‘O mundo vê os números de mortos, mas somos pessoas’, diz jornalista da Faixa de Gaza


A palestina Shahd Safi deixou o enclave em março e hoje vive nos EUA sem saber quando poderá voltar; parte da família continua em Gaza e encara fome e ferimentos de guerra

Por Carolina Marins
Foto: Arquivo pessoal
Entrevista comShahd SafiJornalista palestina e ativista de direitos humanos

O dia 8 de outubro de 2023 é uma lembrança vívida para a jornalista Shahd Safi, 23. Ela estava dormindo quando ouviu um forte estrondo. Embora estivesse acostumada com explosões na Faixa de Gaza, diz, aquela era diferente. Era mais forte. O som era mais ensurdecedor. “Em geral a gente conhece os sons das explosões, mas aquela era mais forte e intensa. Chegamos a pensar que Israel tinha inventado uma nova arma”.

Naquele 8 de outubro, Israel declarava estado de guerra após o maior ataque terrorista da história do país perpetrado pelo Hamas. No dia anterior, um sábado, terroristas do Hamas invadiram o sul de Israel, matando cerca de 1200 pessoas e levando outras 250 como reféns para dentro de Gaza. Após a declaração de estado de guerra por Binyamin Netanyahu, Israel bombardeou Gaza intensamente.

Assustada, Shahd saiu para o corredor de sua casa e encontrou a sua família inteira ali, com expressões de choque. “Pensei: estamos sendo bombardeados, mas não conseguíamos checar o que era”. Não conseguiam porque não havia luz no momento, conta, o que é algo normal em Gaza. A energia raramente está presente durante 24 horas. O comum é haver energia durante oito horas, seja de dia ou de noite, recorda.

continua após a publicidade

Por alguns segundos, Shahd se dissocia das memórias dos dias seguintes ao 7 de outubro para resgatar lembranças de sua mãe, lavando roupas tarde da noite porque era a hora que havia energia elétrica. “Se essas oitos horas eram durante a noite, então ela ficava acordada a noite inteira para lavar as nossas roupas, para que fôssemos para a escola com roupas limpas”, lembra.

Fumaça sobe após uma explosão na Faixa de Gaza em 18 de dezembro Foto: Ohad Zwigenberg/AP

O racionamento de energia era algo normal na vida de Shahd em Gaza. “Eu cresci numa sociedade onde a eletricidade dura apenas algumas horas. O estranho é quando ela dura 24 horas. Este foi o lugar onde eu cresci”, ela dá ênfase na última frase.

continua após a publicidade

Por isso, estar sem energia naquele momento não foi estranho. Mas aquele som sim.

Quando soube o que havia acontecido do outro lado do muro que separa Gaza de Israel, Shahd só conseguiu pensar em um palavrão, que aqui será amenizado para “estamos ferrados”. Ela sabia que era só questão de tempo para que a resposta viesse, e viesse em um grau muito elevado. “Nós sabíamos que pagaríamos um preço por isso”.

Por sua própria experiência, imaginava que a resposta viria em no máximo três meses e seria cruel, disse. Surpreendendo as suas expectativas mais pessimistas, a resposta veio já no dia seguinte, e se estende até hoje. “Foi além de qualquer coisa que poderíamos imaginar”, afirma.

continua após a publicidade

Aquele dia, Tel-Aviv promoveu o maior bombardeio à Faixa de Gaza em mais de uma dezena de anos. Centenas de pessoas morreram em um único dia, segundo o ministério da Saúde controlado pelo Hamas. Desde então, mais de um ano depois, mais de 45 mil palestinos já morreram. Netanyahu declarou buscar uma “vitória total” sem nunca especificar o que isso significa.

Israel reivindica seu direito de autodefesa após o ataque terrorista de 14 meses atrás. Na época, aliados do país apoiaram uma ofensiva em resposta, mas mais tarde, conforme Netanyahu avançava para uma guerra sem fim e com relatórios de órgãos internacionais apontando a catástrofe humanitária no enclave, EUA e Europa passaram a expressar preocupação. Conversas de cessar-fogo têm sido infrutíferas.

continua após a publicidade

Espalhados pelo mundo

Shahd conversou com o Estadão no dia 26 de novembro durante sua breve passagem por São Paulo para compartilhar suas memórias com jornalistas brasileiros em um evento promovido por acadêmicos da USP. Hoje ela vive nos Estados Unidos, onde retomou seus estudos em direitos humanos na Bard College, em Nova York. Chegou ao país em agosto depois de deixar a Faixa de Gaza através da fronteira com o Egito no início deste ano. Antes, estudava jornalismo em Gaza e chegou a atuar como jornalista freelancer.

A família, conta, está espalhada pelo mundo. Sua mãe e dois irmãos moram atualmente no Egito, uma irmã está na Argélia, dois tios foram para a Jordânia, uma tia está na Arábia Saudita, outro irmão está em Ohio, nos EUA. Mas seu pai e meios-irmãos permanecem na Faixa de Gaza. Às vezes incomunicáveis.

continua após a publicidade

“Toda a Faixa de Gaza se foi. Já morei em quase todos os cantos de Gaza. No norte, no centro, no sul. Estou conectada com toda a Faixa e ver tudo isso ser varrido… Em um nível psicológico pessoal é muito devastador”, lamenta. A casa onde morava com a família está destruída.

O nível de perda que estamos vivendo é extremo, e é até difícil fazer o mundo entender isso. Chegamos ao nível que fomos desumanizados. O mundo vê os números, esses gigantes números de mortos. Mas somos pessoas.

Shahd Safi, jornalista palestina e ativista de direitos humanos

Sendo a terceira geração de sua família a viver na Faixa de Gaza, Shahd conta que desde os avós seus entes foram forçados a migrar dentro e fora da Palestina. O núcleo atual, de sua mãe e seu pai, retornaram ao enclave em 1993 onde se conheceram. Desde então, migraram internamente diversas vezes até chegar ao estado atual de completo deslocamento.

continua após a publicidade

Somente quando saiu de Gaza ela percebeu a riqueza que havia deixado para trás. Shahd sente falta do senso de comunidade que existia em sua vizinhança. Compara até mesmo as construções de seu território com o de países desenvolvidos por onde passou. “Nossos prédios eram tão melhores em termos de estrutura”, reflete. “Se esquecermos um pouco essa escalada percebemos como Gaza é um lugar absurdamente lindo. E eu falo sério”.

Lembra com orgulho de como era estudar e trabalhar em sua comunidade. “Apesar de tudo, tínhamos uma taxa de alfabetização de 97%”, ressalta. “Eu e meus amigos trabalhávamos duro e nosso propósito não era dinheiro. Claro, era no longo prazo, mas o foco era fazer algo por Gaza, por nossa comunidade”.

Shahd Safi, jornalista palestina e ativista de direitos humanos, durante entrevista em São Paulo em 26 de novembro Foto: Carolina Marins/Estadão

O dia que decidiu ir embora

Apesar de o dia 8 ser o início do conflito, o dia 12 de fevereiro de 2024 foi o que mais a deixou paralisada, lembra. Ela, a mãe e os irmãos estavam morando em Rafah, no sul de Gaza, na casa dos seus avós maternos, quando Israel promoveu um grande bombardeio à cidade que na época abrigava mais de 1 milhão de palestinos que fugiram da guerra no norte. A ofensiva fazia parte de uma operação para resgatar reféns. Dois argentinos foram resgatados naquele dia. Dezenas de palestinos, no entanto, morreram.

Shahd acordou neste 12 de fevereiro com sua casa tremendo. Ela percebeu que despertou já chorando e paralisada pelo terror.

Imagine o que é estar tão assustado a ponto de não pensar direito. Você vê o prédio balançando, as coisas se quebrando, você pensa que está morrendo. É muito assustador vivenciar ser despedaçado.

Shahd Safi, jornalista palestina e ativista de direitos humanos

Com a série de bombardeios, a família não conseguia decidir se continuava em casa ou se fugia, pois era impossível saber onde o próximo ataque cairia. “Eu nunca fui capaz de tomar essa decisão eu mesma, porque para mim é melhor não ser capaz de se decidir do que perder alguém por uma decisão tomada por mim”, relata.

Depois deste episódio, Shahd e sua família buscaram um campo de refugiados, muito porque já não tinham dinheiro para sobreviver. Sua mãe era a única com o salário estável e a fonte de renda secou no começo da guerra. Ali ela começou a montar o plano de retirada da Faixa de Gaza. Algo que não queria fazer, mas sentiu forçada.

Palestinos são retirados para o campo de refugiados de Bureij, na região central da Faixa de Gaza, em 18 de dezembro de 2024 Foto: Eyad Baba/AFP

Extorsões na rota de saída

Para sair, ela precisaria cruzar a fronteira de Rafah com o Egito. Cruzar as fronteiras de Gaza, seja para entrar ou para sair, já era tarefa difícil mesmo antes de 7 de outubro. Em geral, apenas pessoas com passaporte estrangeiro, feridos ou estudantes com bolsas no exterior eram autorizados a sair. Palestinos que trabalham em Israel também podiam cruzar após longas avaliações em checkpoints.

Este contexto abriu caminhos para inúmeras empresas irregulares que cobravam pelo transporte de palestinos através da fronteira. Algumas empresas de turismo egípcias chegaram a oferecer “viagens vips” a quem tivesse mais dinheiro. Com a guerra, a situação piorou.

“Quando coisas assim acontecem, as retiradas humanitárias precisam acontecer. Precisa-se criar um corredor. Para os palestinos isso não foi feito”, desabafa.

Ela procurou a companhia de viagem Hala, com sede no Egito. Uma das empresas que ficou conhecida pelas tais “viagens Vips”. Por adulto, conta, eles cobravam 5 mil dólares. Já por criança eram 2,5 mil. Para ela, a mãe e três irmãos os custos chegariam a 25 mil dólares, mas eles cobraram a mais e o valor ficou em 26,5 mil.

Soldados israelenses disparam um morteiro do sul de Israel em direção à Faixa de Gaza, em 18 de dezembro de 2024 Foto: Ohad Zwigenberg/AP

Eles não tinham toda essa quantidade de dinheiro. A solução foi pedir. “Eu estava tão envergonhada em sair pelo campo pedindo por dinheiro. Mas eu tinha que fazer. Era como íamos sobreviver”.

A Hala foi denunciada em diversos jornais internacionais pelos seus serviços irregulares que, embora se dissessem Vips, muitos palestinos relataram terem feito viagens precárias. Uma investigação da Sky News mostrou que, antes da guerra, a Hala cobrava cerca de 350 dólares por adulto. Após 7 de outubro o valor saltou para os 5 mil mencionados por Shahd.

Quando finalmente conseguiu juntar o dinheiro por meio de financiamento coletivo online e vendendo trabalhos como freelancer a jornais internacionais, seu nome e de sua família apareceram na lista nos primeiros dias de março. “Quando nossos nomes foram finalmente anunciados, meu deus, foi um sentimento muito feliz, mas também muito complicado porque sentíamos muita culpa.”

Foi um dia muito difícil. Dei meus primeiros passos dentro do Egito e eu me sentia traída pelos egípcios, traída pelos árabes. Uma imensa vergonha por deixar meu povo para trás. Sempre eram sentimentos enormes. E não era só eu que dizia isso. Todos os meus irmãos diziam isso, minha mãe dizia isso.

Shahd Safi, jornalista palestina e ativista de direitos humanos

Os que ficaram

O pouco que ela sabe dos que ficaram é que estão constantemente passando fome e perderam muito peso. O contato com seu pai e seus meio-irmãos são raros pela intermitência de comunicação dentro do enclave. “Eu sei que um deles está em condição crítica de saúde. Tem sido muito perigoso para eles lá e não há como tirá-los.”

Um de seus meios-irmãos, diz, foi ferido por estilhaços de bomba e não recebeu o tratamento adequado porque seu caso não era considerado grave. Ela viu pelas fotos os estilhaços na cabeça e na perna. O da cabeça foi retirado, mas o da perna ficou porque não lhe traria risco de vida. O dispensaram para tratar casos mais sérios, como o de um primo que ela soube que foi ferido no peito.

No início de dezembro, a Anistia Internacional (AI) acusou Israel de genocídio contra os palestinos em um relatório, baseando-se em declarações do governo israelense e imagens de satélite que documentam a destruição do território palestino entre 7 de outubro de 2023 e julho de 2024, diz o documento. O governo israelense chamou o relatório de “totalmente falso” e se referiu a Anistia Internacional como uma “organização deplorável e fanática”.

Crianças palestinas fazem fila para comprar comida em Deir al-Balah, na Faixa de Gaza, em 13 de dezembro de 2024 Foto: Abdel Kareem Hana/AP

O retrato dos palestinos

Se for possível tirar algo positivo de toda essa situação - Shahd faz o sinal de aspas com as mãos ao dizer positivo - é o fato de o mundo ter voltado a falar da situação em Gaza depois de anos de uma guerra esquecida. Embora não veja nenhuma ação concreta saindo disso.

Hoje fora de Gaza, ela se vê frustrada pela forma como os palestinos são retratados mundo afora, especialmente pela imprensa internacional. Como se todos fossem o Hamas. Seus pais, conta, trabalhavam com a Autoridade Palestina, o órgão de autogoverno criado após os Acordos de Oslo para gerenciar a Faixa de Gaza e partes da Cisjordânia.

“O povo palestino é muito diverso em ideias sobre como devemos reagir. Muitas pessoas simplesmente optaram por resistir de outras formas. O Hamas e a Jihad Islâmica são os únicos dois partidos islâmicos políticos que acham que a resistência deve ser armada. Mas outros palestinos não concordam. A Autoridade Palestina não concorda”.

Ela admite estar decepcionada com o governo da Autoridade Palestina, que vê como muito passivo. Um sentimento que é compartilhado com muitos outros palestinos que viram um enfraquecimento da organização que um dia foi liderada por Yasser Arafat. Mas mesmo essa decepção não a levou a apoiar o Hamas.

“Em um nível pessoal é muito decepcionante tudo o que está acontecendo, porque não estamos relacionados ao Hamas. Não estamos filiados a partidos políticos”, lamenta.

O dia 8 de outubro de 2023 é uma lembrança vívida para a jornalista Shahd Safi, 23. Ela estava dormindo quando ouviu um forte estrondo. Embora estivesse acostumada com explosões na Faixa de Gaza, diz, aquela era diferente. Era mais forte. O som era mais ensurdecedor. “Em geral a gente conhece os sons das explosões, mas aquela era mais forte e intensa. Chegamos a pensar que Israel tinha inventado uma nova arma”.

Naquele 8 de outubro, Israel declarava estado de guerra após o maior ataque terrorista da história do país perpetrado pelo Hamas. No dia anterior, um sábado, terroristas do Hamas invadiram o sul de Israel, matando cerca de 1200 pessoas e levando outras 250 como reféns para dentro de Gaza. Após a declaração de estado de guerra por Binyamin Netanyahu, Israel bombardeou Gaza intensamente.

Assustada, Shahd saiu para o corredor de sua casa e encontrou a sua família inteira ali, com expressões de choque. “Pensei: estamos sendo bombardeados, mas não conseguíamos checar o que era”. Não conseguiam porque não havia luz no momento, conta, o que é algo normal em Gaza. A energia raramente está presente durante 24 horas. O comum é haver energia durante oito horas, seja de dia ou de noite, recorda.

Por alguns segundos, Shahd se dissocia das memórias dos dias seguintes ao 7 de outubro para resgatar lembranças de sua mãe, lavando roupas tarde da noite porque era a hora que havia energia elétrica. “Se essas oitos horas eram durante a noite, então ela ficava acordada a noite inteira para lavar as nossas roupas, para que fôssemos para a escola com roupas limpas”, lembra.

Fumaça sobe após uma explosão na Faixa de Gaza em 18 de dezembro Foto: Ohad Zwigenberg/AP

O racionamento de energia era algo normal na vida de Shahd em Gaza. “Eu cresci numa sociedade onde a eletricidade dura apenas algumas horas. O estranho é quando ela dura 24 horas. Este foi o lugar onde eu cresci”, ela dá ênfase na última frase.

Por isso, estar sem energia naquele momento não foi estranho. Mas aquele som sim.

Quando soube o que havia acontecido do outro lado do muro que separa Gaza de Israel, Shahd só conseguiu pensar em um palavrão, que aqui será amenizado para “estamos ferrados”. Ela sabia que era só questão de tempo para que a resposta viesse, e viesse em um grau muito elevado. “Nós sabíamos que pagaríamos um preço por isso”.

Por sua própria experiência, imaginava que a resposta viria em no máximo três meses e seria cruel, disse. Surpreendendo as suas expectativas mais pessimistas, a resposta veio já no dia seguinte, e se estende até hoje. “Foi além de qualquer coisa que poderíamos imaginar”, afirma.

Aquele dia, Tel-Aviv promoveu o maior bombardeio à Faixa de Gaza em mais de uma dezena de anos. Centenas de pessoas morreram em um único dia, segundo o ministério da Saúde controlado pelo Hamas. Desde então, mais de um ano depois, mais de 45 mil palestinos já morreram. Netanyahu declarou buscar uma “vitória total” sem nunca especificar o que isso significa.

Israel reivindica seu direito de autodefesa após o ataque terrorista de 14 meses atrás. Na época, aliados do país apoiaram uma ofensiva em resposta, mas mais tarde, conforme Netanyahu avançava para uma guerra sem fim e com relatórios de órgãos internacionais apontando a catástrofe humanitária no enclave, EUA e Europa passaram a expressar preocupação. Conversas de cessar-fogo têm sido infrutíferas.

Espalhados pelo mundo

Shahd conversou com o Estadão no dia 26 de novembro durante sua breve passagem por São Paulo para compartilhar suas memórias com jornalistas brasileiros em um evento promovido por acadêmicos da USP. Hoje ela vive nos Estados Unidos, onde retomou seus estudos em direitos humanos na Bard College, em Nova York. Chegou ao país em agosto depois de deixar a Faixa de Gaza através da fronteira com o Egito no início deste ano. Antes, estudava jornalismo em Gaza e chegou a atuar como jornalista freelancer.

A família, conta, está espalhada pelo mundo. Sua mãe e dois irmãos moram atualmente no Egito, uma irmã está na Argélia, dois tios foram para a Jordânia, uma tia está na Arábia Saudita, outro irmão está em Ohio, nos EUA. Mas seu pai e meios-irmãos permanecem na Faixa de Gaza. Às vezes incomunicáveis.

“Toda a Faixa de Gaza se foi. Já morei em quase todos os cantos de Gaza. No norte, no centro, no sul. Estou conectada com toda a Faixa e ver tudo isso ser varrido… Em um nível psicológico pessoal é muito devastador”, lamenta. A casa onde morava com a família está destruída.

O nível de perda que estamos vivendo é extremo, e é até difícil fazer o mundo entender isso. Chegamos ao nível que fomos desumanizados. O mundo vê os números, esses gigantes números de mortos. Mas somos pessoas.

Shahd Safi, jornalista palestina e ativista de direitos humanos

Sendo a terceira geração de sua família a viver na Faixa de Gaza, Shahd conta que desde os avós seus entes foram forçados a migrar dentro e fora da Palestina. O núcleo atual, de sua mãe e seu pai, retornaram ao enclave em 1993 onde se conheceram. Desde então, migraram internamente diversas vezes até chegar ao estado atual de completo deslocamento.

Somente quando saiu de Gaza ela percebeu a riqueza que havia deixado para trás. Shahd sente falta do senso de comunidade que existia em sua vizinhança. Compara até mesmo as construções de seu território com o de países desenvolvidos por onde passou. “Nossos prédios eram tão melhores em termos de estrutura”, reflete. “Se esquecermos um pouco essa escalada percebemos como Gaza é um lugar absurdamente lindo. E eu falo sério”.

Lembra com orgulho de como era estudar e trabalhar em sua comunidade. “Apesar de tudo, tínhamos uma taxa de alfabetização de 97%”, ressalta. “Eu e meus amigos trabalhávamos duro e nosso propósito não era dinheiro. Claro, era no longo prazo, mas o foco era fazer algo por Gaza, por nossa comunidade”.

Shahd Safi, jornalista palestina e ativista de direitos humanos, durante entrevista em São Paulo em 26 de novembro Foto: Carolina Marins/Estadão

O dia que decidiu ir embora

Apesar de o dia 8 ser o início do conflito, o dia 12 de fevereiro de 2024 foi o que mais a deixou paralisada, lembra. Ela, a mãe e os irmãos estavam morando em Rafah, no sul de Gaza, na casa dos seus avós maternos, quando Israel promoveu um grande bombardeio à cidade que na época abrigava mais de 1 milhão de palestinos que fugiram da guerra no norte. A ofensiva fazia parte de uma operação para resgatar reféns. Dois argentinos foram resgatados naquele dia. Dezenas de palestinos, no entanto, morreram.

Shahd acordou neste 12 de fevereiro com sua casa tremendo. Ela percebeu que despertou já chorando e paralisada pelo terror.

Imagine o que é estar tão assustado a ponto de não pensar direito. Você vê o prédio balançando, as coisas se quebrando, você pensa que está morrendo. É muito assustador vivenciar ser despedaçado.

Shahd Safi, jornalista palestina e ativista de direitos humanos

Com a série de bombardeios, a família não conseguia decidir se continuava em casa ou se fugia, pois era impossível saber onde o próximo ataque cairia. “Eu nunca fui capaz de tomar essa decisão eu mesma, porque para mim é melhor não ser capaz de se decidir do que perder alguém por uma decisão tomada por mim”, relata.

Depois deste episódio, Shahd e sua família buscaram um campo de refugiados, muito porque já não tinham dinheiro para sobreviver. Sua mãe era a única com o salário estável e a fonte de renda secou no começo da guerra. Ali ela começou a montar o plano de retirada da Faixa de Gaza. Algo que não queria fazer, mas sentiu forçada.

Palestinos são retirados para o campo de refugiados de Bureij, na região central da Faixa de Gaza, em 18 de dezembro de 2024 Foto: Eyad Baba/AFP

Extorsões na rota de saída

Para sair, ela precisaria cruzar a fronteira de Rafah com o Egito. Cruzar as fronteiras de Gaza, seja para entrar ou para sair, já era tarefa difícil mesmo antes de 7 de outubro. Em geral, apenas pessoas com passaporte estrangeiro, feridos ou estudantes com bolsas no exterior eram autorizados a sair. Palestinos que trabalham em Israel também podiam cruzar após longas avaliações em checkpoints.

Este contexto abriu caminhos para inúmeras empresas irregulares que cobravam pelo transporte de palestinos através da fronteira. Algumas empresas de turismo egípcias chegaram a oferecer “viagens vips” a quem tivesse mais dinheiro. Com a guerra, a situação piorou.

“Quando coisas assim acontecem, as retiradas humanitárias precisam acontecer. Precisa-se criar um corredor. Para os palestinos isso não foi feito”, desabafa.

Ela procurou a companhia de viagem Hala, com sede no Egito. Uma das empresas que ficou conhecida pelas tais “viagens Vips”. Por adulto, conta, eles cobravam 5 mil dólares. Já por criança eram 2,5 mil. Para ela, a mãe e três irmãos os custos chegariam a 25 mil dólares, mas eles cobraram a mais e o valor ficou em 26,5 mil.

Soldados israelenses disparam um morteiro do sul de Israel em direção à Faixa de Gaza, em 18 de dezembro de 2024 Foto: Ohad Zwigenberg/AP

Eles não tinham toda essa quantidade de dinheiro. A solução foi pedir. “Eu estava tão envergonhada em sair pelo campo pedindo por dinheiro. Mas eu tinha que fazer. Era como íamos sobreviver”.

A Hala foi denunciada em diversos jornais internacionais pelos seus serviços irregulares que, embora se dissessem Vips, muitos palestinos relataram terem feito viagens precárias. Uma investigação da Sky News mostrou que, antes da guerra, a Hala cobrava cerca de 350 dólares por adulto. Após 7 de outubro o valor saltou para os 5 mil mencionados por Shahd.

Quando finalmente conseguiu juntar o dinheiro por meio de financiamento coletivo online e vendendo trabalhos como freelancer a jornais internacionais, seu nome e de sua família apareceram na lista nos primeiros dias de março. “Quando nossos nomes foram finalmente anunciados, meu deus, foi um sentimento muito feliz, mas também muito complicado porque sentíamos muita culpa.”

Foi um dia muito difícil. Dei meus primeiros passos dentro do Egito e eu me sentia traída pelos egípcios, traída pelos árabes. Uma imensa vergonha por deixar meu povo para trás. Sempre eram sentimentos enormes. E não era só eu que dizia isso. Todos os meus irmãos diziam isso, minha mãe dizia isso.

Shahd Safi, jornalista palestina e ativista de direitos humanos

Os que ficaram

O pouco que ela sabe dos que ficaram é que estão constantemente passando fome e perderam muito peso. O contato com seu pai e seus meio-irmãos são raros pela intermitência de comunicação dentro do enclave. “Eu sei que um deles está em condição crítica de saúde. Tem sido muito perigoso para eles lá e não há como tirá-los.”

Um de seus meios-irmãos, diz, foi ferido por estilhaços de bomba e não recebeu o tratamento adequado porque seu caso não era considerado grave. Ela viu pelas fotos os estilhaços na cabeça e na perna. O da cabeça foi retirado, mas o da perna ficou porque não lhe traria risco de vida. O dispensaram para tratar casos mais sérios, como o de um primo que ela soube que foi ferido no peito.

No início de dezembro, a Anistia Internacional (AI) acusou Israel de genocídio contra os palestinos em um relatório, baseando-se em declarações do governo israelense e imagens de satélite que documentam a destruição do território palestino entre 7 de outubro de 2023 e julho de 2024, diz o documento. O governo israelense chamou o relatório de “totalmente falso” e se referiu a Anistia Internacional como uma “organização deplorável e fanática”.

Crianças palestinas fazem fila para comprar comida em Deir al-Balah, na Faixa de Gaza, em 13 de dezembro de 2024 Foto: Abdel Kareem Hana/AP

O retrato dos palestinos

Se for possível tirar algo positivo de toda essa situação - Shahd faz o sinal de aspas com as mãos ao dizer positivo - é o fato de o mundo ter voltado a falar da situação em Gaza depois de anos de uma guerra esquecida. Embora não veja nenhuma ação concreta saindo disso.

Hoje fora de Gaza, ela se vê frustrada pela forma como os palestinos são retratados mundo afora, especialmente pela imprensa internacional. Como se todos fossem o Hamas. Seus pais, conta, trabalhavam com a Autoridade Palestina, o órgão de autogoverno criado após os Acordos de Oslo para gerenciar a Faixa de Gaza e partes da Cisjordânia.

“O povo palestino é muito diverso em ideias sobre como devemos reagir. Muitas pessoas simplesmente optaram por resistir de outras formas. O Hamas e a Jihad Islâmica são os únicos dois partidos islâmicos políticos que acham que a resistência deve ser armada. Mas outros palestinos não concordam. A Autoridade Palestina não concorda”.

Ela admite estar decepcionada com o governo da Autoridade Palestina, que vê como muito passivo. Um sentimento que é compartilhado com muitos outros palestinos que viram um enfraquecimento da organização que um dia foi liderada por Yasser Arafat. Mas mesmo essa decepção não a levou a apoiar o Hamas.

“Em um nível pessoal é muito decepcionante tudo o que está acontecendo, porque não estamos relacionados ao Hamas. Não estamos filiados a partidos políticos”, lamenta.

O dia 8 de outubro de 2023 é uma lembrança vívida para a jornalista Shahd Safi, 23. Ela estava dormindo quando ouviu um forte estrondo. Embora estivesse acostumada com explosões na Faixa de Gaza, diz, aquela era diferente. Era mais forte. O som era mais ensurdecedor. “Em geral a gente conhece os sons das explosões, mas aquela era mais forte e intensa. Chegamos a pensar que Israel tinha inventado uma nova arma”.

Naquele 8 de outubro, Israel declarava estado de guerra após o maior ataque terrorista da história do país perpetrado pelo Hamas. No dia anterior, um sábado, terroristas do Hamas invadiram o sul de Israel, matando cerca de 1200 pessoas e levando outras 250 como reféns para dentro de Gaza. Após a declaração de estado de guerra por Binyamin Netanyahu, Israel bombardeou Gaza intensamente.

Assustada, Shahd saiu para o corredor de sua casa e encontrou a sua família inteira ali, com expressões de choque. “Pensei: estamos sendo bombardeados, mas não conseguíamos checar o que era”. Não conseguiam porque não havia luz no momento, conta, o que é algo normal em Gaza. A energia raramente está presente durante 24 horas. O comum é haver energia durante oito horas, seja de dia ou de noite, recorda.

Por alguns segundos, Shahd se dissocia das memórias dos dias seguintes ao 7 de outubro para resgatar lembranças de sua mãe, lavando roupas tarde da noite porque era a hora que havia energia elétrica. “Se essas oitos horas eram durante a noite, então ela ficava acordada a noite inteira para lavar as nossas roupas, para que fôssemos para a escola com roupas limpas”, lembra.

Fumaça sobe após uma explosão na Faixa de Gaza em 18 de dezembro Foto: Ohad Zwigenberg/AP

O racionamento de energia era algo normal na vida de Shahd em Gaza. “Eu cresci numa sociedade onde a eletricidade dura apenas algumas horas. O estranho é quando ela dura 24 horas. Este foi o lugar onde eu cresci”, ela dá ênfase na última frase.

Por isso, estar sem energia naquele momento não foi estranho. Mas aquele som sim.

Quando soube o que havia acontecido do outro lado do muro que separa Gaza de Israel, Shahd só conseguiu pensar em um palavrão, que aqui será amenizado para “estamos ferrados”. Ela sabia que era só questão de tempo para que a resposta viesse, e viesse em um grau muito elevado. “Nós sabíamos que pagaríamos um preço por isso”.

Por sua própria experiência, imaginava que a resposta viria em no máximo três meses e seria cruel, disse. Surpreendendo as suas expectativas mais pessimistas, a resposta veio já no dia seguinte, e se estende até hoje. “Foi além de qualquer coisa que poderíamos imaginar”, afirma.

Aquele dia, Tel-Aviv promoveu o maior bombardeio à Faixa de Gaza em mais de uma dezena de anos. Centenas de pessoas morreram em um único dia, segundo o ministério da Saúde controlado pelo Hamas. Desde então, mais de um ano depois, mais de 45 mil palestinos já morreram. Netanyahu declarou buscar uma “vitória total” sem nunca especificar o que isso significa.

Israel reivindica seu direito de autodefesa após o ataque terrorista de 14 meses atrás. Na época, aliados do país apoiaram uma ofensiva em resposta, mas mais tarde, conforme Netanyahu avançava para uma guerra sem fim e com relatórios de órgãos internacionais apontando a catástrofe humanitária no enclave, EUA e Europa passaram a expressar preocupação. Conversas de cessar-fogo têm sido infrutíferas.

Espalhados pelo mundo

Shahd conversou com o Estadão no dia 26 de novembro durante sua breve passagem por São Paulo para compartilhar suas memórias com jornalistas brasileiros em um evento promovido por acadêmicos da USP. Hoje ela vive nos Estados Unidos, onde retomou seus estudos em direitos humanos na Bard College, em Nova York. Chegou ao país em agosto depois de deixar a Faixa de Gaza através da fronteira com o Egito no início deste ano. Antes, estudava jornalismo em Gaza e chegou a atuar como jornalista freelancer.

A família, conta, está espalhada pelo mundo. Sua mãe e dois irmãos moram atualmente no Egito, uma irmã está na Argélia, dois tios foram para a Jordânia, uma tia está na Arábia Saudita, outro irmão está em Ohio, nos EUA. Mas seu pai e meios-irmãos permanecem na Faixa de Gaza. Às vezes incomunicáveis.

“Toda a Faixa de Gaza se foi. Já morei em quase todos os cantos de Gaza. No norte, no centro, no sul. Estou conectada com toda a Faixa e ver tudo isso ser varrido… Em um nível psicológico pessoal é muito devastador”, lamenta. A casa onde morava com a família está destruída.

O nível de perda que estamos vivendo é extremo, e é até difícil fazer o mundo entender isso. Chegamos ao nível que fomos desumanizados. O mundo vê os números, esses gigantes números de mortos. Mas somos pessoas.

Shahd Safi, jornalista palestina e ativista de direitos humanos

Sendo a terceira geração de sua família a viver na Faixa de Gaza, Shahd conta que desde os avós seus entes foram forçados a migrar dentro e fora da Palestina. O núcleo atual, de sua mãe e seu pai, retornaram ao enclave em 1993 onde se conheceram. Desde então, migraram internamente diversas vezes até chegar ao estado atual de completo deslocamento.

Somente quando saiu de Gaza ela percebeu a riqueza que havia deixado para trás. Shahd sente falta do senso de comunidade que existia em sua vizinhança. Compara até mesmo as construções de seu território com o de países desenvolvidos por onde passou. “Nossos prédios eram tão melhores em termos de estrutura”, reflete. “Se esquecermos um pouco essa escalada percebemos como Gaza é um lugar absurdamente lindo. E eu falo sério”.

Lembra com orgulho de como era estudar e trabalhar em sua comunidade. “Apesar de tudo, tínhamos uma taxa de alfabetização de 97%”, ressalta. “Eu e meus amigos trabalhávamos duro e nosso propósito não era dinheiro. Claro, era no longo prazo, mas o foco era fazer algo por Gaza, por nossa comunidade”.

Shahd Safi, jornalista palestina e ativista de direitos humanos, durante entrevista em São Paulo em 26 de novembro Foto: Carolina Marins/Estadão

O dia que decidiu ir embora

Apesar de o dia 8 ser o início do conflito, o dia 12 de fevereiro de 2024 foi o que mais a deixou paralisada, lembra. Ela, a mãe e os irmãos estavam morando em Rafah, no sul de Gaza, na casa dos seus avós maternos, quando Israel promoveu um grande bombardeio à cidade que na época abrigava mais de 1 milhão de palestinos que fugiram da guerra no norte. A ofensiva fazia parte de uma operação para resgatar reféns. Dois argentinos foram resgatados naquele dia. Dezenas de palestinos, no entanto, morreram.

Shahd acordou neste 12 de fevereiro com sua casa tremendo. Ela percebeu que despertou já chorando e paralisada pelo terror.

Imagine o que é estar tão assustado a ponto de não pensar direito. Você vê o prédio balançando, as coisas se quebrando, você pensa que está morrendo. É muito assustador vivenciar ser despedaçado.

Shahd Safi, jornalista palestina e ativista de direitos humanos

Com a série de bombardeios, a família não conseguia decidir se continuava em casa ou se fugia, pois era impossível saber onde o próximo ataque cairia. “Eu nunca fui capaz de tomar essa decisão eu mesma, porque para mim é melhor não ser capaz de se decidir do que perder alguém por uma decisão tomada por mim”, relata.

Depois deste episódio, Shahd e sua família buscaram um campo de refugiados, muito porque já não tinham dinheiro para sobreviver. Sua mãe era a única com o salário estável e a fonte de renda secou no começo da guerra. Ali ela começou a montar o plano de retirada da Faixa de Gaza. Algo que não queria fazer, mas sentiu forçada.

Palestinos são retirados para o campo de refugiados de Bureij, na região central da Faixa de Gaza, em 18 de dezembro de 2024 Foto: Eyad Baba/AFP

Extorsões na rota de saída

Para sair, ela precisaria cruzar a fronteira de Rafah com o Egito. Cruzar as fronteiras de Gaza, seja para entrar ou para sair, já era tarefa difícil mesmo antes de 7 de outubro. Em geral, apenas pessoas com passaporte estrangeiro, feridos ou estudantes com bolsas no exterior eram autorizados a sair. Palestinos que trabalham em Israel também podiam cruzar após longas avaliações em checkpoints.

Este contexto abriu caminhos para inúmeras empresas irregulares que cobravam pelo transporte de palestinos através da fronteira. Algumas empresas de turismo egípcias chegaram a oferecer “viagens vips” a quem tivesse mais dinheiro. Com a guerra, a situação piorou.

“Quando coisas assim acontecem, as retiradas humanitárias precisam acontecer. Precisa-se criar um corredor. Para os palestinos isso não foi feito”, desabafa.

Ela procurou a companhia de viagem Hala, com sede no Egito. Uma das empresas que ficou conhecida pelas tais “viagens Vips”. Por adulto, conta, eles cobravam 5 mil dólares. Já por criança eram 2,5 mil. Para ela, a mãe e três irmãos os custos chegariam a 25 mil dólares, mas eles cobraram a mais e o valor ficou em 26,5 mil.

Soldados israelenses disparam um morteiro do sul de Israel em direção à Faixa de Gaza, em 18 de dezembro de 2024 Foto: Ohad Zwigenberg/AP

Eles não tinham toda essa quantidade de dinheiro. A solução foi pedir. “Eu estava tão envergonhada em sair pelo campo pedindo por dinheiro. Mas eu tinha que fazer. Era como íamos sobreviver”.

A Hala foi denunciada em diversos jornais internacionais pelos seus serviços irregulares que, embora se dissessem Vips, muitos palestinos relataram terem feito viagens precárias. Uma investigação da Sky News mostrou que, antes da guerra, a Hala cobrava cerca de 350 dólares por adulto. Após 7 de outubro o valor saltou para os 5 mil mencionados por Shahd.

Quando finalmente conseguiu juntar o dinheiro por meio de financiamento coletivo online e vendendo trabalhos como freelancer a jornais internacionais, seu nome e de sua família apareceram na lista nos primeiros dias de março. “Quando nossos nomes foram finalmente anunciados, meu deus, foi um sentimento muito feliz, mas também muito complicado porque sentíamos muita culpa.”

Foi um dia muito difícil. Dei meus primeiros passos dentro do Egito e eu me sentia traída pelos egípcios, traída pelos árabes. Uma imensa vergonha por deixar meu povo para trás. Sempre eram sentimentos enormes. E não era só eu que dizia isso. Todos os meus irmãos diziam isso, minha mãe dizia isso.

Shahd Safi, jornalista palestina e ativista de direitos humanos

Os que ficaram

O pouco que ela sabe dos que ficaram é que estão constantemente passando fome e perderam muito peso. O contato com seu pai e seus meio-irmãos são raros pela intermitência de comunicação dentro do enclave. “Eu sei que um deles está em condição crítica de saúde. Tem sido muito perigoso para eles lá e não há como tirá-los.”

Um de seus meios-irmãos, diz, foi ferido por estilhaços de bomba e não recebeu o tratamento adequado porque seu caso não era considerado grave. Ela viu pelas fotos os estilhaços na cabeça e na perna. O da cabeça foi retirado, mas o da perna ficou porque não lhe traria risco de vida. O dispensaram para tratar casos mais sérios, como o de um primo que ela soube que foi ferido no peito.

No início de dezembro, a Anistia Internacional (AI) acusou Israel de genocídio contra os palestinos em um relatório, baseando-se em declarações do governo israelense e imagens de satélite que documentam a destruição do território palestino entre 7 de outubro de 2023 e julho de 2024, diz o documento. O governo israelense chamou o relatório de “totalmente falso” e se referiu a Anistia Internacional como uma “organização deplorável e fanática”.

Crianças palestinas fazem fila para comprar comida em Deir al-Balah, na Faixa de Gaza, em 13 de dezembro de 2024 Foto: Abdel Kareem Hana/AP

O retrato dos palestinos

Se for possível tirar algo positivo de toda essa situação - Shahd faz o sinal de aspas com as mãos ao dizer positivo - é o fato de o mundo ter voltado a falar da situação em Gaza depois de anos de uma guerra esquecida. Embora não veja nenhuma ação concreta saindo disso.

Hoje fora de Gaza, ela se vê frustrada pela forma como os palestinos são retratados mundo afora, especialmente pela imprensa internacional. Como se todos fossem o Hamas. Seus pais, conta, trabalhavam com a Autoridade Palestina, o órgão de autogoverno criado após os Acordos de Oslo para gerenciar a Faixa de Gaza e partes da Cisjordânia.

“O povo palestino é muito diverso em ideias sobre como devemos reagir. Muitas pessoas simplesmente optaram por resistir de outras formas. O Hamas e a Jihad Islâmica são os únicos dois partidos islâmicos políticos que acham que a resistência deve ser armada. Mas outros palestinos não concordam. A Autoridade Palestina não concorda”.

Ela admite estar decepcionada com o governo da Autoridade Palestina, que vê como muito passivo. Um sentimento que é compartilhado com muitos outros palestinos que viram um enfraquecimento da organização que um dia foi liderada por Yasser Arafat. Mas mesmo essa decepção não a levou a apoiar o Hamas.

“Em um nível pessoal é muito decepcionante tudo o que está acontecendo, porque não estamos relacionados ao Hamas. Não estamos filiados a partidos políticos”, lamenta.

Entrevista por Carolina Marins

Jornalista formada pela ECA-USP. Repórter da editoria de Internacional, com interesse em América Latina. Já fiz coberturas in loco na Argentina, em Israel e na Ucrânia

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.