O pesadelo do Líbano pode vir a ser o futuro de Israel: leia o artigo de Thomas Friedman


Controvertida reforma do judiciário mergulha país em crise e ameaça romper com fundamentos que mantêm o Estado unido

Por Thomas Friedman
Atualização:

Em 12 de setembro, a Suprema Corte de Israel se reunirá para decidir se o golpe contra o poder do Judiciário impingido pelo primeiro-ministro Binyamin Netanyahu é ou não legal. Netanyahu afirmou repetidamente que não atenderá a uma decisão adversa, então, se o tribunal deliberar contra o movimento de sua coalizão, Israel entrará numa crise judicial absoluta.

Os comandantes militares e os chefes do Mossad, do Shin Bet e da polícia terão de decidir a quem serão leais: a uma coalizão política empenhada em um putsch judicial; ou a uma Suprema Corte que decida a preservar sua independência.

Mas mesmo se o tribunal superior decidir que não tem poder para manter sua autoridade, Israel ainda se encontrará numa crise absoluta. Porque Netanyahu e sua coalizão de extrema direita de supremacistas judeus e judeus ultraortodoxos já romperam a cláusula essencial do contrato social que manteve o Estado de Israel unido ao longo dos últimos 75 anos: “viva e deixe viver”.

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Ativista carrega bandeira de Israel em protesto contra polêmica reforma do judiciário do governo, Tel Aviv, 17 de agosto de 2023. Foto: JACK GUEZ / AFP

Eu sei bastante coisa a respeito deste princípio. Eu vivi em dois países do Oriente Médio entre o fim dos anos 70 e o fim dos 80 — Líbano e Israel — que mantiveram sua estabilidade por anos respeitando este princípio. Até que não.

Líbano e Israel possuem duas grandes características em comum: são minúsculos em geografia e têm populações incrivelmente diversas — religiosamente, etnicamente, linguisticamente e educacionalmente.

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Quando a sua democracia é realmente, eu digo verdadeiramente minúscula, muito, muito pequena mesmo, há apenas uma maneira de manter a estabilidade: todos os diversos atores devem respeitar o princípio “viva e deixe viver”. Ou, como os libaneses descreveram toda vez que alguma facção rompeu esse princípio, mergulhou o país em guerra civil e depois teve de restabelecer o equilíbrio entre vários grupos religiosos, “nenhum vencedor, ninguém derrotado”. Todos têm de se ater a certos limites ao seu alcance.

Ao longo das últimas duas décadas, contudo, a milícia libanesa xiita pró-Irã Hezbollah, cujo nome significa “o partido de Deus”, destroçou esse princípio. O Hezbollah usou sua superioridade em armas e combatentes, assim como o apoio de Teerã, para impor sua autoridade sobre todos os outros partidos e grupos religiosos libaneses. Em vez de “nenhum vencedor, ninguém derrotado”, o Hezbollah impôs um princípio com frequência associado a ditadores africanos: “é a nossa vez de comer”; o que significa dane-se a democracia, é a nossa vez de obter mais do que nos cabe dos recursos do Estado, operando sem supervisão de nenhuma autoridade independente (como um sistema Judiciário).

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Apesar das muitas diferenças entre Líbano e Israel, a coalizão de Netanyahu é em si um Partido de Deus — que, apesar de ter vencido as eleições de novembro por meros 30 mil votos num universo de 4,7 milhões de eleitores, decidiu que agora é sua vez de comer. E então ela rompeu o princípio “viva e deixe viver” e começou imediatamente a transferir novos fundos, quantias sem precedentes, para escolas religiosas judaicas ultraortodoxas — sem exigir que as instituições lecionem matemática, ciências, inglês ou civismo democrático — e nomeando ministros com registros criminais e despejando recursos do governo na expansão dos assentamentos coloniais judaicos na Cisjordânia com objetivo de desfazer o processo de paz de Oslo. Isso foi feito simultaneamente à tentativa de furtar da Suprema Corte a capacidade de impedir medidas assim.

Esse tipo de alocação de recursos e concentração de poder não tem precedentes na política israelense. E a manobra parece ainda mais desaforada se considerarmos que ela é feita, em parte, por partidos ultraortodoxos, cujos membros são os cidadãos que menos pagam impostos e menos servem às Forças Armadas .

Até aqui, com poucas exceções, todos conheciam seus limites em Israel: os seculares sabiam até que ponto pressionar os ortodoxos para poder abrir restaurantes no Shabat; os ortodoxos sabiam até que ponto pressionar os seculares contra direitos LGBT+; os colonos na Cisjordânia odiavam os acordos de Oslo mas nunca tentaram desmantelar a Autoridade Palestina, que governa parte da Cisjordânia; e até a Suprema Corte tornou-se muito mais equilibrada ideologicamente nos anos recentes, entre conservadores e progressistas, apesar das declarações enganosas de Netanyahu afirmando o contrário.

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Meu amigo David Makovsky, pesquisador sênior do Washington Institute, conta a anedota de que, quando seu filho nasceu, em Jerusalém, em 1998, ele quis estar ao lado de sua mulher, Varda, durante o parto. David ouviu do obstetra que não haveria nenhum problema — contanto que o único enfermeiro ultraortodoxo da maternidade não estivesse no plantão. O médico acompanhou Varda durante o trabalho de parto, disse David, e administrou o tempo para que o bebê chegasse logo após o enfermeiro religioso encerrar o plantão.

“Daí o médico disse para a Varda, ‘É hora de empurrar’”, recordou-se David. “E assim eu pude acompanhar o nascimento do meu filho. Era um microcosmo de Israel no qual as pessoas sustentam princípios mas ainda assim encontram maneiras criativas de coexistir.”

Ao romper esse equilíbrio “viva e deixe viver” por meio de pura força — graças a uma minúscula e transitória vantagem política no Parlamento — Netanyahu e sua coalizão violaram algo muito mais importante do que uma lei, violaram a norma não escrita que mantém o Estado de Israel unido. É difícil vislumbrar como o país poderá ser o mesmo algum dia.

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Primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, em reunião semanal do governo, 30 de julho de 2023 Foto: ABIR SULTAN/Pool via REUTERS

Se a Suprema Corte declarar que não tem autoridade para impedir o golpe judicial ou se Netanyahu se recusar a obedecer uma decisão contrária à sua tomada de poder, o sistema israelense — já fraturado em razão de tantos reservistas do Exército e da Força Aérea se recusarem a servir um governo que agora consideram ditatorial, não democrático — poderia sair totalmente de controle.

Vejam como Yohanan Plesner, presidente do Israel Democracy Institute, um centro de análise não partidário (do qual sou doador), definiu a situação num ensaio publicado recentemente no website da entidade:

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“Um governo eleito acaba de fazer uma mudança constitucional potencialmente abrangente sobre tênues bases partidárias. Não importa o que se pense a respeito da alteração em questão, um limite foi ultrapassado. (…) O fato desta tomada de poder por parte do Executivo ter sido realizada diante dos maiores e mais constantes protestos na história do país, contrariando a vontade de uma maioria do público e a despeito de alertas severos de especialistas em segurança, direito e economia, evidencia a magnitude da ameaça para milhões de israelenses.”

Plesner acrescentou — numa análise com ecos reais também sobre a democracia americana — que deste ponto adiante “toda vez que um cidadão israelense for às urnas, o fará com a amedrontadora nova consciência de que o preço de sua derrota poderá ser seu modo de vida. Um homem religioso votará com medo de que um governo de lideranças seculares possa minar o caráter judaico do Estado se optar por isso. Uma mulher secular votará temendo as consequências de uma vitória da direita sobre seus direitos”.

Além disso, os direitos do 1,6 milhão de cidadãos árabe-israelenses, dos quais a Suprema Corte de Israel tem sido protetora vital, poderiam portanto estar à mercê da maioria judaica se essa nova legislação for mantida. Isso nunca, jamais deveria ter acontecido em um país “viva e deixe viver” tão diverso.

“Eleições não devem ser uma competição em que o vencedor ganha tudo e o perdedor arrisca perder tudo”, concluiu Plesner. “Isso não é democracia, é receita para uma guerra civil.”

E eu perguntei ao escritor e ensaísta israelense Ari Shavit o que ele mais teme hoje em seu país. Não é, ressaltou ele, a possibilidade de Israel se tornar uma “ditadura eleitoral — outra Hungria, Polônia ou Rússia. Porque a herança política judaica não pode permitir autoridade por meio de absolutismo e porque a direita radical em Israel não tem poder suficiente para impor sua vontade sobre os progressistas”.

O verdadeiro perigo, argumentou Shavit, é Israel descambar para o caos e se desintegrar.

Israelenses protestam contra reforça do judiciário em Israel, 17 de agosto de 2023. Foto: JACK GUEZ / AFP

“O espectro que paira é o Líbano”, afirmou Shavit. “Nosso vizinho ao norte sofreu uma grande ruptura quando sua delicada ordem intertribal ruiu.” E agora, em Israel, “o compromisso histórico que permitiu às suas comunidades altamente diversas conviver pacificamente — com a direita controlando o poder político ao longo da maior parte dos últimos 20 anos, e o centro e a esquerda assegurando influência nas cortes, nos meios de comunicação e nas universidades — colapsou”.

Como nos dias do Primeiro e do Segundo Templo, afirmou Shavit, “fanatismos e sectarismos estão nos dividindo e ameaçando destruir a magnífica nação que nós construímos aqui. Então o pesadelo que me desperta no meio da noite não é Budapeste nem Varsóvia — é Beirute”.

Por ter vivido aquele pesadelo em Beirute no fim dos anos 70, eu posso confirmar que essa possibilidade é bastante real em Israel hoje. Se o brinquedo quebrar, a brincadeira acaba — daí não adianta chorar. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Em 12 de setembro, a Suprema Corte de Israel se reunirá para decidir se o golpe contra o poder do Judiciário impingido pelo primeiro-ministro Binyamin Netanyahu é ou não legal. Netanyahu afirmou repetidamente que não atenderá a uma decisão adversa, então, se o tribunal deliberar contra o movimento de sua coalizão, Israel entrará numa crise judicial absoluta.

Os comandantes militares e os chefes do Mossad, do Shin Bet e da polícia terão de decidir a quem serão leais: a uma coalizão política empenhada em um putsch judicial; ou a uma Suprema Corte que decida a preservar sua independência.

Mas mesmo se o tribunal superior decidir que não tem poder para manter sua autoridade, Israel ainda se encontrará numa crise absoluta. Porque Netanyahu e sua coalizão de extrema direita de supremacistas judeus e judeus ultraortodoxos já romperam a cláusula essencial do contrato social que manteve o Estado de Israel unido ao longo dos últimos 75 anos: “viva e deixe viver”.

Ativista carrega bandeira de Israel em protesto contra polêmica reforma do judiciário do governo, Tel Aviv, 17 de agosto de 2023. Foto: JACK GUEZ / AFP

Eu sei bastante coisa a respeito deste princípio. Eu vivi em dois países do Oriente Médio entre o fim dos anos 70 e o fim dos 80 — Líbano e Israel — que mantiveram sua estabilidade por anos respeitando este princípio. Até que não.

Líbano e Israel possuem duas grandes características em comum: são minúsculos em geografia e têm populações incrivelmente diversas — religiosamente, etnicamente, linguisticamente e educacionalmente.

Quando a sua democracia é realmente, eu digo verdadeiramente minúscula, muito, muito pequena mesmo, há apenas uma maneira de manter a estabilidade: todos os diversos atores devem respeitar o princípio “viva e deixe viver”. Ou, como os libaneses descreveram toda vez que alguma facção rompeu esse princípio, mergulhou o país em guerra civil e depois teve de restabelecer o equilíbrio entre vários grupos religiosos, “nenhum vencedor, ninguém derrotado”. Todos têm de se ater a certos limites ao seu alcance.

Ao longo das últimas duas décadas, contudo, a milícia libanesa xiita pró-Irã Hezbollah, cujo nome significa “o partido de Deus”, destroçou esse princípio. O Hezbollah usou sua superioridade em armas e combatentes, assim como o apoio de Teerã, para impor sua autoridade sobre todos os outros partidos e grupos religiosos libaneses. Em vez de “nenhum vencedor, ninguém derrotado”, o Hezbollah impôs um princípio com frequência associado a ditadores africanos: “é a nossa vez de comer”; o que significa dane-se a democracia, é a nossa vez de obter mais do que nos cabe dos recursos do Estado, operando sem supervisão de nenhuma autoridade independente (como um sistema Judiciário).

Apesar das muitas diferenças entre Líbano e Israel, a coalizão de Netanyahu é em si um Partido de Deus — que, apesar de ter vencido as eleições de novembro por meros 30 mil votos num universo de 4,7 milhões de eleitores, decidiu que agora é sua vez de comer. E então ela rompeu o princípio “viva e deixe viver” e começou imediatamente a transferir novos fundos, quantias sem precedentes, para escolas religiosas judaicas ultraortodoxas — sem exigir que as instituições lecionem matemática, ciências, inglês ou civismo democrático — e nomeando ministros com registros criminais e despejando recursos do governo na expansão dos assentamentos coloniais judaicos na Cisjordânia com objetivo de desfazer o processo de paz de Oslo. Isso foi feito simultaneamente à tentativa de furtar da Suprema Corte a capacidade de impedir medidas assim.

Esse tipo de alocação de recursos e concentração de poder não tem precedentes na política israelense. E a manobra parece ainda mais desaforada se considerarmos que ela é feita, em parte, por partidos ultraortodoxos, cujos membros são os cidadãos que menos pagam impostos e menos servem às Forças Armadas .

Até aqui, com poucas exceções, todos conheciam seus limites em Israel: os seculares sabiam até que ponto pressionar os ortodoxos para poder abrir restaurantes no Shabat; os ortodoxos sabiam até que ponto pressionar os seculares contra direitos LGBT+; os colonos na Cisjordânia odiavam os acordos de Oslo mas nunca tentaram desmantelar a Autoridade Palestina, que governa parte da Cisjordânia; e até a Suprema Corte tornou-se muito mais equilibrada ideologicamente nos anos recentes, entre conservadores e progressistas, apesar das declarações enganosas de Netanyahu afirmando o contrário.

Meu amigo David Makovsky, pesquisador sênior do Washington Institute, conta a anedota de que, quando seu filho nasceu, em Jerusalém, em 1998, ele quis estar ao lado de sua mulher, Varda, durante o parto. David ouviu do obstetra que não haveria nenhum problema — contanto que o único enfermeiro ultraortodoxo da maternidade não estivesse no plantão. O médico acompanhou Varda durante o trabalho de parto, disse David, e administrou o tempo para que o bebê chegasse logo após o enfermeiro religioso encerrar o plantão.

“Daí o médico disse para a Varda, ‘É hora de empurrar’”, recordou-se David. “E assim eu pude acompanhar o nascimento do meu filho. Era um microcosmo de Israel no qual as pessoas sustentam princípios mas ainda assim encontram maneiras criativas de coexistir.”

Ao romper esse equilíbrio “viva e deixe viver” por meio de pura força — graças a uma minúscula e transitória vantagem política no Parlamento — Netanyahu e sua coalizão violaram algo muito mais importante do que uma lei, violaram a norma não escrita que mantém o Estado de Israel unido. É difícil vislumbrar como o país poderá ser o mesmo algum dia.

Primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, em reunião semanal do governo, 30 de julho de 2023 Foto: ABIR SULTAN/Pool via REUTERS

Se a Suprema Corte declarar que não tem autoridade para impedir o golpe judicial ou se Netanyahu se recusar a obedecer uma decisão contrária à sua tomada de poder, o sistema israelense — já fraturado em razão de tantos reservistas do Exército e da Força Aérea se recusarem a servir um governo que agora consideram ditatorial, não democrático — poderia sair totalmente de controle.

Vejam como Yohanan Plesner, presidente do Israel Democracy Institute, um centro de análise não partidário (do qual sou doador), definiu a situação num ensaio publicado recentemente no website da entidade:

“Um governo eleito acaba de fazer uma mudança constitucional potencialmente abrangente sobre tênues bases partidárias. Não importa o que se pense a respeito da alteração em questão, um limite foi ultrapassado. (…) O fato desta tomada de poder por parte do Executivo ter sido realizada diante dos maiores e mais constantes protestos na história do país, contrariando a vontade de uma maioria do público e a despeito de alertas severos de especialistas em segurança, direito e economia, evidencia a magnitude da ameaça para milhões de israelenses.”

Plesner acrescentou — numa análise com ecos reais também sobre a democracia americana — que deste ponto adiante “toda vez que um cidadão israelense for às urnas, o fará com a amedrontadora nova consciência de que o preço de sua derrota poderá ser seu modo de vida. Um homem religioso votará com medo de que um governo de lideranças seculares possa minar o caráter judaico do Estado se optar por isso. Uma mulher secular votará temendo as consequências de uma vitória da direita sobre seus direitos”.

Além disso, os direitos do 1,6 milhão de cidadãos árabe-israelenses, dos quais a Suprema Corte de Israel tem sido protetora vital, poderiam portanto estar à mercê da maioria judaica se essa nova legislação for mantida. Isso nunca, jamais deveria ter acontecido em um país “viva e deixe viver” tão diverso.

“Eleições não devem ser uma competição em que o vencedor ganha tudo e o perdedor arrisca perder tudo”, concluiu Plesner. “Isso não é democracia, é receita para uma guerra civil.”

E eu perguntei ao escritor e ensaísta israelense Ari Shavit o que ele mais teme hoje em seu país. Não é, ressaltou ele, a possibilidade de Israel se tornar uma “ditadura eleitoral — outra Hungria, Polônia ou Rússia. Porque a herança política judaica não pode permitir autoridade por meio de absolutismo e porque a direita radical em Israel não tem poder suficiente para impor sua vontade sobre os progressistas”.

O verdadeiro perigo, argumentou Shavit, é Israel descambar para o caos e se desintegrar.

Israelenses protestam contra reforça do judiciário em Israel, 17 de agosto de 2023. Foto: JACK GUEZ / AFP

“O espectro que paira é o Líbano”, afirmou Shavit. “Nosso vizinho ao norte sofreu uma grande ruptura quando sua delicada ordem intertribal ruiu.” E agora, em Israel, “o compromisso histórico que permitiu às suas comunidades altamente diversas conviver pacificamente — com a direita controlando o poder político ao longo da maior parte dos últimos 20 anos, e o centro e a esquerda assegurando influência nas cortes, nos meios de comunicação e nas universidades — colapsou”.

Como nos dias do Primeiro e do Segundo Templo, afirmou Shavit, “fanatismos e sectarismos estão nos dividindo e ameaçando destruir a magnífica nação que nós construímos aqui. Então o pesadelo que me desperta no meio da noite não é Budapeste nem Varsóvia — é Beirute”.

Por ter vivido aquele pesadelo em Beirute no fim dos anos 70, eu posso confirmar que essa possibilidade é bastante real em Israel hoje. Se o brinquedo quebrar, a brincadeira acaba — daí não adianta chorar. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Em 12 de setembro, a Suprema Corte de Israel se reunirá para decidir se o golpe contra o poder do Judiciário impingido pelo primeiro-ministro Binyamin Netanyahu é ou não legal. Netanyahu afirmou repetidamente que não atenderá a uma decisão adversa, então, se o tribunal deliberar contra o movimento de sua coalizão, Israel entrará numa crise judicial absoluta.

Os comandantes militares e os chefes do Mossad, do Shin Bet e da polícia terão de decidir a quem serão leais: a uma coalizão política empenhada em um putsch judicial; ou a uma Suprema Corte que decida a preservar sua independência.

Mas mesmo se o tribunal superior decidir que não tem poder para manter sua autoridade, Israel ainda se encontrará numa crise absoluta. Porque Netanyahu e sua coalizão de extrema direita de supremacistas judeus e judeus ultraortodoxos já romperam a cláusula essencial do contrato social que manteve o Estado de Israel unido ao longo dos últimos 75 anos: “viva e deixe viver”.

Ativista carrega bandeira de Israel em protesto contra polêmica reforma do judiciário do governo, Tel Aviv, 17 de agosto de 2023. Foto: JACK GUEZ / AFP

Eu sei bastante coisa a respeito deste princípio. Eu vivi em dois países do Oriente Médio entre o fim dos anos 70 e o fim dos 80 — Líbano e Israel — que mantiveram sua estabilidade por anos respeitando este princípio. Até que não.

Líbano e Israel possuem duas grandes características em comum: são minúsculos em geografia e têm populações incrivelmente diversas — religiosamente, etnicamente, linguisticamente e educacionalmente.

Quando a sua democracia é realmente, eu digo verdadeiramente minúscula, muito, muito pequena mesmo, há apenas uma maneira de manter a estabilidade: todos os diversos atores devem respeitar o princípio “viva e deixe viver”. Ou, como os libaneses descreveram toda vez que alguma facção rompeu esse princípio, mergulhou o país em guerra civil e depois teve de restabelecer o equilíbrio entre vários grupos religiosos, “nenhum vencedor, ninguém derrotado”. Todos têm de se ater a certos limites ao seu alcance.

Ao longo das últimas duas décadas, contudo, a milícia libanesa xiita pró-Irã Hezbollah, cujo nome significa “o partido de Deus”, destroçou esse princípio. O Hezbollah usou sua superioridade em armas e combatentes, assim como o apoio de Teerã, para impor sua autoridade sobre todos os outros partidos e grupos religiosos libaneses. Em vez de “nenhum vencedor, ninguém derrotado”, o Hezbollah impôs um princípio com frequência associado a ditadores africanos: “é a nossa vez de comer”; o que significa dane-se a democracia, é a nossa vez de obter mais do que nos cabe dos recursos do Estado, operando sem supervisão de nenhuma autoridade independente (como um sistema Judiciário).

Apesar das muitas diferenças entre Líbano e Israel, a coalizão de Netanyahu é em si um Partido de Deus — que, apesar de ter vencido as eleições de novembro por meros 30 mil votos num universo de 4,7 milhões de eleitores, decidiu que agora é sua vez de comer. E então ela rompeu o princípio “viva e deixe viver” e começou imediatamente a transferir novos fundos, quantias sem precedentes, para escolas religiosas judaicas ultraortodoxas — sem exigir que as instituições lecionem matemática, ciências, inglês ou civismo democrático — e nomeando ministros com registros criminais e despejando recursos do governo na expansão dos assentamentos coloniais judaicos na Cisjordânia com objetivo de desfazer o processo de paz de Oslo. Isso foi feito simultaneamente à tentativa de furtar da Suprema Corte a capacidade de impedir medidas assim.

Esse tipo de alocação de recursos e concentração de poder não tem precedentes na política israelense. E a manobra parece ainda mais desaforada se considerarmos que ela é feita, em parte, por partidos ultraortodoxos, cujos membros são os cidadãos que menos pagam impostos e menos servem às Forças Armadas .

Até aqui, com poucas exceções, todos conheciam seus limites em Israel: os seculares sabiam até que ponto pressionar os ortodoxos para poder abrir restaurantes no Shabat; os ortodoxos sabiam até que ponto pressionar os seculares contra direitos LGBT+; os colonos na Cisjordânia odiavam os acordos de Oslo mas nunca tentaram desmantelar a Autoridade Palestina, que governa parte da Cisjordânia; e até a Suprema Corte tornou-se muito mais equilibrada ideologicamente nos anos recentes, entre conservadores e progressistas, apesar das declarações enganosas de Netanyahu afirmando o contrário.

Meu amigo David Makovsky, pesquisador sênior do Washington Institute, conta a anedota de que, quando seu filho nasceu, em Jerusalém, em 1998, ele quis estar ao lado de sua mulher, Varda, durante o parto. David ouviu do obstetra que não haveria nenhum problema — contanto que o único enfermeiro ultraortodoxo da maternidade não estivesse no plantão. O médico acompanhou Varda durante o trabalho de parto, disse David, e administrou o tempo para que o bebê chegasse logo após o enfermeiro religioso encerrar o plantão.

“Daí o médico disse para a Varda, ‘É hora de empurrar’”, recordou-se David. “E assim eu pude acompanhar o nascimento do meu filho. Era um microcosmo de Israel no qual as pessoas sustentam princípios mas ainda assim encontram maneiras criativas de coexistir.”

Ao romper esse equilíbrio “viva e deixe viver” por meio de pura força — graças a uma minúscula e transitória vantagem política no Parlamento — Netanyahu e sua coalizão violaram algo muito mais importante do que uma lei, violaram a norma não escrita que mantém o Estado de Israel unido. É difícil vislumbrar como o país poderá ser o mesmo algum dia.

Primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, em reunião semanal do governo, 30 de julho de 2023 Foto: ABIR SULTAN/Pool via REUTERS

Se a Suprema Corte declarar que não tem autoridade para impedir o golpe judicial ou se Netanyahu se recusar a obedecer uma decisão contrária à sua tomada de poder, o sistema israelense — já fraturado em razão de tantos reservistas do Exército e da Força Aérea se recusarem a servir um governo que agora consideram ditatorial, não democrático — poderia sair totalmente de controle.

Vejam como Yohanan Plesner, presidente do Israel Democracy Institute, um centro de análise não partidário (do qual sou doador), definiu a situação num ensaio publicado recentemente no website da entidade:

“Um governo eleito acaba de fazer uma mudança constitucional potencialmente abrangente sobre tênues bases partidárias. Não importa o que se pense a respeito da alteração em questão, um limite foi ultrapassado. (…) O fato desta tomada de poder por parte do Executivo ter sido realizada diante dos maiores e mais constantes protestos na história do país, contrariando a vontade de uma maioria do público e a despeito de alertas severos de especialistas em segurança, direito e economia, evidencia a magnitude da ameaça para milhões de israelenses.”

Plesner acrescentou — numa análise com ecos reais também sobre a democracia americana — que deste ponto adiante “toda vez que um cidadão israelense for às urnas, o fará com a amedrontadora nova consciência de que o preço de sua derrota poderá ser seu modo de vida. Um homem religioso votará com medo de que um governo de lideranças seculares possa minar o caráter judaico do Estado se optar por isso. Uma mulher secular votará temendo as consequências de uma vitória da direita sobre seus direitos”.

Além disso, os direitos do 1,6 milhão de cidadãos árabe-israelenses, dos quais a Suprema Corte de Israel tem sido protetora vital, poderiam portanto estar à mercê da maioria judaica se essa nova legislação for mantida. Isso nunca, jamais deveria ter acontecido em um país “viva e deixe viver” tão diverso.

“Eleições não devem ser uma competição em que o vencedor ganha tudo e o perdedor arrisca perder tudo”, concluiu Plesner. “Isso não é democracia, é receita para uma guerra civil.”

E eu perguntei ao escritor e ensaísta israelense Ari Shavit o que ele mais teme hoje em seu país. Não é, ressaltou ele, a possibilidade de Israel se tornar uma “ditadura eleitoral — outra Hungria, Polônia ou Rússia. Porque a herança política judaica não pode permitir autoridade por meio de absolutismo e porque a direita radical em Israel não tem poder suficiente para impor sua vontade sobre os progressistas”.

O verdadeiro perigo, argumentou Shavit, é Israel descambar para o caos e se desintegrar.

Israelenses protestam contra reforça do judiciário em Israel, 17 de agosto de 2023. Foto: JACK GUEZ / AFP

“O espectro que paira é o Líbano”, afirmou Shavit. “Nosso vizinho ao norte sofreu uma grande ruptura quando sua delicada ordem intertribal ruiu.” E agora, em Israel, “o compromisso histórico que permitiu às suas comunidades altamente diversas conviver pacificamente — com a direita controlando o poder político ao longo da maior parte dos últimos 20 anos, e o centro e a esquerda assegurando influência nas cortes, nos meios de comunicação e nas universidades — colapsou”.

Como nos dias do Primeiro e do Segundo Templo, afirmou Shavit, “fanatismos e sectarismos estão nos dividindo e ameaçando destruir a magnífica nação que nós construímos aqui. Então o pesadelo que me desperta no meio da noite não é Budapeste nem Varsóvia — é Beirute”.

Por ter vivido aquele pesadelo em Beirute no fim dos anos 70, eu posso confirmar que essa possibilidade é bastante real em Israel hoje. Se o brinquedo quebrar, a brincadeira acaba — daí não adianta chorar. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Em 12 de setembro, a Suprema Corte de Israel se reunirá para decidir se o golpe contra o poder do Judiciário impingido pelo primeiro-ministro Binyamin Netanyahu é ou não legal. Netanyahu afirmou repetidamente que não atenderá a uma decisão adversa, então, se o tribunal deliberar contra o movimento de sua coalizão, Israel entrará numa crise judicial absoluta.

Os comandantes militares e os chefes do Mossad, do Shin Bet e da polícia terão de decidir a quem serão leais: a uma coalizão política empenhada em um putsch judicial; ou a uma Suprema Corte que decida a preservar sua independência.

Mas mesmo se o tribunal superior decidir que não tem poder para manter sua autoridade, Israel ainda se encontrará numa crise absoluta. Porque Netanyahu e sua coalizão de extrema direita de supremacistas judeus e judeus ultraortodoxos já romperam a cláusula essencial do contrato social que manteve o Estado de Israel unido ao longo dos últimos 75 anos: “viva e deixe viver”.

Ativista carrega bandeira de Israel em protesto contra polêmica reforma do judiciário do governo, Tel Aviv, 17 de agosto de 2023. Foto: JACK GUEZ / AFP

Eu sei bastante coisa a respeito deste princípio. Eu vivi em dois países do Oriente Médio entre o fim dos anos 70 e o fim dos 80 — Líbano e Israel — que mantiveram sua estabilidade por anos respeitando este princípio. Até que não.

Líbano e Israel possuem duas grandes características em comum: são minúsculos em geografia e têm populações incrivelmente diversas — religiosamente, etnicamente, linguisticamente e educacionalmente.

Quando a sua democracia é realmente, eu digo verdadeiramente minúscula, muito, muito pequena mesmo, há apenas uma maneira de manter a estabilidade: todos os diversos atores devem respeitar o princípio “viva e deixe viver”. Ou, como os libaneses descreveram toda vez que alguma facção rompeu esse princípio, mergulhou o país em guerra civil e depois teve de restabelecer o equilíbrio entre vários grupos religiosos, “nenhum vencedor, ninguém derrotado”. Todos têm de se ater a certos limites ao seu alcance.

Ao longo das últimas duas décadas, contudo, a milícia libanesa xiita pró-Irã Hezbollah, cujo nome significa “o partido de Deus”, destroçou esse princípio. O Hezbollah usou sua superioridade em armas e combatentes, assim como o apoio de Teerã, para impor sua autoridade sobre todos os outros partidos e grupos religiosos libaneses. Em vez de “nenhum vencedor, ninguém derrotado”, o Hezbollah impôs um princípio com frequência associado a ditadores africanos: “é a nossa vez de comer”; o que significa dane-se a democracia, é a nossa vez de obter mais do que nos cabe dos recursos do Estado, operando sem supervisão de nenhuma autoridade independente (como um sistema Judiciário).

Apesar das muitas diferenças entre Líbano e Israel, a coalizão de Netanyahu é em si um Partido de Deus — que, apesar de ter vencido as eleições de novembro por meros 30 mil votos num universo de 4,7 milhões de eleitores, decidiu que agora é sua vez de comer. E então ela rompeu o princípio “viva e deixe viver” e começou imediatamente a transferir novos fundos, quantias sem precedentes, para escolas religiosas judaicas ultraortodoxas — sem exigir que as instituições lecionem matemática, ciências, inglês ou civismo democrático — e nomeando ministros com registros criminais e despejando recursos do governo na expansão dos assentamentos coloniais judaicos na Cisjordânia com objetivo de desfazer o processo de paz de Oslo. Isso foi feito simultaneamente à tentativa de furtar da Suprema Corte a capacidade de impedir medidas assim.

Esse tipo de alocação de recursos e concentração de poder não tem precedentes na política israelense. E a manobra parece ainda mais desaforada se considerarmos que ela é feita, em parte, por partidos ultraortodoxos, cujos membros são os cidadãos que menos pagam impostos e menos servem às Forças Armadas .

Até aqui, com poucas exceções, todos conheciam seus limites em Israel: os seculares sabiam até que ponto pressionar os ortodoxos para poder abrir restaurantes no Shabat; os ortodoxos sabiam até que ponto pressionar os seculares contra direitos LGBT+; os colonos na Cisjordânia odiavam os acordos de Oslo mas nunca tentaram desmantelar a Autoridade Palestina, que governa parte da Cisjordânia; e até a Suprema Corte tornou-se muito mais equilibrada ideologicamente nos anos recentes, entre conservadores e progressistas, apesar das declarações enganosas de Netanyahu afirmando o contrário.

Meu amigo David Makovsky, pesquisador sênior do Washington Institute, conta a anedota de que, quando seu filho nasceu, em Jerusalém, em 1998, ele quis estar ao lado de sua mulher, Varda, durante o parto. David ouviu do obstetra que não haveria nenhum problema — contanto que o único enfermeiro ultraortodoxo da maternidade não estivesse no plantão. O médico acompanhou Varda durante o trabalho de parto, disse David, e administrou o tempo para que o bebê chegasse logo após o enfermeiro religioso encerrar o plantão.

“Daí o médico disse para a Varda, ‘É hora de empurrar’”, recordou-se David. “E assim eu pude acompanhar o nascimento do meu filho. Era um microcosmo de Israel no qual as pessoas sustentam princípios mas ainda assim encontram maneiras criativas de coexistir.”

Ao romper esse equilíbrio “viva e deixe viver” por meio de pura força — graças a uma minúscula e transitória vantagem política no Parlamento — Netanyahu e sua coalizão violaram algo muito mais importante do que uma lei, violaram a norma não escrita que mantém o Estado de Israel unido. É difícil vislumbrar como o país poderá ser o mesmo algum dia.

Primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, em reunião semanal do governo, 30 de julho de 2023 Foto: ABIR SULTAN/Pool via REUTERS

Se a Suprema Corte declarar que não tem autoridade para impedir o golpe judicial ou se Netanyahu se recusar a obedecer uma decisão contrária à sua tomada de poder, o sistema israelense — já fraturado em razão de tantos reservistas do Exército e da Força Aérea se recusarem a servir um governo que agora consideram ditatorial, não democrático — poderia sair totalmente de controle.

Vejam como Yohanan Plesner, presidente do Israel Democracy Institute, um centro de análise não partidário (do qual sou doador), definiu a situação num ensaio publicado recentemente no website da entidade:

“Um governo eleito acaba de fazer uma mudança constitucional potencialmente abrangente sobre tênues bases partidárias. Não importa o que se pense a respeito da alteração em questão, um limite foi ultrapassado. (…) O fato desta tomada de poder por parte do Executivo ter sido realizada diante dos maiores e mais constantes protestos na história do país, contrariando a vontade de uma maioria do público e a despeito de alertas severos de especialistas em segurança, direito e economia, evidencia a magnitude da ameaça para milhões de israelenses.”

Plesner acrescentou — numa análise com ecos reais também sobre a democracia americana — que deste ponto adiante “toda vez que um cidadão israelense for às urnas, o fará com a amedrontadora nova consciência de que o preço de sua derrota poderá ser seu modo de vida. Um homem religioso votará com medo de que um governo de lideranças seculares possa minar o caráter judaico do Estado se optar por isso. Uma mulher secular votará temendo as consequências de uma vitória da direita sobre seus direitos”.

Além disso, os direitos do 1,6 milhão de cidadãos árabe-israelenses, dos quais a Suprema Corte de Israel tem sido protetora vital, poderiam portanto estar à mercê da maioria judaica se essa nova legislação for mantida. Isso nunca, jamais deveria ter acontecido em um país “viva e deixe viver” tão diverso.

“Eleições não devem ser uma competição em que o vencedor ganha tudo e o perdedor arrisca perder tudo”, concluiu Plesner. “Isso não é democracia, é receita para uma guerra civil.”

E eu perguntei ao escritor e ensaísta israelense Ari Shavit o que ele mais teme hoje em seu país. Não é, ressaltou ele, a possibilidade de Israel se tornar uma “ditadura eleitoral — outra Hungria, Polônia ou Rússia. Porque a herança política judaica não pode permitir autoridade por meio de absolutismo e porque a direita radical em Israel não tem poder suficiente para impor sua vontade sobre os progressistas”.

O verdadeiro perigo, argumentou Shavit, é Israel descambar para o caos e se desintegrar.

Israelenses protestam contra reforça do judiciário em Israel, 17 de agosto de 2023. Foto: JACK GUEZ / AFP

“O espectro que paira é o Líbano”, afirmou Shavit. “Nosso vizinho ao norte sofreu uma grande ruptura quando sua delicada ordem intertribal ruiu.” E agora, em Israel, “o compromisso histórico que permitiu às suas comunidades altamente diversas conviver pacificamente — com a direita controlando o poder político ao longo da maior parte dos últimos 20 anos, e o centro e a esquerda assegurando influência nas cortes, nos meios de comunicação e nas universidades — colapsou”.

Como nos dias do Primeiro e do Segundo Templo, afirmou Shavit, “fanatismos e sectarismos estão nos dividindo e ameaçando destruir a magnífica nação que nós construímos aqui. Então o pesadelo que me desperta no meio da noite não é Budapeste nem Varsóvia — é Beirute”.

Por ter vivido aquele pesadelo em Beirute no fim dos anos 70, eu posso confirmar que essa possibilidade é bastante real em Israel hoje. Se o brinquedo quebrar, a brincadeira acaba — daí não adianta chorar. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Em 12 de setembro, a Suprema Corte de Israel se reunirá para decidir se o golpe contra o poder do Judiciário impingido pelo primeiro-ministro Binyamin Netanyahu é ou não legal. Netanyahu afirmou repetidamente que não atenderá a uma decisão adversa, então, se o tribunal deliberar contra o movimento de sua coalizão, Israel entrará numa crise judicial absoluta.

Os comandantes militares e os chefes do Mossad, do Shin Bet e da polícia terão de decidir a quem serão leais: a uma coalizão política empenhada em um putsch judicial; ou a uma Suprema Corte que decida a preservar sua independência.

Mas mesmo se o tribunal superior decidir que não tem poder para manter sua autoridade, Israel ainda se encontrará numa crise absoluta. Porque Netanyahu e sua coalizão de extrema direita de supremacistas judeus e judeus ultraortodoxos já romperam a cláusula essencial do contrato social que manteve o Estado de Israel unido ao longo dos últimos 75 anos: “viva e deixe viver”.

Ativista carrega bandeira de Israel em protesto contra polêmica reforma do judiciário do governo, Tel Aviv, 17 de agosto de 2023. Foto: JACK GUEZ / AFP

Eu sei bastante coisa a respeito deste princípio. Eu vivi em dois países do Oriente Médio entre o fim dos anos 70 e o fim dos 80 — Líbano e Israel — que mantiveram sua estabilidade por anos respeitando este princípio. Até que não.

Líbano e Israel possuem duas grandes características em comum: são minúsculos em geografia e têm populações incrivelmente diversas — religiosamente, etnicamente, linguisticamente e educacionalmente.

Quando a sua democracia é realmente, eu digo verdadeiramente minúscula, muito, muito pequena mesmo, há apenas uma maneira de manter a estabilidade: todos os diversos atores devem respeitar o princípio “viva e deixe viver”. Ou, como os libaneses descreveram toda vez que alguma facção rompeu esse princípio, mergulhou o país em guerra civil e depois teve de restabelecer o equilíbrio entre vários grupos religiosos, “nenhum vencedor, ninguém derrotado”. Todos têm de se ater a certos limites ao seu alcance.

Ao longo das últimas duas décadas, contudo, a milícia libanesa xiita pró-Irã Hezbollah, cujo nome significa “o partido de Deus”, destroçou esse princípio. O Hezbollah usou sua superioridade em armas e combatentes, assim como o apoio de Teerã, para impor sua autoridade sobre todos os outros partidos e grupos religiosos libaneses. Em vez de “nenhum vencedor, ninguém derrotado”, o Hezbollah impôs um princípio com frequência associado a ditadores africanos: “é a nossa vez de comer”; o que significa dane-se a democracia, é a nossa vez de obter mais do que nos cabe dos recursos do Estado, operando sem supervisão de nenhuma autoridade independente (como um sistema Judiciário).

Apesar das muitas diferenças entre Líbano e Israel, a coalizão de Netanyahu é em si um Partido de Deus — que, apesar de ter vencido as eleições de novembro por meros 30 mil votos num universo de 4,7 milhões de eleitores, decidiu que agora é sua vez de comer. E então ela rompeu o princípio “viva e deixe viver” e começou imediatamente a transferir novos fundos, quantias sem precedentes, para escolas religiosas judaicas ultraortodoxas — sem exigir que as instituições lecionem matemática, ciências, inglês ou civismo democrático — e nomeando ministros com registros criminais e despejando recursos do governo na expansão dos assentamentos coloniais judaicos na Cisjordânia com objetivo de desfazer o processo de paz de Oslo. Isso foi feito simultaneamente à tentativa de furtar da Suprema Corte a capacidade de impedir medidas assim.

Esse tipo de alocação de recursos e concentração de poder não tem precedentes na política israelense. E a manobra parece ainda mais desaforada se considerarmos que ela é feita, em parte, por partidos ultraortodoxos, cujos membros são os cidadãos que menos pagam impostos e menos servem às Forças Armadas .

Até aqui, com poucas exceções, todos conheciam seus limites em Israel: os seculares sabiam até que ponto pressionar os ortodoxos para poder abrir restaurantes no Shabat; os ortodoxos sabiam até que ponto pressionar os seculares contra direitos LGBT+; os colonos na Cisjordânia odiavam os acordos de Oslo mas nunca tentaram desmantelar a Autoridade Palestina, que governa parte da Cisjordânia; e até a Suprema Corte tornou-se muito mais equilibrada ideologicamente nos anos recentes, entre conservadores e progressistas, apesar das declarações enganosas de Netanyahu afirmando o contrário.

Meu amigo David Makovsky, pesquisador sênior do Washington Institute, conta a anedota de que, quando seu filho nasceu, em Jerusalém, em 1998, ele quis estar ao lado de sua mulher, Varda, durante o parto. David ouviu do obstetra que não haveria nenhum problema — contanto que o único enfermeiro ultraortodoxo da maternidade não estivesse no plantão. O médico acompanhou Varda durante o trabalho de parto, disse David, e administrou o tempo para que o bebê chegasse logo após o enfermeiro religioso encerrar o plantão.

“Daí o médico disse para a Varda, ‘É hora de empurrar’”, recordou-se David. “E assim eu pude acompanhar o nascimento do meu filho. Era um microcosmo de Israel no qual as pessoas sustentam princípios mas ainda assim encontram maneiras criativas de coexistir.”

Ao romper esse equilíbrio “viva e deixe viver” por meio de pura força — graças a uma minúscula e transitória vantagem política no Parlamento — Netanyahu e sua coalizão violaram algo muito mais importante do que uma lei, violaram a norma não escrita que mantém o Estado de Israel unido. É difícil vislumbrar como o país poderá ser o mesmo algum dia.

Primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, em reunião semanal do governo, 30 de julho de 2023 Foto: ABIR SULTAN/Pool via REUTERS

Se a Suprema Corte declarar que não tem autoridade para impedir o golpe judicial ou se Netanyahu se recusar a obedecer uma decisão contrária à sua tomada de poder, o sistema israelense — já fraturado em razão de tantos reservistas do Exército e da Força Aérea se recusarem a servir um governo que agora consideram ditatorial, não democrático — poderia sair totalmente de controle.

Vejam como Yohanan Plesner, presidente do Israel Democracy Institute, um centro de análise não partidário (do qual sou doador), definiu a situação num ensaio publicado recentemente no website da entidade:

“Um governo eleito acaba de fazer uma mudança constitucional potencialmente abrangente sobre tênues bases partidárias. Não importa o que se pense a respeito da alteração em questão, um limite foi ultrapassado. (…) O fato desta tomada de poder por parte do Executivo ter sido realizada diante dos maiores e mais constantes protestos na história do país, contrariando a vontade de uma maioria do público e a despeito de alertas severos de especialistas em segurança, direito e economia, evidencia a magnitude da ameaça para milhões de israelenses.”

Plesner acrescentou — numa análise com ecos reais também sobre a democracia americana — que deste ponto adiante “toda vez que um cidadão israelense for às urnas, o fará com a amedrontadora nova consciência de que o preço de sua derrota poderá ser seu modo de vida. Um homem religioso votará com medo de que um governo de lideranças seculares possa minar o caráter judaico do Estado se optar por isso. Uma mulher secular votará temendo as consequências de uma vitória da direita sobre seus direitos”.

Além disso, os direitos do 1,6 milhão de cidadãos árabe-israelenses, dos quais a Suprema Corte de Israel tem sido protetora vital, poderiam portanto estar à mercê da maioria judaica se essa nova legislação for mantida. Isso nunca, jamais deveria ter acontecido em um país “viva e deixe viver” tão diverso.

“Eleições não devem ser uma competição em que o vencedor ganha tudo e o perdedor arrisca perder tudo”, concluiu Plesner. “Isso não é democracia, é receita para uma guerra civil.”

E eu perguntei ao escritor e ensaísta israelense Ari Shavit o que ele mais teme hoje em seu país. Não é, ressaltou ele, a possibilidade de Israel se tornar uma “ditadura eleitoral — outra Hungria, Polônia ou Rússia. Porque a herança política judaica não pode permitir autoridade por meio de absolutismo e porque a direita radical em Israel não tem poder suficiente para impor sua vontade sobre os progressistas”.

O verdadeiro perigo, argumentou Shavit, é Israel descambar para o caos e se desintegrar.

Israelenses protestam contra reforça do judiciário em Israel, 17 de agosto de 2023. Foto: JACK GUEZ / AFP

“O espectro que paira é o Líbano”, afirmou Shavit. “Nosso vizinho ao norte sofreu uma grande ruptura quando sua delicada ordem intertribal ruiu.” E agora, em Israel, “o compromisso histórico que permitiu às suas comunidades altamente diversas conviver pacificamente — com a direita controlando o poder político ao longo da maior parte dos últimos 20 anos, e o centro e a esquerda assegurando influência nas cortes, nos meios de comunicação e nas universidades — colapsou”.

Como nos dias do Primeiro e do Segundo Templo, afirmou Shavit, “fanatismos e sectarismos estão nos dividindo e ameaçando destruir a magnífica nação que nós construímos aqui. Então o pesadelo que me desperta no meio da noite não é Budapeste nem Varsóvia — é Beirute”.

Por ter vivido aquele pesadelo em Beirute no fim dos anos 70, eu posso confirmar que essa possibilidade é bastante real em Israel hoje. Se o brinquedo quebrar, a brincadeira acaba — daí não adianta chorar. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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