O populismo está vencendo a democracia na América Latina; leia a análise


Este ano foi tão perturbador quanto esclarecedor para as democracias latino-americanas

Por Kevin Casas-Zamora*

Os acontecimentos políticos no Peru e no Brasil e tendências preocupantes no México e em El Salvador oferecem um alerta para o que ocorre quando o sistema de partidos fracassa e líderes de fora do sistema assumem o poder com a promessa de acabar com a corrupção estabelecida.

Vamos recapitular os acontecimentos recentes: o Peru viveu uma instabilidade social generalizada com grandes manifestações pedindo a renúncia da presidente. O Brasil tenta descobrir como domar um movimento de extrema direita que se recusa a respeitar as regras da democracia.

Tal recusa pôde ser vista inequivocamente no dia 8 de janeiro, quando alguns dos defensores de Jair Bolsonaro invadiram o congresso, a Suprema Corte e o gabinete presidencial depois que a tentativa de reeleição dele fracassou nas urnas.

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Grupos de bolsonaristas radicais invadem as sedes dos Três Poderes em Brasília  Foto: Wilton Junior/Estadão - 8/1/2023

No México, o presidente Andrés Manuel López Obrador defendeu uma série de medidas que o Congresso (dominado pelo seu movimento político) aprovou em fevereiro e devem limitar os poderes da agência que supervisiona as eleições. E, depois de chegar ao poder em El Salvador, o presidente Nayib Bukele eviscerou praticamente todos os freios e contrapesos, e declarou no ano passado um estado de emergência, suspendendo direitos constitucionais fundamentais.

Mesmo se tratando de casos muito diferentes em si, todos eles são exemplos da amarga colheita na região, resultante da difusão de uma cepa virulenta de populismo nas três décadas mais recentes. Essa cepa, em boa medida enraizada na legítima exasperação dos cidadãos diante da corrupção, desencadeou o caos nos sistemas de partidos e enfraqueceu as próprias instituições necessárias para combater a corrupção e canalizar as demandas sociais de maneira pacífica.

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Hoje, o resultado é claro na América Latina: o remédio oferecido pelo populismo contra a corrupção se tornou pior do que a doença que pretendia combater.

O enfraquecimento dos partidos políticos e a aceitação de líderes messiânicos para se vingar da corrupção nada trouxeram de positivo. Difundiram mais desconfiança em relação a todas as instituições, particularmente aquelas que freiam o poder e processam os conflitos sociais pacificamente. Como resultado, a região vê recuos democráticos, instabilidade política e mais corrupção.

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Sob muitos aspectos, o Peru foi um precursor de tudo isso. Tudo começou em 1990, com a ascensão de Alberto Fujimori, cuja campanha eleitoral prometia combater as elites políticas e econômicas do país, permanecendo no poder por uma década. O movimento ganhou força com a ascensão de Hugo Chávez na Venezuela, poucos anos depois. Desde então, diferentes versões do populismo anticorrupção apareceram nos muitos países da região.

A eleição de Bolsonaro em 2018 para a presidência do Brasil só pode ser entendida no frenesi da atmosfera de combate à corrupção criada pelo escândalo da Lava Jato, o grande esquema de repasse de fundos da empresa estatal do petróleo, Petrobras, para políticos e empreiteiras selecionadas. A operação resultou na prisão (e posterior soltura) de Luiz Inácio Lula da Silva, que foi presidente de 2003 a 2010 e derrotou Bolsonaro nas urnas no ano passado para reassumir a presidência em janeiro.

Fenômenos semelhantes ajudam a explicar a ascensão de forasteiros que se candidataram sob a promessa de erradicar a corrupção no establishment político, como López Obrador no México, Bukele em El Salvador ou Rodrigo Chaves na Costa Rica.

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A ascensão de forasteiros populistas não é apenas um sinal claro de um sistema de partidos afetado por graves problemas de credibilidade. É também um potente acelerador desse processo. Atualmente, em muitas democracias da região, os sistemas de partidos foram de fato pulverizados.

Protesto contra o presidente Pedro Castillo em frente ao Palácio da Justiça, em Lima, em 8 de outubro de 2021; Congresso decidiu destituí-lo  Foto: Angela Ponce/Reuters

Ao longo das duas décadas mais recentes, o Peru não teve partidos estáveis, e sim uma ciranda de lideranças emergentes disputando fatias cada vez menores do poder. Os dois candidatos que chegaram ao segundo turno na eleição presidencial de 2021 — Pedro Castillo e Keiko Fujimori — receberam, juntos, cerca de um terço do total de votos do primeiro turno. Castillo foi eleito, mas sofreu impeachment em dezembro e foi substituído pela vice-presidente, Dina Boluarte, que não pertence a nenhum partido político.

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No Brasil, Lula está lidando com um Congresso formado por 21 partidos. Ele teve sorte: no governo anterior, eram 30 partidos no Congresso.

A fraqueza fatal dos sistemas de partidos dificulta muito a formação de maiorias legislativas e o ato de governar. O resultado quase inevitável é a proliferação de demandas sociais negligenciadas e um crescente nível de insatisfação com a política. Não surpreende que, em muitos lugares da América Latina, as ruas substituíram as instituições representativas como espaço natural para dar vazão às pressões acumuladas pedindo por serviços públicos melhores e pelo combate às profundas desigualdades.

Peru ilustra bem essa história: o país teve seis presidentes desde 2016, e viu uma implosão da ordem pública que levou à morte de pelo menos 48 civis desde o início das manifestações, em dezembro.

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Percepção

A percepção segundo a qual o establishment não passa de uma camarilha egoísta que deve ser defenestrada é um dos principais fatores que impulsionam o populismo na América Latina. O levantamento AmericasBarometer, que pesquisa toda a América, mostra que em 2021, 65% dos latino-americanos acreditavam que mais da metade dos políticos seria corrupta, proporção que chega a 88% no Peru e 79% no Brasil.

De maneira semelhante, os partidos contam com a confiança de apenas 13% dos latino-americanos, e as assembleias legislativas, apenas 20%, com os números mais baixos da região observados no Peru, de acordo com dados de 2020 da pesquisa regional Latinobarómetro.

O colapso dos sistemas de partidos leva ao surgimento de forasteiros messiânicos que aceleram a erosão da democracia sob o pretexto de salvá-la da decadência. Como todos os populistas, a safra atual na América Latina desdenha das instituições, vistas como facilitadoras de uma corrupção que somente eles podem impedir, nas palavras memoráveis de Donald Trump. Para os populistas, os freios e contrapesos que definem uma democracia são luxos supérfluos ou, pior ainda, distorções que impedem a voz do povo de ser ouvida.

Deterioração

Trata-se de uma receita perigosa para a democracia e uma perspectiva terrível para quem se importa com o combate à corrupção, que prospera onde o poder não encontra limites. A América Latina precisa de mais freios e contrapesos e mais respeito ao estado de direito, e não menos.

Ao longo dos dez anos mais recentes, a qualidade do estado de direito e a independência judicial estagnaram ou se deterioraram na grande maioria dos países da região, de acordo com o Banco Mundial, o World Justice Project e a International IDEA, organização de defesa da democracia que eu lidero. O mesmo vale para a liberdade de imprensa. Desde 2013, a liberdade da mídia foi reduzida em 15 dos 18 países latino-americanos, de acordo com a Repórteres Sem Fronteiras.

Assim, não surpreende que a América Latina apresente desempenho pior do que há dez anos em se tratando de combater a corrupção. Em 2013, a pontuação da América Latina no quesito controle da corrupção se situava no percentil 57,2 em escala global, de acordo com os indicadores de governança do Banco Mundial. Já em 2021, tinha caído para o 49,8 percentil. Isso condiz com os dados para o Brasil, El Salvador e México, onde o indicador apresentou queda depois que supostos campeões do combate à corrupção chegaram ao poder.

Sem se dar conta, foi Lopez Obrador quem enunciou uma descrição que se aplica a boa parte da América Latina: “Ainda temos corrupção, mas não é a mesma coisa”. Ele tem razão. Não é a mesma coisa, pois os mecanismos de responsabilização, o escrutínio da imprensa em respeito ao estado de direito se encontram em pior situação do que há alguns anos.

Se os políticos e as sociedades latino-americanas falarem sério a respeito dos graves problemas de corrupção que afligem a região, devem escapar desse ciclo vicioso. Precisam erguer instituições como robustos partidos políticos, judiciários independentes, autoridades eleitorais imparciais e sólidas proteções jurídicas para a liberdade de imprensa e o ativismo cívico. Em outras palavras, tudo aquilo que os populistas atacam incessantemente.

*Foi vice-presidente da Costa Rica e é secretário-geral do International Institute for Democracy and Electoral Assistance (International IDEA), com sede em Estocolmo

Os acontecimentos políticos no Peru e no Brasil e tendências preocupantes no México e em El Salvador oferecem um alerta para o que ocorre quando o sistema de partidos fracassa e líderes de fora do sistema assumem o poder com a promessa de acabar com a corrupção estabelecida.

Vamos recapitular os acontecimentos recentes: o Peru viveu uma instabilidade social generalizada com grandes manifestações pedindo a renúncia da presidente. O Brasil tenta descobrir como domar um movimento de extrema direita que se recusa a respeitar as regras da democracia.

Tal recusa pôde ser vista inequivocamente no dia 8 de janeiro, quando alguns dos defensores de Jair Bolsonaro invadiram o congresso, a Suprema Corte e o gabinete presidencial depois que a tentativa de reeleição dele fracassou nas urnas.

Grupos de bolsonaristas radicais invadem as sedes dos Três Poderes em Brasília  Foto: Wilton Junior/Estadão - 8/1/2023

No México, o presidente Andrés Manuel López Obrador defendeu uma série de medidas que o Congresso (dominado pelo seu movimento político) aprovou em fevereiro e devem limitar os poderes da agência que supervisiona as eleições. E, depois de chegar ao poder em El Salvador, o presidente Nayib Bukele eviscerou praticamente todos os freios e contrapesos, e declarou no ano passado um estado de emergência, suspendendo direitos constitucionais fundamentais.

Mesmo se tratando de casos muito diferentes em si, todos eles são exemplos da amarga colheita na região, resultante da difusão de uma cepa virulenta de populismo nas três décadas mais recentes. Essa cepa, em boa medida enraizada na legítima exasperação dos cidadãos diante da corrupção, desencadeou o caos nos sistemas de partidos e enfraqueceu as próprias instituições necessárias para combater a corrupção e canalizar as demandas sociais de maneira pacífica.

Hoje, o resultado é claro na América Latina: o remédio oferecido pelo populismo contra a corrupção se tornou pior do que a doença que pretendia combater.

O enfraquecimento dos partidos políticos e a aceitação de líderes messiânicos para se vingar da corrupção nada trouxeram de positivo. Difundiram mais desconfiança em relação a todas as instituições, particularmente aquelas que freiam o poder e processam os conflitos sociais pacificamente. Como resultado, a região vê recuos democráticos, instabilidade política e mais corrupção.

Sob muitos aspectos, o Peru foi um precursor de tudo isso. Tudo começou em 1990, com a ascensão de Alberto Fujimori, cuja campanha eleitoral prometia combater as elites políticas e econômicas do país, permanecendo no poder por uma década. O movimento ganhou força com a ascensão de Hugo Chávez na Venezuela, poucos anos depois. Desde então, diferentes versões do populismo anticorrupção apareceram nos muitos países da região.

A eleição de Bolsonaro em 2018 para a presidência do Brasil só pode ser entendida no frenesi da atmosfera de combate à corrupção criada pelo escândalo da Lava Jato, o grande esquema de repasse de fundos da empresa estatal do petróleo, Petrobras, para políticos e empreiteiras selecionadas. A operação resultou na prisão (e posterior soltura) de Luiz Inácio Lula da Silva, que foi presidente de 2003 a 2010 e derrotou Bolsonaro nas urnas no ano passado para reassumir a presidência em janeiro.

Fenômenos semelhantes ajudam a explicar a ascensão de forasteiros que se candidataram sob a promessa de erradicar a corrupção no establishment político, como López Obrador no México, Bukele em El Salvador ou Rodrigo Chaves na Costa Rica.

A ascensão de forasteiros populistas não é apenas um sinal claro de um sistema de partidos afetado por graves problemas de credibilidade. É também um potente acelerador desse processo. Atualmente, em muitas democracias da região, os sistemas de partidos foram de fato pulverizados.

Protesto contra o presidente Pedro Castillo em frente ao Palácio da Justiça, em Lima, em 8 de outubro de 2021; Congresso decidiu destituí-lo  Foto: Angela Ponce/Reuters

Ao longo das duas décadas mais recentes, o Peru não teve partidos estáveis, e sim uma ciranda de lideranças emergentes disputando fatias cada vez menores do poder. Os dois candidatos que chegaram ao segundo turno na eleição presidencial de 2021 — Pedro Castillo e Keiko Fujimori — receberam, juntos, cerca de um terço do total de votos do primeiro turno. Castillo foi eleito, mas sofreu impeachment em dezembro e foi substituído pela vice-presidente, Dina Boluarte, que não pertence a nenhum partido político.

No Brasil, Lula está lidando com um Congresso formado por 21 partidos. Ele teve sorte: no governo anterior, eram 30 partidos no Congresso.

A fraqueza fatal dos sistemas de partidos dificulta muito a formação de maiorias legislativas e o ato de governar. O resultado quase inevitável é a proliferação de demandas sociais negligenciadas e um crescente nível de insatisfação com a política. Não surpreende que, em muitos lugares da América Latina, as ruas substituíram as instituições representativas como espaço natural para dar vazão às pressões acumuladas pedindo por serviços públicos melhores e pelo combate às profundas desigualdades.

Peru ilustra bem essa história: o país teve seis presidentes desde 2016, e viu uma implosão da ordem pública que levou à morte de pelo menos 48 civis desde o início das manifestações, em dezembro.

Percepção

A percepção segundo a qual o establishment não passa de uma camarilha egoísta que deve ser defenestrada é um dos principais fatores que impulsionam o populismo na América Latina. O levantamento AmericasBarometer, que pesquisa toda a América, mostra que em 2021, 65% dos latino-americanos acreditavam que mais da metade dos políticos seria corrupta, proporção que chega a 88% no Peru e 79% no Brasil.

De maneira semelhante, os partidos contam com a confiança de apenas 13% dos latino-americanos, e as assembleias legislativas, apenas 20%, com os números mais baixos da região observados no Peru, de acordo com dados de 2020 da pesquisa regional Latinobarómetro.

O colapso dos sistemas de partidos leva ao surgimento de forasteiros messiânicos que aceleram a erosão da democracia sob o pretexto de salvá-la da decadência. Como todos os populistas, a safra atual na América Latina desdenha das instituições, vistas como facilitadoras de uma corrupção que somente eles podem impedir, nas palavras memoráveis de Donald Trump. Para os populistas, os freios e contrapesos que definem uma democracia são luxos supérfluos ou, pior ainda, distorções que impedem a voz do povo de ser ouvida.

Deterioração

Trata-se de uma receita perigosa para a democracia e uma perspectiva terrível para quem se importa com o combate à corrupção, que prospera onde o poder não encontra limites. A América Latina precisa de mais freios e contrapesos e mais respeito ao estado de direito, e não menos.

Ao longo dos dez anos mais recentes, a qualidade do estado de direito e a independência judicial estagnaram ou se deterioraram na grande maioria dos países da região, de acordo com o Banco Mundial, o World Justice Project e a International IDEA, organização de defesa da democracia que eu lidero. O mesmo vale para a liberdade de imprensa. Desde 2013, a liberdade da mídia foi reduzida em 15 dos 18 países latino-americanos, de acordo com a Repórteres Sem Fronteiras.

Assim, não surpreende que a América Latina apresente desempenho pior do que há dez anos em se tratando de combater a corrupção. Em 2013, a pontuação da América Latina no quesito controle da corrupção se situava no percentil 57,2 em escala global, de acordo com os indicadores de governança do Banco Mundial. Já em 2021, tinha caído para o 49,8 percentil. Isso condiz com os dados para o Brasil, El Salvador e México, onde o indicador apresentou queda depois que supostos campeões do combate à corrupção chegaram ao poder.

Sem se dar conta, foi Lopez Obrador quem enunciou uma descrição que se aplica a boa parte da América Latina: “Ainda temos corrupção, mas não é a mesma coisa”. Ele tem razão. Não é a mesma coisa, pois os mecanismos de responsabilização, o escrutínio da imprensa em respeito ao estado de direito se encontram em pior situação do que há alguns anos.

Se os políticos e as sociedades latino-americanas falarem sério a respeito dos graves problemas de corrupção que afligem a região, devem escapar desse ciclo vicioso. Precisam erguer instituições como robustos partidos políticos, judiciários independentes, autoridades eleitorais imparciais e sólidas proteções jurídicas para a liberdade de imprensa e o ativismo cívico. Em outras palavras, tudo aquilo que os populistas atacam incessantemente.

*Foi vice-presidente da Costa Rica e é secretário-geral do International Institute for Democracy and Electoral Assistance (International IDEA), com sede em Estocolmo

Os acontecimentos políticos no Peru e no Brasil e tendências preocupantes no México e em El Salvador oferecem um alerta para o que ocorre quando o sistema de partidos fracassa e líderes de fora do sistema assumem o poder com a promessa de acabar com a corrupção estabelecida.

Vamos recapitular os acontecimentos recentes: o Peru viveu uma instabilidade social generalizada com grandes manifestações pedindo a renúncia da presidente. O Brasil tenta descobrir como domar um movimento de extrema direita que se recusa a respeitar as regras da democracia.

Tal recusa pôde ser vista inequivocamente no dia 8 de janeiro, quando alguns dos defensores de Jair Bolsonaro invadiram o congresso, a Suprema Corte e o gabinete presidencial depois que a tentativa de reeleição dele fracassou nas urnas.

Grupos de bolsonaristas radicais invadem as sedes dos Três Poderes em Brasília  Foto: Wilton Junior/Estadão - 8/1/2023

No México, o presidente Andrés Manuel López Obrador defendeu uma série de medidas que o Congresso (dominado pelo seu movimento político) aprovou em fevereiro e devem limitar os poderes da agência que supervisiona as eleições. E, depois de chegar ao poder em El Salvador, o presidente Nayib Bukele eviscerou praticamente todos os freios e contrapesos, e declarou no ano passado um estado de emergência, suspendendo direitos constitucionais fundamentais.

Mesmo se tratando de casos muito diferentes em si, todos eles são exemplos da amarga colheita na região, resultante da difusão de uma cepa virulenta de populismo nas três décadas mais recentes. Essa cepa, em boa medida enraizada na legítima exasperação dos cidadãos diante da corrupção, desencadeou o caos nos sistemas de partidos e enfraqueceu as próprias instituições necessárias para combater a corrupção e canalizar as demandas sociais de maneira pacífica.

Hoje, o resultado é claro na América Latina: o remédio oferecido pelo populismo contra a corrupção se tornou pior do que a doença que pretendia combater.

O enfraquecimento dos partidos políticos e a aceitação de líderes messiânicos para se vingar da corrupção nada trouxeram de positivo. Difundiram mais desconfiança em relação a todas as instituições, particularmente aquelas que freiam o poder e processam os conflitos sociais pacificamente. Como resultado, a região vê recuos democráticos, instabilidade política e mais corrupção.

Sob muitos aspectos, o Peru foi um precursor de tudo isso. Tudo começou em 1990, com a ascensão de Alberto Fujimori, cuja campanha eleitoral prometia combater as elites políticas e econômicas do país, permanecendo no poder por uma década. O movimento ganhou força com a ascensão de Hugo Chávez na Venezuela, poucos anos depois. Desde então, diferentes versões do populismo anticorrupção apareceram nos muitos países da região.

A eleição de Bolsonaro em 2018 para a presidência do Brasil só pode ser entendida no frenesi da atmosfera de combate à corrupção criada pelo escândalo da Lava Jato, o grande esquema de repasse de fundos da empresa estatal do petróleo, Petrobras, para políticos e empreiteiras selecionadas. A operação resultou na prisão (e posterior soltura) de Luiz Inácio Lula da Silva, que foi presidente de 2003 a 2010 e derrotou Bolsonaro nas urnas no ano passado para reassumir a presidência em janeiro.

Fenômenos semelhantes ajudam a explicar a ascensão de forasteiros que se candidataram sob a promessa de erradicar a corrupção no establishment político, como López Obrador no México, Bukele em El Salvador ou Rodrigo Chaves na Costa Rica.

A ascensão de forasteiros populistas não é apenas um sinal claro de um sistema de partidos afetado por graves problemas de credibilidade. É também um potente acelerador desse processo. Atualmente, em muitas democracias da região, os sistemas de partidos foram de fato pulverizados.

Protesto contra o presidente Pedro Castillo em frente ao Palácio da Justiça, em Lima, em 8 de outubro de 2021; Congresso decidiu destituí-lo  Foto: Angela Ponce/Reuters

Ao longo das duas décadas mais recentes, o Peru não teve partidos estáveis, e sim uma ciranda de lideranças emergentes disputando fatias cada vez menores do poder. Os dois candidatos que chegaram ao segundo turno na eleição presidencial de 2021 — Pedro Castillo e Keiko Fujimori — receberam, juntos, cerca de um terço do total de votos do primeiro turno. Castillo foi eleito, mas sofreu impeachment em dezembro e foi substituído pela vice-presidente, Dina Boluarte, que não pertence a nenhum partido político.

No Brasil, Lula está lidando com um Congresso formado por 21 partidos. Ele teve sorte: no governo anterior, eram 30 partidos no Congresso.

A fraqueza fatal dos sistemas de partidos dificulta muito a formação de maiorias legislativas e o ato de governar. O resultado quase inevitável é a proliferação de demandas sociais negligenciadas e um crescente nível de insatisfação com a política. Não surpreende que, em muitos lugares da América Latina, as ruas substituíram as instituições representativas como espaço natural para dar vazão às pressões acumuladas pedindo por serviços públicos melhores e pelo combate às profundas desigualdades.

Peru ilustra bem essa história: o país teve seis presidentes desde 2016, e viu uma implosão da ordem pública que levou à morte de pelo menos 48 civis desde o início das manifestações, em dezembro.

Percepção

A percepção segundo a qual o establishment não passa de uma camarilha egoísta que deve ser defenestrada é um dos principais fatores que impulsionam o populismo na América Latina. O levantamento AmericasBarometer, que pesquisa toda a América, mostra que em 2021, 65% dos latino-americanos acreditavam que mais da metade dos políticos seria corrupta, proporção que chega a 88% no Peru e 79% no Brasil.

De maneira semelhante, os partidos contam com a confiança de apenas 13% dos latino-americanos, e as assembleias legislativas, apenas 20%, com os números mais baixos da região observados no Peru, de acordo com dados de 2020 da pesquisa regional Latinobarómetro.

O colapso dos sistemas de partidos leva ao surgimento de forasteiros messiânicos que aceleram a erosão da democracia sob o pretexto de salvá-la da decadência. Como todos os populistas, a safra atual na América Latina desdenha das instituições, vistas como facilitadoras de uma corrupção que somente eles podem impedir, nas palavras memoráveis de Donald Trump. Para os populistas, os freios e contrapesos que definem uma democracia são luxos supérfluos ou, pior ainda, distorções que impedem a voz do povo de ser ouvida.

Deterioração

Trata-se de uma receita perigosa para a democracia e uma perspectiva terrível para quem se importa com o combate à corrupção, que prospera onde o poder não encontra limites. A América Latina precisa de mais freios e contrapesos e mais respeito ao estado de direito, e não menos.

Ao longo dos dez anos mais recentes, a qualidade do estado de direito e a independência judicial estagnaram ou se deterioraram na grande maioria dos países da região, de acordo com o Banco Mundial, o World Justice Project e a International IDEA, organização de defesa da democracia que eu lidero. O mesmo vale para a liberdade de imprensa. Desde 2013, a liberdade da mídia foi reduzida em 15 dos 18 países latino-americanos, de acordo com a Repórteres Sem Fronteiras.

Assim, não surpreende que a América Latina apresente desempenho pior do que há dez anos em se tratando de combater a corrupção. Em 2013, a pontuação da América Latina no quesito controle da corrupção se situava no percentil 57,2 em escala global, de acordo com os indicadores de governança do Banco Mundial. Já em 2021, tinha caído para o 49,8 percentil. Isso condiz com os dados para o Brasil, El Salvador e México, onde o indicador apresentou queda depois que supostos campeões do combate à corrupção chegaram ao poder.

Sem se dar conta, foi Lopez Obrador quem enunciou uma descrição que se aplica a boa parte da América Latina: “Ainda temos corrupção, mas não é a mesma coisa”. Ele tem razão. Não é a mesma coisa, pois os mecanismos de responsabilização, o escrutínio da imprensa em respeito ao estado de direito se encontram em pior situação do que há alguns anos.

Se os políticos e as sociedades latino-americanas falarem sério a respeito dos graves problemas de corrupção que afligem a região, devem escapar desse ciclo vicioso. Precisam erguer instituições como robustos partidos políticos, judiciários independentes, autoridades eleitorais imparciais e sólidas proteções jurídicas para a liberdade de imprensa e o ativismo cívico. Em outras palavras, tudo aquilo que os populistas atacam incessantemente.

*Foi vice-presidente da Costa Rica e é secretário-geral do International Institute for Democracy and Electoral Assistance (International IDEA), com sede em Estocolmo

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