Opinião|O Ocidente ainda não entendeu o quanto a Rússia mudou. Por que isso é perigoso?


A China emergiu como a parceira mais importante da Rússia, suprindo não apenas a máquina de guerra de Putin, mas alimentando também toda a combalida economia russa

Por Alexander Gabuev
Atualização:

A viagem de Vladimir Putin a Pequim, nesta semana, onde ele se reunirá com Xi Jinping e graduadas autoridades chinesas, é mais uma demonstração da atual proximidade entre Rússia e China.

Mas muitos no Ocidente ainda preferem acreditar que sua aliança é uma aberração motivada pelo antiamericanismo emocional de Putin e sua tóxica fixação na Ucrânia. Uma vez que Putin e suas obscuras obsessões saiam da jogada, segundo essa crença, Moscou buscará reconstruir as relações com o Ocidente — sobretudo porque os laços entre Rússia e China são superficiais, enquanto Moscou viveu séculos dependendo economicamente e culturalmente da Europa.

Essa visão ilusória, apesar de sedutora, desconsidera a transformação da economia e da sociedade russa. Desde a queda da União Soviética a Rússia não ficava tão distante da Europa, e nunca em sua história a Rússia tinha se envolvido tão profundamente com a China. A verdade é que, após dois anos de guerra na Ucrânia e dolorosas sanções do Ocidente, não é apenas Putin que precisa da China — a Rússia inteira precisa.

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O presidente chinês Xi Jinping e o presidente russo Vladimir Putin apertam as mãos durante sua reunião em Pequim, em 16 de maio Foto: Sergei Bobylev/Sputnik/Kremlin via AP

A China emergiu como a parceira mais importante da Rússia, suprindo não apenas a máquina de guerra de Putin, mas alimentando também toda a combalida economia russa. Em 2023, o comércio da Rússia com a China alcançou um recorde de US$ 240,1 bilhões, uma elevação de mais de 60% em relação aos níveis anteriores à guerra, enquanto a China comprou cerca de 30% das exportações russas e forneceu aproximadamente 40% de suas importações.

Antes da guerra, o comércio da Rússia com a União Europeia era o dobro em comparação com a China; hoje é menos que a metade. O yuan chinês, não o dólar nem o euro, é atualmente a principal moeda usada no comércio entre os dois países, o que torna o yuan a moeda mais negociada na bolsa de valores de Moscou e um instrumento atraente para poupança.

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Essa dependência econômica está extravasando para a vida cotidiana. Produtos chineses são onipresentes e cerca da metade do 1 milhão de carros vendidos na Rússia foi fabricada na China. Reveladoramente, as seis principais marcas estrangeiras de veículos presentes na Rússia são chinesas hoje, graças ao êxodo das fabricantes ocidentais dominantes no passado. No mercado de smartphones a história é parecida: as chinesas Xiaomi e Tecno eclipsaram a Apple e a Samsung. Assim como no ramo de eletrodomésticos e em relação a muitos outros itens do cotidiano.

São mudanças tectônicas. Mesmo nos tempos dos czares, a Rússia exportava suas commodities para a Europa e dependia de importações de produtos fabricados no Ocidente. Os oligarcas russos, sancionados pela maioria dos países ocidentais, tiveram de se adaptar a uma nova realidade. Na semana passada, o empresário Vladimir Potanin, cuja fortuna é estimada em US$ 23,7 bilhões, anunciou que seu império de cobre e níquel se reorientará na direção da China, incluindo por meio de transferências de centros de produção para o país. “Se nos integrarmos mais à economia chinesa”, afirmou ele, “seremos mais protegidos”.

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A educação segue a economia. Membros da elite russa estão com dificuldades para encontrar professores de mandarim para seus filhos, e alguns dos meus contatos russos estão pensando em mandá-los estudar em universidades de Hong Kong ou da China continental, agora que ficou muito mais difícil acessar universidades ocidentais. Esse desdobramento é mais que anedótico. No ano passado, conforme a China se abriu após a pandemia, 12 mil estudantes russos foram estudar no país — quase quatro vezes mais que nos Estados Unidos.

Essa reorientação do Ocidente para o Oriente também é visível entre a classe média, mais notavelmente nas viagens aéreas. Há hoje, por exemplo, cinco voos por dia conectando Moscou e Pequim em menos de oito horas, com passagem de ida e volta custando cerca de US$ 500. Em contraste, chegar a Berlim — um dos muitos destinos frequentes de fim de semana na Europa de russos de classe média antes da guerra — pode demorar hoje mais que um dia inteiro e custar até o dobro.

O presidente chinês Xi Jinping recebe Vladimir Putin em Pequim Foto: Sergei Bobylev/ Sputnik/Kremlin via AP
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Além disso, as cidades europeias estão sendo substituídas como destinações dos turistas russos por Dubai, Baku, no Azerbaijão, e Istambul, ao mesmo tempo que cada vez mais viagens a negócios têm sido feitas à China, à Ásia Central ou ao Golfo. Os russos de classe média — isolados em grande medida do Ocidente, que encerrou os voos diretos para a Rússia e reduziu significativamente a disponibilidade de vistos para russos — estão viajando para outros lugares.

Intelectuais também estão se voltando para a China. Cientistas russos estão começando a trabalhar com empresas chinesas, em parcerias e como funcionários, especialmente em campos como exploração espacial, inteligência artificial e biotecnologia. A influência cultural da China também cresce dentro da Rússia. Com escritores ocidentais como Stephen King e Neil Gaiman retirando direitos de publicação de suas obras na Rússia, as editoras estão expandindo seus catálogos de autores chineses. Bancado por recursos generosos para tradutores do governo chinês, esse esforço tem objetivo de produzir uma explosão nas leituras chinesas.

A cultura chinesa não substituirá a ocidental como principal referência dos russos no futuro próximo. Mas uma mudança profunda ocorreu. Do outro lado da Cortina de Ferro, a Europa era vista como um farol de direitos humanos, prosperidade e desenvolvimento tecnológico, um espaço que muitos cidadãos soviéticos aspiravam integrar.

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Agora, além do sentimento de amargura em relação à Europa por suas sanções punitivas, um número crescente de russos escolarizados vê a China como uma potência avançada tecnologicamente e superior economicamente à qual a Rússia é cada vez mais conectada. Sem nenhuma perspectiva fácil de retorno a relações normais com o Ocidente, é improvável que isso mude proximamente.

Em seu romance distópico “Dia do Oprichnik”, Vladimir Sorokin descreve uma Rússia profundamente anti-Ocidente em 2028, que depende da tecnologia chinesa ao mesmo tempo que emula a brutalidade medieval da era de Ivan, o Terrível. A cada dia que passa, essa narrativa inquietante e premonitória — publicada em 2006 como um alerta à Rússia sobre a direção do caminho com Putin — fica mais parecida com o noticiário. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

A viagem de Vladimir Putin a Pequim, nesta semana, onde ele se reunirá com Xi Jinping e graduadas autoridades chinesas, é mais uma demonstração da atual proximidade entre Rússia e China.

Mas muitos no Ocidente ainda preferem acreditar que sua aliança é uma aberração motivada pelo antiamericanismo emocional de Putin e sua tóxica fixação na Ucrânia. Uma vez que Putin e suas obscuras obsessões saiam da jogada, segundo essa crença, Moscou buscará reconstruir as relações com o Ocidente — sobretudo porque os laços entre Rússia e China são superficiais, enquanto Moscou viveu séculos dependendo economicamente e culturalmente da Europa.

Essa visão ilusória, apesar de sedutora, desconsidera a transformação da economia e da sociedade russa. Desde a queda da União Soviética a Rússia não ficava tão distante da Europa, e nunca em sua história a Rússia tinha se envolvido tão profundamente com a China. A verdade é que, após dois anos de guerra na Ucrânia e dolorosas sanções do Ocidente, não é apenas Putin que precisa da China — a Rússia inteira precisa.

O presidente chinês Xi Jinping e o presidente russo Vladimir Putin apertam as mãos durante sua reunião em Pequim, em 16 de maio Foto: Sergei Bobylev/Sputnik/Kremlin via AP

A China emergiu como a parceira mais importante da Rússia, suprindo não apenas a máquina de guerra de Putin, mas alimentando também toda a combalida economia russa. Em 2023, o comércio da Rússia com a China alcançou um recorde de US$ 240,1 bilhões, uma elevação de mais de 60% em relação aos níveis anteriores à guerra, enquanto a China comprou cerca de 30% das exportações russas e forneceu aproximadamente 40% de suas importações.

Antes da guerra, o comércio da Rússia com a União Europeia era o dobro em comparação com a China; hoje é menos que a metade. O yuan chinês, não o dólar nem o euro, é atualmente a principal moeda usada no comércio entre os dois países, o que torna o yuan a moeda mais negociada na bolsa de valores de Moscou e um instrumento atraente para poupança.

Essa dependência econômica está extravasando para a vida cotidiana. Produtos chineses são onipresentes e cerca da metade do 1 milhão de carros vendidos na Rússia foi fabricada na China. Reveladoramente, as seis principais marcas estrangeiras de veículos presentes na Rússia são chinesas hoje, graças ao êxodo das fabricantes ocidentais dominantes no passado. No mercado de smartphones a história é parecida: as chinesas Xiaomi e Tecno eclipsaram a Apple e a Samsung. Assim como no ramo de eletrodomésticos e em relação a muitos outros itens do cotidiano.

São mudanças tectônicas. Mesmo nos tempos dos czares, a Rússia exportava suas commodities para a Europa e dependia de importações de produtos fabricados no Ocidente. Os oligarcas russos, sancionados pela maioria dos países ocidentais, tiveram de se adaptar a uma nova realidade. Na semana passada, o empresário Vladimir Potanin, cuja fortuna é estimada em US$ 23,7 bilhões, anunciou que seu império de cobre e níquel se reorientará na direção da China, incluindo por meio de transferências de centros de produção para o país. “Se nos integrarmos mais à economia chinesa”, afirmou ele, “seremos mais protegidos”.

A educação segue a economia. Membros da elite russa estão com dificuldades para encontrar professores de mandarim para seus filhos, e alguns dos meus contatos russos estão pensando em mandá-los estudar em universidades de Hong Kong ou da China continental, agora que ficou muito mais difícil acessar universidades ocidentais. Esse desdobramento é mais que anedótico. No ano passado, conforme a China se abriu após a pandemia, 12 mil estudantes russos foram estudar no país — quase quatro vezes mais que nos Estados Unidos.

Essa reorientação do Ocidente para o Oriente também é visível entre a classe média, mais notavelmente nas viagens aéreas. Há hoje, por exemplo, cinco voos por dia conectando Moscou e Pequim em menos de oito horas, com passagem de ida e volta custando cerca de US$ 500. Em contraste, chegar a Berlim — um dos muitos destinos frequentes de fim de semana na Europa de russos de classe média antes da guerra — pode demorar hoje mais que um dia inteiro e custar até o dobro.

O presidente chinês Xi Jinping recebe Vladimir Putin em Pequim Foto: Sergei Bobylev/ Sputnik/Kremlin via AP

Além disso, as cidades europeias estão sendo substituídas como destinações dos turistas russos por Dubai, Baku, no Azerbaijão, e Istambul, ao mesmo tempo que cada vez mais viagens a negócios têm sido feitas à China, à Ásia Central ou ao Golfo. Os russos de classe média — isolados em grande medida do Ocidente, que encerrou os voos diretos para a Rússia e reduziu significativamente a disponibilidade de vistos para russos — estão viajando para outros lugares.

Intelectuais também estão se voltando para a China. Cientistas russos estão começando a trabalhar com empresas chinesas, em parcerias e como funcionários, especialmente em campos como exploração espacial, inteligência artificial e biotecnologia. A influência cultural da China também cresce dentro da Rússia. Com escritores ocidentais como Stephen King e Neil Gaiman retirando direitos de publicação de suas obras na Rússia, as editoras estão expandindo seus catálogos de autores chineses. Bancado por recursos generosos para tradutores do governo chinês, esse esforço tem objetivo de produzir uma explosão nas leituras chinesas.

A cultura chinesa não substituirá a ocidental como principal referência dos russos no futuro próximo. Mas uma mudança profunda ocorreu. Do outro lado da Cortina de Ferro, a Europa era vista como um farol de direitos humanos, prosperidade e desenvolvimento tecnológico, um espaço que muitos cidadãos soviéticos aspiravam integrar.

Agora, além do sentimento de amargura em relação à Europa por suas sanções punitivas, um número crescente de russos escolarizados vê a China como uma potência avançada tecnologicamente e superior economicamente à qual a Rússia é cada vez mais conectada. Sem nenhuma perspectiva fácil de retorno a relações normais com o Ocidente, é improvável que isso mude proximamente.

Em seu romance distópico “Dia do Oprichnik”, Vladimir Sorokin descreve uma Rússia profundamente anti-Ocidente em 2028, que depende da tecnologia chinesa ao mesmo tempo que emula a brutalidade medieval da era de Ivan, o Terrível. A cada dia que passa, essa narrativa inquietante e premonitória — publicada em 2006 como um alerta à Rússia sobre a direção do caminho com Putin — fica mais parecida com o noticiário. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

A viagem de Vladimir Putin a Pequim, nesta semana, onde ele se reunirá com Xi Jinping e graduadas autoridades chinesas, é mais uma demonstração da atual proximidade entre Rússia e China.

Mas muitos no Ocidente ainda preferem acreditar que sua aliança é uma aberração motivada pelo antiamericanismo emocional de Putin e sua tóxica fixação na Ucrânia. Uma vez que Putin e suas obscuras obsessões saiam da jogada, segundo essa crença, Moscou buscará reconstruir as relações com o Ocidente — sobretudo porque os laços entre Rússia e China são superficiais, enquanto Moscou viveu séculos dependendo economicamente e culturalmente da Europa.

Essa visão ilusória, apesar de sedutora, desconsidera a transformação da economia e da sociedade russa. Desde a queda da União Soviética a Rússia não ficava tão distante da Europa, e nunca em sua história a Rússia tinha se envolvido tão profundamente com a China. A verdade é que, após dois anos de guerra na Ucrânia e dolorosas sanções do Ocidente, não é apenas Putin que precisa da China — a Rússia inteira precisa.

O presidente chinês Xi Jinping e o presidente russo Vladimir Putin apertam as mãos durante sua reunião em Pequim, em 16 de maio Foto: Sergei Bobylev/Sputnik/Kremlin via AP

A China emergiu como a parceira mais importante da Rússia, suprindo não apenas a máquina de guerra de Putin, mas alimentando também toda a combalida economia russa. Em 2023, o comércio da Rússia com a China alcançou um recorde de US$ 240,1 bilhões, uma elevação de mais de 60% em relação aos níveis anteriores à guerra, enquanto a China comprou cerca de 30% das exportações russas e forneceu aproximadamente 40% de suas importações.

Antes da guerra, o comércio da Rússia com a União Europeia era o dobro em comparação com a China; hoje é menos que a metade. O yuan chinês, não o dólar nem o euro, é atualmente a principal moeda usada no comércio entre os dois países, o que torna o yuan a moeda mais negociada na bolsa de valores de Moscou e um instrumento atraente para poupança.

Essa dependência econômica está extravasando para a vida cotidiana. Produtos chineses são onipresentes e cerca da metade do 1 milhão de carros vendidos na Rússia foi fabricada na China. Reveladoramente, as seis principais marcas estrangeiras de veículos presentes na Rússia são chinesas hoje, graças ao êxodo das fabricantes ocidentais dominantes no passado. No mercado de smartphones a história é parecida: as chinesas Xiaomi e Tecno eclipsaram a Apple e a Samsung. Assim como no ramo de eletrodomésticos e em relação a muitos outros itens do cotidiano.

São mudanças tectônicas. Mesmo nos tempos dos czares, a Rússia exportava suas commodities para a Europa e dependia de importações de produtos fabricados no Ocidente. Os oligarcas russos, sancionados pela maioria dos países ocidentais, tiveram de se adaptar a uma nova realidade. Na semana passada, o empresário Vladimir Potanin, cuja fortuna é estimada em US$ 23,7 bilhões, anunciou que seu império de cobre e níquel se reorientará na direção da China, incluindo por meio de transferências de centros de produção para o país. “Se nos integrarmos mais à economia chinesa”, afirmou ele, “seremos mais protegidos”.

A educação segue a economia. Membros da elite russa estão com dificuldades para encontrar professores de mandarim para seus filhos, e alguns dos meus contatos russos estão pensando em mandá-los estudar em universidades de Hong Kong ou da China continental, agora que ficou muito mais difícil acessar universidades ocidentais. Esse desdobramento é mais que anedótico. No ano passado, conforme a China se abriu após a pandemia, 12 mil estudantes russos foram estudar no país — quase quatro vezes mais que nos Estados Unidos.

Essa reorientação do Ocidente para o Oriente também é visível entre a classe média, mais notavelmente nas viagens aéreas. Há hoje, por exemplo, cinco voos por dia conectando Moscou e Pequim em menos de oito horas, com passagem de ida e volta custando cerca de US$ 500. Em contraste, chegar a Berlim — um dos muitos destinos frequentes de fim de semana na Europa de russos de classe média antes da guerra — pode demorar hoje mais que um dia inteiro e custar até o dobro.

O presidente chinês Xi Jinping recebe Vladimir Putin em Pequim Foto: Sergei Bobylev/ Sputnik/Kremlin via AP

Além disso, as cidades europeias estão sendo substituídas como destinações dos turistas russos por Dubai, Baku, no Azerbaijão, e Istambul, ao mesmo tempo que cada vez mais viagens a negócios têm sido feitas à China, à Ásia Central ou ao Golfo. Os russos de classe média — isolados em grande medida do Ocidente, que encerrou os voos diretos para a Rússia e reduziu significativamente a disponibilidade de vistos para russos — estão viajando para outros lugares.

Intelectuais também estão se voltando para a China. Cientistas russos estão começando a trabalhar com empresas chinesas, em parcerias e como funcionários, especialmente em campos como exploração espacial, inteligência artificial e biotecnologia. A influência cultural da China também cresce dentro da Rússia. Com escritores ocidentais como Stephen King e Neil Gaiman retirando direitos de publicação de suas obras na Rússia, as editoras estão expandindo seus catálogos de autores chineses. Bancado por recursos generosos para tradutores do governo chinês, esse esforço tem objetivo de produzir uma explosão nas leituras chinesas.

A cultura chinesa não substituirá a ocidental como principal referência dos russos no futuro próximo. Mas uma mudança profunda ocorreu. Do outro lado da Cortina de Ferro, a Europa era vista como um farol de direitos humanos, prosperidade e desenvolvimento tecnológico, um espaço que muitos cidadãos soviéticos aspiravam integrar.

Agora, além do sentimento de amargura em relação à Europa por suas sanções punitivas, um número crescente de russos escolarizados vê a China como uma potência avançada tecnologicamente e superior economicamente à qual a Rússia é cada vez mais conectada. Sem nenhuma perspectiva fácil de retorno a relações normais com o Ocidente, é improvável que isso mude proximamente.

Em seu romance distópico “Dia do Oprichnik”, Vladimir Sorokin descreve uma Rússia profundamente anti-Ocidente em 2028, que depende da tecnologia chinesa ao mesmo tempo que emula a brutalidade medieval da era de Ivan, o Terrível. A cada dia que passa, essa narrativa inquietante e premonitória — publicada em 2006 como um alerta à Rússia sobre a direção do caminho com Putin — fica mais parecida com o noticiário. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

A viagem de Vladimir Putin a Pequim, nesta semana, onde ele se reunirá com Xi Jinping e graduadas autoridades chinesas, é mais uma demonstração da atual proximidade entre Rússia e China.

Mas muitos no Ocidente ainda preferem acreditar que sua aliança é uma aberração motivada pelo antiamericanismo emocional de Putin e sua tóxica fixação na Ucrânia. Uma vez que Putin e suas obscuras obsessões saiam da jogada, segundo essa crença, Moscou buscará reconstruir as relações com o Ocidente — sobretudo porque os laços entre Rússia e China são superficiais, enquanto Moscou viveu séculos dependendo economicamente e culturalmente da Europa.

Essa visão ilusória, apesar de sedutora, desconsidera a transformação da economia e da sociedade russa. Desde a queda da União Soviética a Rússia não ficava tão distante da Europa, e nunca em sua história a Rússia tinha se envolvido tão profundamente com a China. A verdade é que, após dois anos de guerra na Ucrânia e dolorosas sanções do Ocidente, não é apenas Putin que precisa da China — a Rússia inteira precisa.

O presidente chinês Xi Jinping e o presidente russo Vladimir Putin apertam as mãos durante sua reunião em Pequim, em 16 de maio Foto: Sergei Bobylev/Sputnik/Kremlin via AP

A China emergiu como a parceira mais importante da Rússia, suprindo não apenas a máquina de guerra de Putin, mas alimentando também toda a combalida economia russa. Em 2023, o comércio da Rússia com a China alcançou um recorde de US$ 240,1 bilhões, uma elevação de mais de 60% em relação aos níveis anteriores à guerra, enquanto a China comprou cerca de 30% das exportações russas e forneceu aproximadamente 40% de suas importações.

Antes da guerra, o comércio da Rússia com a União Europeia era o dobro em comparação com a China; hoje é menos que a metade. O yuan chinês, não o dólar nem o euro, é atualmente a principal moeda usada no comércio entre os dois países, o que torna o yuan a moeda mais negociada na bolsa de valores de Moscou e um instrumento atraente para poupança.

Essa dependência econômica está extravasando para a vida cotidiana. Produtos chineses são onipresentes e cerca da metade do 1 milhão de carros vendidos na Rússia foi fabricada na China. Reveladoramente, as seis principais marcas estrangeiras de veículos presentes na Rússia são chinesas hoje, graças ao êxodo das fabricantes ocidentais dominantes no passado. No mercado de smartphones a história é parecida: as chinesas Xiaomi e Tecno eclipsaram a Apple e a Samsung. Assim como no ramo de eletrodomésticos e em relação a muitos outros itens do cotidiano.

São mudanças tectônicas. Mesmo nos tempos dos czares, a Rússia exportava suas commodities para a Europa e dependia de importações de produtos fabricados no Ocidente. Os oligarcas russos, sancionados pela maioria dos países ocidentais, tiveram de se adaptar a uma nova realidade. Na semana passada, o empresário Vladimir Potanin, cuja fortuna é estimada em US$ 23,7 bilhões, anunciou que seu império de cobre e níquel se reorientará na direção da China, incluindo por meio de transferências de centros de produção para o país. “Se nos integrarmos mais à economia chinesa”, afirmou ele, “seremos mais protegidos”.

A educação segue a economia. Membros da elite russa estão com dificuldades para encontrar professores de mandarim para seus filhos, e alguns dos meus contatos russos estão pensando em mandá-los estudar em universidades de Hong Kong ou da China continental, agora que ficou muito mais difícil acessar universidades ocidentais. Esse desdobramento é mais que anedótico. No ano passado, conforme a China se abriu após a pandemia, 12 mil estudantes russos foram estudar no país — quase quatro vezes mais que nos Estados Unidos.

Essa reorientação do Ocidente para o Oriente também é visível entre a classe média, mais notavelmente nas viagens aéreas. Há hoje, por exemplo, cinco voos por dia conectando Moscou e Pequim em menos de oito horas, com passagem de ida e volta custando cerca de US$ 500. Em contraste, chegar a Berlim — um dos muitos destinos frequentes de fim de semana na Europa de russos de classe média antes da guerra — pode demorar hoje mais que um dia inteiro e custar até o dobro.

O presidente chinês Xi Jinping recebe Vladimir Putin em Pequim Foto: Sergei Bobylev/ Sputnik/Kremlin via AP

Além disso, as cidades europeias estão sendo substituídas como destinações dos turistas russos por Dubai, Baku, no Azerbaijão, e Istambul, ao mesmo tempo que cada vez mais viagens a negócios têm sido feitas à China, à Ásia Central ou ao Golfo. Os russos de classe média — isolados em grande medida do Ocidente, que encerrou os voos diretos para a Rússia e reduziu significativamente a disponibilidade de vistos para russos — estão viajando para outros lugares.

Intelectuais também estão se voltando para a China. Cientistas russos estão começando a trabalhar com empresas chinesas, em parcerias e como funcionários, especialmente em campos como exploração espacial, inteligência artificial e biotecnologia. A influência cultural da China também cresce dentro da Rússia. Com escritores ocidentais como Stephen King e Neil Gaiman retirando direitos de publicação de suas obras na Rússia, as editoras estão expandindo seus catálogos de autores chineses. Bancado por recursos generosos para tradutores do governo chinês, esse esforço tem objetivo de produzir uma explosão nas leituras chinesas.

A cultura chinesa não substituirá a ocidental como principal referência dos russos no futuro próximo. Mas uma mudança profunda ocorreu. Do outro lado da Cortina de Ferro, a Europa era vista como um farol de direitos humanos, prosperidade e desenvolvimento tecnológico, um espaço que muitos cidadãos soviéticos aspiravam integrar.

Agora, além do sentimento de amargura em relação à Europa por suas sanções punitivas, um número crescente de russos escolarizados vê a China como uma potência avançada tecnologicamente e superior economicamente à qual a Rússia é cada vez mais conectada. Sem nenhuma perspectiva fácil de retorno a relações normais com o Ocidente, é improvável que isso mude proximamente.

Em seu romance distópico “Dia do Oprichnik”, Vladimir Sorokin descreve uma Rússia profundamente anti-Ocidente em 2028, que depende da tecnologia chinesa ao mesmo tempo que emula a brutalidade medieval da era de Ivan, o Terrível. A cada dia que passa, essa narrativa inquietante e premonitória — publicada em 2006 como um alerta à Rússia sobre a direção do caminho com Putin — fica mais parecida com o noticiário. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Opinião por Alexander Gabuev

Alexander Gabuev (@AlexGabuev) é diretor do Centro Carnegie para Rússia e Eurásia, em Berlim

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