para 40 milhões de lares, foram montados nesta cidade portuária na Dinamarca, de 72 mil habitantes. E os deuses de Esbjerg estão apenas começando a brincadeira. O operador portuário da cidade planeja quase triplicar sua capacidade de empreender projetos eólicos até 2026. Firmas locais de engenharia que anteriormente serviam à indústria de combustíveis fósseis agora prestam serviços para o setor de energia eólica. A Meta comprou 212 hectares de terras nas imediações de Esbjerg para construir um centro de processamento de dados alimentado por energias renováveis para suas redes sociais. No mar aberto, cabos que transportarão 30% do tráfego internacional de dados para a Noruega estão sendo instalados. O prefeito de Esbjerg foi ao Vietnã e a Washington compartilhar a história de sucesso de sua cidade.

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Com uma dose de pensamento estratégico e alguma sorte, uma série de Esbjergs poderia escalar para uma nova economia no Mar do Norte. Isso ajudaria a Europa a atender suas ambiciosas metas climáticas e reequilibrar suas fontes de energia longe de países governados por tiranos como o russo Vladimir Putin. Seus recém-cunhados campeões corporativos poderiam oferecer à Europa sua melhor — e talvez última — chance de permanecer relevante globalmente. E isso poderia alterar o equilíbrio político e econômico do continente criando uma alternativa ao titubeante motor franco-alemão.

Pás de rotor são retratadas no porto de exportação da Siemens Wind Power em Esbjerg, 11 de junho de 2012 Foto: Fabian Bimmer/Reuters

O Mar do Norte sempre foi significativo economicamente. Margeado por seis nações — Bélgica, Reino Unido, Dinamarca, Alemanha, Holanda e Noruega — ele constitui um ponto de intersecção de importantes rotas comerciais. Suas fortes marés, que despejam nutrientes sobre o raso assoalho marinho, são um trunfo para os pescadores. No século 20, petróleo e gás natural foram descobertos sob seu leito. No pico de a atividade de prospecção na região, nos anos 90, Reino Unido e Noruega, os maiores produtores no Mar do Norte, extraíam juntos 6 milhões de barris ao dia; atualmente, os Emirados Árabes Unidos extraem a metade disso. Um campo na Escócia, chamado Brent, emprestou seu nome para o índice de referência global do preço do petróleo. À medida que essa riqueza se esgota — e a demanda pelo que ainda resta diminui em meio a preocupações a respeito das mudanças climáticas — o turbulento corpo d’água tem encontrado usos lucrativos.

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A maior aposta é em um recurso inesgotável no Mar do Norte: o clima terrível. Com velocidades médias de vento de 10 metros por segundo, a região é uma das mais tempestuosas no mundo. No dia que este correspondente visitou Esbjerg, as velocidades atingiam o dobro da média, o suficiente para baixar o preço da eletricidade no atacado para quase zero. O leito do Mar do Norte é na maior parte fofo, o que facilita a fixação de turbinas (as flutuantes ainda não foram acionadas em escala em nenhum lugar no planeta). A profundidade do mar, além disso, não passa de 90 metros, o que permite a instalação de fazendas eólicas mais longe das costas, onde os ventos são mais consistentes. Ed Northam, da firma de investimento Macquarie Group, que tem participação em 40% de todas as fazendas eólicas offshore em operação no Reino Unido, afirma que no mar suas turbinas funcionam a até 60% de sua capacidade, e que em terra os geradores atingem normalmente de 30% a 40% da capacidade.

Em 2022, países do Mar do Norte leiloaram 25 gigawatts (GW) em capacidade de energia eólica, tonando o ano passado de longe o mais movimentado. Leilões de cerca do equivalente a 30 GW já foram marcados para os próximos três anos. A expectativa é que as novas conexões anuais cresçam de menos de 4 GW hoje para mais de 10 GW no fim desta década. Em uma cúpula em Esbjerg, em maio, a Comissão Europeia e quatro países do Mar do Norte concordaram em instalar 150 GW até 2025, o que equivale a cinco vezes a atual produção de energia eólica na Europa e três vezes a mundial. Em setembro, esse grupo e outros cinco países elevaram o número para 260 GW, o equivalente à capacidade das 24 mil maiores turbinas atualmente em atividade.

Essa ambição se torna possível por meio da versão eólica da Lei de Moore, que descreveu a elevação exponencial do poder da computação. Três décadas atrás, a primeira fazenda eólica no mar do planeta — Vindeby, na Dinamarca, empregando 11 turbinas — tinha capacidade total de 5 megawatts (MW). Hoje, uma única turbina é capaz de gerar 14 MW, e uma fazenda pode conter mais de 100 delas. Cabos mais robustos e transformadores no mar para converter a eletricidade eólica de corrente alternada para direta, capaz de viajar longas distâncias sem grandes perdas, possibilitam que mais energia seja gerada em locais mais remotos.

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O resultado é que várias fazendas eólicas atualmente em instalação ultrapassam 1 GW em capacidade, o que equivale ao rendimento comum de usinas nucleares. Prevista para entrar em atividade no próximo verão, a fazenda eólica em construção em Dogger Bank, com turbinas instaladas a distâncias entre 130 quilômetros e 200 quilômetros da costa britânica, terá capacidade recorde, de 3,6 GW, quando atingir seu funcionamento pleno, em 2026. A economia de escala tem baixado os custos, tornando a eletricidade eólica gerada no mar competitiva em relação a outras fontes de energia. Em julho, o Reino Unido concedeu contratos para cinco projetos, incluindo em Dogger Bank, ao preço de £ 37 (US$ 44) por megawatt-hora — menos de um sexto do preço da eletricidade no atacado no Reino Unido em dezembro.

O mau tempo nem sempre é um trunfo: seus caprichos também podem estressar a rede. Convenientemente, a tecnologia e os preços em queda estão permitindo que operadores de energia eólica combatam os elementos. Uma maneira é com mais interconexões, primeiro entre as fazendas e a terra-firme — hoje a maioria das fazendas tem uma ligação com a costa, o que é ineficiente — e depois entre as próprias fazendas. Metade dos 3 GW a serem leiloados pela Noruega contará com a opção de criar ligações com outros países. Phil Sandy, da National Grid, que gere a infraestrutura britânica de energia, prevê um futuro de redes submarinas complexas, similares às existentes em terra-firme.

Outra maneira de administrar a variabilidade na energia eólica é usar moléculas de água para produzir combustíveis “verdes”, como hidrogênio e amônia. Em maio, a Comissão Europeia e chefões da indústria prometeram aumentar dez vezes na UE a capacidade de fabricação de eletrolisadores, que fazem a quebra das moléculas de água, até 2025. Isso permitiria ao bloco produzir 10 milhões de toneladas de combustíveis verdes até 2030. A comissão também propôs um “banco de hidrogênio” capitalizado com € 3 bilhões (US$ 3,2 bilhões) para ajudar a financiar os projetos.

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Os investidores estão inebriados. Em agosto, a firma de investimentos Copenhagen Infrastructure Partners (CIP) afirmou que levantou € 3 bilhões para um fundo que investirá exclusivamente em ativos de hidrogênio. Uma dúzia de projetos foi anunciada na Europa; os três maiores acrescentam até 20 GW de energia verde. A empresa dinamarquesa Topsoe, que fornece tecnologia para esses empreendimentos, afirma que seus pedidos equivalem a 86 GW.

Turbinas de vento em Sabugal, Portugal  Foto: Pedro Nunes/Reuters

Em última instância, o sistema energético do Mar do Norte poderia tomar a forma de um arquipélago composto por “ilhas de energia” que abrigam equipes de manutenção da fazenda eólica, agregam eletricidade e produzem hidrogênio para ser transportado à terra-firme por navio ou gasoduto. Até 10 projetos desse tipo estão em consideração, de acordo com a firma de pesquisas Sintef. A North Sea Energy Island, um atol artificial a 100 quilômetros da costa dinamarquesa, deverá ser oferecida em leilão em 2023. Ela atuará como terminal para dez fazendas eólicas em suas proximidades, com ligações para países vizinhos.

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Um dos participantes, um consórcio entre a empresa dinamarquesa Orsted, maior construtora de fazendas eólicas offshore no mundo, e o fundo local de pensões ATP, vislumbra um design modular, com componentes fabricados em terra-firme e montados no mar. “Esperamos que ainda esteja funcional daqui a 100 anos”, afirma Brendan Bradley, da firma de engenharia Arup, que atua como conselheiro no projeto. Thomas Dalsgaard, da CIP, que compõe um consórcio rival, afirma que produzir combustíveis verdes no mar não apenas ajudará a reduzir a pressão sobre as redes de transmissão, mas também poupará dinheiro: gasodutos de hidrogênio custam o equivalente a um quinto do preço das linhas de transmissão de eletricidade de alta capacidade.

E a nova economia do Mar do Norte extrapola o setor de energia. Eletricidade e hidrogênio não serão os únicos elementos a atravessar o leito marítimo. Isso também ocorrerá com dióxido de carbono. Algumas indústrias, como fabricação de cimento ou o setor químico, são difíceis de descarbonizar. Mas o CO2 que elas produzem pode ser coletado e bombeado para dentro dos depósitos de gás esvaziados no Mar do Norte. Esse tipo de captura e armazenamento de carbono (CCS) parecia uma maneira pouco atrativa de combater as mudanças climáticas por causa de seu alto custo e sua impopularidade entre ambientalistas, que se preocupavam com a possibilidade disso prolongar a vida dos combustíveis fósseis. Agora, assim como na energia eólica, os custos estão caindo, a resistência política abranda e os projetos se multiplicam.

Um projeto que busca aprovação em Roterdã, chamado Porthos, pretende conectar o maior porto da Europa via gasoduto a uma estação de compressão, para depois enviar o CO2 para o depósito de gás natural esvaziado no mar. Apesar de um tribunal ter atrasado recentemente seu início, o projeto ganhou luz verde das agências reguladoras holandesas. Quando entrar em operação, o sistema capturará cerca de 2,5 milhões de toneladas de CO2 anualmente por 15 anos, o equivalente a 2% das emissões holandesas. O Porto de Amsterdã planeja algo similar. Mais ao norte, próximo à cidade norueguesa de Bergen, a empresa de energia Equinor, e seus parceiros concluíram operações de perfuração para um poço de injeção de CO2 como parte de um projeto chamado Aurora Boreal. De acordo com Guloren Turan, do Global CCS Institute, um centro de pesquisas, a Europa possui hoje mais de 70 instalações desse tipo em vários estágios de desenvolvimento.

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Outro valioso produto atravessando o Mar do Norte é informação. Se você seguir um dos mais novos cabos transatlânticos de dados que chegam a Esbjerg chamado Havfrue e depois virar à direita em uma bifurcação no meio do Mar do Norte, você acaba em Kristiansand, uma cidade do sul da Noruega — lar do N01 Campus, o “maior centro de processamento de dados alimentado 100% por energia verde”, segundo sua proprietária, a Bulk Infrastructure. “Queremos construir uma plataforma para serviços digitais sustentáveis”, afirma o fundador da empresa, Peder Naerbo.

Países do Mar do Norte são excelentes lugares para armazenar e processar dados. Baixos custos de energia barateiam a usina de dígitos, que é intensiva em energia. O clima frio significa que os centros de processamento de dados podem ser refrescados apenas por meio da circulação do ar externo, em vez de usar dispendiosos sistemas de ar-refrigerado. A região conta com força de trabalho altamente qualificada, instituições estáveis e algumas das leis de dados mais iluminadas do mundo. Latência, o tempo que leva para transportar dados para dentro e fora das nuvens computacionais, torna-se um problema cada vez menor conforme a tecnologia avança, portanto, cargas de trabalho digital podem ser processadas em instalações cada vez mais remotas. E centros de processamento de dados estão atingindo seus limites na Europa. Em 2021, centros de processamento de dados irlandeses e outros produtos digitais consumiram 17% da eletricidade do país. Para evitar apagões, a estatal irlandesa de energia, EirGrid, não fornecerá eletricidade para novos polos de servidores.

De acordo com a firma de dados TeleGeography, 13 novos cabos foram instalados no Mar do Norte desde 2020; em comparação, na década de 2010 havia cinco ao todo. Centros de processamento de dados também estão brotando à medida que grandes servidores de nuvens prometem descarbonizar suas cadeias de fornecimento. A Amazon Web Services (AWS) e a Microsoft Azure, as duas maiores empresas de nuvens, construíram polos de servidores nos países nórdicos. A Meta tem seu projeto nas proximidades de Esbjerg. Indústrias mais antigas também estão movendo sua computação para o norte. Mercedes-Benz e Volkswagen têm computadores instalados em locais que já foram minas na Noruega fazendo simulações de acidentes automobilísticos e testando seus carros em túneis de vento. Em média, estima a consultoria Altman Solon, a demanda por centros de processamento de dados na região aumentará 17% ao ano até 2030.

Vá para o norte, velho industrial

Mais atividade econômica europeia poderia ser atraída para o norte. “Abundância em energia tende a atrair indústria”, afirma o historiador econômico Nikolaus Wolf, da Universidade Humboldt, em Berlim. Foi o que aconteceu no início do século 19, quando abundância hidroelétrica ajudou a atrair a indústria do algodão para Lancashire. Wolf e Nicholas Crafts, na Universidade de Warwick, calcularam que se Lancashire tivesse 10% menos capacidade hidroelétrica também teria tido 10% menos empregos no setor têxtil em 1838 em postos críticos.

Hoje é mais fácil distribuir energia via redes de transmissão e gasodutos do que era durante a Revolução Industrial, e centros industriais de toda a Europa têm seus atrativos. Levar fornos de fabricação de cimento para as costas do Mar do Norte significaria ter de transportar calcário para lá e trazer de volta o cimento aos consumidores, o que tornaria o processo inviável economicamente (e até o advento dos caminhões de emissões-zero, prejudicial ao clima). Unidades gigantescas de craqueamento a vapor, que quebram hidrocarbonetos em moléculas menores em indústrias químicas, também não se moverão para o norte tão logo: são um investimento grande demais, integrado às cadeias de fornecimento existentes e já em processo de ser eletrificado.

Mas o princípio de Wolf ainda vale para algumas indústrias — e pode beneficiar outras localidades setentrionais não diretamente no Mar do Norte. Em Narvik, mais ao norte, no Mar da Noruega, a Aker Horizons, uma firma que investe em energia renovável, quer estabelecer um polo industrial verde alimentado por energia eólica gerada no mar. Em Boden, uma cidade sueca próxima à costa oriental da Península Escandinava, a H2 Green Steel está construindo uma nova usina siderúrgica, a primeira na Europa em meio século. Seu forno não será a carvão ou gás natural, funcionará com hidrogênio verde — criado em uma das maiores usinas de eletrólise do planeta, alimentada por energia eólica produzida em terra e energia hidroelétrica.

Além de exportar aço, a H2 Green Steel espera exportar também ferro-esponja, um produto intermediário que requer grande parte da energia total usada na fabricação de aço. Isso equivaleria a dividir em duas a indústria siderúrgica, explica o diretor da empresa, Henrik Henriksson. As partes intensivas em energia do processo migrariam para onde podem ser realizadas com mais eficiência: bem ao lado das fontes de energia renovável. As partes mais intensivas em trabalho e conhecimento poderiam permanecer nos polos siderúrgicos tradicionais da Europa, como o Vale do Ruhr.

Em Wilhelmshaven, uma cidade costeira na Alemanha, a estatal de energia Uniper acaba de concluir o primeiro terminal do país para importação de gás natural liquefeito (GNL), para substituir parte do gás russo que deixou de fluir da Sibéria pelos gasodutos. A empresa planeja construir unidades de craqueamento para produzir hidrogênio a partir de amônia próximo ao terminal de GNL. Em outro canto do porto, próximo a uma termoelétrica a carvão desativada, a Uniper construirá uma usina de hidrogênio e proverá espaço para empresas sedentas de energia. “Wilhelmshaven desempenhará um importante papel como o lugar em que a energia verde chega ao território”, afirma Holger Kreetz, encarregado de administrar ativos da Uniper.

Outras empresas rumando ao norte incluem fabricantes de baterias para veículos elétricos, que também requerem muita energia para produzir, e fabricantes de turbinas eólicas atingidos pelas perturbações nas cadeias de fornecimento. A Vestas, maior produtora mundial das turbinas, está fechando uma fábrica na China e abrindo outra na Polônia em parte para ficar próximo a uma nova fazenda eólica no Mar Báltico.

Como em todas as mudanças dessa magnitude, alguns veem problemas. Energia renovável ficará até mais barata em outras partes, alerta Christer Tryggestad, da McKinsey, outra consultoria. Em vez de investir no Mar do Norte e seu entorno, as empresas deveriam rumar para lugares ensolarados, como o Oriente Médio ou a Espanha. Alguns não estão convencidos de que a UE será capaz de atender suas ambiciosas metas de aumentar a produção de energia eólica no mar. A Vestas e suas colegas fabricantes de turbinas já estão reclamando amargamente afirmando que permissões para novos parques eólicos podem levar uma década ou mais para se obter. As empresas de serviços-eólicos-offshore alertam que logo poderão ficar sem pessoal e maquinário para manter os clientes felizes.

O último obstáculo vem do outro lado do Atlântico. A Lei de Redução da Inflação do presidente Joe Biden prevê US$ 370 bilhões em subsídios e créditos fiscais para produtos e serviços amigáveis ao meio ambiente, contanto que sejam fabricados e oferecidos nos Estados Unidos. A UE preocupa-se com a hipótese das ajudas afastarem os investidores do bloco, que atualmente analisa se a lei viola regras comerciais internacionais.

Se esses problemas puderem ser superados, o impacto da nova economia do Mar do Norte sobre o continente será importantíssimo. Conforme o epicentro econômico da Europa se move para o norte, o mesmo ocorrerá com o epicentro político, prevê Frank Peter, do instituto alemão Agora Energiewende. Isso poderia alterar o equilíbrio de poder dentro de países com litoral. O Estado costeiro de Bremen, um dos mais pobres da Alemanha, poderia ganhar peso em detrimento da rica, mas sem saída ao mar, Baviera. No nível europeu, França e Alemanha, cuja força industrial sustentou a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, antecessora da UE, podem perder alguma influência para um novo bloco liderado por Dinamarca, Países Baixos e, fora da UE, Reino Unido e Noruega. Franceses e bávaros podem se arrepiar com a ideia de uma Comunidade da Energia Eólica e do Hidrogênio centrada no Mar do Norte. Mas ela daria à Europa inteira um impulso econômico e geopolítico muito necessário. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Imagine um kit Meccano, mas feito para os deuses. Lâminas da altura do Big Ben, rotores e seções de torres do tamanho de prédios escolares, eixos e geradores tão pesados que têm de ser rotacionados a cada 20 minutos para não acabar esmagados pelo próprio peso — todos esses componentes estão espalhados por uma área do tamanho de 150 campos de futebol. Montados, eles formam edificações equiparáveis à Torre Eiffel, porém mais úteis: turbinas eólicas a serem instaladas em algum ponto do Mar do Norte.

Bem-vindos a Esbjerg, o polo da indústria eólica-offshore europeia. Dois terços das turbinas girando atualmente nas costas da Europa, o suficiente para fornecer eletricidade para 40 milhões de lares, foram montados nesta cidade portuária na Dinamarca, de 72 mil habitantes. E os deuses de Esbjerg estão apenas começando a brincadeira. O operador portuário da cidade planeja quase triplicar sua capacidade de empreender projetos eólicos até 2026. Firmas locais de engenharia que anteriormente serviam à indústria de combustíveis fósseis agora prestam serviços para o setor de energia eólica. A Meta comprou 212 hectares de terras nas imediações de Esbjerg para construir um centro de processamento de dados alimentado por energias renováveis para suas redes sociais. No mar aberto, cabos que transportarão 30% do tráfego internacional de dados para a Noruega estão sendo instalados. O prefeito de Esbjerg foi ao Vietnã e a Washington compartilhar a história de sucesso de sua cidade.

Com uma dose de pensamento estratégico e alguma sorte, uma série de Esbjergs poderia escalar para uma nova economia no Mar do Norte. Isso ajudaria a Europa a atender suas ambiciosas metas climáticas e reequilibrar suas fontes de energia longe de países governados por tiranos como o russo Vladimir Putin. Seus recém-cunhados campeões corporativos poderiam oferecer à Europa sua melhor — e talvez última — chance de permanecer relevante globalmente. E isso poderia alterar o equilíbrio político e econômico do continente criando uma alternativa ao titubeante motor franco-alemão.

Pás de rotor são retratadas no porto de exportação da Siemens Wind Power em Esbjerg, 11 de junho de 2012 Foto: Fabian Bimmer/Reuters

O Mar do Norte sempre foi significativo economicamente. Margeado por seis nações — Bélgica, Reino Unido, Dinamarca, Alemanha, Holanda e Noruega — ele constitui um ponto de intersecção de importantes rotas comerciais. Suas fortes marés, que despejam nutrientes sobre o raso assoalho marinho, são um trunfo para os pescadores. No século 20, petróleo e gás natural foram descobertos sob seu leito. No pico de a atividade de prospecção na região, nos anos 90, Reino Unido e Noruega, os maiores produtores no Mar do Norte, extraíam juntos 6 milhões de barris ao dia; atualmente, os Emirados Árabes Unidos extraem a metade disso. Um campo na Escócia, chamado Brent, emprestou seu nome para o índice de referência global do preço do petróleo. À medida que essa riqueza se esgota — e a demanda pelo que ainda resta diminui em meio a preocupações a respeito das mudanças climáticas — o turbulento corpo d’água tem encontrado usos lucrativos.

A maior aposta é em um recurso inesgotável no Mar do Norte: o clima terrível. Com velocidades médias de vento de 10 metros por segundo, a região é uma das mais tempestuosas no mundo. No dia que este correspondente visitou Esbjerg, as velocidades atingiam o dobro da média, o suficiente para baixar o preço da eletricidade no atacado para quase zero. O leito do Mar do Norte é na maior parte fofo, o que facilita a fixação de turbinas (as flutuantes ainda não foram acionadas em escala em nenhum lugar no planeta). A profundidade do mar, além disso, não passa de 90 metros, o que permite a instalação de fazendas eólicas mais longe das costas, onde os ventos são mais consistentes. Ed Northam, da firma de investimento Macquarie Group, que tem participação em 40% de todas as fazendas eólicas offshore em operação no Reino Unido, afirma que no mar suas turbinas funcionam a até 60% de sua capacidade, e que em terra os geradores atingem normalmente de 30% a 40% da capacidade.

Em 2022, países do Mar do Norte leiloaram 25 gigawatts (GW) em capacidade de energia eólica, tonando o ano passado de longe o mais movimentado. Leilões de cerca do equivalente a 30 GW já foram marcados para os próximos três anos. A expectativa é que as novas conexões anuais cresçam de menos de 4 GW hoje para mais de 10 GW no fim desta década. Em uma cúpula em Esbjerg, em maio, a Comissão Europeia e quatro países do Mar do Norte concordaram em instalar 150 GW até 2025, o que equivale a cinco vezes a atual produção de energia eólica na Europa e três vezes a mundial. Em setembro, esse grupo e outros cinco países elevaram o número para 260 GW, o equivalente à capacidade das 24 mil maiores turbinas atualmente em atividade.

Essa ambição se torna possível por meio da versão eólica da Lei de Moore, que descreveu a elevação exponencial do poder da computação. Três décadas atrás, a primeira fazenda eólica no mar do planeta — Vindeby, na Dinamarca, empregando 11 turbinas — tinha capacidade total de 5 megawatts (MW). Hoje, uma única turbina é capaz de gerar 14 MW, e uma fazenda pode conter mais de 100 delas. Cabos mais robustos e transformadores no mar para converter a eletricidade eólica de corrente alternada para direta, capaz de viajar longas distâncias sem grandes perdas, possibilitam que mais energia seja gerada em locais mais remotos.

O resultado é que várias fazendas eólicas atualmente em instalação ultrapassam 1 GW em capacidade, o que equivale ao rendimento comum de usinas nucleares. Prevista para entrar em atividade no próximo verão, a fazenda eólica em construção em Dogger Bank, com turbinas instaladas a distâncias entre 130 quilômetros e 200 quilômetros da costa britânica, terá capacidade recorde, de 3,6 GW, quando atingir seu funcionamento pleno, em 2026. A economia de escala tem baixado os custos, tornando a eletricidade eólica gerada no mar competitiva em relação a outras fontes de energia. Em julho, o Reino Unido concedeu contratos para cinco projetos, incluindo em Dogger Bank, ao preço de £ 37 (US$ 44) por megawatt-hora — menos de um sexto do preço da eletricidade no atacado no Reino Unido em dezembro.

O mau tempo nem sempre é um trunfo: seus caprichos também podem estressar a rede. Convenientemente, a tecnologia e os preços em queda estão permitindo que operadores de energia eólica combatam os elementos. Uma maneira é com mais interconexões, primeiro entre as fazendas e a terra-firme — hoje a maioria das fazendas tem uma ligação com a costa, o que é ineficiente — e depois entre as próprias fazendas. Metade dos 3 GW a serem leiloados pela Noruega contará com a opção de criar ligações com outros países. Phil Sandy, da National Grid, que gere a infraestrutura britânica de energia, prevê um futuro de redes submarinas complexas, similares às existentes em terra-firme.

Outra maneira de administrar a variabilidade na energia eólica é usar moléculas de água para produzir combustíveis “verdes”, como hidrogênio e amônia. Em maio, a Comissão Europeia e chefões da indústria prometeram aumentar dez vezes na UE a capacidade de fabricação de eletrolisadores, que fazem a quebra das moléculas de água, até 2025. Isso permitiria ao bloco produzir 10 milhões de toneladas de combustíveis verdes até 2030. A comissão também propôs um “banco de hidrogênio” capitalizado com € 3 bilhões (US$ 3,2 bilhões) para ajudar a financiar os projetos.

Os investidores estão inebriados. Em agosto, a firma de investimentos Copenhagen Infrastructure Partners (CIP) afirmou que levantou € 3 bilhões para um fundo que investirá exclusivamente em ativos de hidrogênio. Uma dúzia de projetos foi anunciada na Europa; os três maiores acrescentam até 20 GW de energia verde. A empresa dinamarquesa Topsoe, que fornece tecnologia para esses empreendimentos, afirma que seus pedidos equivalem a 86 GW.

Turbinas de vento em Sabugal, Portugal  Foto: Pedro Nunes/Reuters

Em última instância, o sistema energético do Mar do Norte poderia tomar a forma de um arquipélago composto por “ilhas de energia” que abrigam equipes de manutenção da fazenda eólica, agregam eletricidade e produzem hidrogênio para ser transportado à terra-firme por navio ou gasoduto. Até 10 projetos desse tipo estão em consideração, de acordo com a firma de pesquisas Sintef. A North Sea Energy Island, um atol artificial a 100 quilômetros da costa dinamarquesa, deverá ser oferecida em leilão em 2023. Ela atuará como terminal para dez fazendas eólicas em suas proximidades, com ligações para países vizinhos.

Um dos participantes, um consórcio entre a empresa dinamarquesa Orsted, maior construtora de fazendas eólicas offshore no mundo, e o fundo local de pensões ATP, vislumbra um design modular, com componentes fabricados em terra-firme e montados no mar. “Esperamos que ainda esteja funcional daqui a 100 anos”, afirma Brendan Bradley, da firma de engenharia Arup, que atua como conselheiro no projeto. Thomas Dalsgaard, da CIP, que compõe um consórcio rival, afirma que produzir combustíveis verdes no mar não apenas ajudará a reduzir a pressão sobre as redes de transmissão, mas também poupará dinheiro: gasodutos de hidrogênio custam o equivalente a um quinto do preço das linhas de transmissão de eletricidade de alta capacidade.

E a nova economia do Mar do Norte extrapola o setor de energia. Eletricidade e hidrogênio não serão os únicos elementos a atravessar o leito marítimo. Isso também ocorrerá com dióxido de carbono. Algumas indústrias, como fabricação de cimento ou o setor químico, são difíceis de descarbonizar. Mas o CO2 que elas produzem pode ser coletado e bombeado para dentro dos depósitos de gás esvaziados no Mar do Norte. Esse tipo de captura e armazenamento de carbono (CCS) parecia uma maneira pouco atrativa de combater as mudanças climáticas por causa de seu alto custo e sua impopularidade entre ambientalistas, que se preocupavam com a possibilidade disso prolongar a vida dos combustíveis fósseis. Agora, assim como na energia eólica, os custos estão caindo, a resistência política abranda e os projetos se multiplicam.

Um projeto que busca aprovação em Roterdã, chamado Porthos, pretende conectar o maior porto da Europa via gasoduto a uma estação de compressão, para depois enviar o CO2 para o depósito de gás natural esvaziado no mar. Apesar de um tribunal ter atrasado recentemente seu início, o projeto ganhou luz verde das agências reguladoras holandesas. Quando entrar em operação, o sistema capturará cerca de 2,5 milhões de toneladas de CO2 anualmente por 15 anos, o equivalente a 2% das emissões holandesas. O Porto de Amsterdã planeja algo similar. Mais ao norte, próximo à cidade norueguesa de Bergen, a empresa de energia Equinor, e seus parceiros concluíram operações de perfuração para um poço de injeção de CO2 como parte de um projeto chamado Aurora Boreal. De acordo com Guloren Turan, do Global CCS Institute, um centro de pesquisas, a Europa possui hoje mais de 70 instalações desse tipo em vários estágios de desenvolvimento.

Outro valioso produto atravessando o Mar do Norte é informação. Se você seguir um dos mais novos cabos transatlânticos de dados que chegam a Esbjerg chamado Havfrue e depois virar à direita em uma bifurcação no meio do Mar do Norte, você acaba em Kristiansand, uma cidade do sul da Noruega — lar do N01 Campus, o “maior centro de processamento de dados alimentado 100% por energia verde”, segundo sua proprietária, a Bulk Infrastructure. “Queremos construir uma plataforma para serviços digitais sustentáveis”, afirma o fundador da empresa, Peder Naerbo.

Países do Mar do Norte são excelentes lugares para armazenar e processar dados. Baixos custos de energia barateiam a usina de dígitos, que é intensiva em energia. O clima frio significa que os centros de processamento de dados podem ser refrescados apenas por meio da circulação do ar externo, em vez de usar dispendiosos sistemas de ar-refrigerado. A região conta com força de trabalho altamente qualificada, instituições estáveis e algumas das leis de dados mais iluminadas do mundo. Latência, o tempo que leva para transportar dados para dentro e fora das nuvens computacionais, torna-se um problema cada vez menor conforme a tecnologia avança, portanto, cargas de trabalho digital podem ser processadas em instalações cada vez mais remotas. E centros de processamento de dados estão atingindo seus limites na Europa. Em 2021, centros de processamento de dados irlandeses e outros produtos digitais consumiram 17% da eletricidade do país. Para evitar apagões, a estatal irlandesa de energia, EirGrid, não fornecerá eletricidade para novos polos de servidores.

De acordo com a firma de dados TeleGeography, 13 novos cabos foram instalados no Mar do Norte desde 2020; em comparação, na década de 2010 havia cinco ao todo. Centros de processamento de dados também estão brotando à medida que grandes servidores de nuvens prometem descarbonizar suas cadeias de fornecimento. A Amazon Web Services (AWS) e a Microsoft Azure, as duas maiores empresas de nuvens, construíram polos de servidores nos países nórdicos. A Meta tem seu projeto nas proximidades de Esbjerg. Indústrias mais antigas também estão movendo sua computação para o norte. Mercedes-Benz e Volkswagen têm computadores instalados em locais que já foram minas na Noruega fazendo simulações de acidentes automobilísticos e testando seus carros em túneis de vento. Em média, estima a consultoria Altman Solon, a demanda por centros de processamento de dados na região aumentará 17% ao ano até 2030.

Vá para o norte, velho industrial

Mais atividade econômica europeia poderia ser atraída para o norte. “Abundância em energia tende a atrair indústria”, afirma o historiador econômico Nikolaus Wolf, da Universidade Humboldt, em Berlim. Foi o que aconteceu no início do século 19, quando abundância hidroelétrica ajudou a atrair a indústria do algodão para Lancashire. Wolf e Nicholas Crafts, na Universidade de Warwick, calcularam que se Lancashire tivesse 10% menos capacidade hidroelétrica também teria tido 10% menos empregos no setor têxtil em 1838 em postos críticos.

Hoje é mais fácil distribuir energia via redes de transmissão e gasodutos do que era durante a Revolução Industrial, e centros industriais de toda a Europa têm seus atrativos. Levar fornos de fabricação de cimento para as costas do Mar do Norte significaria ter de transportar calcário para lá e trazer de volta o cimento aos consumidores, o que tornaria o processo inviável economicamente (e até o advento dos caminhões de emissões-zero, prejudicial ao clima). Unidades gigantescas de craqueamento a vapor, que quebram hidrocarbonetos em moléculas menores em indústrias químicas, também não se moverão para o norte tão logo: são um investimento grande demais, integrado às cadeias de fornecimento existentes e já em processo de ser eletrificado.

Mas o princípio de Wolf ainda vale para algumas indústrias — e pode beneficiar outras localidades setentrionais não diretamente no Mar do Norte. Em Narvik, mais ao norte, no Mar da Noruega, a Aker Horizons, uma firma que investe em energia renovável, quer estabelecer um polo industrial verde alimentado por energia eólica gerada no mar. Em Boden, uma cidade sueca próxima à costa oriental da Península Escandinava, a H2 Green Steel está construindo uma nova usina siderúrgica, a primeira na Europa em meio século. Seu forno não será a carvão ou gás natural, funcionará com hidrogênio verde — criado em uma das maiores usinas de eletrólise do planeta, alimentada por energia eólica produzida em terra e energia hidroelétrica.

Além de exportar aço, a H2 Green Steel espera exportar também ferro-esponja, um produto intermediário que requer grande parte da energia total usada na fabricação de aço. Isso equivaleria a dividir em duas a indústria siderúrgica, explica o diretor da empresa, Henrik Henriksson. As partes intensivas em energia do processo migrariam para onde podem ser realizadas com mais eficiência: bem ao lado das fontes de energia renovável. As partes mais intensivas em trabalho e conhecimento poderiam permanecer nos polos siderúrgicos tradicionais da Europa, como o Vale do Ruhr.

Em Wilhelmshaven, uma cidade costeira na Alemanha, a estatal de energia Uniper acaba de concluir o primeiro terminal do país para importação de gás natural liquefeito (GNL), para substituir parte do gás russo que deixou de fluir da Sibéria pelos gasodutos. A empresa planeja construir unidades de craqueamento para produzir hidrogênio a partir de amônia próximo ao terminal de GNL. Em outro canto do porto, próximo a uma termoelétrica a carvão desativada, a Uniper construirá uma usina de hidrogênio e proverá espaço para empresas sedentas de energia. “Wilhelmshaven desempenhará um importante papel como o lugar em que a energia verde chega ao território”, afirma Holger Kreetz, encarregado de administrar ativos da Uniper.

Outras empresas rumando ao norte incluem fabricantes de baterias para veículos elétricos, que também requerem muita energia para produzir, e fabricantes de turbinas eólicas atingidos pelas perturbações nas cadeias de fornecimento. A Vestas, maior produtora mundial das turbinas, está fechando uma fábrica na China e abrindo outra na Polônia em parte para ficar próximo a uma nova fazenda eólica no Mar Báltico.

Como em todas as mudanças dessa magnitude, alguns veem problemas. Energia renovável ficará até mais barata em outras partes, alerta Christer Tryggestad, da McKinsey, outra consultoria. Em vez de investir no Mar do Norte e seu entorno, as empresas deveriam rumar para lugares ensolarados, como o Oriente Médio ou a Espanha. Alguns não estão convencidos de que a UE será capaz de atender suas ambiciosas metas de aumentar a produção de energia eólica no mar. A Vestas e suas colegas fabricantes de turbinas já estão reclamando amargamente afirmando que permissões para novos parques eólicos podem levar uma década ou mais para se obter. As empresas de serviços-eólicos-offshore alertam que logo poderão ficar sem pessoal e maquinário para manter os clientes felizes.

O último obstáculo vem do outro lado do Atlântico. A Lei de Redução da Inflação do presidente Joe Biden prevê US$ 370 bilhões em subsídios e créditos fiscais para produtos e serviços amigáveis ao meio ambiente, contanto que sejam fabricados e oferecidos nos Estados Unidos. A UE preocupa-se com a hipótese das ajudas afastarem os investidores do bloco, que atualmente analisa se a lei viola regras comerciais internacionais.

Se esses problemas puderem ser superados, o impacto da nova economia do Mar do Norte sobre o continente será importantíssimo. Conforme o epicentro econômico da Europa se move para o norte, o mesmo ocorrerá com o epicentro político, prevê Frank Peter, do instituto alemão Agora Energiewende. Isso poderia alterar o equilíbrio de poder dentro de países com litoral. O Estado costeiro de Bremen, um dos mais pobres da Alemanha, poderia ganhar peso em detrimento da rica, mas sem saída ao mar, Baviera. No nível europeu, França e Alemanha, cuja força industrial sustentou a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, antecessora da UE, podem perder alguma influência para um novo bloco liderado por Dinamarca, Países Baixos e, fora da UE, Reino Unido e Noruega. Franceses e bávaros podem se arrepiar com a ideia de uma Comunidade da Energia Eólica e do Hidrogênio centrada no Mar do Norte. Mas ela daria à Europa inteira um impulso econômico e geopolítico muito necessário. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Imagine um kit Meccano, mas feito para os deuses. Lâminas da altura do Big Ben, rotores e seções de torres do tamanho de prédios escolares, eixos e geradores tão pesados que têm de ser rotacionados a cada 20 minutos para não acabar esmagados pelo próprio peso — todos esses componentes estão espalhados por uma área do tamanho de 150 campos de futebol. Montados, eles formam edificações equiparáveis à Torre Eiffel, porém mais úteis: turbinas eólicas a serem instaladas em algum ponto do Mar do Norte.

Bem-vindos a Esbjerg, o polo da indústria eólica-offshore europeia. Dois terços das turbinas girando atualmente nas costas da Europa, o suficiente para fornecer eletricidade para 40 milhões de lares, foram montados nesta cidade portuária na Dinamarca, de 72 mil habitantes. E os deuses de Esbjerg estão apenas começando a brincadeira. O operador portuário da cidade planeja quase triplicar sua capacidade de empreender projetos eólicos até 2026. Firmas locais de engenharia que anteriormente serviam à indústria de combustíveis fósseis agora prestam serviços para o setor de energia eólica. A Meta comprou 212 hectares de terras nas imediações de Esbjerg para construir um centro de processamento de dados alimentado por energias renováveis para suas redes sociais. No mar aberto, cabos que transportarão 30% do tráfego internacional de dados para a Noruega estão sendo instalados. O prefeito de Esbjerg foi ao Vietnã e a Washington compartilhar a história de sucesso de sua cidade.

Com uma dose de pensamento estratégico e alguma sorte, uma série de Esbjergs poderia escalar para uma nova economia no Mar do Norte. Isso ajudaria a Europa a atender suas ambiciosas metas climáticas e reequilibrar suas fontes de energia longe de países governados por tiranos como o russo Vladimir Putin. Seus recém-cunhados campeões corporativos poderiam oferecer à Europa sua melhor — e talvez última — chance de permanecer relevante globalmente. E isso poderia alterar o equilíbrio político e econômico do continente criando uma alternativa ao titubeante motor franco-alemão.

Pás de rotor são retratadas no porto de exportação da Siemens Wind Power em Esbjerg, 11 de junho de 2012 Foto: Fabian Bimmer/Reuters

O Mar do Norte sempre foi significativo economicamente. Margeado por seis nações — Bélgica, Reino Unido, Dinamarca, Alemanha, Holanda e Noruega — ele constitui um ponto de intersecção de importantes rotas comerciais. Suas fortes marés, que despejam nutrientes sobre o raso assoalho marinho, são um trunfo para os pescadores. No século 20, petróleo e gás natural foram descobertos sob seu leito. No pico de a atividade de prospecção na região, nos anos 90, Reino Unido e Noruega, os maiores produtores no Mar do Norte, extraíam juntos 6 milhões de barris ao dia; atualmente, os Emirados Árabes Unidos extraem a metade disso. Um campo na Escócia, chamado Brent, emprestou seu nome para o índice de referência global do preço do petróleo. À medida que essa riqueza se esgota — e a demanda pelo que ainda resta diminui em meio a preocupações a respeito das mudanças climáticas — o turbulento corpo d’água tem encontrado usos lucrativos.

A maior aposta é em um recurso inesgotável no Mar do Norte: o clima terrível. Com velocidades médias de vento de 10 metros por segundo, a região é uma das mais tempestuosas no mundo. No dia que este correspondente visitou Esbjerg, as velocidades atingiam o dobro da média, o suficiente para baixar o preço da eletricidade no atacado para quase zero. O leito do Mar do Norte é na maior parte fofo, o que facilita a fixação de turbinas (as flutuantes ainda não foram acionadas em escala em nenhum lugar no planeta). A profundidade do mar, além disso, não passa de 90 metros, o que permite a instalação de fazendas eólicas mais longe das costas, onde os ventos são mais consistentes. Ed Northam, da firma de investimento Macquarie Group, que tem participação em 40% de todas as fazendas eólicas offshore em operação no Reino Unido, afirma que no mar suas turbinas funcionam a até 60% de sua capacidade, e que em terra os geradores atingem normalmente de 30% a 40% da capacidade.

Em 2022, países do Mar do Norte leiloaram 25 gigawatts (GW) em capacidade de energia eólica, tonando o ano passado de longe o mais movimentado. Leilões de cerca do equivalente a 30 GW já foram marcados para os próximos três anos. A expectativa é que as novas conexões anuais cresçam de menos de 4 GW hoje para mais de 10 GW no fim desta década. Em uma cúpula em Esbjerg, em maio, a Comissão Europeia e quatro países do Mar do Norte concordaram em instalar 150 GW até 2025, o que equivale a cinco vezes a atual produção de energia eólica na Europa e três vezes a mundial. Em setembro, esse grupo e outros cinco países elevaram o número para 260 GW, o equivalente à capacidade das 24 mil maiores turbinas atualmente em atividade.

Essa ambição se torna possível por meio da versão eólica da Lei de Moore, que descreveu a elevação exponencial do poder da computação. Três décadas atrás, a primeira fazenda eólica no mar do planeta — Vindeby, na Dinamarca, empregando 11 turbinas — tinha capacidade total de 5 megawatts (MW). Hoje, uma única turbina é capaz de gerar 14 MW, e uma fazenda pode conter mais de 100 delas. Cabos mais robustos e transformadores no mar para converter a eletricidade eólica de corrente alternada para direta, capaz de viajar longas distâncias sem grandes perdas, possibilitam que mais energia seja gerada em locais mais remotos.

O resultado é que várias fazendas eólicas atualmente em instalação ultrapassam 1 GW em capacidade, o que equivale ao rendimento comum de usinas nucleares. Prevista para entrar em atividade no próximo verão, a fazenda eólica em construção em Dogger Bank, com turbinas instaladas a distâncias entre 130 quilômetros e 200 quilômetros da costa britânica, terá capacidade recorde, de 3,6 GW, quando atingir seu funcionamento pleno, em 2026. A economia de escala tem baixado os custos, tornando a eletricidade eólica gerada no mar competitiva em relação a outras fontes de energia. Em julho, o Reino Unido concedeu contratos para cinco projetos, incluindo em Dogger Bank, ao preço de £ 37 (US$ 44) por megawatt-hora — menos de um sexto do preço da eletricidade no atacado no Reino Unido em dezembro.

O mau tempo nem sempre é um trunfo: seus caprichos também podem estressar a rede. Convenientemente, a tecnologia e os preços em queda estão permitindo que operadores de energia eólica combatam os elementos. Uma maneira é com mais interconexões, primeiro entre as fazendas e a terra-firme — hoje a maioria das fazendas tem uma ligação com a costa, o que é ineficiente — e depois entre as próprias fazendas. Metade dos 3 GW a serem leiloados pela Noruega contará com a opção de criar ligações com outros países. Phil Sandy, da National Grid, que gere a infraestrutura britânica de energia, prevê um futuro de redes submarinas complexas, similares às existentes em terra-firme.

Outra maneira de administrar a variabilidade na energia eólica é usar moléculas de água para produzir combustíveis “verdes”, como hidrogênio e amônia. Em maio, a Comissão Europeia e chefões da indústria prometeram aumentar dez vezes na UE a capacidade de fabricação de eletrolisadores, que fazem a quebra das moléculas de água, até 2025. Isso permitiria ao bloco produzir 10 milhões de toneladas de combustíveis verdes até 2030. A comissão também propôs um “banco de hidrogênio” capitalizado com € 3 bilhões (US$ 3,2 bilhões) para ajudar a financiar os projetos.

Os investidores estão inebriados. Em agosto, a firma de investimentos Copenhagen Infrastructure Partners (CIP) afirmou que levantou € 3 bilhões para um fundo que investirá exclusivamente em ativos de hidrogênio. Uma dúzia de projetos foi anunciada na Europa; os três maiores acrescentam até 20 GW de energia verde. A empresa dinamarquesa Topsoe, que fornece tecnologia para esses empreendimentos, afirma que seus pedidos equivalem a 86 GW.

Turbinas de vento em Sabugal, Portugal  Foto: Pedro Nunes/Reuters

Em última instância, o sistema energético do Mar do Norte poderia tomar a forma de um arquipélago composto por “ilhas de energia” que abrigam equipes de manutenção da fazenda eólica, agregam eletricidade e produzem hidrogênio para ser transportado à terra-firme por navio ou gasoduto. Até 10 projetos desse tipo estão em consideração, de acordo com a firma de pesquisas Sintef. A North Sea Energy Island, um atol artificial a 100 quilômetros da costa dinamarquesa, deverá ser oferecida em leilão em 2023. Ela atuará como terminal para dez fazendas eólicas em suas proximidades, com ligações para países vizinhos.

Um dos participantes, um consórcio entre a empresa dinamarquesa Orsted, maior construtora de fazendas eólicas offshore no mundo, e o fundo local de pensões ATP, vislumbra um design modular, com componentes fabricados em terra-firme e montados no mar. “Esperamos que ainda esteja funcional daqui a 100 anos”, afirma Brendan Bradley, da firma de engenharia Arup, que atua como conselheiro no projeto. Thomas Dalsgaard, da CIP, que compõe um consórcio rival, afirma que produzir combustíveis verdes no mar não apenas ajudará a reduzir a pressão sobre as redes de transmissão, mas também poupará dinheiro: gasodutos de hidrogênio custam o equivalente a um quinto do preço das linhas de transmissão de eletricidade de alta capacidade.

E a nova economia do Mar do Norte extrapola o setor de energia. Eletricidade e hidrogênio não serão os únicos elementos a atravessar o leito marítimo. Isso também ocorrerá com dióxido de carbono. Algumas indústrias, como fabricação de cimento ou o setor químico, são difíceis de descarbonizar. Mas o CO2 que elas produzem pode ser coletado e bombeado para dentro dos depósitos de gás esvaziados no Mar do Norte. Esse tipo de captura e armazenamento de carbono (CCS) parecia uma maneira pouco atrativa de combater as mudanças climáticas por causa de seu alto custo e sua impopularidade entre ambientalistas, que se preocupavam com a possibilidade disso prolongar a vida dos combustíveis fósseis. Agora, assim como na energia eólica, os custos estão caindo, a resistência política abranda e os projetos se multiplicam.

Um projeto que busca aprovação em Roterdã, chamado Porthos, pretende conectar o maior porto da Europa via gasoduto a uma estação de compressão, para depois enviar o CO2 para o depósito de gás natural esvaziado no mar. Apesar de um tribunal ter atrasado recentemente seu início, o projeto ganhou luz verde das agências reguladoras holandesas. Quando entrar em operação, o sistema capturará cerca de 2,5 milhões de toneladas de CO2 anualmente por 15 anos, o equivalente a 2% das emissões holandesas. O Porto de Amsterdã planeja algo similar. Mais ao norte, próximo à cidade norueguesa de Bergen, a empresa de energia Equinor, e seus parceiros concluíram operações de perfuração para um poço de injeção de CO2 como parte de um projeto chamado Aurora Boreal. De acordo com Guloren Turan, do Global CCS Institute, um centro de pesquisas, a Europa possui hoje mais de 70 instalações desse tipo em vários estágios de desenvolvimento.

Outro valioso produto atravessando o Mar do Norte é informação. Se você seguir um dos mais novos cabos transatlânticos de dados que chegam a Esbjerg chamado Havfrue e depois virar à direita em uma bifurcação no meio do Mar do Norte, você acaba em Kristiansand, uma cidade do sul da Noruega — lar do N01 Campus, o “maior centro de processamento de dados alimentado 100% por energia verde”, segundo sua proprietária, a Bulk Infrastructure. “Queremos construir uma plataforma para serviços digitais sustentáveis”, afirma o fundador da empresa, Peder Naerbo.

Países do Mar do Norte são excelentes lugares para armazenar e processar dados. Baixos custos de energia barateiam a usina de dígitos, que é intensiva em energia. O clima frio significa que os centros de processamento de dados podem ser refrescados apenas por meio da circulação do ar externo, em vez de usar dispendiosos sistemas de ar-refrigerado. A região conta com força de trabalho altamente qualificada, instituições estáveis e algumas das leis de dados mais iluminadas do mundo. Latência, o tempo que leva para transportar dados para dentro e fora das nuvens computacionais, torna-se um problema cada vez menor conforme a tecnologia avança, portanto, cargas de trabalho digital podem ser processadas em instalações cada vez mais remotas. E centros de processamento de dados estão atingindo seus limites na Europa. Em 2021, centros de processamento de dados irlandeses e outros produtos digitais consumiram 17% da eletricidade do país. Para evitar apagões, a estatal irlandesa de energia, EirGrid, não fornecerá eletricidade para novos polos de servidores.

De acordo com a firma de dados TeleGeography, 13 novos cabos foram instalados no Mar do Norte desde 2020; em comparação, na década de 2010 havia cinco ao todo. Centros de processamento de dados também estão brotando à medida que grandes servidores de nuvens prometem descarbonizar suas cadeias de fornecimento. A Amazon Web Services (AWS) e a Microsoft Azure, as duas maiores empresas de nuvens, construíram polos de servidores nos países nórdicos. A Meta tem seu projeto nas proximidades de Esbjerg. Indústrias mais antigas também estão movendo sua computação para o norte. Mercedes-Benz e Volkswagen têm computadores instalados em locais que já foram minas na Noruega fazendo simulações de acidentes automobilísticos e testando seus carros em túneis de vento. Em média, estima a consultoria Altman Solon, a demanda por centros de processamento de dados na região aumentará 17% ao ano até 2030.

Vá para o norte, velho industrial

Mais atividade econômica europeia poderia ser atraída para o norte. “Abundância em energia tende a atrair indústria”, afirma o historiador econômico Nikolaus Wolf, da Universidade Humboldt, em Berlim. Foi o que aconteceu no início do século 19, quando abundância hidroelétrica ajudou a atrair a indústria do algodão para Lancashire. Wolf e Nicholas Crafts, na Universidade de Warwick, calcularam que se Lancashire tivesse 10% menos capacidade hidroelétrica também teria tido 10% menos empregos no setor têxtil em 1838 em postos críticos.

Hoje é mais fácil distribuir energia via redes de transmissão e gasodutos do que era durante a Revolução Industrial, e centros industriais de toda a Europa têm seus atrativos. Levar fornos de fabricação de cimento para as costas do Mar do Norte significaria ter de transportar calcário para lá e trazer de volta o cimento aos consumidores, o que tornaria o processo inviável economicamente (e até o advento dos caminhões de emissões-zero, prejudicial ao clima). Unidades gigantescas de craqueamento a vapor, que quebram hidrocarbonetos em moléculas menores em indústrias químicas, também não se moverão para o norte tão logo: são um investimento grande demais, integrado às cadeias de fornecimento existentes e já em processo de ser eletrificado.

Mas o princípio de Wolf ainda vale para algumas indústrias — e pode beneficiar outras localidades setentrionais não diretamente no Mar do Norte. Em Narvik, mais ao norte, no Mar da Noruega, a Aker Horizons, uma firma que investe em energia renovável, quer estabelecer um polo industrial verde alimentado por energia eólica gerada no mar. Em Boden, uma cidade sueca próxima à costa oriental da Península Escandinava, a H2 Green Steel está construindo uma nova usina siderúrgica, a primeira na Europa em meio século. Seu forno não será a carvão ou gás natural, funcionará com hidrogênio verde — criado em uma das maiores usinas de eletrólise do planeta, alimentada por energia eólica produzida em terra e energia hidroelétrica.

Além de exportar aço, a H2 Green Steel espera exportar também ferro-esponja, um produto intermediário que requer grande parte da energia total usada na fabricação de aço. Isso equivaleria a dividir em duas a indústria siderúrgica, explica o diretor da empresa, Henrik Henriksson. As partes intensivas em energia do processo migrariam para onde podem ser realizadas com mais eficiência: bem ao lado das fontes de energia renovável. As partes mais intensivas em trabalho e conhecimento poderiam permanecer nos polos siderúrgicos tradicionais da Europa, como o Vale do Ruhr.

Em Wilhelmshaven, uma cidade costeira na Alemanha, a estatal de energia Uniper acaba de concluir o primeiro terminal do país para importação de gás natural liquefeito (GNL), para substituir parte do gás russo que deixou de fluir da Sibéria pelos gasodutos. A empresa planeja construir unidades de craqueamento para produzir hidrogênio a partir de amônia próximo ao terminal de GNL. Em outro canto do porto, próximo a uma termoelétrica a carvão desativada, a Uniper construirá uma usina de hidrogênio e proverá espaço para empresas sedentas de energia. “Wilhelmshaven desempenhará um importante papel como o lugar em que a energia verde chega ao território”, afirma Holger Kreetz, encarregado de administrar ativos da Uniper.

Outras empresas rumando ao norte incluem fabricantes de baterias para veículos elétricos, que também requerem muita energia para produzir, e fabricantes de turbinas eólicas atingidos pelas perturbações nas cadeias de fornecimento. A Vestas, maior produtora mundial das turbinas, está fechando uma fábrica na China e abrindo outra na Polônia em parte para ficar próximo a uma nova fazenda eólica no Mar Báltico.

Como em todas as mudanças dessa magnitude, alguns veem problemas. Energia renovável ficará até mais barata em outras partes, alerta Christer Tryggestad, da McKinsey, outra consultoria. Em vez de investir no Mar do Norte e seu entorno, as empresas deveriam rumar para lugares ensolarados, como o Oriente Médio ou a Espanha. Alguns não estão convencidos de que a UE será capaz de atender suas ambiciosas metas de aumentar a produção de energia eólica no mar. A Vestas e suas colegas fabricantes de turbinas já estão reclamando amargamente afirmando que permissões para novos parques eólicos podem levar uma década ou mais para se obter. As empresas de serviços-eólicos-offshore alertam que logo poderão ficar sem pessoal e maquinário para manter os clientes felizes.

O último obstáculo vem do outro lado do Atlântico. A Lei de Redução da Inflação do presidente Joe Biden prevê US$ 370 bilhões em subsídios e créditos fiscais para produtos e serviços amigáveis ao meio ambiente, contanto que sejam fabricados e oferecidos nos Estados Unidos. A UE preocupa-se com a hipótese das ajudas afastarem os investidores do bloco, que atualmente analisa se a lei viola regras comerciais internacionais.

Se esses problemas puderem ser superados, o impacto da nova economia do Mar do Norte sobre o continente será importantíssimo. Conforme o epicentro econômico da Europa se move para o norte, o mesmo ocorrerá com o epicentro político, prevê Frank Peter, do instituto alemão Agora Energiewende. Isso poderia alterar o equilíbrio de poder dentro de países com litoral. O Estado costeiro de Bremen, um dos mais pobres da Alemanha, poderia ganhar peso em detrimento da rica, mas sem saída ao mar, Baviera. No nível europeu, França e Alemanha, cuja força industrial sustentou a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, antecessora da UE, podem perder alguma influência para um novo bloco liderado por Dinamarca, Países Baixos e, fora da UE, Reino Unido e Noruega. Franceses e bávaros podem se arrepiar com a ideia de uma Comunidade da Energia Eólica e do Hidrogênio centrada no Mar do Norte. Mas ela daria à Europa inteira um impulso econômico e geopolítico muito necessário. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Imagine um kit Meccano, mas feito para os deuses. Lâminas da altura do Big Ben, rotores e seções de torres do tamanho de prédios escolares, eixos e geradores tão pesados que têm de ser rotacionados a cada 20 minutos para não acabar esmagados pelo próprio peso — todos esses componentes estão espalhados por uma área do tamanho de 150 campos de futebol. Montados, eles formam edificações equiparáveis à Torre Eiffel, porém mais úteis: turbinas eólicas a serem instaladas em algum ponto do Mar do Norte.

Bem-vindos a Esbjerg, o polo da indústria eólica-offshore europeia. Dois terços das turbinas girando atualmente nas costas da Europa, o suficiente para fornecer eletricidade para 40 milhões de lares, foram montados nesta cidade portuária na Dinamarca, de 72 mil habitantes. E os deuses de Esbjerg estão apenas começando a brincadeira. O operador portuário da cidade planeja quase triplicar sua capacidade de empreender projetos eólicos até 2026. Firmas locais de engenharia que anteriormente serviam à indústria de combustíveis fósseis agora prestam serviços para o setor de energia eólica. A Meta comprou 212 hectares de terras nas imediações de Esbjerg para construir um centro de processamento de dados alimentado por energias renováveis para suas redes sociais. No mar aberto, cabos que transportarão 30% do tráfego internacional de dados para a Noruega estão sendo instalados. O prefeito de Esbjerg foi ao Vietnã e a Washington compartilhar a história de sucesso de sua cidade.

Com uma dose de pensamento estratégico e alguma sorte, uma série de Esbjergs poderia escalar para uma nova economia no Mar do Norte. Isso ajudaria a Europa a atender suas ambiciosas metas climáticas e reequilibrar suas fontes de energia longe de países governados por tiranos como o russo Vladimir Putin. Seus recém-cunhados campeões corporativos poderiam oferecer à Europa sua melhor — e talvez última — chance de permanecer relevante globalmente. E isso poderia alterar o equilíbrio político e econômico do continente criando uma alternativa ao titubeante motor franco-alemão.

Pás de rotor são retratadas no porto de exportação da Siemens Wind Power em Esbjerg, 11 de junho de 2012 Foto: Fabian Bimmer/Reuters

O Mar do Norte sempre foi significativo economicamente. Margeado por seis nações — Bélgica, Reino Unido, Dinamarca, Alemanha, Holanda e Noruega — ele constitui um ponto de intersecção de importantes rotas comerciais. Suas fortes marés, que despejam nutrientes sobre o raso assoalho marinho, são um trunfo para os pescadores. No século 20, petróleo e gás natural foram descobertos sob seu leito. No pico de a atividade de prospecção na região, nos anos 90, Reino Unido e Noruega, os maiores produtores no Mar do Norte, extraíam juntos 6 milhões de barris ao dia; atualmente, os Emirados Árabes Unidos extraem a metade disso. Um campo na Escócia, chamado Brent, emprestou seu nome para o índice de referência global do preço do petróleo. À medida que essa riqueza se esgota — e a demanda pelo que ainda resta diminui em meio a preocupações a respeito das mudanças climáticas — o turbulento corpo d’água tem encontrado usos lucrativos.

A maior aposta é em um recurso inesgotável no Mar do Norte: o clima terrível. Com velocidades médias de vento de 10 metros por segundo, a região é uma das mais tempestuosas no mundo. No dia que este correspondente visitou Esbjerg, as velocidades atingiam o dobro da média, o suficiente para baixar o preço da eletricidade no atacado para quase zero. O leito do Mar do Norte é na maior parte fofo, o que facilita a fixação de turbinas (as flutuantes ainda não foram acionadas em escala em nenhum lugar no planeta). A profundidade do mar, além disso, não passa de 90 metros, o que permite a instalação de fazendas eólicas mais longe das costas, onde os ventos são mais consistentes. Ed Northam, da firma de investimento Macquarie Group, que tem participação em 40% de todas as fazendas eólicas offshore em operação no Reino Unido, afirma que no mar suas turbinas funcionam a até 60% de sua capacidade, e que em terra os geradores atingem normalmente de 30% a 40% da capacidade.

Em 2022, países do Mar do Norte leiloaram 25 gigawatts (GW) em capacidade de energia eólica, tonando o ano passado de longe o mais movimentado. Leilões de cerca do equivalente a 30 GW já foram marcados para os próximos três anos. A expectativa é que as novas conexões anuais cresçam de menos de 4 GW hoje para mais de 10 GW no fim desta década. Em uma cúpula em Esbjerg, em maio, a Comissão Europeia e quatro países do Mar do Norte concordaram em instalar 150 GW até 2025, o que equivale a cinco vezes a atual produção de energia eólica na Europa e três vezes a mundial. Em setembro, esse grupo e outros cinco países elevaram o número para 260 GW, o equivalente à capacidade das 24 mil maiores turbinas atualmente em atividade.

Essa ambição se torna possível por meio da versão eólica da Lei de Moore, que descreveu a elevação exponencial do poder da computação. Três décadas atrás, a primeira fazenda eólica no mar do planeta — Vindeby, na Dinamarca, empregando 11 turbinas — tinha capacidade total de 5 megawatts (MW). Hoje, uma única turbina é capaz de gerar 14 MW, e uma fazenda pode conter mais de 100 delas. Cabos mais robustos e transformadores no mar para converter a eletricidade eólica de corrente alternada para direta, capaz de viajar longas distâncias sem grandes perdas, possibilitam que mais energia seja gerada em locais mais remotos.

O resultado é que várias fazendas eólicas atualmente em instalação ultrapassam 1 GW em capacidade, o que equivale ao rendimento comum de usinas nucleares. Prevista para entrar em atividade no próximo verão, a fazenda eólica em construção em Dogger Bank, com turbinas instaladas a distâncias entre 130 quilômetros e 200 quilômetros da costa britânica, terá capacidade recorde, de 3,6 GW, quando atingir seu funcionamento pleno, em 2026. A economia de escala tem baixado os custos, tornando a eletricidade eólica gerada no mar competitiva em relação a outras fontes de energia. Em julho, o Reino Unido concedeu contratos para cinco projetos, incluindo em Dogger Bank, ao preço de £ 37 (US$ 44) por megawatt-hora — menos de um sexto do preço da eletricidade no atacado no Reino Unido em dezembro.

O mau tempo nem sempre é um trunfo: seus caprichos também podem estressar a rede. Convenientemente, a tecnologia e os preços em queda estão permitindo que operadores de energia eólica combatam os elementos. Uma maneira é com mais interconexões, primeiro entre as fazendas e a terra-firme — hoje a maioria das fazendas tem uma ligação com a costa, o que é ineficiente — e depois entre as próprias fazendas. Metade dos 3 GW a serem leiloados pela Noruega contará com a opção de criar ligações com outros países. Phil Sandy, da National Grid, que gere a infraestrutura britânica de energia, prevê um futuro de redes submarinas complexas, similares às existentes em terra-firme.

Outra maneira de administrar a variabilidade na energia eólica é usar moléculas de água para produzir combustíveis “verdes”, como hidrogênio e amônia. Em maio, a Comissão Europeia e chefões da indústria prometeram aumentar dez vezes na UE a capacidade de fabricação de eletrolisadores, que fazem a quebra das moléculas de água, até 2025. Isso permitiria ao bloco produzir 10 milhões de toneladas de combustíveis verdes até 2030. A comissão também propôs um “banco de hidrogênio” capitalizado com € 3 bilhões (US$ 3,2 bilhões) para ajudar a financiar os projetos.

Os investidores estão inebriados. Em agosto, a firma de investimentos Copenhagen Infrastructure Partners (CIP) afirmou que levantou € 3 bilhões para um fundo que investirá exclusivamente em ativos de hidrogênio. Uma dúzia de projetos foi anunciada na Europa; os três maiores acrescentam até 20 GW de energia verde. A empresa dinamarquesa Topsoe, que fornece tecnologia para esses empreendimentos, afirma que seus pedidos equivalem a 86 GW.

Turbinas de vento em Sabugal, Portugal  Foto: Pedro Nunes/Reuters

Em última instância, o sistema energético do Mar do Norte poderia tomar a forma de um arquipélago composto por “ilhas de energia” que abrigam equipes de manutenção da fazenda eólica, agregam eletricidade e produzem hidrogênio para ser transportado à terra-firme por navio ou gasoduto. Até 10 projetos desse tipo estão em consideração, de acordo com a firma de pesquisas Sintef. A North Sea Energy Island, um atol artificial a 100 quilômetros da costa dinamarquesa, deverá ser oferecida em leilão em 2023. Ela atuará como terminal para dez fazendas eólicas em suas proximidades, com ligações para países vizinhos.

Um dos participantes, um consórcio entre a empresa dinamarquesa Orsted, maior construtora de fazendas eólicas offshore no mundo, e o fundo local de pensões ATP, vislumbra um design modular, com componentes fabricados em terra-firme e montados no mar. “Esperamos que ainda esteja funcional daqui a 100 anos”, afirma Brendan Bradley, da firma de engenharia Arup, que atua como conselheiro no projeto. Thomas Dalsgaard, da CIP, que compõe um consórcio rival, afirma que produzir combustíveis verdes no mar não apenas ajudará a reduzir a pressão sobre as redes de transmissão, mas também poupará dinheiro: gasodutos de hidrogênio custam o equivalente a um quinto do preço das linhas de transmissão de eletricidade de alta capacidade.

E a nova economia do Mar do Norte extrapola o setor de energia. Eletricidade e hidrogênio não serão os únicos elementos a atravessar o leito marítimo. Isso também ocorrerá com dióxido de carbono. Algumas indústrias, como fabricação de cimento ou o setor químico, são difíceis de descarbonizar. Mas o CO2 que elas produzem pode ser coletado e bombeado para dentro dos depósitos de gás esvaziados no Mar do Norte. Esse tipo de captura e armazenamento de carbono (CCS) parecia uma maneira pouco atrativa de combater as mudanças climáticas por causa de seu alto custo e sua impopularidade entre ambientalistas, que se preocupavam com a possibilidade disso prolongar a vida dos combustíveis fósseis. Agora, assim como na energia eólica, os custos estão caindo, a resistência política abranda e os projetos se multiplicam.

Um projeto que busca aprovação em Roterdã, chamado Porthos, pretende conectar o maior porto da Europa via gasoduto a uma estação de compressão, para depois enviar o CO2 para o depósito de gás natural esvaziado no mar. Apesar de um tribunal ter atrasado recentemente seu início, o projeto ganhou luz verde das agências reguladoras holandesas. Quando entrar em operação, o sistema capturará cerca de 2,5 milhões de toneladas de CO2 anualmente por 15 anos, o equivalente a 2% das emissões holandesas. O Porto de Amsterdã planeja algo similar. Mais ao norte, próximo à cidade norueguesa de Bergen, a empresa de energia Equinor, e seus parceiros concluíram operações de perfuração para um poço de injeção de CO2 como parte de um projeto chamado Aurora Boreal. De acordo com Guloren Turan, do Global CCS Institute, um centro de pesquisas, a Europa possui hoje mais de 70 instalações desse tipo em vários estágios de desenvolvimento.

Outro valioso produto atravessando o Mar do Norte é informação. Se você seguir um dos mais novos cabos transatlânticos de dados que chegam a Esbjerg chamado Havfrue e depois virar à direita em uma bifurcação no meio do Mar do Norte, você acaba em Kristiansand, uma cidade do sul da Noruega — lar do N01 Campus, o “maior centro de processamento de dados alimentado 100% por energia verde”, segundo sua proprietária, a Bulk Infrastructure. “Queremos construir uma plataforma para serviços digitais sustentáveis”, afirma o fundador da empresa, Peder Naerbo.

Países do Mar do Norte são excelentes lugares para armazenar e processar dados. Baixos custos de energia barateiam a usina de dígitos, que é intensiva em energia. O clima frio significa que os centros de processamento de dados podem ser refrescados apenas por meio da circulação do ar externo, em vez de usar dispendiosos sistemas de ar-refrigerado. A região conta com força de trabalho altamente qualificada, instituições estáveis e algumas das leis de dados mais iluminadas do mundo. Latência, o tempo que leva para transportar dados para dentro e fora das nuvens computacionais, torna-se um problema cada vez menor conforme a tecnologia avança, portanto, cargas de trabalho digital podem ser processadas em instalações cada vez mais remotas. E centros de processamento de dados estão atingindo seus limites na Europa. Em 2021, centros de processamento de dados irlandeses e outros produtos digitais consumiram 17% da eletricidade do país. Para evitar apagões, a estatal irlandesa de energia, EirGrid, não fornecerá eletricidade para novos polos de servidores.

De acordo com a firma de dados TeleGeography, 13 novos cabos foram instalados no Mar do Norte desde 2020; em comparação, na década de 2010 havia cinco ao todo. Centros de processamento de dados também estão brotando à medida que grandes servidores de nuvens prometem descarbonizar suas cadeias de fornecimento. A Amazon Web Services (AWS) e a Microsoft Azure, as duas maiores empresas de nuvens, construíram polos de servidores nos países nórdicos. A Meta tem seu projeto nas proximidades de Esbjerg. Indústrias mais antigas também estão movendo sua computação para o norte. Mercedes-Benz e Volkswagen têm computadores instalados em locais que já foram minas na Noruega fazendo simulações de acidentes automobilísticos e testando seus carros em túneis de vento. Em média, estima a consultoria Altman Solon, a demanda por centros de processamento de dados na região aumentará 17% ao ano até 2030.

Vá para o norte, velho industrial

Mais atividade econômica europeia poderia ser atraída para o norte. “Abundância em energia tende a atrair indústria”, afirma o historiador econômico Nikolaus Wolf, da Universidade Humboldt, em Berlim. Foi o que aconteceu no início do século 19, quando abundância hidroelétrica ajudou a atrair a indústria do algodão para Lancashire. Wolf e Nicholas Crafts, na Universidade de Warwick, calcularam que se Lancashire tivesse 10% menos capacidade hidroelétrica também teria tido 10% menos empregos no setor têxtil em 1838 em postos críticos.

Hoje é mais fácil distribuir energia via redes de transmissão e gasodutos do que era durante a Revolução Industrial, e centros industriais de toda a Europa têm seus atrativos. Levar fornos de fabricação de cimento para as costas do Mar do Norte significaria ter de transportar calcário para lá e trazer de volta o cimento aos consumidores, o que tornaria o processo inviável economicamente (e até o advento dos caminhões de emissões-zero, prejudicial ao clima). Unidades gigantescas de craqueamento a vapor, que quebram hidrocarbonetos em moléculas menores em indústrias químicas, também não se moverão para o norte tão logo: são um investimento grande demais, integrado às cadeias de fornecimento existentes e já em processo de ser eletrificado.

Mas o princípio de Wolf ainda vale para algumas indústrias — e pode beneficiar outras localidades setentrionais não diretamente no Mar do Norte. Em Narvik, mais ao norte, no Mar da Noruega, a Aker Horizons, uma firma que investe em energia renovável, quer estabelecer um polo industrial verde alimentado por energia eólica gerada no mar. Em Boden, uma cidade sueca próxima à costa oriental da Península Escandinava, a H2 Green Steel está construindo uma nova usina siderúrgica, a primeira na Europa em meio século. Seu forno não será a carvão ou gás natural, funcionará com hidrogênio verde — criado em uma das maiores usinas de eletrólise do planeta, alimentada por energia eólica produzida em terra e energia hidroelétrica.

Além de exportar aço, a H2 Green Steel espera exportar também ferro-esponja, um produto intermediário que requer grande parte da energia total usada na fabricação de aço. Isso equivaleria a dividir em duas a indústria siderúrgica, explica o diretor da empresa, Henrik Henriksson. As partes intensivas em energia do processo migrariam para onde podem ser realizadas com mais eficiência: bem ao lado das fontes de energia renovável. As partes mais intensivas em trabalho e conhecimento poderiam permanecer nos polos siderúrgicos tradicionais da Europa, como o Vale do Ruhr.

Em Wilhelmshaven, uma cidade costeira na Alemanha, a estatal de energia Uniper acaba de concluir o primeiro terminal do país para importação de gás natural liquefeito (GNL), para substituir parte do gás russo que deixou de fluir da Sibéria pelos gasodutos. A empresa planeja construir unidades de craqueamento para produzir hidrogênio a partir de amônia próximo ao terminal de GNL. Em outro canto do porto, próximo a uma termoelétrica a carvão desativada, a Uniper construirá uma usina de hidrogênio e proverá espaço para empresas sedentas de energia. “Wilhelmshaven desempenhará um importante papel como o lugar em que a energia verde chega ao território”, afirma Holger Kreetz, encarregado de administrar ativos da Uniper.

Outras empresas rumando ao norte incluem fabricantes de baterias para veículos elétricos, que também requerem muita energia para produzir, e fabricantes de turbinas eólicas atingidos pelas perturbações nas cadeias de fornecimento. A Vestas, maior produtora mundial das turbinas, está fechando uma fábrica na China e abrindo outra na Polônia em parte para ficar próximo a uma nova fazenda eólica no Mar Báltico.

Como em todas as mudanças dessa magnitude, alguns veem problemas. Energia renovável ficará até mais barata em outras partes, alerta Christer Tryggestad, da McKinsey, outra consultoria. Em vez de investir no Mar do Norte e seu entorno, as empresas deveriam rumar para lugares ensolarados, como o Oriente Médio ou a Espanha. Alguns não estão convencidos de que a UE será capaz de atender suas ambiciosas metas de aumentar a produção de energia eólica no mar. A Vestas e suas colegas fabricantes de turbinas já estão reclamando amargamente afirmando que permissões para novos parques eólicos podem levar uma década ou mais para se obter. As empresas de serviços-eólicos-offshore alertam que logo poderão ficar sem pessoal e maquinário para manter os clientes felizes.

O último obstáculo vem do outro lado do Atlântico. A Lei de Redução da Inflação do presidente Joe Biden prevê US$ 370 bilhões em subsídios e créditos fiscais para produtos e serviços amigáveis ao meio ambiente, contanto que sejam fabricados e oferecidos nos Estados Unidos. A UE preocupa-se com a hipótese das ajudas afastarem os investidores do bloco, que atualmente analisa se a lei viola regras comerciais internacionais.

Se esses problemas puderem ser superados, o impacto da nova economia do Mar do Norte sobre o continente será importantíssimo. Conforme o epicentro econômico da Europa se move para o norte, o mesmo ocorrerá com o epicentro político, prevê Frank Peter, do instituto alemão Agora Energiewende. Isso poderia alterar o equilíbrio de poder dentro de países com litoral. O Estado costeiro de Bremen, um dos mais pobres da Alemanha, poderia ganhar peso em detrimento da rica, mas sem saída ao mar, Baviera. No nível europeu, França e Alemanha, cuja força industrial sustentou a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, antecessora da UE, podem perder alguma influência para um novo bloco liderado por Dinamarca, Países Baixos e, fora da UE, Reino Unido e Noruega. Franceses e bávaros podem se arrepiar com a ideia de uma Comunidade da Energia Eólica e do Hidrogênio centrada no Mar do Norte. Mas ela daria à Europa inteira um impulso econômico e geopolítico muito necessário. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Imagine um kit Meccano, mas feito para os deuses. Lâminas da altura do Big Ben, rotores e seções de torres do tamanho de prédios escolares, eixos e geradores tão pesados que têm de ser rotacionados a cada 20 minutos para não acabar esmagados pelo próprio peso — todos esses componentes estão espalhados por uma área do tamanho de 150 campos de futebol. Montados, eles formam edificações equiparáveis à Torre Eiffel, porém mais úteis: turbinas eólicas a serem instaladas em algum ponto do Mar do Norte.

Bem-vindos a Esbjerg, o polo da indústria eólica-offshore europeia. Dois terços das turbinas girando atualmente nas costas da Europa, o suficiente para fornecer eletricidade para 40 milhões de lares, foram montados nesta cidade portuária na Dinamarca, de 72 mil habitantes. E os deuses de Esbjerg estão apenas começando a brincadeira. O operador portuário da cidade planeja quase triplicar sua capacidade de empreender projetos eólicos até 2026. Firmas locais de engenharia que anteriormente serviam à indústria de combustíveis fósseis agora prestam serviços para o setor de energia eólica. A Meta comprou 212 hectares de terras nas imediações de Esbjerg para construir um centro de processamento de dados alimentado por energias renováveis para suas redes sociais. No mar aberto, cabos que transportarão 30% do tráfego internacional de dados para a Noruega estão sendo instalados. O prefeito de Esbjerg foi ao Vietnã e a Washington compartilhar a história de sucesso de sua cidade.

Com uma dose de pensamento estratégico e alguma sorte, uma série de Esbjergs poderia escalar para uma nova economia no Mar do Norte. Isso ajudaria a Europa a atender suas ambiciosas metas climáticas e reequilibrar suas fontes de energia longe de países governados por tiranos como o russo Vladimir Putin. Seus recém-cunhados campeões corporativos poderiam oferecer à Europa sua melhor — e talvez última — chance de permanecer relevante globalmente. E isso poderia alterar o equilíbrio político e econômico do continente criando uma alternativa ao titubeante motor franco-alemão.

Pás de rotor são retratadas no porto de exportação da Siemens Wind Power em Esbjerg, 11 de junho de 2012 Foto: Fabian Bimmer/Reuters

O Mar do Norte sempre foi significativo economicamente. Margeado por seis nações — Bélgica, Reino Unido, Dinamarca, Alemanha, Holanda e Noruega — ele constitui um ponto de intersecção de importantes rotas comerciais. Suas fortes marés, que despejam nutrientes sobre o raso assoalho marinho, são um trunfo para os pescadores. No século 20, petróleo e gás natural foram descobertos sob seu leito. No pico de a atividade de prospecção na região, nos anos 90, Reino Unido e Noruega, os maiores produtores no Mar do Norte, extraíam juntos 6 milhões de barris ao dia; atualmente, os Emirados Árabes Unidos extraem a metade disso. Um campo na Escócia, chamado Brent, emprestou seu nome para o índice de referência global do preço do petróleo. À medida que essa riqueza se esgota — e a demanda pelo que ainda resta diminui em meio a preocupações a respeito das mudanças climáticas — o turbulento corpo d’água tem encontrado usos lucrativos.

A maior aposta é em um recurso inesgotável no Mar do Norte: o clima terrível. Com velocidades médias de vento de 10 metros por segundo, a região é uma das mais tempestuosas no mundo. No dia que este correspondente visitou Esbjerg, as velocidades atingiam o dobro da média, o suficiente para baixar o preço da eletricidade no atacado para quase zero. O leito do Mar do Norte é na maior parte fofo, o que facilita a fixação de turbinas (as flutuantes ainda não foram acionadas em escala em nenhum lugar no planeta). A profundidade do mar, além disso, não passa de 90 metros, o que permite a instalação de fazendas eólicas mais longe das costas, onde os ventos são mais consistentes. Ed Northam, da firma de investimento Macquarie Group, que tem participação em 40% de todas as fazendas eólicas offshore em operação no Reino Unido, afirma que no mar suas turbinas funcionam a até 60% de sua capacidade, e que em terra os geradores atingem normalmente de 30% a 40% da capacidade.

Em 2022, países do Mar do Norte leiloaram 25 gigawatts (GW) em capacidade de energia eólica, tonando o ano passado de longe o mais movimentado. Leilões de cerca do equivalente a 30 GW já foram marcados para os próximos três anos. A expectativa é que as novas conexões anuais cresçam de menos de 4 GW hoje para mais de 10 GW no fim desta década. Em uma cúpula em Esbjerg, em maio, a Comissão Europeia e quatro países do Mar do Norte concordaram em instalar 150 GW até 2025, o que equivale a cinco vezes a atual produção de energia eólica na Europa e três vezes a mundial. Em setembro, esse grupo e outros cinco países elevaram o número para 260 GW, o equivalente à capacidade das 24 mil maiores turbinas atualmente em atividade.

Essa ambição se torna possível por meio da versão eólica da Lei de Moore, que descreveu a elevação exponencial do poder da computação. Três décadas atrás, a primeira fazenda eólica no mar do planeta — Vindeby, na Dinamarca, empregando 11 turbinas — tinha capacidade total de 5 megawatts (MW). Hoje, uma única turbina é capaz de gerar 14 MW, e uma fazenda pode conter mais de 100 delas. Cabos mais robustos e transformadores no mar para converter a eletricidade eólica de corrente alternada para direta, capaz de viajar longas distâncias sem grandes perdas, possibilitam que mais energia seja gerada em locais mais remotos.

O resultado é que várias fazendas eólicas atualmente em instalação ultrapassam 1 GW em capacidade, o que equivale ao rendimento comum de usinas nucleares. Prevista para entrar em atividade no próximo verão, a fazenda eólica em construção em Dogger Bank, com turbinas instaladas a distâncias entre 130 quilômetros e 200 quilômetros da costa britânica, terá capacidade recorde, de 3,6 GW, quando atingir seu funcionamento pleno, em 2026. A economia de escala tem baixado os custos, tornando a eletricidade eólica gerada no mar competitiva em relação a outras fontes de energia. Em julho, o Reino Unido concedeu contratos para cinco projetos, incluindo em Dogger Bank, ao preço de £ 37 (US$ 44) por megawatt-hora — menos de um sexto do preço da eletricidade no atacado no Reino Unido em dezembro.

O mau tempo nem sempre é um trunfo: seus caprichos também podem estressar a rede. Convenientemente, a tecnologia e os preços em queda estão permitindo que operadores de energia eólica combatam os elementos. Uma maneira é com mais interconexões, primeiro entre as fazendas e a terra-firme — hoje a maioria das fazendas tem uma ligação com a costa, o que é ineficiente — e depois entre as próprias fazendas. Metade dos 3 GW a serem leiloados pela Noruega contará com a opção de criar ligações com outros países. Phil Sandy, da National Grid, que gere a infraestrutura britânica de energia, prevê um futuro de redes submarinas complexas, similares às existentes em terra-firme.

Outra maneira de administrar a variabilidade na energia eólica é usar moléculas de água para produzir combustíveis “verdes”, como hidrogênio e amônia. Em maio, a Comissão Europeia e chefões da indústria prometeram aumentar dez vezes na UE a capacidade de fabricação de eletrolisadores, que fazem a quebra das moléculas de água, até 2025. Isso permitiria ao bloco produzir 10 milhões de toneladas de combustíveis verdes até 2030. A comissão também propôs um “banco de hidrogênio” capitalizado com € 3 bilhões (US$ 3,2 bilhões) para ajudar a financiar os projetos.

Os investidores estão inebriados. Em agosto, a firma de investimentos Copenhagen Infrastructure Partners (CIP) afirmou que levantou € 3 bilhões para um fundo que investirá exclusivamente em ativos de hidrogênio. Uma dúzia de projetos foi anunciada na Europa; os três maiores acrescentam até 20 GW de energia verde. A empresa dinamarquesa Topsoe, que fornece tecnologia para esses empreendimentos, afirma que seus pedidos equivalem a 86 GW.

Turbinas de vento em Sabugal, Portugal  Foto: Pedro Nunes/Reuters

Em última instância, o sistema energético do Mar do Norte poderia tomar a forma de um arquipélago composto por “ilhas de energia” que abrigam equipes de manutenção da fazenda eólica, agregam eletricidade e produzem hidrogênio para ser transportado à terra-firme por navio ou gasoduto. Até 10 projetos desse tipo estão em consideração, de acordo com a firma de pesquisas Sintef. A North Sea Energy Island, um atol artificial a 100 quilômetros da costa dinamarquesa, deverá ser oferecida em leilão em 2023. Ela atuará como terminal para dez fazendas eólicas em suas proximidades, com ligações para países vizinhos.

Um dos participantes, um consórcio entre a empresa dinamarquesa Orsted, maior construtora de fazendas eólicas offshore no mundo, e o fundo local de pensões ATP, vislumbra um design modular, com componentes fabricados em terra-firme e montados no mar. “Esperamos que ainda esteja funcional daqui a 100 anos”, afirma Brendan Bradley, da firma de engenharia Arup, que atua como conselheiro no projeto. Thomas Dalsgaard, da CIP, que compõe um consórcio rival, afirma que produzir combustíveis verdes no mar não apenas ajudará a reduzir a pressão sobre as redes de transmissão, mas também poupará dinheiro: gasodutos de hidrogênio custam o equivalente a um quinto do preço das linhas de transmissão de eletricidade de alta capacidade.

E a nova economia do Mar do Norte extrapola o setor de energia. Eletricidade e hidrogênio não serão os únicos elementos a atravessar o leito marítimo. Isso também ocorrerá com dióxido de carbono. Algumas indústrias, como fabricação de cimento ou o setor químico, são difíceis de descarbonizar. Mas o CO2 que elas produzem pode ser coletado e bombeado para dentro dos depósitos de gás esvaziados no Mar do Norte. Esse tipo de captura e armazenamento de carbono (CCS) parecia uma maneira pouco atrativa de combater as mudanças climáticas por causa de seu alto custo e sua impopularidade entre ambientalistas, que se preocupavam com a possibilidade disso prolongar a vida dos combustíveis fósseis. Agora, assim como na energia eólica, os custos estão caindo, a resistência política abranda e os projetos se multiplicam.

Um projeto que busca aprovação em Roterdã, chamado Porthos, pretende conectar o maior porto da Europa via gasoduto a uma estação de compressão, para depois enviar o CO2 para o depósito de gás natural esvaziado no mar. Apesar de um tribunal ter atrasado recentemente seu início, o projeto ganhou luz verde das agências reguladoras holandesas. Quando entrar em operação, o sistema capturará cerca de 2,5 milhões de toneladas de CO2 anualmente por 15 anos, o equivalente a 2% das emissões holandesas. O Porto de Amsterdã planeja algo similar. Mais ao norte, próximo à cidade norueguesa de Bergen, a empresa de energia Equinor, e seus parceiros concluíram operações de perfuração para um poço de injeção de CO2 como parte de um projeto chamado Aurora Boreal. De acordo com Guloren Turan, do Global CCS Institute, um centro de pesquisas, a Europa possui hoje mais de 70 instalações desse tipo em vários estágios de desenvolvimento.

Outro valioso produto atravessando o Mar do Norte é informação. Se você seguir um dos mais novos cabos transatlânticos de dados que chegam a Esbjerg chamado Havfrue e depois virar à direita em uma bifurcação no meio do Mar do Norte, você acaba em Kristiansand, uma cidade do sul da Noruega — lar do N01 Campus, o “maior centro de processamento de dados alimentado 100% por energia verde”, segundo sua proprietária, a Bulk Infrastructure. “Queremos construir uma plataforma para serviços digitais sustentáveis”, afirma o fundador da empresa, Peder Naerbo.

Países do Mar do Norte são excelentes lugares para armazenar e processar dados. Baixos custos de energia barateiam a usina de dígitos, que é intensiva em energia. O clima frio significa que os centros de processamento de dados podem ser refrescados apenas por meio da circulação do ar externo, em vez de usar dispendiosos sistemas de ar-refrigerado. A região conta com força de trabalho altamente qualificada, instituições estáveis e algumas das leis de dados mais iluminadas do mundo. Latência, o tempo que leva para transportar dados para dentro e fora das nuvens computacionais, torna-se um problema cada vez menor conforme a tecnologia avança, portanto, cargas de trabalho digital podem ser processadas em instalações cada vez mais remotas. E centros de processamento de dados estão atingindo seus limites na Europa. Em 2021, centros de processamento de dados irlandeses e outros produtos digitais consumiram 17% da eletricidade do país. Para evitar apagões, a estatal irlandesa de energia, EirGrid, não fornecerá eletricidade para novos polos de servidores.

De acordo com a firma de dados TeleGeography, 13 novos cabos foram instalados no Mar do Norte desde 2020; em comparação, na década de 2010 havia cinco ao todo. Centros de processamento de dados também estão brotando à medida que grandes servidores de nuvens prometem descarbonizar suas cadeias de fornecimento. A Amazon Web Services (AWS) e a Microsoft Azure, as duas maiores empresas de nuvens, construíram polos de servidores nos países nórdicos. A Meta tem seu projeto nas proximidades de Esbjerg. Indústrias mais antigas também estão movendo sua computação para o norte. Mercedes-Benz e Volkswagen têm computadores instalados em locais que já foram minas na Noruega fazendo simulações de acidentes automobilísticos e testando seus carros em túneis de vento. Em média, estima a consultoria Altman Solon, a demanda por centros de processamento de dados na região aumentará 17% ao ano até 2030.

Vá para o norte, velho industrial

Mais atividade econômica europeia poderia ser atraída para o norte. “Abundância em energia tende a atrair indústria”, afirma o historiador econômico Nikolaus Wolf, da Universidade Humboldt, em Berlim. Foi o que aconteceu no início do século 19, quando abundância hidroelétrica ajudou a atrair a indústria do algodão para Lancashire. Wolf e Nicholas Crafts, na Universidade de Warwick, calcularam que se Lancashire tivesse 10% menos capacidade hidroelétrica também teria tido 10% menos empregos no setor têxtil em 1838 em postos críticos.

Hoje é mais fácil distribuir energia via redes de transmissão e gasodutos do que era durante a Revolução Industrial, e centros industriais de toda a Europa têm seus atrativos. Levar fornos de fabricação de cimento para as costas do Mar do Norte significaria ter de transportar calcário para lá e trazer de volta o cimento aos consumidores, o que tornaria o processo inviável economicamente (e até o advento dos caminhões de emissões-zero, prejudicial ao clima). Unidades gigantescas de craqueamento a vapor, que quebram hidrocarbonetos em moléculas menores em indústrias químicas, também não se moverão para o norte tão logo: são um investimento grande demais, integrado às cadeias de fornecimento existentes e já em processo de ser eletrificado.

Mas o princípio de Wolf ainda vale para algumas indústrias — e pode beneficiar outras localidades setentrionais não diretamente no Mar do Norte. Em Narvik, mais ao norte, no Mar da Noruega, a Aker Horizons, uma firma que investe em energia renovável, quer estabelecer um polo industrial verde alimentado por energia eólica gerada no mar. Em Boden, uma cidade sueca próxima à costa oriental da Península Escandinava, a H2 Green Steel está construindo uma nova usina siderúrgica, a primeira na Europa em meio século. Seu forno não será a carvão ou gás natural, funcionará com hidrogênio verde — criado em uma das maiores usinas de eletrólise do planeta, alimentada por energia eólica produzida em terra e energia hidroelétrica.

Além de exportar aço, a H2 Green Steel espera exportar também ferro-esponja, um produto intermediário que requer grande parte da energia total usada na fabricação de aço. Isso equivaleria a dividir em duas a indústria siderúrgica, explica o diretor da empresa, Henrik Henriksson. As partes intensivas em energia do processo migrariam para onde podem ser realizadas com mais eficiência: bem ao lado das fontes de energia renovável. As partes mais intensivas em trabalho e conhecimento poderiam permanecer nos polos siderúrgicos tradicionais da Europa, como o Vale do Ruhr.

Em Wilhelmshaven, uma cidade costeira na Alemanha, a estatal de energia Uniper acaba de concluir o primeiro terminal do país para importação de gás natural liquefeito (GNL), para substituir parte do gás russo que deixou de fluir da Sibéria pelos gasodutos. A empresa planeja construir unidades de craqueamento para produzir hidrogênio a partir de amônia próximo ao terminal de GNL. Em outro canto do porto, próximo a uma termoelétrica a carvão desativada, a Uniper construirá uma usina de hidrogênio e proverá espaço para empresas sedentas de energia. “Wilhelmshaven desempenhará um importante papel como o lugar em que a energia verde chega ao território”, afirma Holger Kreetz, encarregado de administrar ativos da Uniper.

Outras empresas rumando ao norte incluem fabricantes de baterias para veículos elétricos, que também requerem muita energia para produzir, e fabricantes de turbinas eólicas atingidos pelas perturbações nas cadeias de fornecimento. A Vestas, maior produtora mundial das turbinas, está fechando uma fábrica na China e abrindo outra na Polônia em parte para ficar próximo a uma nova fazenda eólica no Mar Báltico.

Como em todas as mudanças dessa magnitude, alguns veem problemas. Energia renovável ficará até mais barata em outras partes, alerta Christer Tryggestad, da McKinsey, outra consultoria. Em vez de investir no Mar do Norte e seu entorno, as empresas deveriam rumar para lugares ensolarados, como o Oriente Médio ou a Espanha. Alguns não estão convencidos de que a UE será capaz de atender suas ambiciosas metas de aumentar a produção de energia eólica no mar. A Vestas e suas colegas fabricantes de turbinas já estão reclamando amargamente afirmando que permissões para novos parques eólicos podem levar uma década ou mais para se obter. As empresas de serviços-eólicos-offshore alertam que logo poderão ficar sem pessoal e maquinário para manter os clientes felizes.

O último obstáculo vem do outro lado do Atlântico. A Lei de Redução da Inflação do presidente Joe Biden prevê US$ 370 bilhões em subsídios e créditos fiscais para produtos e serviços amigáveis ao meio ambiente, contanto que sejam fabricados e oferecidos nos Estados Unidos. A UE preocupa-se com a hipótese das ajudas afastarem os investidores do bloco, que atualmente analisa se a lei viola regras comerciais internacionais.

Se esses problemas puderem ser superados, o impacto da nova economia do Mar do Norte sobre o continente será importantíssimo. Conforme o epicentro econômico da Europa se move para o norte, o mesmo ocorrerá com o epicentro político, prevê Frank Peter, do instituto alemão Agora Energiewende. Isso poderia alterar o equilíbrio de poder dentro de países com litoral. O Estado costeiro de Bremen, um dos mais pobres da Alemanha, poderia ganhar peso em detrimento da rica, mas sem saída ao mar, Baviera. No nível europeu, França e Alemanha, cuja força industrial sustentou a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, antecessora da UE, podem perder alguma influência para um novo bloco liderado por Dinamarca, Países Baixos e, fora da UE, Reino Unido e Noruega. Franceses e bávaros podem se arrepiar com a ideia de uma Comunidade da Energia Eólica e do Hidrogênio centrada no Mar do Norte. Mas ela daria à Europa inteira um impulso econômico e geopolítico muito necessário. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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