O menino de 8 anos no centro de uma disputa entre China e Tibete sobre o budismo


Ele poderá ter de defender a fé na Mongólia contra a pressão do Partido Comunista Chinês

Por David Pierson
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - O menino parecia destinado a uma vida de opulência e assuntos terrenos. Nascido numa família que controla um grande conglomerado de mineração na Mongólia, ele poderia ser chamado algum dia à sede de aço e vidro da empresa, no centro da capital do país, para liderar suas atividades.

Em vez disso, este garoto de 8 anos está agora no centro de uma disputa entre o dalai-lama e o Partido Comunista Chinês.

Ele ainda era bebê quando tudo mudou. Em uma visita a um enorme monastério em Ulã Bator, a capital, conhecido por sua gigantesca estátua de Buda folhada a ouro, seu pai levou ele e seu irmão gêmeo a um recinto em que os meninos e outras sete crianças receberam um teste secreto.

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Os garotos foram postos diante de uma mesa coberta com objetos religiosos. Alguns se recusaram a sair do lado dos pais. Outros foram atraídos pelos doces coloridos colocados como distrações. Mas este menino, A. Altannar, era diferente. Ele escolheu um colar de contas de oração e colocou em torno do pescoço, tocou um sino de meditação e caminhou até um monge no recinto e agarrou-se às suas pernas, brincando.

A. Altannar, de oito anos, pratica ritual de mandala com monges na Mongólia. Foto: Khasar Sandag/The New York Times

“Foram sinais muito especiais”, afirmou o teólogo Bataa Mishigish, que observou o menino com dois monges anciões. “Nós simplesmente trocamos olhares e não dissemos nenhuma palavra.”

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Eles tinham encontrado a 10.ª reencarnação do bogd, uma das figuras mais importantes do budismo tibetano e, para muitos, líder espiritual da Mongólia, onde cerca de metade da população é budista.

Ao longo dos sete anos seguintes, os monges mantiveram em segredo a identidade do bogd, conhecido formalmente como Jebtsundamba Khutughtu.

Então em março o dalai-lama apresentou o menino em uma cerimônia na Índia a uma multidão de fiéis, com sua diminuta figura por um deel, o traje tradicional mongol, castanho, e seus olhos escuros e cabelos arrepiados sobre uma máscara cirúrgica branca.

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A notícia de que o 10.º bogd tinha sido escolhido foi motivo de celebração na Mongólia.

Dalai Lama apresenta A. Altannar, menino de oito anos escolhido para ser uma das figuras mais veneradas do budismo tibetano.  Foto: Escritório de Dalai Lama / The New York Times

O bogd é um símbolo da identidade mongol, uma posição que remonta a aproximadamente 400 anos de descendentes do imperador mongol Kublai Khan, que adotou o budismo tibetano e ajudou-o a se disseminar na China e em outras terras conquistadas. No início do século 20, um bogd (pronuncia-se bógued) nascido no Tibete foi o regente teocrático da Mongólia, reverenciado como um governante divino. Hoje, esse título adorna bancos, butiques de roupas de caxemira e revendedoras de carros na Mongólia. Quando alguém espirra, os mongóis dizem, “Que bogd o abençoe”.

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Mas a pessoa que encarna o bogd é uma questão sensível, com implicações para Mongólia, China e Tibete. O Partido Comunista Chinês buscou impor sua autoridade sobre o budismo tibetano mesmo fora das fronteiras chinesas, como parte de uma antiga campanha para enrijecer seu controle ao Tibete.

A China considera o dalai-lama, de 88 anos, que fugiu do Tibete na juventude, em 1959, e vive exilado na Índia desde então, um inimigo determinado a libertar o Tibete do jugo chinês. Apesar de oficialmente ateu, o partido afirma ser o único ente com poder de aferir a reencarnação do bogd, assim como de outros lamas eminentes.

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Depois que o bogd anterior morreu, em 2012, houve preocupação de que a China pudesse tentar escolher ou influenciar a seleção do seguinte. Em 1995, a China sequestrou um menino que o dalai-lama tinha reconhecido como panchen-lama, a segunda figura mais eminente no budismo tibetano.

Então, quando o dalai-lama apareceu com A. Altannar em público este ano, o ato constituiu uma afirmação desafiadora de sua influência sobre a religião e um desafio às reivindicações de Pequim sobre a sucessão. E colocou a Mongólia sob os holofotes, tensionando sua delicada relação com a China, sua vizinha muito maior e mais rica.

Avalokiteśvara, maior estátua interna do mundo, com 26 metros de altura, Mosteiro de Gandantegchinlen, Mongólia. Foto: Chang W. Lee/The New York Times
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E há a questão da tradição de ungir uma criança como reencarnação de um lama fazer ou não sentido e ainda ter lugar na Mongólia moderna. Alguns também queixam-se afirmando que famílias de elites, como a do menino, desfrutam de privilégios demais.

Enquanto isso, seus pais escolarizados nos Estados Unidos sentem dificuldade para desistir de esperanças e sonhos para que seu filho atenda a um chamado religioso que eles não escolheram.

O menino, que cursa o 3.º ano do ensino fundamental e gosta de TikTok e videogames, está diante de décadas de treinamento teológico, uma vida de celibato e da pesada responsabilidade de ter que defender o budismo mongol da pressão chinesa. E, de certas maneiras, o mesmo aguarda seu irmão gêmeo.

Para ocultar a identidade de A. Altannar e protegê-lo de fiéis zelosos demais ou coisa pior, Achildai Altannar e Agudai Altannar, que são idênticos, raramente são vistos em público sem a companhia um do outro. Na realidade, nem o dalai-lama nem os país afirmaram publicamente qual menino foi apresentado na cerimônia.

“Nós queremos que o nosso filho cresça em um ambiente normal, não sob pressão, não sob escrutínio de ensinamentos austeros”, afirmou a mãe, Munkhnasan Narmandakh, de 41 anos. “Se ele quer jogar videogame, ele deve poder.”

Esperança de um reavivamento da fé

Quando Bataa, o teólogo, e os líderes do Monastério de Gandan, em Ulã Bator, saíram em busca do próximo bogd, eles ficaram atordoados. O processo de encontrar uma reencarnação tinha quase se perdido no tempo. Eles tiveram de tirar o pó de antigos textos religiosos guardados no Arquivo Nacional e consultar especialistas no gabinete do dalai-lama em Dharamsala, Índia.

A equipe selecionou 80 mil nomes da lista de meninos nascidos em Ulã Bator em 2014 e 2015, anos que se seguiram à morte do bogd anterior. Os religiosos usaram um costume ancestral que combina análises de visões místicas e astrologia para afinar a seleção até que restassem os 11 candidatos ao teste secreto — mas as famílias de apenas 9 meninos responderam.

Naquela tarde, os objetos que A. Altannar escolheu — o colar e o sino — tinham pertencido ao 9.º bogd. O monge que o menino abraçou era assistente do 9.º bogd.

De muitas maneiras, os desafios com a procura sublinharam o estado enfraquecido do budismo tibetano na Mongólia.

A. Altannar no Mosteiro de Gandan, na Mongólia.  Foto: Khasar Sandag/The New York Times

Passaram-se quase 300 anos desde que o título de bogd pertenceu a um mongol. Depois que os mongóis foram subjugados pelo império chinês da dinastia Qing, no século 17, o imperador determinou que todas as futuras encarnações do bogd fossem encontradas no Tibete, para evitar uma insurreição mongol.

Os mongóis pensaram por muito tempo que as reencarnações do bogd tinham terminado no 8.º, em um lama nascido no Tibete que era reverenciado por ter declarado independência do Império Qing em 1911 e que morreu em 1924. Com o início da era Stálin, pouco depois, governantes comunistas que controlavam a Mongólia declararam o fim da linhagem do bogd. Ao longo de 70 anos do governo socialista, as autoridades reprimiam a religião, matavam lamas eminentes e monges e destruíam templos.

Depois da revolução democrática da Mongólia, em 1990, muitos no país ficaram estarrecidos quando o dalai-lama revelou que, em 1936, um menino tibetano de 4 anos tinha sido reconhecido como o 9.º bogd. Ele e o dalai-lama eram amigos, ambos fugiram dos chineses nem 1959, e o bogd passou a viver secretamente na Índia.

Ao longo dos anos, encorajado pelo dalai-lama, o budismo se restabeleceu na Mongólia. Monastérios antigos foram reformados, fiéis saíram das sombras e o 9.º bogd mudou-se para lá em 2011.

Quando ele morreu, um ano depois, aos 79 anos, seu testamento pediu que sua reencarnação nascesse na Mongólia, em vez do Tibete. O pedido aproximaria o lama das pessoas que ele deveria liderar.

A sombra do elitismo

Antes de A. Altannar ser identificado como líder espiritual da Mongólia, ele nasceu em meio à elite empresarial do país.

Garamjav Tseden, sua avó, é fundadora da Monpolymet, uma das mais bem-sucedidas empresas privadas da Mongólia, que começou no ramo da mineração de ouro e desde então se expandiu para fabricação de cimento. Sua mãe, diretora-executiva da empresa, foi jurada em uma edição da versão mongol do “Shark Tank”, o reality show inspirado no mundo dos negócios.

Mas o sucesso da família e o fato de Garamjav ter sido parlamentar e benfeitora do bogd anterior levantaram dúvidas a respeito de privilégios e elitismos impregnarem o processo de busca do bogd. Algumas pessoas, incluindo a proeminente poeta Khulan Tsoodolyn, criticaram a seleção de A. Altannar, classificando-a como um exemplo do monopólio da elite sobre o poder e o prestígio. (Ela foi presa em janeiro, sob acusações não especificadas de espionagem, e sentenciada em julho a nove anos de prisão.)

Pouco após A. Altannar ser apresentado pelo dalai-lama, a jornalista independente Unurtsetseg Naran escreveu no Facebook: “Por que uma criança rica foi selecionada?”. Os pais do menino afirmam que os posts de Naran alimentaram ameaças contra sua família. E rejeitam qualquer sugestão de que compraram a posição de seu filho.

Jornalista Unurtsetseg Naran, da Mongólia, criticou escolha do menino de oito anos. Foto: Chang W. Lee/The New York Times

Riqueza é um tópico sensível na Mongólia, onde o abismo entre ricos e pobres continua largo e profundo. Em nenhum outro lugar ele é mais evidente do que em Ulã Bator, onde um quarto dos moradores vive na pobreza — com frequência em distritos arruinados ou como nômades, em tendas nas imediações da cidade, longe dos shopping centers e hotéis luxuosos que figuram como monumentos aos booms de mineração no país.

Historicamente, lamas tibetanos com frequência são filhos da nobreza. Alguns observadores afirmam que jovens lamas de famílias ricas beneficiam-se da possibilidade de obter melhor educação — e sua riqueza material é um possível sinal de uma vida passada virtuosa.

Mas sempre houve reclamações de que seleções de lamas tratam de política e, por vezes, são fruto de corrupção.

No fim dos século 18, o imperador chinês Qianlong tentou usar um sistema de palitos talhados retirados de uma urna dourada para a escolha dos lamas. O Partido Comunista Chinês fez renascer a “Urna Dourada” numa tentativa de controlar a seleção dos lamas budistas e limitar a influência do dalai-lama, mas poucos fora da China consideram o sistema legítimo.

‘Mudança sísmica’ no centro de poder

O reconhecimento de um lama reencarnado na Mongólia implicará numa maior participação do país no xadrez político entre Pequim e o dalai-lama.

A Mongólia depende da China, que compra suas exportações e investe em sua infraestrutura. A marca chinesa é vista em Ulã Bator num serpenteante viaduto projetado para aliviar o punitivo trânsito da cidade e numa arena esportiva com um logo que diz: “Ajuda da China para um futuro em comum”.

Para a Mongólia, um movimento que contrarie Pequim sairia caro.

Foi em 2016, numa visita à Mongólia, que o dalai-lama declarou pela primeira vez, em uma conferência de imprensa, que o bogd tinha sido descoberto no país — um anúncio bombástico. A resposta chinesa foi imediata. Pequim fechou as passagens fronteiriças entre os países, impôs tarifas e cancelou conversas bilaterais.

O dalai-lama não voltou a visitar a Mongólia desde então.

Agora ele tem um meio salientar o poder da Mongólia e expandir o alcance de seu gabinete, afirmou Munkhnaran Bayarlkhagva, analista que trabalhou no Conselho de Segurança Nacional da Mongólia. A seleção de um mongol para a função de bogd foi uma “mudança sísmica no centro do poder do budismo tibetano”, de Dharamsala para Ulã Bator, afirmou ele.

Também há possíveis reverberações para o governo dos EUA. A. Altannar nasceu em Washington, DC, o que faz dele cidadão americano. Isso alimentou especulação a respeito dele ter sido escolhido porque sua cidadania americana poderia lhe garantir proteção adicional em relação à China.

A China não comentou publicamente a seleção de A. Altannar, mas autoridades mongóis e estrangeiras, falando sob condição de anonimato em razão da sensibilidade do tema, afirmaram que Pequim alertou a Mongólia a respeito de retaliações caso o bogd se aproxime demais do dalai-lama.

Telo Tulku Rinpoche, representante do dalai-lama na Mongólia, acusou a China de querer “controlar o budismo em um nível global”. Ele negou que A. Altannar tenha sido selecionado por razões políticas e afirmou que o gabinete do dalai-lama terá pouco contato com o menino. “É um assunto espiritual”, afirmou ele.

Vida de criança

O telefonema para a família do menino com a notícia de sua seleção veio de ninguém menos que o então presidente da Mongólia, Tsakhia Elbegdorj, um sinal da importância da posição no país.

Mas Munkhnasan, a mãe de A. Altannar, afirmou que sua resposta imediata foi uma rejeição absoluta à ideia. Os pais esperavam que os meninos estudassem engenharia e algum dia assumissem o império empresarial da família.

A. Altannar (o terceiro da esquerda) olha livros com colegas de classe. Foto: Khasar Sandag/The New York Times

“Nós dissemos, ‘Isso não pode acontecer’”, afirmou Munkhnasan. “Meu menino ainda era bebê na época, e não houve nenhum tipo de aviso ou comunicação preliminar a respeito do que estava prestes a ocorrer.”

Munkhnasan e seu marido, Altannar Chinchuluun, escreveram para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) pedindo ajuda. O processo de reconhecimento de reencarnação, argumentaram eles, havia furtado os direitos de seu filho.

A família viajou prontamente para Ulã Bator depois do telefonema do presidente e exigiu que os monges encontrassem outro menino. Os religiosos afirmaram que tentariam, mas o dalai-lama disse não.

Em vez disso, ele recomendou que os pais tivessem um tempo para pensar, na esperança de que mudassem de ideia. Os monges prometeram não revelar o nome do menino enquanto a família decidisse. Ainda assim, o casal angustiou-se diante do dilema.

Altannar, de 43 anos, matemático da Universidade Nacional da Mongólia, preocupou-se com a possibilidade de estar voltando as costas ao seu país caso se recusasse a restaurar uma instituição nacional. Munkhnasan temeu atrair carma ruim para a família se negasse aos budistas tibetanos um líder sagrado.

Eventualmente, ambos decidiram tentar um meio-termo. Os monges poderiam instruir o meninos se ele também seguisse sua educação regular. Mais importante, os pais insistiram que caberia ao seu filho, ao completar 18 anos, decidir se quer continuar bogd. “A decisão é dele”, afirmou Munkhnasan.

A. Altannar assiste aula da 3ª série na Mongólia.  Foto: Khasar Sandag/The New York Times

Até lá, A. Altannar passará uma infância como nenhuma outra. E não foi apenas sua vida que mudou; a do seu irmão também. Os gêmeos vestem-se identicamente e recebem o mesmo treinamento, como se ambos fossem o bogd.

Munkhnasan afirmou que não quis “sacrificar” um filho pelo outro, com um dos gêmeos vivendo à sombra do irmão. Mas disse que a família terá de fazer isso até ficar mais confiante em relação à segurança de A. Altannar.

O menino parece caminhar nos dois mundos cada vez mais facilmente. Quando visitou Dharamsala para conhecer o dalai-lama, ele ficou sentado por horas, imóvel, ouvindo seus ensinamentos.

Em um dia recente, A. Altannar foi à escola, brincou com os colegas de classe e abriu um grande sorriso durante uma corrida de revezamento na aula de educação física. Depois ele vestiu seu tradicional deel mongol para receber instruções religiosas no Monastério de Gandan. Na presença dos monges, sua energia de menino era substituída por uma aura de calma e maturidade conforme ele lia os sutras e praticava os rituais.

“É claro que, como menino, ele não entende tudo que está acontecendo, mas definitivamente ele não está rejeitando”, afirmou Munkhnasan. “Ele está muito à vontade. É como sua segunda natureza.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE NEW YORK TIMES - O menino parecia destinado a uma vida de opulência e assuntos terrenos. Nascido numa família que controla um grande conglomerado de mineração na Mongólia, ele poderia ser chamado algum dia à sede de aço e vidro da empresa, no centro da capital do país, para liderar suas atividades.

Em vez disso, este garoto de 8 anos está agora no centro de uma disputa entre o dalai-lama e o Partido Comunista Chinês.

Ele ainda era bebê quando tudo mudou. Em uma visita a um enorme monastério em Ulã Bator, a capital, conhecido por sua gigantesca estátua de Buda folhada a ouro, seu pai levou ele e seu irmão gêmeo a um recinto em que os meninos e outras sete crianças receberam um teste secreto.

Os garotos foram postos diante de uma mesa coberta com objetos religiosos. Alguns se recusaram a sair do lado dos pais. Outros foram atraídos pelos doces coloridos colocados como distrações. Mas este menino, A. Altannar, era diferente. Ele escolheu um colar de contas de oração e colocou em torno do pescoço, tocou um sino de meditação e caminhou até um monge no recinto e agarrou-se às suas pernas, brincando.

A. Altannar, de oito anos, pratica ritual de mandala com monges na Mongólia. Foto: Khasar Sandag/The New York Times

“Foram sinais muito especiais”, afirmou o teólogo Bataa Mishigish, que observou o menino com dois monges anciões. “Nós simplesmente trocamos olhares e não dissemos nenhuma palavra.”

Eles tinham encontrado a 10.ª reencarnação do bogd, uma das figuras mais importantes do budismo tibetano e, para muitos, líder espiritual da Mongólia, onde cerca de metade da população é budista.

Ao longo dos sete anos seguintes, os monges mantiveram em segredo a identidade do bogd, conhecido formalmente como Jebtsundamba Khutughtu.

Então em março o dalai-lama apresentou o menino em uma cerimônia na Índia a uma multidão de fiéis, com sua diminuta figura por um deel, o traje tradicional mongol, castanho, e seus olhos escuros e cabelos arrepiados sobre uma máscara cirúrgica branca.

A notícia de que o 10.º bogd tinha sido escolhido foi motivo de celebração na Mongólia.

Dalai Lama apresenta A. Altannar, menino de oito anos escolhido para ser uma das figuras mais veneradas do budismo tibetano.  Foto: Escritório de Dalai Lama / The New York Times

O bogd é um símbolo da identidade mongol, uma posição que remonta a aproximadamente 400 anos de descendentes do imperador mongol Kublai Khan, que adotou o budismo tibetano e ajudou-o a se disseminar na China e em outras terras conquistadas. No início do século 20, um bogd (pronuncia-se bógued) nascido no Tibete foi o regente teocrático da Mongólia, reverenciado como um governante divino. Hoje, esse título adorna bancos, butiques de roupas de caxemira e revendedoras de carros na Mongólia. Quando alguém espirra, os mongóis dizem, “Que bogd o abençoe”.

Mas a pessoa que encarna o bogd é uma questão sensível, com implicações para Mongólia, China e Tibete. O Partido Comunista Chinês buscou impor sua autoridade sobre o budismo tibetano mesmo fora das fronteiras chinesas, como parte de uma antiga campanha para enrijecer seu controle ao Tibete.

A China considera o dalai-lama, de 88 anos, que fugiu do Tibete na juventude, em 1959, e vive exilado na Índia desde então, um inimigo determinado a libertar o Tibete do jugo chinês. Apesar de oficialmente ateu, o partido afirma ser o único ente com poder de aferir a reencarnação do bogd, assim como de outros lamas eminentes.

Depois que o bogd anterior morreu, em 2012, houve preocupação de que a China pudesse tentar escolher ou influenciar a seleção do seguinte. Em 1995, a China sequestrou um menino que o dalai-lama tinha reconhecido como panchen-lama, a segunda figura mais eminente no budismo tibetano.

Então, quando o dalai-lama apareceu com A. Altannar em público este ano, o ato constituiu uma afirmação desafiadora de sua influência sobre a religião e um desafio às reivindicações de Pequim sobre a sucessão. E colocou a Mongólia sob os holofotes, tensionando sua delicada relação com a China, sua vizinha muito maior e mais rica.

Avalokiteśvara, maior estátua interna do mundo, com 26 metros de altura, Mosteiro de Gandantegchinlen, Mongólia. Foto: Chang W. Lee/The New York Times

E há a questão da tradição de ungir uma criança como reencarnação de um lama fazer ou não sentido e ainda ter lugar na Mongólia moderna. Alguns também queixam-se afirmando que famílias de elites, como a do menino, desfrutam de privilégios demais.

Enquanto isso, seus pais escolarizados nos Estados Unidos sentem dificuldade para desistir de esperanças e sonhos para que seu filho atenda a um chamado religioso que eles não escolheram.

O menino, que cursa o 3.º ano do ensino fundamental e gosta de TikTok e videogames, está diante de décadas de treinamento teológico, uma vida de celibato e da pesada responsabilidade de ter que defender o budismo mongol da pressão chinesa. E, de certas maneiras, o mesmo aguarda seu irmão gêmeo.

Para ocultar a identidade de A. Altannar e protegê-lo de fiéis zelosos demais ou coisa pior, Achildai Altannar e Agudai Altannar, que são idênticos, raramente são vistos em público sem a companhia um do outro. Na realidade, nem o dalai-lama nem os país afirmaram publicamente qual menino foi apresentado na cerimônia.

“Nós queremos que o nosso filho cresça em um ambiente normal, não sob pressão, não sob escrutínio de ensinamentos austeros”, afirmou a mãe, Munkhnasan Narmandakh, de 41 anos. “Se ele quer jogar videogame, ele deve poder.”

Esperança de um reavivamento da fé

Quando Bataa, o teólogo, e os líderes do Monastério de Gandan, em Ulã Bator, saíram em busca do próximo bogd, eles ficaram atordoados. O processo de encontrar uma reencarnação tinha quase se perdido no tempo. Eles tiveram de tirar o pó de antigos textos religiosos guardados no Arquivo Nacional e consultar especialistas no gabinete do dalai-lama em Dharamsala, Índia.

A equipe selecionou 80 mil nomes da lista de meninos nascidos em Ulã Bator em 2014 e 2015, anos que se seguiram à morte do bogd anterior. Os religiosos usaram um costume ancestral que combina análises de visões místicas e astrologia para afinar a seleção até que restassem os 11 candidatos ao teste secreto — mas as famílias de apenas 9 meninos responderam.

Naquela tarde, os objetos que A. Altannar escolheu — o colar e o sino — tinham pertencido ao 9.º bogd. O monge que o menino abraçou era assistente do 9.º bogd.

De muitas maneiras, os desafios com a procura sublinharam o estado enfraquecido do budismo tibetano na Mongólia.

A. Altannar no Mosteiro de Gandan, na Mongólia.  Foto: Khasar Sandag/The New York Times

Passaram-se quase 300 anos desde que o título de bogd pertenceu a um mongol. Depois que os mongóis foram subjugados pelo império chinês da dinastia Qing, no século 17, o imperador determinou que todas as futuras encarnações do bogd fossem encontradas no Tibete, para evitar uma insurreição mongol.

Os mongóis pensaram por muito tempo que as reencarnações do bogd tinham terminado no 8.º, em um lama nascido no Tibete que era reverenciado por ter declarado independência do Império Qing em 1911 e que morreu em 1924. Com o início da era Stálin, pouco depois, governantes comunistas que controlavam a Mongólia declararam o fim da linhagem do bogd. Ao longo de 70 anos do governo socialista, as autoridades reprimiam a religião, matavam lamas eminentes e monges e destruíam templos.

Depois da revolução democrática da Mongólia, em 1990, muitos no país ficaram estarrecidos quando o dalai-lama revelou que, em 1936, um menino tibetano de 4 anos tinha sido reconhecido como o 9.º bogd. Ele e o dalai-lama eram amigos, ambos fugiram dos chineses nem 1959, e o bogd passou a viver secretamente na Índia.

Ao longo dos anos, encorajado pelo dalai-lama, o budismo se restabeleceu na Mongólia. Monastérios antigos foram reformados, fiéis saíram das sombras e o 9.º bogd mudou-se para lá em 2011.

Quando ele morreu, um ano depois, aos 79 anos, seu testamento pediu que sua reencarnação nascesse na Mongólia, em vez do Tibete. O pedido aproximaria o lama das pessoas que ele deveria liderar.

A sombra do elitismo

Antes de A. Altannar ser identificado como líder espiritual da Mongólia, ele nasceu em meio à elite empresarial do país.

Garamjav Tseden, sua avó, é fundadora da Monpolymet, uma das mais bem-sucedidas empresas privadas da Mongólia, que começou no ramo da mineração de ouro e desde então se expandiu para fabricação de cimento. Sua mãe, diretora-executiva da empresa, foi jurada em uma edição da versão mongol do “Shark Tank”, o reality show inspirado no mundo dos negócios.

Mas o sucesso da família e o fato de Garamjav ter sido parlamentar e benfeitora do bogd anterior levantaram dúvidas a respeito de privilégios e elitismos impregnarem o processo de busca do bogd. Algumas pessoas, incluindo a proeminente poeta Khulan Tsoodolyn, criticaram a seleção de A. Altannar, classificando-a como um exemplo do monopólio da elite sobre o poder e o prestígio. (Ela foi presa em janeiro, sob acusações não especificadas de espionagem, e sentenciada em julho a nove anos de prisão.)

Pouco após A. Altannar ser apresentado pelo dalai-lama, a jornalista independente Unurtsetseg Naran escreveu no Facebook: “Por que uma criança rica foi selecionada?”. Os pais do menino afirmam que os posts de Naran alimentaram ameaças contra sua família. E rejeitam qualquer sugestão de que compraram a posição de seu filho.

Jornalista Unurtsetseg Naran, da Mongólia, criticou escolha do menino de oito anos. Foto: Chang W. Lee/The New York Times

Riqueza é um tópico sensível na Mongólia, onde o abismo entre ricos e pobres continua largo e profundo. Em nenhum outro lugar ele é mais evidente do que em Ulã Bator, onde um quarto dos moradores vive na pobreza — com frequência em distritos arruinados ou como nômades, em tendas nas imediações da cidade, longe dos shopping centers e hotéis luxuosos que figuram como monumentos aos booms de mineração no país.

Historicamente, lamas tibetanos com frequência são filhos da nobreza. Alguns observadores afirmam que jovens lamas de famílias ricas beneficiam-se da possibilidade de obter melhor educação — e sua riqueza material é um possível sinal de uma vida passada virtuosa.

Mas sempre houve reclamações de que seleções de lamas tratam de política e, por vezes, são fruto de corrupção.

No fim dos século 18, o imperador chinês Qianlong tentou usar um sistema de palitos talhados retirados de uma urna dourada para a escolha dos lamas. O Partido Comunista Chinês fez renascer a “Urna Dourada” numa tentativa de controlar a seleção dos lamas budistas e limitar a influência do dalai-lama, mas poucos fora da China consideram o sistema legítimo.

‘Mudança sísmica’ no centro de poder

O reconhecimento de um lama reencarnado na Mongólia implicará numa maior participação do país no xadrez político entre Pequim e o dalai-lama.

A Mongólia depende da China, que compra suas exportações e investe em sua infraestrutura. A marca chinesa é vista em Ulã Bator num serpenteante viaduto projetado para aliviar o punitivo trânsito da cidade e numa arena esportiva com um logo que diz: “Ajuda da China para um futuro em comum”.

Para a Mongólia, um movimento que contrarie Pequim sairia caro.

Foi em 2016, numa visita à Mongólia, que o dalai-lama declarou pela primeira vez, em uma conferência de imprensa, que o bogd tinha sido descoberto no país — um anúncio bombástico. A resposta chinesa foi imediata. Pequim fechou as passagens fronteiriças entre os países, impôs tarifas e cancelou conversas bilaterais.

O dalai-lama não voltou a visitar a Mongólia desde então.

Agora ele tem um meio salientar o poder da Mongólia e expandir o alcance de seu gabinete, afirmou Munkhnaran Bayarlkhagva, analista que trabalhou no Conselho de Segurança Nacional da Mongólia. A seleção de um mongol para a função de bogd foi uma “mudança sísmica no centro do poder do budismo tibetano”, de Dharamsala para Ulã Bator, afirmou ele.

Também há possíveis reverberações para o governo dos EUA. A. Altannar nasceu em Washington, DC, o que faz dele cidadão americano. Isso alimentou especulação a respeito dele ter sido escolhido porque sua cidadania americana poderia lhe garantir proteção adicional em relação à China.

A China não comentou publicamente a seleção de A. Altannar, mas autoridades mongóis e estrangeiras, falando sob condição de anonimato em razão da sensibilidade do tema, afirmaram que Pequim alertou a Mongólia a respeito de retaliações caso o bogd se aproxime demais do dalai-lama.

Telo Tulku Rinpoche, representante do dalai-lama na Mongólia, acusou a China de querer “controlar o budismo em um nível global”. Ele negou que A. Altannar tenha sido selecionado por razões políticas e afirmou que o gabinete do dalai-lama terá pouco contato com o menino. “É um assunto espiritual”, afirmou ele.

Vida de criança

O telefonema para a família do menino com a notícia de sua seleção veio de ninguém menos que o então presidente da Mongólia, Tsakhia Elbegdorj, um sinal da importância da posição no país.

Mas Munkhnasan, a mãe de A. Altannar, afirmou que sua resposta imediata foi uma rejeição absoluta à ideia. Os pais esperavam que os meninos estudassem engenharia e algum dia assumissem o império empresarial da família.

A. Altannar (o terceiro da esquerda) olha livros com colegas de classe. Foto: Khasar Sandag/The New York Times

“Nós dissemos, ‘Isso não pode acontecer’”, afirmou Munkhnasan. “Meu menino ainda era bebê na época, e não houve nenhum tipo de aviso ou comunicação preliminar a respeito do que estava prestes a ocorrer.”

Munkhnasan e seu marido, Altannar Chinchuluun, escreveram para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) pedindo ajuda. O processo de reconhecimento de reencarnação, argumentaram eles, havia furtado os direitos de seu filho.

A família viajou prontamente para Ulã Bator depois do telefonema do presidente e exigiu que os monges encontrassem outro menino. Os religiosos afirmaram que tentariam, mas o dalai-lama disse não.

Em vez disso, ele recomendou que os pais tivessem um tempo para pensar, na esperança de que mudassem de ideia. Os monges prometeram não revelar o nome do menino enquanto a família decidisse. Ainda assim, o casal angustiou-se diante do dilema.

Altannar, de 43 anos, matemático da Universidade Nacional da Mongólia, preocupou-se com a possibilidade de estar voltando as costas ao seu país caso se recusasse a restaurar uma instituição nacional. Munkhnasan temeu atrair carma ruim para a família se negasse aos budistas tibetanos um líder sagrado.

Eventualmente, ambos decidiram tentar um meio-termo. Os monges poderiam instruir o meninos se ele também seguisse sua educação regular. Mais importante, os pais insistiram que caberia ao seu filho, ao completar 18 anos, decidir se quer continuar bogd. “A decisão é dele”, afirmou Munkhnasan.

A. Altannar assiste aula da 3ª série na Mongólia.  Foto: Khasar Sandag/The New York Times

Até lá, A. Altannar passará uma infância como nenhuma outra. E não foi apenas sua vida que mudou; a do seu irmão também. Os gêmeos vestem-se identicamente e recebem o mesmo treinamento, como se ambos fossem o bogd.

Munkhnasan afirmou que não quis “sacrificar” um filho pelo outro, com um dos gêmeos vivendo à sombra do irmão. Mas disse que a família terá de fazer isso até ficar mais confiante em relação à segurança de A. Altannar.

O menino parece caminhar nos dois mundos cada vez mais facilmente. Quando visitou Dharamsala para conhecer o dalai-lama, ele ficou sentado por horas, imóvel, ouvindo seus ensinamentos.

Em um dia recente, A. Altannar foi à escola, brincou com os colegas de classe e abriu um grande sorriso durante uma corrida de revezamento na aula de educação física. Depois ele vestiu seu tradicional deel mongol para receber instruções religiosas no Monastério de Gandan. Na presença dos monges, sua energia de menino era substituída por uma aura de calma e maturidade conforme ele lia os sutras e praticava os rituais.

“É claro que, como menino, ele não entende tudo que está acontecendo, mas definitivamente ele não está rejeitando”, afirmou Munkhnasan. “Ele está muito à vontade. É como sua segunda natureza.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE NEW YORK TIMES - O menino parecia destinado a uma vida de opulência e assuntos terrenos. Nascido numa família que controla um grande conglomerado de mineração na Mongólia, ele poderia ser chamado algum dia à sede de aço e vidro da empresa, no centro da capital do país, para liderar suas atividades.

Em vez disso, este garoto de 8 anos está agora no centro de uma disputa entre o dalai-lama e o Partido Comunista Chinês.

Ele ainda era bebê quando tudo mudou. Em uma visita a um enorme monastério em Ulã Bator, a capital, conhecido por sua gigantesca estátua de Buda folhada a ouro, seu pai levou ele e seu irmão gêmeo a um recinto em que os meninos e outras sete crianças receberam um teste secreto.

Os garotos foram postos diante de uma mesa coberta com objetos religiosos. Alguns se recusaram a sair do lado dos pais. Outros foram atraídos pelos doces coloridos colocados como distrações. Mas este menino, A. Altannar, era diferente. Ele escolheu um colar de contas de oração e colocou em torno do pescoço, tocou um sino de meditação e caminhou até um monge no recinto e agarrou-se às suas pernas, brincando.

A. Altannar, de oito anos, pratica ritual de mandala com monges na Mongólia. Foto: Khasar Sandag/The New York Times

“Foram sinais muito especiais”, afirmou o teólogo Bataa Mishigish, que observou o menino com dois monges anciões. “Nós simplesmente trocamos olhares e não dissemos nenhuma palavra.”

Eles tinham encontrado a 10.ª reencarnação do bogd, uma das figuras mais importantes do budismo tibetano e, para muitos, líder espiritual da Mongólia, onde cerca de metade da população é budista.

Ao longo dos sete anos seguintes, os monges mantiveram em segredo a identidade do bogd, conhecido formalmente como Jebtsundamba Khutughtu.

Então em março o dalai-lama apresentou o menino em uma cerimônia na Índia a uma multidão de fiéis, com sua diminuta figura por um deel, o traje tradicional mongol, castanho, e seus olhos escuros e cabelos arrepiados sobre uma máscara cirúrgica branca.

A notícia de que o 10.º bogd tinha sido escolhido foi motivo de celebração na Mongólia.

Dalai Lama apresenta A. Altannar, menino de oito anos escolhido para ser uma das figuras mais veneradas do budismo tibetano.  Foto: Escritório de Dalai Lama / The New York Times

O bogd é um símbolo da identidade mongol, uma posição que remonta a aproximadamente 400 anos de descendentes do imperador mongol Kublai Khan, que adotou o budismo tibetano e ajudou-o a se disseminar na China e em outras terras conquistadas. No início do século 20, um bogd (pronuncia-se bógued) nascido no Tibete foi o regente teocrático da Mongólia, reverenciado como um governante divino. Hoje, esse título adorna bancos, butiques de roupas de caxemira e revendedoras de carros na Mongólia. Quando alguém espirra, os mongóis dizem, “Que bogd o abençoe”.

Mas a pessoa que encarna o bogd é uma questão sensível, com implicações para Mongólia, China e Tibete. O Partido Comunista Chinês buscou impor sua autoridade sobre o budismo tibetano mesmo fora das fronteiras chinesas, como parte de uma antiga campanha para enrijecer seu controle ao Tibete.

A China considera o dalai-lama, de 88 anos, que fugiu do Tibete na juventude, em 1959, e vive exilado na Índia desde então, um inimigo determinado a libertar o Tibete do jugo chinês. Apesar de oficialmente ateu, o partido afirma ser o único ente com poder de aferir a reencarnação do bogd, assim como de outros lamas eminentes.

Depois que o bogd anterior morreu, em 2012, houve preocupação de que a China pudesse tentar escolher ou influenciar a seleção do seguinte. Em 1995, a China sequestrou um menino que o dalai-lama tinha reconhecido como panchen-lama, a segunda figura mais eminente no budismo tibetano.

Então, quando o dalai-lama apareceu com A. Altannar em público este ano, o ato constituiu uma afirmação desafiadora de sua influência sobre a religião e um desafio às reivindicações de Pequim sobre a sucessão. E colocou a Mongólia sob os holofotes, tensionando sua delicada relação com a China, sua vizinha muito maior e mais rica.

Avalokiteśvara, maior estátua interna do mundo, com 26 metros de altura, Mosteiro de Gandantegchinlen, Mongólia. Foto: Chang W. Lee/The New York Times

E há a questão da tradição de ungir uma criança como reencarnação de um lama fazer ou não sentido e ainda ter lugar na Mongólia moderna. Alguns também queixam-se afirmando que famílias de elites, como a do menino, desfrutam de privilégios demais.

Enquanto isso, seus pais escolarizados nos Estados Unidos sentem dificuldade para desistir de esperanças e sonhos para que seu filho atenda a um chamado religioso que eles não escolheram.

O menino, que cursa o 3.º ano do ensino fundamental e gosta de TikTok e videogames, está diante de décadas de treinamento teológico, uma vida de celibato e da pesada responsabilidade de ter que defender o budismo mongol da pressão chinesa. E, de certas maneiras, o mesmo aguarda seu irmão gêmeo.

Para ocultar a identidade de A. Altannar e protegê-lo de fiéis zelosos demais ou coisa pior, Achildai Altannar e Agudai Altannar, que são idênticos, raramente são vistos em público sem a companhia um do outro. Na realidade, nem o dalai-lama nem os país afirmaram publicamente qual menino foi apresentado na cerimônia.

“Nós queremos que o nosso filho cresça em um ambiente normal, não sob pressão, não sob escrutínio de ensinamentos austeros”, afirmou a mãe, Munkhnasan Narmandakh, de 41 anos. “Se ele quer jogar videogame, ele deve poder.”

Esperança de um reavivamento da fé

Quando Bataa, o teólogo, e os líderes do Monastério de Gandan, em Ulã Bator, saíram em busca do próximo bogd, eles ficaram atordoados. O processo de encontrar uma reencarnação tinha quase se perdido no tempo. Eles tiveram de tirar o pó de antigos textos religiosos guardados no Arquivo Nacional e consultar especialistas no gabinete do dalai-lama em Dharamsala, Índia.

A equipe selecionou 80 mil nomes da lista de meninos nascidos em Ulã Bator em 2014 e 2015, anos que se seguiram à morte do bogd anterior. Os religiosos usaram um costume ancestral que combina análises de visões místicas e astrologia para afinar a seleção até que restassem os 11 candidatos ao teste secreto — mas as famílias de apenas 9 meninos responderam.

Naquela tarde, os objetos que A. Altannar escolheu — o colar e o sino — tinham pertencido ao 9.º bogd. O monge que o menino abraçou era assistente do 9.º bogd.

De muitas maneiras, os desafios com a procura sublinharam o estado enfraquecido do budismo tibetano na Mongólia.

A. Altannar no Mosteiro de Gandan, na Mongólia.  Foto: Khasar Sandag/The New York Times

Passaram-se quase 300 anos desde que o título de bogd pertenceu a um mongol. Depois que os mongóis foram subjugados pelo império chinês da dinastia Qing, no século 17, o imperador determinou que todas as futuras encarnações do bogd fossem encontradas no Tibete, para evitar uma insurreição mongol.

Os mongóis pensaram por muito tempo que as reencarnações do bogd tinham terminado no 8.º, em um lama nascido no Tibete que era reverenciado por ter declarado independência do Império Qing em 1911 e que morreu em 1924. Com o início da era Stálin, pouco depois, governantes comunistas que controlavam a Mongólia declararam o fim da linhagem do bogd. Ao longo de 70 anos do governo socialista, as autoridades reprimiam a religião, matavam lamas eminentes e monges e destruíam templos.

Depois da revolução democrática da Mongólia, em 1990, muitos no país ficaram estarrecidos quando o dalai-lama revelou que, em 1936, um menino tibetano de 4 anos tinha sido reconhecido como o 9.º bogd. Ele e o dalai-lama eram amigos, ambos fugiram dos chineses nem 1959, e o bogd passou a viver secretamente na Índia.

Ao longo dos anos, encorajado pelo dalai-lama, o budismo se restabeleceu na Mongólia. Monastérios antigos foram reformados, fiéis saíram das sombras e o 9.º bogd mudou-se para lá em 2011.

Quando ele morreu, um ano depois, aos 79 anos, seu testamento pediu que sua reencarnação nascesse na Mongólia, em vez do Tibete. O pedido aproximaria o lama das pessoas que ele deveria liderar.

A sombra do elitismo

Antes de A. Altannar ser identificado como líder espiritual da Mongólia, ele nasceu em meio à elite empresarial do país.

Garamjav Tseden, sua avó, é fundadora da Monpolymet, uma das mais bem-sucedidas empresas privadas da Mongólia, que começou no ramo da mineração de ouro e desde então se expandiu para fabricação de cimento. Sua mãe, diretora-executiva da empresa, foi jurada em uma edição da versão mongol do “Shark Tank”, o reality show inspirado no mundo dos negócios.

Mas o sucesso da família e o fato de Garamjav ter sido parlamentar e benfeitora do bogd anterior levantaram dúvidas a respeito de privilégios e elitismos impregnarem o processo de busca do bogd. Algumas pessoas, incluindo a proeminente poeta Khulan Tsoodolyn, criticaram a seleção de A. Altannar, classificando-a como um exemplo do monopólio da elite sobre o poder e o prestígio. (Ela foi presa em janeiro, sob acusações não especificadas de espionagem, e sentenciada em julho a nove anos de prisão.)

Pouco após A. Altannar ser apresentado pelo dalai-lama, a jornalista independente Unurtsetseg Naran escreveu no Facebook: “Por que uma criança rica foi selecionada?”. Os pais do menino afirmam que os posts de Naran alimentaram ameaças contra sua família. E rejeitam qualquer sugestão de que compraram a posição de seu filho.

Jornalista Unurtsetseg Naran, da Mongólia, criticou escolha do menino de oito anos. Foto: Chang W. Lee/The New York Times

Riqueza é um tópico sensível na Mongólia, onde o abismo entre ricos e pobres continua largo e profundo. Em nenhum outro lugar ele é mais evidente do que em Ulã Bator, onde um quarto dos moradores vive na pobreza — com frequência em distritos arruinados ou como nômades, em tendas nas imediações da cidade, longe dos shopping centers e hotéis luxuosos que figuram como monumentos aos booms de mineração no país.

Historicamente, lamas tibetanos com frequência são filhos da nobreza. Alguns observadores afirmam que jovens lamas de famílias ricas beneficiam-se da possibilidade de obter melhor educação — e sua riqueza material é um possível sinal de uma vida passada virtuosa.

Mas sempre houve reclamações de que seleções de lamas tratam de política e, por vezes, são fruto de corrupção.

No fim dos século 18, o imperador chinês Qianlong tentou usar um sistema de palitos talhados retirados de uma urna dourada para a escolha dos lamas. O Partido Comunista Chinês fez renascer a “Urna Dourada” numa tentativa de controlar a seleção dos lamas budistas e limitar a influência do dalai-lama, mas poucos fora da China consideram o sistema legítimo.

‘Mudança sísmica’ no centro de poder

O reconhecimento de um lama reencarnado na Mongólia implicará numa maior participação do país no xadrez político entre Pequim e o dalai-lama.

A Mongólia depende da China, que compra suas exportações e investe em sua infraestrutura. A marca chinesa é vista em Ulã Bator num serpenteante viaduto projetado para aliviar o punitivo trânsito da cidade e numa arena esportiva com um logo que diz: “Ajuda da China para um futuro em comum”.

Para a Mongólia, um movimento que contrarie Pequim sairia caro.

Foi em 2016, numa visita à Mongólia, que o dalai-lama declarou pela primeira vez, em uma conferência de imprensa, que o bogd tinha sido descoberto no país — um anúncio bombástico. A resposta chinesa foi imediata. Pequim fechou as passagens fronteiriças entre os países, impôs tarifas e cancelou conversas bilaterais.

O dalai-lama não voltou a visitar a Mongólia desde então.

Agora ele tem um meio salientar o poder da Mongólia e expandir o alcance de seu gabinete, afirmou Munkhnaran Bayarlkhagva, analista que trabalhou no Conselho de Segurança Nacional da Mongólia. A seleção de um mongol para a função de bogd foi uma “mudança sísmica no centro do poder do budismo tibetano”, de Dharamsala para Ulã Bator, afirmou ele.

Também há possíveis reverberações para o governo dos EUA. A. Altannar nasceu em Washington, DC, o que faz dele cidadão americano. Isso alimentou especulação a respeito dele ter sido escolhido porque sua cidadania americana poderia lhe garantir proteção adicional em relação à China.

A China não comentou publicamente a seleção de A. Altannar, mas autoridades mongóis e estrangeiras, falando sob condição de anonimato em razão da sensibilidade do tema, afirmaram que Pequim alertou a Mongólia a respeito de retaliações caso o bogd se aproxime demais do dalai-lama.

Telo Tulku Rinpoche, representante do dalai-lama na Mongólia, acusou a China de querer “controlar o budismo em um nível global”. Ele negou que A. Altannar tenha sido selecionado por razões políticas e afirmou que o gabinete do dalai-lama terá pouco contato com o menino. “É um assunto espiritual”, afirmou ele.

Vida de criança

O telefonema para a família do menino com a notícia de sua seleção veio de ninguém menos que o então presidente da Mongólia, Tsakhia Elbegdorj, um sinal da importância da posição no país.

Mas Munkhnasan, a mãe de A. Altannar, afirmou que sua resposta imediata foi uma rejeição absoluta à ideia. Os pais esperavam que os meninos estudassem engenharia e algum dia assumissem o império empresarial da família.

A. Altannar (o terceiro da esquerda) olha livros com colegas de classe. Foto: Khasar Sandag/The New York Times

“Nós dissemos, ‘Isso não pode acontecer’”, afirmou Munkhnasan. “Meu menino ainda era bebê na época, e não houve nenhum tipo de aviso ou comunicação preliminar a respeito do que estava prestes a ocorrer.”

Munkhnasan e seu marido, Altannar Chinchuluun, escreveram para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) pedindo ajuda. O processo de reconhecimento de reencarnação, argumentaram eles, havia furtado os direitos de seu filho.

A família viajou prontamente para Ulã Bator depois do telefonema do presidente e exigiu que os monges encontrassem outro menino. Os religiosos afirmaram que tentariam, mas o dalai-lama disse não.

Em vez disso, ele recomendou que os pais tivessem um tempo para pensar, na esperança de que mudassem de ideia. Os monges prometeram não revelar o nome do menino enquanto a família decidisse. Ainda assim, o casal angustiou-se diante do dilema.

Altannar, de 43 anos, matemático da Universidade Nacional da Mongólia, preocupou-se com a possibilidade de estar voltando as costas ao seu país caso se recusasse a restaurar uma instituição nacional. Munkhnasan temeu atrair carma ruim para a família se negasse aos budistas tibetanos um líder sagrado.

Eventualmente, ambos decidiram tentar um meio-termo. Os monges poderiam instruir o meninos se ele também seguisse sua educação regular. Mais importante, os pais insistiram que caberia ao seu filho, ao completar 18 anos, decidir se quer continuar bogd. “A decisão é dele”, afirmou Munkhnasan.

A. Altannar assiste aula da 3ª série na Mongólia.  Foto: Khasar Sandag/The New York Times

Até lá, A. Altannar passará uma infância como nenhuma outra. E não foi apenas sua vida que mudou; a do seu irmão também. Os gêmeos vestem-se identicamente e recebem o mesmo treinamento, como se ambos fossem o bogd.

Munkhnasan afirmou que não quis “sacrificar” um filho pelo outro, com um dos gêmeos vivendo à sombra do irmão. Mas disse que a família terá de fazer isso até ficar mais confiante em relação à segurança de A. Altannar.

O menino parece caminhar nos dois mundos cada vez mais facilmente. Quando visitou Dharamsala para conhecer o dalai-lama, ele ficou sentado por horas, imóvel, ouvindo seus ensinamentos.

Em um dia recente, A. Altannar foi à escola, brincou com os colegas de classe e abriu um grande sorriso durante uma corrida de revezamento na aula de educação física. Depois ele vestiu seu tradicional deel mongol para receber instruções religiosas no Monastério de Gandan. Na presença dos monges, sua energia de menino era substituída por uma aura de calma e maturidade conforme ele lia os sutras e praticava os rituais.

“É claro que, como menino, ele não entende tudo que está acontecendo, mas definitivamente ele não está rejeitando”, afirmou Munkhnasan. “Ele está muito à vontade. É como sua segunda natureza.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE NEW YORK TIMES - O menino parecia destinado a uma vida de opulência e assuntos terrenos. Nascido numa família que controla um grande conglomerado de mineração na Mongólia, ele poderia ser chamado algum dia à sede de aço e vidro da empresa, no centro da capital do país, para liderar suas atividades.

Em vez disso, este garoto de 8 anos está agora no centro de uma disputa entre o dalai-lama e o Partido Comunista Chinês.

Ele ainda era bebê quando tudo mudou. Em uma visita a um enorme monastério em Ulã Bator, a capital, conhecido por sua gigantesca estátua de Buda folhada a ouro, seu pai levou ele e seu irmão gêmeo a um recinto em que os meninos e outras sete crianças receberam um teste secreto.

Os garotos foram postos diante de uma mesa coberta com objetos religiosos. Alguns se recusaram a sair do lado dos pais. Outros foram atraídos pelos doces coloridos colocados como distrações. Mas este menino, A. Altannar, era diferente. Ele escolheu um colar de contas de oração e colocou em torno do pescoço, tocou um sino de meditação e caminhou até um monge no recinto e agarrou-se às suas pernas, brincando.

A. Altannar, de oito anos, pratica ritual de mandala com monges na Mongólia. Foto: Khasar Sandag/The New York Times

“Foram sinais muito especiais”, afirmou o teólogo Bataa Mishigish, que observou o menino com dois monges anciões. “Nós simplesmente trocamos olhares e não dissemos nenhuma palavra.”

Eles tinham encontrado a 10.ª reencarnação do bogd, uma das figuras mais importantes do budismo tibetano e, para muitos, líder espiritual da Mongólia, onde cerca de metade da população é budista.

Ao longo dos sete anos seguintes, os monges mantiveram em segredo a identidade do bogd, conhecido formalmente como Jebtsundamba Khutughtu.

Então em março o dalai-lama apresentou o menino em uma cerimônia na Índia a uma multidão de fiéis, com sua diminuta figura por um deel, o traje tradicional mongol, castanho, e seus olhos escuros e cabelos arrepiados sobre uma máscara cirúrgica branca.

A notícia de que o 10.º bogd tinha sido escolhido foi motivo de celebração na Mongólia.

Dalai Lama apresenta A. Altannar, menino de oito anos escolhido para ser uma das figuras mais veneradas do budismo tibetano.  Foto: Escritório de Dalai Lama / The New York Times

O bogd é um símbolo da identidade mongol, uma posição que remonta a aproximadamente 400 anos de descendentes do imperador mongol Kublai Khan, que adotou o budismo tibetano e ajudou-o a se disseminar na China e em outras terras conquistadas. No início do século 20, um bogd (pronuncia-se bógued) nascido no Tibete foi o regente teocrático da Mongólia, reverenciado como um governante divino. Hoje, esse título adorna bancos, butiques de roupas de caxemira e revendedoras de carros na Mongólia. Quando alguém espirra, os mongóis dizem, “Que bogd o abençoe”.

Mas a pessoa que encarna o bogd é uma questão sensível, com implicações para Mongólia, China e Tibete. O Partido Comunista Chinês buscou impor sua autoridade sobre o budismo tibetano mesmo fora das fronteiras chinesas, como parte de uma antiga campanha para enrijecer seu controle ao Tibete.

A China considera o dalai-lama, de 88 anos, que fugiu do Tibete na juventude, em 1959, e vive exilado na Índia desde então, um inimigo determinado a libertar o Tibete do jugo chinês. Apesar de oficialmente ateu, o partido afirma ser o único ente com poder de aferir a reencarnação do bogd, assim como de outros lamas eminentes.

Depois que o bogd anterior morreu, em 2012, houve preocupação de que a China pudesse tentar escolher ou influenciar a seleção do seguinte. Em 1995, a China sequestrou um menino que o dalai-lama tinha reconhecido como panchen-lama, a segunda figura mais eminente no budismo tibetano.

Então, quando o dalai-lama apareceu com A. Altannar em público este ano, o ato constituiu uma afirmação desafiadora de sua influência sobre a religião e um desafio às reivindicações de Pequim sobre a sucessão. E colocou a Mongólia sob os holofotes, tensionando sua delicada relação com a China, sua vizinha muito maior e mais rica.

Avalokiteśvara, maior estátua interna do mundo, com 26 metros de altura, Mosteiro de Gandantegchinlen, Mongólia. Foto: Chang W. Lee/The New York Times

E há a questão da tradição de ungir uma criança como reencarnação de um lama fazer ou não sentido e ainda ter lugar na Mongólia moderna. Alguns também queixam-se afirmando que famílias de elites, como a do menino, desfrutam de privilégios demais.

Enquanto isso, seus pais escolarizados nos Estados Unidos sentem dificuldade para desistir de esperanças e sonhos para que seu filho atenda a um chamado religioso que eles não escolheram.

O menino, que cursa o 3.º ano do ensino fundamental e gosta de TikTok e videogames, está diante de décadas de treinamento teológico, uma vida de celibato e da pesada responsabilidade de ter que defender o budismo mongol da pressão chinesa. E, de certas maneiras, o mesmo aguarda seu irmão gêmeo.

Para ocultar a identidade de A. Altannar e protegê-lo de fiéis zelosos demais ou coisa pior, Achildai Altannar e Agudai Altannar, que são idênticos, raramente são vistos em público sem a companhia um do outro. Na realidade, nem o dalai-lama nem os país afirmaram publicamente qual menino foi apresentado na cerimônia.

“Nós queremos que o nosso filho cresça em um ambiente normal, não sob pressão, não sob escrutínio de ensinamentos austeros”, afirmou a mãe, Munkhnasan Narmandakh, de 41 anos. “Se ele quer jogar videogame, ele deve poder.”

Esperança de um reavivamento da fé

Quando Bataa, o teólogo, e os líderes do Monastério de Gandan, em Ulã Bator, saíram em busca do próximo bogd, eles ficaram atordoados. O processo de encontrar uma reencarnação tinha quase se perdido no tempo. Eles tiveram de tirar o pó de antigos textos religiosos guardados no Arquivo Nacional e consultar especialistas no gabinete do dalai-lama em Dharamsala, Índia.

A equipe selecionou 80 mil nomes da lista de meninos nascidos em Ulã Bator em 2014 e 2015, anos que se seguiram à morte do bogd anterior. Os religiosos usaram um costume ancestral que combina análises de visões místicas e astrologia para afinar a seleção até que restassem os 11 candidatos ao teste secreto — mas as famílias de apenas 9 meninos responderam.

Naquela tarde, os objetos que A. Altannar escolheu — o colar e o sino — tinham pertencido ao 9.º bogd. O monge que o menino abraçou era assistente do 9.º bogd.

De muitas maneiras, os desafios com a procura sublinharam o estado enfraquecido do budismo tibetano na Mongólia.

A. Altannar no Mosteiro de Gandan, na Mongólia.  Foto: Khasar Sandag/The New York Times

Passaram-se quase 300 anos desde que o título de bogd pertenceu a um mongol. Depois que os mongóis foram subjugados pelo império chinês da dinastia Qing, no século 17, o imperador determinou que todas as futuras encarnações do bogd fossem encontradas no Tibete, para evitar uma insurreição mongol.

Os mongóis pensaram por muito tempo que as reencarnações do bogd tinham terminado no 8.º, em um lama nascido no Tibete que era reverenciado por ter declarado independência do Império Qing em 1911 e que morreu em 1924. Com o início da era Stálin, pouco depois, governantes comunistas que controlavam a Mongólia declararam o fim da linhagem do bogd. Ao longo de 70 anos do governo socialista, as autoridades reprimiam a religião, matavam lamas eminentes e monges e destruíam templos.

Depois da revolução democrática da Mongólia, em 1990, muitos no país ficaram estarrecidos quando o dalai-lama revelou que, em 1936, um menino tibetano de 4 anos tinha sido reconhecido como o 9.º bogd. Ele e o dalai-lama eram amigos, ambos fugiram dos chineses nem 1959, e o bogd passou a viver secretamente na Índia.

Ao longo dos anos, encorajado pelo dalai-lama, o budismo se restabeleceu na Mongólia. Monastérios antigos foram reformados, fiéis saíram das sombras e o 9.º bogd mudou-se para lá em 2011.

Quando ele morreu, um ano depois, aos 79 anos, seu testamento pediu que sua reencarnação nascesse na Mongólia, em vez do Tibete. O pedido aproximaria o lama das pessoas que ele deveria liderar.

A sombra do elitismo

Antes de A. Altannar ser identificado como líder espiritual da Mongólia, ele nasceu em meio à elite empresarial do país.

Garamjav Tseden, sua avó, é fundadora da Monpolymet, uma das mais bem-sucedidas empresas privadas da Mongólia, que começou no ramo da mineração de ouro e desde então se expandiu para fabricação de cimento. Sua mãe, diretora-executiva da empresa, foi jurada em uma edição da versão mongol do “Shark Tank”, o reality show inspirado no mundo dos negócios.

Mas o sucesso da família e o fato de Garamjav ter sido parlamentar e benfeitora do bogd anterior levantaram dúvidas a respeito de privilégios e elitismos impregnarem o processo de busca do bogd. Algumas pessoas, incluindo a proeminente poeta Khulan Tsoodolyn, criticaram a seleção de A. Altannar, classificando-a como um exemplo do monopólio da elite sobre o poder e o prestígio. (Ela foi presa em janeiro, sob acusações não especificadas de espionagem, e sentenciada em julho a nove anos de prisão.)

Pouco após A. Altannar ser apresentado pelo dalai-lama, a jornalista independente Unurtsetseg Naran escreveu no Facebook: “Por que uma criança rica foi selecionada?”. Os pais do menino afirmam que os posts de Naran alimentaram ameaças contra sua família. E rejeitam qualquer sugestão de que compraram a posição de seu filho.

Jornalista Unurtsetseg Naran, da Mongólia, criticou escolha do menino de oito anos. Foto: Chang W. Lee/The New York Times

Riqueza é um tópico sensível na Mongólia, onde o abismo entre ricos e pobres continua largo e profundo. Em nenhum outro lugar ele é mais evidente do que em Ulã Bator, onde um quarto dos moradores vive na pobreza — com frequência em distritos arruinados ou como nômades, em tendas nas imediações da cidade, longe dos shopping centers e hotéis luxuosos que figuram como monumentos aos booms de mineração no país.

Historicamente, lamas tibetanos com frequência são filhos da nobreza. Alguns observadores afirmam que jovens lamas de famílias ricas beneficiam-se da possibilidade de obter melhor educação — e sua riqueza material é um possível sinal de uma vida passada virtuosa.

Mas sempre houve reclamações de que seleções de lamas tratam de política e, por vezes, são fruto de corrupção.

No fim dos século 18, o imperador chinês Qianlong tentou usar um sistema de palitos talhados retirados de uma urna dourada para a escolha dos lamas. O Partido Comunista Chinês fez renascer a “Urna Dourada” numa tentativa de controlar a seleção dos lamas budistas e limitar a influência do dalai-lama, mas poucos fora da China consideram o sistema legítimo.

‘Mudança sísmica’ no centro de poder

O reconhecimento de um lama reencarnado na Mongólia implicará numa maior participação do país no xadrez político entre Pequim e o dalai-lama.

A Mongólia depende da China, que compra suas exportações e investe em sua infraestrutura. A marca chinesa é vista em Ulã Bator num serpenteante viaduto projetado para aliviar o punitivo trânsito da cidade e numa arena esportiva com um logo que diz: “Ajuda da China para um futuro em comum”.

Para a Mongólia, um movimento que contrarie Pequim sairia caro.

Foi em 2016, numa visita à Mongólia, que o dalai-lama declarou pela primeira vez, em uma conferência de imprensa, que o bogd tinha sido descoberto no país — um anúncio bombástico. A resposta chinesa foi imediata. Pequim fechou as passagens fronteiriças entre os países, impôs tarifas e cancelou conversas bilaterais.

O dalai-lama não voltou a visitar a Mongólia desde então.

Agora ele tem um meio salientar o poder da Mongólia e expandir o alcance de seu gabinete, afirmou Munkhnaran Bayarlkhagva, analista que trabalhou no Conselho de Segurança Nacional da Mongólia. A seleção de um mongol para a função de bogd foi uma “mudança sísmica no centro do poder do budismo tibetano”, de Dharamsala para Ulã Bator, afirmou ele.

Também há possíveis reverberações para o governo dos EUA. A. Altannar nasceu em Washington, DC, o que faz dele cidadão americano. Isso alimentou especulação a respeito dele ter sido escolhido porque sua cidadania americana poderia lhe garantir proteção adicional em relação à China.

A China não comentou publicamente a seleção de A. Altannar, mas autoridades mongóis e estrangeiras, falando sob condição de anonimato em razão da sensibilidade do tema, afirmaram que Pequim alertou a Mongólia a respeito de retaliações caso o bogd se aproxime demais do dalai-lama.

Telo Tulku Rinpoche, representante do dalai-lama na Mongólia, acusou a China de querer “controlar o budismo em um nível global”. Ele negou que A. Altannar tenha sido selecionado por razões políticas e afirmou que o gabinete do dalai-lama terá pouco contato com o menino. “É um assunto espiritual”, afirmou ele.

Vida de criança

O telefonema para a família do menino com a notícia de sua seleção veio de ninguém menos que o então presidente da Mongólia, Tsakhia Elbegdorj, um sinal da importância da posição no país.

Mas Munkhnasan, a mãe de A. Altannar, afirmou que sua resposta imediata foi uma rejeição absoluta à ideia. Os pais esperavam que os meninos estudassem engenharia e algum dia assumissem o império empresarial da família.

A. Altannar (o terceiro da esquerda) olha livros com colegas de classe. Foto: Khasar Sandag/The New York Times

“Nós dissemos, ‘Isso não pode acontecer’”, afirmou Munkhnasan. “Meu menino ainda era bebê na época, e não houve nenhum tipo de aviso ou comunicação preliminar a respeito do que estava prestes a ocorrer.”

Munkhnasan e seu marido, Altannar Chinchuluun, escreveram para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) pedindo ajuda. O processo de reconhecimento de reencarnação, argumentaram eles, havia furtado os direitos de seu filho.

A família viajou prontamente para Ulã Bator depois do telefonema do presidente e exigiu que os monges encontrassem outro menino. Os religiosos afirmaram que tentariam, mas o dalai-lama disse não.

Em vez disso, ele recomendou que os pais tivessem um tempo para pensar, na esperança de que mudassem de ideia. Os monges prometeram não revelar o nome do menino enquanto a família decidisse. Ainda assim, o casal angustiou-se diante do dilema.

Altannar, de 43 anos, matemático da Universidade Nacional da Mongólia, preocupou-se com a possibilidade de estar voltando as costas ao seu país caso se recusasse a restaurar uma instituição nacional. Munkhnasan temeu atrair carma ruim para a família se negasse aos budistas tibetanos um líder sagrado.

Eventualmente, ambos decidiram tentar um meio-termo. Os monges poderiam instruir o meninos se ele também seguisse sua educação regular. Mais importante, os pais insistiram que caberia ao seu filho, ao completar 18 anos, decidir se quer continuar bogd. “A decisão é dele”, afirmou Munkhnasan.

A. Altannar assiste aula da 3ª série na Mongólia.  Foto: Khasar Sandag/The New York Times

Até lá, A. Altannar passará uma infância como nenhuma outra. E não foi apenas sua vida que mudou; a do seu irmão também. Os gêmeos vestem-se identicamente e recebem o mesmo treinamento, como se ambos fossem o bogd.

Munkhnasan afirmou que não quis “sacrificar” um filho pelo outro, com um dos gêmeos vivendo à sombra do irmão. Mas disse que a família terá de fazer isso até ficar mais confiante em relação à segurança de A. Altannar.

O menino parece caminhar nos dois mundos cada vez mais facilmente. Quando visitou Dharamsala para conhecer o dalai-lama, ele ficou sentado por horas, imóvel, ouvindo seus ensinamentos.

Em um dia recente, A. Altannar foi à escola, brincou com os colegas de classe e abriu um grande sorriso durante uma corrida de revezamento na aula de educação física. Depois ele vestiu seu tradicional deel mongol para receber instruções religiosas no Monastério de Gandan. Na presença dos monges, sua energia de menino era substituída por uma aura de calma e maturidade conforme ele lia os sutras e praticava os rituais.

“É claro que, como menino, ele não entende tudo que está acontecendo, mas definitivamente ele não está rejeitando”, afirmou Munkhnasan. “Ele está muito à vontade. É como sua segunda natureza.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE NEW YORK TIMES - O menino parecia destinado a uma vida de opulência e assuntos terrenos. Nascido numa família que controla um grande conglomerado de mineração na Mongólia, ele poderia ser chamado algum dia à sede de aço e vidro da empresa, no centro da capital do país, para liderar suas atividades.

Em vez disso, este garoto de 8 anos está agora no centro de uma disputa entre o dalai-lama e o Partido Comunista Chinês.

Ele ainda era bebê quando tudo mudou. Em uma visita a um enorme monastério em Ulã Bator, a capital, conhecido por sua gigantesca estátua de Buda folhada a ouro, seu pai levou ele e seu irmão gêmeo a um recinto em que os meninos e outras sete crianças receberam um teste secreto.

Os garotos foram postos diante de uma mesa coberta com objetos religiosos. Alguns se recusaram a sair do lado dos pais. Outros foram atraídos pelos doces coloridos colocados como distrações. Mas este menino, A. Altannar, era diferente. Ele escolheu um colar de contas de oração e colocou em torno do pescoço, tocou um sino de meditação e caminhou até um monge no recinto e agarrou-se às suas pernas, brincando.

A. Altannar, de oito anos, pratica ritual de mandala com monges na Mongólia. Foto: Khasar Sandag/The New York Times

“Foram sinais muito especiais”, afirmou o teólogo Bataa Mishigish, que observou o menino com dois monges anciões. “Nós simplesmente trocamos olhares e não dissemos nenhuma palavra.”

Eles tinham encontrado a 10.ª reencarnação do bogd, uma das figuras mais importantes do budismo tibetano e, para muitos, líder espiritual da Mongólia, onde cerca de metade da população é budista.

Ao longo dos sete anos seguintes, os monges mantiveram em segredo a identidade do bogd, conhecido formalmente como Jebtsundamba Khutughtu.

Então em março o dalai-lama apresentou o menino em uma cerimônia na Índia a uma multidão de fiéis, com sua diminuta figura por um deel, o traje tradicional mongol, castanho, e seus olhos escuros e cabelos arrepiados sobre uma máscara cirúrgica branca.

A notícia de que o 10.º bogd tinha sido escolhido foi motivo de celebração na Mongólia.

Dalai Lama apresenta A. Altannar, menino de oito anos escolhido para ser uma das figuras mais veneradas do budismo tibetano.  Foto: Escritório de Dalai Lama / The New York Times

O bogd é um símbolo da identidade mongol, uma posição que remonta a aproximadamente 400 anos de descendentes do imperador mongol Kublai Khan, que adotou o budismo tibetano e ajudou-o a se disseminar na China e em outras terras conquistadas. No início do século 20, um bogd (pronuncia-se bógued) nascido no Tibete foi o regente teocrático da Mongólia, reverenciado como um governante divino. Hoje, esse título adorna bancos, butiques de roupas de caxemira e revendedoras de carros na Mongólia. Quando alguém espirra, os mongóis dizem, “Que bogd o abençoe”.

Mas a pessoa que encarna o bogd é uma questão sensível, com implicações para Mongólia, China e Tibete. O Partido Comunista Chinês buscou impor sua autoridade sobre o budismo tibetano mesmo fora das fronteiras chinesas, como parte de uma antiga campanha para enrijecer seu controle ao Tibete.

A China considera o dalai-lama, de 88 anos, que fugiu do Tibete na juventude, em 1959, e vive exilado na Índia desde então, um inimigo determinado a libertar o Tibete do jugo chinês. Apesar de oficialmente ateu, o partido afirma ser o único ente com poder de aferir a reencarnação do bogd, assim como de outros lamas eminentes.

Depois que o bogd anterior morreu, em 2012, houve preocupação de que a China pudesse tentar escolher ou influenciar a seleção do seguinte. Em 1995, a China sequestrou um menino que o dalai-lama tinha reconhecido como panchen-lama, a segunda figura mais eminente no budismo tibetano.

Então, quando o dalai-lama apareceu com A. Altannar em público este ano, o ato constituiu uma afirmação desafiadora de sua influência sobre a religião e um desafio às reivindicações de Pequim sobre a sucessão. E colocou a Mongólia sob os holofotes, tensionando sua delicada relação com a China, sua vizinha muito maior e mais rica.

Avalokiteśvara, maior estátua interna do mundo, com 26 metros de altura, Mosteiro de Gandantegchinlen, Mongólia. Foto: Chang W. Lee/The New York Times

E há a questão da tradição de ungir uma criança como reencarnação de um lama fazer ou não sentido e ainda ter lugar na Mongólia moderna. Alguns também queixam-se afirmando que famílias de elites, como a do menino, desfrutam de privilégios demais.

Enquanto isso, seus pais escolarizados nos Estados Unidos sentem dificuldade para desistir de esperanças e sonhos para que seu filho atenda a um chamado religioso que eles não escolheram.

O menino, que cursa o 3.º ano do ensino fundamental e gosta de TikTok e videogames, está diante de décadas de treinamento teológico, uma vida de celibato e da pesada responsabilidade de ter que defender o budismo mongol da pressão chinesa. E, de certas maneiras, o mesmo aguarda seu irmão gêmeo.

Para ocultar a identidade de A. Altannar e protegê-lo de fiéis zelosos demais ou coisa pior, Achildai Altannar e Agudai Altannar, que são idênticos, raramente são vistos em público sem a companhia um do outro. Na realidade, nem o dalai-lama nem os país afirmaram publicamente qual menino foi apresentado na cerimônia.

“Nós queremos que o nosso filho cresça em um ambiente normal, não sob pressão, não sob escrutínio de ensinamentos austeros”, afirmou a mãe, Munkhnasan Narmandakh, de 41 anos. “Se ele quer jogar videogame, ele deve poder.”

Esperança de um reavivamento da fé

Quando Bataa, o teólogo, e os líderes do Monastério de Gandan, em Ulã Bator, saíram em busca do próximo bogd, eles ficaram atordoados. O processo de encontrar uma reencarnação tinha quase se perdido no tempo. Eles tiveram de tirar o pó de antigos textos religiosos guardados no Arquivo Nacional e consultar especialistas no gabinete do dalai-lama em Dharamsala, Índia.

A equipe selecionou 80 mil nomes da lista de meninos nascidos em Ulã Bator em 2014 e 2015, anos que se seguiram à morte do bogd anterior. Os religiosos usaram um costume ancestral que combina análises de visões místicas e astrologia para afinar a seleção até que restassem os 11 candidatos ao teste secreto — mas as famílias de apenas 9 meninos responderam.

Naquela tarde, os objetos que A. Altannar escolheu — o colar e o sino — tinham pertencido ao 9.º bogd. O monge que o menino abraçou era assistente do 9.º bogd.

De muitas maneiras, os desafios com a procura sublinharam o estado enfraquecido do budismo tibetano na Mongólia.

A. Altannar no Mosteiro de Gandan, na Mongólia.  Foto: Khasar Sandag/The New York Times

Passaram-se quase 300 anos desde que o título de bogd pertenceu a um mongol. Depois que os mongóis foram subjugados pelo império chinês da dinastia Qing, no século 17, o imperador determinou que todas as futuras encarnações do bogd fossem encontradas no Tibete, para evitar uma insurreição mongol.

Os mongóis pensaram por muito tempo que as reencarnações do bogd tinham terminado no 8.º, em um lama nascido no Tibete que era reverenciado por ter declarado independência do Império Qing em 1911 e que morreu em 1924. Com o início da era Stálin, pouco depois, governantes comunistas que controlavam a Mongólia declararam o fim da linhagem do bogd. Ao longo de 70 anos do governo socialista, as autoridades reprimiam a religião, matavam lamas eminentes e monges e destruíam templos.

Depois da revolução democrática da Mongólia, em 1990, muitos no país ficaram estarrecidos quando o dalai-lama revelou que, em 1936, um menino tibetano de 4 anos tinha sido reconhecido como o 9.º bogd. Ele e o dalai-lama eram amigos, ambos fugiram dos chineses nem 1959, e o bogd passou a viver secretamente na Índia.

Ao longo dos anos, encorajado pelo dalai-lama, o budismo se restabeleceu na Mongólia. Monastérios antigos foram reformados, fiéis saíram das sombras e o 9.º bogd mudou-se para lá em 2011.

Quando ele morreu, um ano depois, aos 79 anos, seu testamento pediu que sua reencarnação nascesse na Mongólia, em vez do Tibete. O pedido aproximaria o lama das pessoas que ele deveria liderar.

A sombra do elitismo

Antes de A. Altannar ser identificado como líder espiritual da Mongólia, ele nasceu em meio à elite empresarial do país.

Garamjav Tseden, sua avó, é fundadora da Monpolymet, uma das mais bem-sucedidas empresas privadas da Mongólia, que começou no ramo da mineração de ouro e desde então se expandiu para fabricação de cimento. Sua mãe, diretora-executiva da empresa, foi jurada em uma edição da versão mongol do “Shark Tank”, o reality show inspirado no mundo dos negócios.

Mas o sucesso da família e o fato de Garamjav ter sido parlamentar e benfeitora do bogd anterior levantaram dúvidas a respeito de privilégios e elitismos impregnarem o processo de busca do bogd. Algumas pessoas, incluindo a proeminente poeta Khulan Tsoodolyn, criticaram a seleção de A. Altannar, classificando-a como um exemplo do monopólio da elite sobre o poder e o prestígio. (Ela foi presa em janeiro, sob acusações não especificadas de espionagem, e sentenciada em julho a nove anos de prisão.)

Pouco após A. Altannar ser apresentado pelo dalai-lama, a jornalista independente Unurtsetseg Naran escreveu no Facebook: “Por que uma criança rica foi selecionada?”. Os pais do menino afirmam que os posts de Naran alimentaram ameaças contra sua família. E rejeitam qualquer sugestão de que compraram a posição de seu filho.

Jornalista Unurtsetseg Naran, da Mongólia, criticou escolha do menino de oito anos. Foto: Chang W. Lee/The New York Times

Riqueza é um tópico sensível na Mongólia, onde o abismo entre ricos e pobres continua largo e profundo. Em nenhum outro lugar ele é mais evidente do que em Ulã Bator, onde um quarto dos moradores vive na pobreza — com frequência em distritos arruinados ou como nômades, em tendas nas imediações da cidade, longe dos shopping centers e hotéis luxuosos que figuram como monumentos aos booms de mineração no país.

Historicamente, lamas tibetanos com frequência são filhos da nobreza. Alguns observadores afirmam que jovens lamas de famílias ricas beneficiam-se da possibilidade de obter melhor educação — e sua riqueza material é um possível sinal de uma vida passada virtuosa.

Mas sempre houve reclamações de que seleções de lamas tratam de política e, por vezes, são fruto de corrupção.

No fim dos século 18, o imperador chinês Qianlong tentou usar um sistema de palitos talhados retirados de uma urna dourada para a escolha dos lamas. O Partido Comunista Chinês fez renascer a “Urna Dourada” numa tentativa de controlar a seleção dos lamas budistas e limitar a influência do dalai-lama, mas poucos fora da China consideram o sistema legítimo.

‘Mudança sísmica’ no centro de poder

O reconhecimento de um lama reencarnado na Mongólia implicará numa maior participação do país no xadrez político entre Pequim e o dalai-lama.

A Mongólia depende da China, que compra suas exportações e investe em sua infraestrutura. A marca chinesa é vista em Ulã Bator num serpenteante viaduto projetado para aliviar o punitivo trânsito da cidade e numa arena esportiva com um logo que diz: “Ajuda da China para um futuro em comum”.

Para a Mongólia, um movimento que contrarie Pequim sairia caro.

Foi em 2016, numa visita à Mongólia, que o dalai-lama declarou pela primeira vez, em uma conferência de imprensa, que o bogd tinha sido descoberto no país — um anúncio bombástico. A resposta chinesa foi imediata. Pequim fechou as passagens fronteiriças entre os países, impôs tarifas e cancelou conversas bilaterais.

O dalai-lama não voltou a visitar a Mongólia desde então.

Agora ele tem um meio salientar o poder da Mongólia e expandir o alcance de seu gabinete, afirmou Munkhnaran Bayarlkhagva, analista que trabalhou no Conselho de Segurança Nacional da Mongólia. A seleção de um mongol para a função de bogd foi uma “mudança sísmica no centro do poder do budismo tibetano”, de Dharamsala para Ulã Bator, afirmou ele.

Também há possíveis reverberações para o governo dos EUA. A. Altannar nasceu em Washington, DC, o que faz dele cidadão americano. Isso alimentou especulação a respeito dele ter sido escolhido porque sua cidadania americana poderia lhe garantir proteção adicional em relação à China.

A China não comentou publicamente a seleção de A. Altannar, mas autoridades mongóis e estrangeiras, falando sob condição de anonimato em razão da sensibilidade do tema, afirmaram que Pequim alertou a Mongólia a respeito de retaliações caso o bogd se aproxime demais do dalai-lama.

Telo Tulku Rinpoche, representante do dalai-lama na Mongólia, acusou a China de querer “controlar o budismo em um nível global”. Ele negou que A. Altannar tenha sido selecionado por razões políticas e afirmou que o gabinete do dalai-lama terá pouco contato com o menino. “É um assunto espiritual”, afirmou ele.

Vida de criança

O telefonema para a família do menino com a notícia de sua seleção veio de ninguém menos que o então presidente da Mongólia, Tsakhia Elbegdorj, um sinal da importância da posição no país.

Mas Munkhnasan, a mãe de A. Altannar, afirmou que sua resposta imediata foi uma rejeição absoluta à ideia. Os pais esperavam que os meninos estudassem engenharia e algum dia assumissem o império empresarial da família.

A. Altannar (o terceiro da esquerda) olha livros com colegas de classe. Foto: Khasar Sandag/The New York Times

“Nós dissemos, ‘Isso não pode acontecer’”, afirmou Munkhnasan. “Meu menino ainda era bebê na época, e não houve nenhum tipo de aviso ou comunicação preliminar a respeito do que estava prestes a ocorrer.”

Munkhnasan e seu marido, Altannar Chinchuluun, escreveram para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) pedindo ajuda. O processo de reconhecimento de reencarnação, argumentaram eles, havia furtado os direitos de seu filho.

A família viajou prontamente para Ulã Bator depois do telefonema do presidente e exigiu que os monges encontrassem outro menino. Os religiosos afirmaram que tentariam, mas o dalai-lama disse não.

Em vez disso, ele recomendou que os pais tivessem um tempo para pensar, na esperança de que mudassem de ideia. Os monges prometeram não revelar o nome do menino enquanto a família decidisse. Ainda assim, o casal angustiou-se diante do dilema.

Altannar, de 43 anos, matemático da Universidade Nacional da Mongólia, preocupou-se com a possibilidade de estar voltando as costas ao seu país caso se recusasse a restaurar uma instituição nacional. Munkhnasan temeu atrair carma ruim para a família se negasse aos budistas tibetanos um líder sagrado.

Eventualmente, ambos decidiram tentar um meio-termo. Os monges poderiam instruir o meninos se ele também seguisse sua educação regular. Mais importante, os pais insistiram que caberia ao seu filho, ao completar 18 anos, decidir se quer continuar bogd. “A decisão é dele”, afirmou Munkhnasan.

A. Altannar assiste aula da 3ª série na Mongólia.  Foto: Khasar Sandag/The New York Times

Até lá, A. Altannar passará uma infância como nenhuma outra. E não foi apenas sua vida que mudou; a do seu irmão também. Os gêmeos vestem-se identicamente e recebem o mesmo treinamento, como se ambos fossem o bogd.

Munkhnasan afirmou que não quis “sacrificar” um filho pelo outro, com um dos gêmeos vivendo à sombra do irmão. Mas disse que a família terá de fazer isso até ficar mais confiante em relação à segurança de A. Altannar.

O menino parece caminhar nos dois mundos cada vez mais facilmente. Quando visitou Dharamsala para conhecer o dalai-lama, ele ficou sentado por horas, imóvel, ouvindo seus ensinamentos.

Em um dia recente, A. Altannar foi à escola, brincou com os colegas de classe e abriu um grande sorriso durante uma corrida de revezamento na aula de educação física. Depois ele vestiu seu tradicional deel mongol para receber instruções religiosas no Monastério de Gandan. Na presença dos monges, sua energia de menino era substituída por uma aura de calma e maturidade conforme ele lia os sutras e praticava os rituais.

“É claro que, como menino, ele não entende tudo que está acontecendo, mas definitivamente ele não está rejeitando”, afirmou Munkhnasan. “Ele está muito à vontade. É como sua segunda natureza.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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