MOSCOU-Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia em 2022, o presidente Vladimir Putin e outras vozes do Kremlin têm ameaçado frequentemente o Ocidente com seu arsenal nuclear.
No primeiro dia da guerra, Putin disse que “quem quer que tente nos impedir, muito menos criar ameaças ao nosso país e ao seu povo, deve saber que a resposta russa será imediata e levará a consequências que vocês nunca viram na história”.
Durante quase dois anos e meio de luta, o Ocidente forneceu à Ucrânia bilhões de dólares em armas avançadas, algumas das quais atingiram o solo russo. E, embora tenha havido mais ameaças do Kremlin - e até mesmo o uso de armas nucleares em testes no campo de batalha em Belarus, logo após a fronteira com a Ucrânia - até agora, a mensagem não passou de uma ameaça.
Mas a atualização da doutrina nuclear da Rússia, aprovada nesta terça-feira, 19, por decreto por Vladimir Putin, é um novo passo na ameaça nuclear.
O que poderia finalmente desencadear uma resposta nuclear?
Ao ser questionado sobre isso em junho por agências de notícias internacionais, Putin apontou para a chamada doutrina nuclear da Rússia.
“Veja o que está escrito lá”, disse ele na sessão de São Petersburgo. “Se as ações de alguém ameaçarem nossa soberania e integridade territorial, consideramos possível usar todos os meios à nossa disposição”.
Por meses, os falcões russos pediram que ele mudasse a doutrina para reduzir o limite para o uso de armas nucleares, e Putin atendeu o pedido.
A doutrina agora diz que um ataque de um Estado não nuclear, se apoiado por uma potência nuclear, será tratado como um ataque conjunto à Rússia. A atualização foi proposta em setembro e aprovada na terça-feira, o milésimo dia da guerra com a Ucrânia.
Ela também segue a decisão de Washington, na segunda-feira, de permitir que a Ucrânia dispare mísseis americanos de longo alcance contra a Rússia.
De acordo com as mudanças, um grande ataque à Rússia com mísseis convencionais, drones ou aeronaves poderia atender aos critérios para uma resposta nuclear, assim como um ataque à Belarus ou qualquer ameaça crítica à soberania da Rússia.
Qualquer agressão contra a Rússia por um estado que seja membro de uma coalizão seria vista por Moscou como uma agressão de todo o grupo.
As atualizações expandem o número de países e coalizões, e os tipos de ameaças militares, sujeitos a uma possível resposta nuclear, de acordo com a agência de notícias estatal Tass.
Ao anunciar a mudança, o Kremlin pediu a outros países que estudassem as alterações. “Este é um texto muito importante”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, de acordo com a Tass, acrescentando que ‘ele deve se tornar objeto de uma análise muito profunda’.
O que é a doutrina nuclear da Rússia?
Formalmente conhecida como “Princípios Básicos da Política de Estado sobre Dissuasão Nuclear”, ela foi assinada por Putin em 2020 e descreve quando a Rússia poderia usar seu arsenal atômico, o maior do mundo.
O documento descreve as armas nucleares como “um meio de dissuasão”, observando que seu uso é uma “medida extrema e obrigatória”. Ele declara que a Rússia “toma todos os esforços necessários para reduzir a ameaça nuclear e evitar o agravamento das relações interestaduais que poderiam desencadear conflitos militares, inclusive nucleares”.
O documento afirma que “a dissuasão nuclear tem o objetivo de proporcionar a compreensão, por parte de um adversário em potencial, da inevitabilidade da retaliação em caso de agressão contra a Federação Russa e/ou seus aliados”.
O que ele diz que desencadeará o uso de armas nucleares?
A Rússia poderia usá-las, diz a doutrina, “em resposta ao uso de armas nucleares e outros tipos de armas de destruição em massa contra ela e/ou seus aliados, bem como no caso de agressão contra a Federação Russa com o uso de armas convencionais quando a própria existência do Estado estiver em perigo”.
O documento diz que as armas nucleares podem ser usadas nas seguintes situações específicas:
- Se forem recebidas informações confiáveis sobre o lançamento de mísseis balísticos visando o território da Rússia ou de seus aliados.
- Se armas nucleares ou outras armas de destruição em massa forem usadas contra a Rússia ou seus aliados.
- Se um ataque inimigo com armas convencionais ameaçar a existência da Rússia.
- Se houver ataques a instalações governamentais ou militares russas de importância crítica que possam prejudicar a capacidade de ataque nuclear retaliatório do país.
O que muda na nova doutrina nuclear da Rússia?
Há pelo menos quatro diferenças principais entre a nova doutrina e a versão de 2020. Primeiro, em vez de se referir a “aliados” de forma mais ampla, a doutrina menciona explicitamente Belarus como protegida pelo guarda-chuva nuclear russo. Ele declarou: “Nós nos reservamos o direito de usar armas nucleares em caso de agressão contra a Rússia e Belarus como membro do Estado da União”.
Belarus tem sido protegida pela dissuasão estendida da Rússia há décadas como parte da Organização do Tratado de Segurança Coletiva; no entanto, a Rússia não mencionou explicitamente o país comandado há 30 anos pelo aliado de Putin, Alexander Lukashenko, em sua doutrina até agora. Isso pode ser emblemático de um relacionamento estratégico cada vez mais próximo entre Moscou e Minsk, já que a Rússia enviou armas nucleares táticas para Belarus este ano.
Segundo Heather Williams, do Centro de estudos Estratégicos para a Guerra, a doutrina russa de 2020 explicou que as armas nucleares poderiam ser usadas contra ataques convencionais “quando a própria existência do Estado estiver em perigo” e a dissuasão nuclear “garante a proteção da soberania nacional e da integridade territorial do Estado”. A principal mudança, segundo Heather, é que a nova nova doutrina deixa de lado essa frase e, em vez disso, afirma que as armas nucleares podem ser usadas contra uma “ameaça crítica à nossa soberania”, uma frase muito mais ampla e ambígua, que confirmaria as suspeitas da estratégia russa de “escalar para desescalar”. “O que isso sugere é que Putin está diminuindo o limite para um possível uso nuclear e, ao mesmo tempo, aumentando a ambiguidade sobre quando as armas nucleares seriam usadas. Isso sinaliza uma disposição de assumir riscos maiores na guerra na Ucrânia e tenta semear a incerteza na mente dos adversários da Rússia”.
Saiba mais
A nova doutrina também responsabiliza Estados terceiros que apoiam ataques convencionais contra a Rússia, mesmo que não sejam eles que estejam conduzindo os ataques - uma clara referência ao fornecimento da Otan e dos EUA de armas à Ucrânia, e à autorização do governo Joe Biden liberando Kiev para usar mísseis de longo alcance americanos contra território russo. Putin disse: “A versão atualizada do documento propõe que a agressão contra a Rússia por qualquer Estado sem armas nucleares, mas com a participação ou apoio de um Estado com armas nucleares, deve ser considerada como um ataque conjunto à Federação Russa”. Essa mudança, em particular, parece claramente direcionada aos membros da Otan que estão armando a Ucrânia na guerra em andamento.
Por fim, a doutrina anterior dizia que as armas nucleares poderiam ser usadas no caso de dados que confirmassem um ataque de mísseis balísticos, mas a nova versão também expande a natureza dos ataques que poderiam justificar o uso nuclear para incluir “ataques aeroespaciais”, como “aeronaves, mísseis e drones”. Isso também parece claramente adaptado à guerra em curso na Ucrânia e uma tentativa de aumentar os riscos para os membros da Otan que apoiam a Ucrânia. “A principal conclusão dessas mudanças na doutrina russa é que elas têm como alvo a Otan no contexto da Ucrânia, sinalizando uma expansão das circunstâncias sob as quais a Rússia usaria armas nucleares e uma maior disposição para aumentar a guerra em andamento”, diz Heather Williams, do Centro Estratégico de Estudos da Guerra.
Algum ataque até agora chegou perto de ultrapassar esse limite?
Como a Rússia atacou partes do nordeste da Ucrânia perto da cidade de Kharkiv, Washington permitiu que Kiev usasse armas de longo alcance fornecidas pelos EUA para ataques em território russo na região da fronteira. Mas esses ataques foram limitados em escopo e não parecem representar uma ameaça existencial que se enquadraria na doutrina nuclear.
No entanto, os falcões em Moscou apontaram uma série de ataques ucranianos a bases aéreas russas que abrigam bombardeiros de longo alcance com capacidade nuclear no início do conflito, bem como ataques recentes a radares de alerta antecipado.
Segundo eles, essas circunstâncias parecem justificar o uso de armas nucleares, conforme estabelecido na doutrina.
As autoridades russas não comentaram sobre os ataques aos alvos mais sensíveis. Os radares de alerta antecipado são projetados para detectar o lançamento de mísseis dos EUA para permitir que a Rússia lance seus próprios mísseis de ponta nuclear antes que eles sejam destruídos.
James Acton, codiretor do programa de política nuclear do Carnegie Endowment, disse em um comentário recente que os ataques ucranianos aos radares de alerta antecipado poderiam levar o Kremlin a pensar que Washington havia incentivado esses ataques para tentar enfraquecer a dissuasão nuclear da Rússia.
“Se Moscou acreditar que Washington pode realizar um ataque preventivo bem-sucedido contra suas forças nucleares, a coceira no dedo no gatilho pode aumentar, assim como o risco de a Rússia lançar um ataque nuclear em grande escala com base em um aviso falso ou mal interpretado”, disse Acton.
Qual o impacto das mudanças na doutrina?
Há meses os falcões de Moscou pedem a revisão da doutrina nuclear da Rússia. O especialista em relações exteriores Dmitri Trenin, do Instituto de Economia Mundial e Relações Internacionais, um think tank de Moscou financiado pelo Estado, sugere revisá-la para declarar que a Rússia poderia atacar primeiro com armas nucleares quando “os principais interesses nacionais estiverem em jogo”, como na Ucrânia.
“A tarefa mais importante no terceiro ano de confronto militar é evitar que a Otan se envolva mais profundamente nele”, escreveu Trenin recentemente. “Se não o fizermos, a inércia da escalada persistente do Ocidente levará a um confronto direto entre as forças armadas da Rússia e da Otan , o que pode levar a uma guerra nuclear global.”
No fórum internacional em São Petersburgo, Sergei Karaganov, especialista em política externa que assessora o Kremlin, também pediu a Putin que alterasse a doutrina para reduzir o limite para o uso de armas nucleares.
“Espero que ela seja alterada em breve para lhe dar o direito formal de responder a qualquer ataque em nosso território com um ataque nuclear”, disse ele ao líder russo. “Espero que essa disposição seja adicionada à nossa doutrina para ajudar a esfriar nossos adversários.”
Karaganov comparou o Ocidente a Sodoma e Gomorra, as cidades bíblicas destruídas por Deus com uma chuva de fogo por causa de sua maldade. “Vamos nos lembrar dessa chuva e tentar fazer com que a humanidade caia em si”, disse ele.
Putin justificou a medida por causa da preocupação com o fato de o Ocidente estar ponderando sobre a possível impelementação de armas nucleares de pequena escala. Putin não deu detalhes específicos, mas seus comentários podem se referir às discussões dos EUA sobre a implantação de mísseis nucleares de baixa potência lançados por submarinos.
Os defensores dizem que essas armas são necessárias para combater as ameaças russas, enquanto os críticos argumentam que elas poderiam diminuir o limite para o uso de armas nucleares pelos EUA e aumentar o risco de guerra.
“Dispositivos nucleares de potência extremamente baixa estão sendo desenvolvidos, e estamos cientes das ideias que circulam nos círculos de especialistas no Ocidente de que esses recursos de ataque poderiam ser usados, e não há nada de particularmente horrível nisso”, disse Putin. “Somos obrigados a tomar conhecimento disso, e estamos respondendo”.
Segundo Heather Williams, do Centro de estudos Estratégicos para a Guerra, “essas mudanças na doutrina nuclear sugerem que a Rússia está dobrando a aposta em sua estratégia de confiar em armas nucleares para fins coercitivos na guerra na Ucrânia”. Por um lado, as ameaças nucleares russas podem ter atrasado o apoio militar ocidental à Ucrânia nos primeiros dias da guerra, após a ameaça de Putin de infligir consequências “como vocês nunca viram em toda a sua história” se o Ocidente interferisse na operação militar especial.
Por outro lado, as ameaças nucleares contínuas não impediram a expansão do apoio da Otan à Ucrânia, juntamente com a expansão da própria aliança. Um exemplo de ameaças fracassadas foram os avisos da Rússia em 2022 de que o fornecimento de mísseis à Ucrânia cruzaria uma “linha vermelha”: Os aliados dos EUA não enfrentaram nenhuma repercussão por fazer isso. Na verdade, essas declarações levaram a consequências indesejadas do ponto de vista de Moscou, como a expansão da Otan.
“A Rússia não vê suas ameaças nucleares como malsucedidas e, em vez disso, se concentra nos ganhos do bullying nuclear. Isso pode incluir a desaceleração da entrega de recursos importantes para a Ucrânia, incluindo tanques, jatos de combate e mísseis”, diz Heather Williams, do Centro de estudos Estratégicos para a Guerra. “Outra possibilidade é que a Rússia pense que as tentativas anteriores de dissuasão fracassaram porque não eram “grandes” o suficiente. Essa é uma consideração particularmente perigosa porque, em algum momento, haverá pressão interna e de reputação para manter uma linha vermelha - e a chance de cuzar essa linha ficaria muito alta”. / AP, AFP e NYT