O que o Kremlin quer dos russos agora se resume a duas coisas.
Os homens devem se alistar no Exército.
As mulheres devem ter mais filhos.
Nos meses recentes, o governo russo dobrou o valor dos bônus para o alistamento de soldados profissionais e impregnou TVs, rádios, redes sociais e as ruas das cidades com anúncios de recrutamento. E uma nova lei permite a suspeitos de crimes evitar julgamento alistando-se para os combates.
Ao mesmo tempo, o presidente Vladimir Putin decretou prioridade nacional aumentar o número de nascimentos de russos, um esforço que inaugurou uma nova fase repressiva na semana passada com uma lei que tornará ilegal qualquer tipo de defesa de estilos de vida sem filhos.
As duas campanhas são distintas, mas na Rússia de tempo de guerra tratam-se também de dois lados de uma mesma moeda: a tentativa cada vez mais agressiva do Kremlin de engajar russos comuns na reconfiguração de seu país para derrotar o Ocidente.
O Exército de Putin precisa de mais soldados para o curto prazo. A força russa tem sofrido mil baixas por dia, segundo estimativas ocidentais, numa guerra de desgaste na Ucrânia que não mostra nenhum sinal de se aproximar do fim.
E para o longo prazo, na visão de Putin, a Rússia precisa de mais gente — para sustentar uma economia cada vez mais isolada do Ocidente, reduzir a dependência do país em relação à imigração e, evidentemente, fornecer uma base de recrutas para guerras futuras.
“Os corpos estão se tornando bens públicos” na Rússia, afirmou o professor Andrei Makarichev, da Universidade de Tartu, na Estônia, que estuda as relações entre os Estados e os corpos das pessoas. “O corpo da mulher é uma fábrica de filhos, e o corpo do homem é a capacidade de puxar o gatilho e, no fim, matar.”
No mês passado, Putin ordenou que o contingente militar da Rússia fosse incrementado em 180 mil soldados, para um total de 1,5 milhão — um número que tornaria o Exército russo o segundo maior do mundo, atrás da China. O Kremlin associou a elevação à “quantidade de ameaças contra o nosso país”.
Mas analistas afirmam que formar um Exército de 1,5 milhão de soldados é irrealista — em grande medida porque a população está diminuindo. A especialista em Forças Armadas russas Dara Massicot, do Fundo Carnegie para a Paz Internacional, argumenta que o desafio da Rússia não será apenas recrutar novos soldados, mas também possuir uma força de trabalho grande o suficiente para fabricar as armas e os equipamentos que um Exército desse tamanho requereria.
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O tema está claramente na cabeça de Putin. Numa conferência na cidade de Vladivostok, na costa russa no Pacífico, no mês passado, Putin elogiou “nossos homens” por, afirmou ele, alistar-se nas Forças Armadas em números “exponencialmente” crescentes. Mas quanto aos nascimentos, o líder russo disse que é preciso melhorar. “É necessário cuidar da população, aumentar o índice de fecundidade”, afirmou ele, “para tornar de bom gosto ter muitos filhos, como costumava ocorrer na Rússia no passado — sete, nove, 10 pessoas nas famílias”.
Economistas e demógrafos têm classificado o declínio da população russa como um grande desafio há muito tempo. Em grande medida isso é parte do legado de uma queda no índice de natalidade em meio ao caos e a pobreza que se seguiram ao fim da União Soviética: uma geração depois, há muito menos mulheres em idade fértil.
Putin fala faz tempo a respeito da necessidade de solucionar esse problema. Mas depois que ele invadiu a Ucrânia, especialmente no ano passado, o tema parece ter virado uma ideia fixa em sua mente.
Em uma reunião televisionada, Putin expressou desaprovação para o governador de Volgogrado, no sudoeste russo, porque o índice de fecundidade por lá “diminuiu duas vezes mais do que a média nacional”.
“Duas vezes é um pouco demais”, disse Putin.
“Estamos trabalhando sobre a questão, Vladimir Vladimirovich”, respondeu o governador, Andrei Bocharov, referindo-se ao presidente por seu patronímico.
Em maio, Putin declarou um objetivo principal do governo aumentar o índice de fecundidade total da Rússia — a métrica para o número de filhos que as mulheres deverão ter em média durante suas vidas — estabelecendo metas de 1,6 em 2030 e 1,8 em 2036. O índice foi de 1,41 na Rússia no ano passado; nos Estados Unidos foi de 1,62.
O número de nascimentos registrado na Rússia no primeiro semestre deste ano, 599.630, foi o mais baixo em 25 anos; no total, incluindo a Crimeia ocupada, a população russa declinou em 1,8 milhão desde 2020, para 146,1 milhões de habitantes.
Da mesma forma que no estímulo ao recrutamento militar, o Kremlin está usando recompensas financeiras para incentivar a procriação. As mulheres russas que têm o primeiro filho recebem US$ 6,7 mil em parcela única. Na segunda-feira, o governo russo anunciou seu orçamento para os próximos três anos destinando mais de US$ 60 bilhões em gastos previstos para dar apoio a mulheres grávidas e famílias com filhos.
Medidas do governo para aumentar a população não são raridade em um mundo no qual muitos países encaram taxas de natalidade em declínio. O índice de fecundidade da Rússia é similar ao de países europeus como Portugal e Grécia.
Mas as autoridades russas estão cada vez mais associando esses esforços ao seu conflito com o Ocidente e à sua simbolização da Rússia enquanto bastião conservador. Alguns membros do governo conclamaram uma “operação demográfica especial” para elevar o número de nascimentos, ecoando o eufemismo do Kremlin para qualificar a invasão à Ucrânia como uma “operação militar especial”.
A presidente da Câmara Alta do Parlamento da Rússia, Valentina Matviienko, talvez a mulher mais poderosa na classe governante predominantemente masculina do país, afirmou que o feminismo ocidental se tornou “um movimento contra os homens, contra os valores tradicionais”.
Na semana passada, os legisladores russos introduziram um projeto legislativo que pretende “proibir propaganda sobre a recusa consciente de ter filhos” e impor multas de até US$ 50 mil aos infratores. Advogados alertaram que o texto da lei é tão ambíguo que até posts em redes sociais sobre depressão pós-parto podem tornar-se ilegais. Mas o Kremlin sinalizou aprovação.
“Uma família grande e unida é a fundação de um Estado forte”, escreveu o presidente da Câmara Baixa do Parlamento russo, Viacheslav Volodin, no aplicativo de troca de mensagens Telegram.
A importância do tamanho da população para a geopolítica de Putin ficou clara nesta guerra contra a Ucrânia, que tem uma população cerca de três vezes menor que a russa. Analistas acreditam que a Rússia tem conseguido em grande medida substituir seus mortos e feridos — cujo número as autoridades ocidentais estimam na casa dos centenas de milhares — por novos recrutas, ao mesmo tempo que desgasta as forças ucranianas em números superiores.
Mesmo que os voluntários mais dispostos já tenham entrado na guerra, o Kremlin ainda parece determinado a evitar uma mobilização forçada de civis como a que desencadeou um êxodo de homens jovens no outono (Hemisfério Norte) de 2022.
Em julho, Putin assinou um decreto dobrando o valor dos bônus para novos recrutas que se alistem para mais de US$ 4,5 mil, o equivalente a quase metade do salário-médio anual dos russos. A cidade de Moscou, onde a campanha de recrutamento foi silenciada por muito tempo para proteger a classe média dos sacrifícios da guerra, introduziu um bônus próprio, de US$ 20 mil, além do pagamento federal.
Postos de recrutamento foram instalados no metrô de Moscou, de acordo com moscovitas e posts em redes sociais retratando a capital. Anúncios prometem isenções de impostos, subsídios universitários e descontos em pagamentos de serviços públicos para os soldados profissionais.
Na quarta-feira, Putin sancionou uma lei criando mais um incentivo: russos indiciados por crimes poderão evitar ser julgados e possíveis sentenças alistando-se para o serviço militar.
Massicot, a analista militar, afirmou que apesar de todos os desafios demográficos da Rússia o tamanho do país significa que “os russos estão mais bem posicionados do que os ucranianos neste momento” em relação aos contingentes nas linhas de combate.
Por agora, a prioridade do governo para envolver a população com os objetivos de Putin parece ser mobilizar mais soldados. Mulheres de todo o país afirmaram em entrevistas e mensagens de texto que notaram mais anúncios e postos de recrutamento militar recentemente, mas que estão céticas sobre o estímulo do governo para famílias maiores.
As autoridades de Moscou “vivem em seu próprio universo, pensando que as famílias tradicionais são como elfos ou algo assim”, afirmou Arina, de 33 anos, que deu à luz recentemente seu segundo filho na região da Ossétia do Norte. Informando apenas seu primeiro nome, por temer retaliações, ela acrescentou: “Nós, as famílias comuns, simplesmente vivemos outra realidade.”/ TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO