Análise|O que o best-seller ‘Era Uma Vez um Sonho’, de J.D. Vance, diz sobre o candidato a vice de Trump


Senador, anunciado para chapa republicana nesta segunda-feira, passou por ‘reviravolta ideológica’, o que fez com que ele se voltasse contra os maiores fãs de seu livro, os liberais

Por A.O. Scott
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - “Não sou um senador, um governador ou um ex-secretário de gabinete”, J.D. Vance escreveu na primeira página de Era Uma Vez um Sonho ( “Hillbilly Elegy”, no título original), como uma forma de se mostrar como um cara comum.

Tudo isso era verdade em 2016, quando Vance era um ex-fuzileiro naval e graduado pela Faculdade de Direito de Yale, com “um bom emprego, um casamento feliz, uma casa confortável e dois cachorros animados”. Hoje, oito anos depois, sua autobiografia pode ser lida de uma forma um pouco diferente.

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Isso se deve parcialmente ao fato de Vance ser, de fato, um senador e também, desde esta segunda-feira, 15, o candidato republicano à vice-presidência. Muito tem se falado sobre sua evolução política ao longo dos últimos oito anos. Vance foi de um conservador anti-Trump a um adepto fiel do lema “Fazer a América Grande De Novo”.

Enquanto os críticos de Vance enxergam isso como oportunismo descarado, ele explicou suas mudanças ideológicas como resultado de um duplo despertar intelectual: ele se deu conta que Donald Trump não era tão ruim quanto pensava, e que os liberais americanos eram muito piores do que ele imaginava.

Essa reviravolta é notável porque parte da lenda do seu livro Era Uma Vez um Sonho é que os liberais eram seu público-alvo e seus maiores fãs. Publicado por uma grande editora, respeitosamente resenhado e amplamente discutido, o livro era tanto uma mensagem ao establishment quanto uma tentativa de ser aceito na elite.

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A autobiografia de Vance conta a história de duas migrações. Uma é o movimento em larga escala de brancos pobres, entre eles os avós maternos do autor, da área rural dos Apalaches para as cidades e vilas do meio-oeste americano. A outra é a trajetória de Vance de um desses lugares — Middletown, Ohio — para o seio da classe dominante americana: New Haven; Vale do Silício; Washington, D.C.

Na medida em que Era Uma Vez um Sonho é uma narrativa de superação — a crônica da ascensão de uma pessoa jovem diante da adversidade — ela pode ser lida como uma tentativa de ser aceito na elite americana. Um leitor imaginário, confortavelmente acomodado em seu privilégio elitista, ficará satisfeito em saber que esse ambicioso cidadão de Ohio agora senta perto dele e ficou fascinado pela história de como Vance chegou lá.

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Uma infância difícil

O conto é doloroso, mas também inspirador. A infância de Vance foi assombrada pela luta de sua mãe contra o vício em heroína, mas ele foi salvo por seus amorosos avós, em particular pela sua avó determinada e de língua afiada, Mamaw, cujo retrato é a realização literária mais memorável do livro.

Mamaw, o Corpo de Fuzileiros Navais e a Universidade Estadual de Ohio tiraram o jovem J.D. de Middletown e ajudaram a dar a ele confiança e habilidades para escrever Era Uma Vez um Sonho.

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O senador J.D. Vance, de Ohio, foi anunciado nesta segunda-feira, 15, como candidato à vice-presidência dos EUA na chapa republicana ao lado de Donald Trump. Foto: Anna Moneymaker/Getty Images via AFP

Parte da mensagem desse tipo de autobiografia é humilde e inspiradora: Se eu consigo, diz o autor, qualquer um consegue. Mas essa mensagem é também acompanhada pelo reconhecimento sombrio de que muitas pessoas iguais a Vance não conseguem.

O protagonista corajoso e sortudo é ao mesmo tempo um símbolo e uma exceção. Ele é um paradoxo que dá à reflexão pessoal o peso da crítica social. O que está impedindo todos os outros de seguir os passos do autor? Por que tantos colegas de Vance parecem destinados ao desemprego ao subemprego, ao abuso de drogas, ao caos doméstico, à pobreza e ao desespero?

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Frequentemente, no gênero autobiográfico ao qual o livro de Vance pertence — um gênero cujas prateleiras estão cheias de livros de escritores negros, indígenas e imigrantes — a culpa desse fracasso é colocada em questões estruturais, como a injustiça e o preconceito.

A proposta política implícita para responder ao problema é geralmente mais reformista do que radical: nós precisamos consertar as coisas para que mais crianças como essa possam ter sucesso, removendo barreiras e expandindo oportunidades.

O argumento de Vance, de uma maneira bastante enfática, não é esse. Se os americanos que ele chama de caipiras — uma categoria um tanto elástica que pode ser regional, étnica ou sociológica estão caindo ou estagnados, é em grande parte culpa deles.

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Os traços culturais que fazem de Mamaw e da família de Vance personagens tão ricos são também os responsáveis por aprisionar os ‘caipiras do meio-oeste’ na pobreza e na disfunção social. Por isso, diz Vance, “classe trabalhadora” pode ser um termo impróprio.

“As pessoas falam sobre trabalho duro o tempo todo em lugares como Middletown”, ele escreve. “Você pode andar por uma cidade onde 30% dos homens jovens trabalham menos de 20 horas por semana e não encontrar uma única pessoa ciente de sua própria preguiça.”

A dureza desse julgamento atraiu algumas críticas, incluindo de escritores com origens parecidas com a de Vance. Ao mesmo tempo, a ideia de que membros de um grupo marginal ou desfavorecido causaram seu próprio infortúnio é música para os ouvidos daqueles que estão no poder. Se essas pessoas são assim mesmo — preguiçosas, não cooperativas, sexualmente promíscuas — então qualquer política elaborada para ajudá-las é inútil.

Esse tipo de argumento tem sido usado há muito tempo por conservadores contra programas sociais voltados para afro-americanos, latinos e pobres urbanos. Vance não foi o primeiro escritor da direita a usá-lo contra brancos rurais e proletários. Charles Murray, com o livro Coming Apart: The State of White America, 1960-2010, publicado em 2012, antecipa alguns dos temas do livro de Vence.

Durante a campanha presidencial de 2016, Kevin Williamson publicou uma série de ensaios cáusticos na National Review associando a ascensão de Trump ao declínio da classe trabalhadora branca, concluindo que os cidadãos desolados de lugares como Middletown tinham “falhado consigo mesmos”. " Nada aconteceu com eles“, escreveu Williamson. “Não houve um desastre terrível. Não houve guerra, fome, praga ou ocupação estrangeira.”

Candidato republicano J.D. Vance discursa ao lado de Donald Trump, em um comício de campanha em Youngstown, Ohio, setembro de 2022.  Foto: AP / Tom E. Puskar, Arquivo

Essa perspectiva não encontrou muita aceitação na direita intelectual, que agora está mais interessada em escrever o manual do Trumpismo do que em explicá-lo. Vance fez parte de ambos os projetos, o que envolveu uma mudança de tom e orientação, e não apenas com relação ao próprio Trump.

Há uma dissonância em Era Uma Vez um Sonho. Está claro agora que Vance duvida da tese de que a classe trabalhadora americana é a culpada por seus próprios problemas, ou pelo menos duvida da utilidade política de dizer isso. Ele está mais apto a culpar a China, o Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio, o México e certas corporações, e também o establishment político e cultural ao qual ele estava determinado a se juntar. Em outras palavras: ele se voltou contra os leitores mais devotos de seu livro.

THE NEW YORK TIMES - “Não sou um senador, um governador ou um ex-secretário de gabinete”, J.D. Vance escreveu na primeira página de Era Uma Vez um Sonho ( “Hillbilly Elegy”, no título original), como uma forma de se mostrar como um cara comum.

Tudo isso era verdade em 2016, quando Vance era um ex-fuzileiro naval e graduado pela Faculdade de Direito de Yale, com “um bom emprego, um casamento feliz, uma casa confortável e dois cachorros animados”. Hoje, oito anos depois, sua autobiografia pode ser lida de uma forma um pouco diferente.

Isso se deve parcialmente ao fato de Vance ser, de fato, um senador e também, desde esta segunda-feira, 15, o candidato republicano à vice-presidência. Muito tem se falado sobre sua evolução política ao longo dos últimos oito anos. Vance foi de um conservador anti-Trump a um adepto fiel do lema “Fazer a América Grande De Novo”.

Enquanto os críticos de Vance enxergam isso como oportunismo descarado, ele explicou suas mudanças ideológicas como resultado de um duplo despertar intelectual: ele se deu conta que Donald Trump não era tão ruim quanto pensava, e que os liberais americanos eram muito piores do que ele imaginava.

Essa reviravolta é notável porque parte da lenda do seu livro Era Uma Vez um Sonho é que os liberais eram seu público-alvo e seus maiores fãs. Publicado por uma grande editora, respeitosamente resenhado e amplamente discutido, o livro era tanto uma mensagem ao establishment quanto uma tentativa de ser aceito na elite.

A autobiografia de Vance conta a história de duas migrações. Uma é o movimento em larga escala de brancos pobres, entre eles os avós maternos do autor, da área rural dos Apalaches para as cidades e vilas do meio-oeste americano. A outra é a trajetória de Vance de um desses lugares — Middletown, Ohio — para o seio da classe dominante americana: New Haven; Vale do Silício; Washington, D.C.

Na medida em que Era Uma Vez um Sonho é uma narrativa de superação — a crônica da ascensão de uma pessoa jovem diante da adversidade — ela pode ser lida como uma tentativa de ser aceito na elite americana. Um leitor imaginário, confortavelmente acomodado em seu privilégio elitista, ficará satisfeito em saber que esse ambicioso cidadão de Ohio agora senta perto dele e ficou fascinado pela história de como Vance chegou lá.

Uma infância difícil

O conto é doloroso, mas também inspirador. A infância de Vance foi assombrada pela luta de sua mãe contra o vício em heroína, mas ele foi salvo por seus amorosos avós, em particular pela sua avó determinada e de língua afiada, Mamaw, cujo retrato é a realização literária mais memorável do livro.

Mamaw, o Corpo de Fuzileiros Navais e a Universidade Estadual de Ohio tiraram o jovem J.D. de Middletown e ajudaram a dar a ele confiança e habilidades para escrever Era Uma Vez um Sonho.

O senador J.D. Vance, de Ohio, foi anunciado nesta segunda-feira, 15, como candidato à vice-presidência dos EUA na chapa republicana ao lado de Donald Trump. Foto: Anna Moneymaker/Getty Images via AFP

Parte da mensagem desse tipo de autobiografia é humilde e inspiradora: Se eu consigo, diz o autor, qualquer um consegue. Mas essa mensagem é também acompanhada pelo reconhecimento sombrio de que muitas pessoas iguais a Vance não conseguem.

O protagonista corajoso e sortudo é ao mesmo tempo um símbolo e uma exceção. Ele é um paradoxo que dá à reflexão pessoal o peso da crítica social. O que está impedindo todos os outros de seguir os passos do autor? Por que tantos colegas de Vance parecem destinados ao desemprego ao subemprego, ao abuso de drogas, ao caos doméstico, à pobreza e ao desespero?

Frequentemente, no gênero autobiográfico ao qual o livro de Vance pertence — um gênero cujas prateleiras estão cheias de livros de escritores negros, indígenas e imigrantes — a culpa desse fracasso é colocada em questões estruturais, como a injustiça e o preconceito.

A proposta política implícita para responder ao problema é geralmente mais reformista do que radical: nós precisamos consertar as coisas para que mais crianças como essa possam ter sucesso, removendo barreiras e expandindo oportunidades.

O argumento de Vance, de uma maneira bastante enfática, não é esse. Se os americanos que ele chama de caipiras — uma categoria um tanto elástica que pode ser regional, étnica ou sociológica estão caindo ou estagnados, é em grande parte culpa deles.

Os traços culturais que fazem de Mamaw e da família de Vance personagens tão ricos são também os responsáveis por aprisionar os ‘caipiras do meio-oeste’ na pobreza e na disfunção social. Por isso, diz Vance, “classe trabalhadora” pode ser um termo impróprio.

“As pessoas falam sobre trabalho duro o tempo todo em lugares como Middletown”, ele escreve. “Você pode andar por uma cidade onde 30% dos homens jovens trabalham menos de 20 horas por semana e não encontrar uma única pessoa ciente de sua própria preguiça.”

A dureza desse julgamento atraiu algumas críticas, incluindo de escritores com origens parecidas com a de Vance. Ao mesmo tempo, a ideia de que membros de um grupo marginal ou desfavorecido causaram seu próprio infortúnio é música para os ouvidos daqueles que estão no poder. Se essas pessoas são assim mesmo — preguiçosas, não cooperativas, sexualmente promíscuas — então qualquer política elaborada para ajudá-las é inútil.

Esse tipo de argumento tem sido usado há muito tempo por conservadores contra programas sociais voltados para afro-americanos, latinos e pobres urbanos. Vance não foi o primeiro escritor da direita a usá-lo contra brancos rurais e proletários. Charles Murray, com o livro Coming Apart: The State of White America, 1960-2010, publicado em 2012, antecipa alguns dos temas do livro de Vence.

Durante a campanha presidencial de 2016, Kevin Williamson publicou uma série de ensaios cáusticos na National Review associando a ascensão de Trump ao declínio da classe trabalhadora branca, concluindo que os cidadãos desolados de lugares como Middletown tinham “falhado consigo mesmos”. " Nada aconteceu com eles“, escreveu Williamson. “Não houve um desastre terrível. Não houve guerra, fome, praga ou ocupação estrangeira.”

Candidato republicano J.D. Vance discursa ao lado de Donald Trump, em um comício de campanha em Youngstown, Ohio, setembro de 2022.  Foto: AP / Tom E. Puskar, Arquivo

Essa perspectiva não encontrou muita aceitação na direita intelectual, que agora está mais interessada em escrever o manual do Trumpismo do que em explicá-lo. Vance fez parte de ambos os projetos, o que envolveu uma mudança de tom e orientação, e não apenas com relação ao próprio Trump.

Há uma dissonância em Era Uma Vez um Sonho. Está claro agora que Vance duvida da tese de que a classe trabalhadora americana é a culpada por seus próprios problemas, ou pelo menos duvida da utilidade política de dizer isso. Ele está mais apto a culpar a China, o Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio, o México e certas corporações, e também o establishment político e cultural ao qual ele estava determinado a se juntar. Em outras palavras: ele se voltou contra os leitores mais devotos de seu livro.

THE NEW YORK TIMES - “Não sou um senador, um governador ou um ex-secretário de gabinete”, J.D. Vance escreveu na primeira página de Era Uma Vez um Sonho ( “Hillbilly Elegy”, no título original), como uma forma de se mostrar como um cara comum.

Tudo isso era verdade em 2016, quando Vance era um ex-fuzileiro naval e graduado pela Faculdade de Direito de Yale, com “um bom emprego, um casamento feliz, uma casa confortável e dois cachorros animados”. Hoje, oito anos depois, sua autobiografia pode ser lida de uma forma um pouco diferente.

Isso se deve parcialmente ao fato de Vance ser, de fato, um senador e também, desde esta segunda-feira, 15, o candidato republicano à vice-presidência. Muito tem se falado sobre sua evolução política ao longo dos últimos oito anos. Vance foi de um conservador anti-Trump a um adepto fiel do lema “Fazer a América Grande De Novo”.

Enquanto os críticos de Vance enxergam isso como oportunismo descarado, ele explicou suas mudanças ideológicas como resultado de um duplo despertar intelectual: ele se deu conta que Donald Trump não era tão ruim quanto pensava, e que os liberais americanos eram muito piores do que ele imaginava.

Essa reviravolta é notável porque parte da lenda do seu livro Era Uma Vez um Sonho é que os liberais eram seu público-alvo e seus maiores fãs. Publicado por uma grande editora, respeitosamente resenhado e amplamente discutido, o livro era tanto uma mensagem ao establishment quanto uma tentativa de ser aceito na elite.

A autobiografia de Vance conta a história de duas migrações. Uma é o movimento em larga escala de brancos pobres, entre eles os avós maternos do autor, da área rural dos Apalaches para as cidades e vilas do meio-oeste americano. A outra é a trajetória de Vance de um desses lugares — Middletown, Ohio — para o seio da classe dominante americana: New Haven; Vale do Silício; Washington, D.C.

Na medida em que Era Uma Vez um Sonho é uma narrativa de superação — a crônica da ascensão de uma pessoa jovem diante da adversidade — ela pode ser lida como uma tentativa de ser aceito na elite americana. Um leitor imaginário, confortavelmente acomodado em seu privilégio elitista, ficará satisfeito em saber que esse ambicioso cidadão de Ohio agora senta perto dele e ficou fascinado pela história de como Vance chegou lá.

Uma infância difícil

O conto é doloroso, mas também inspirador. A infância de Vance foi assombrada pela luta de sua mãe contra o vício em heroína, mas ele foi salvo por seus amorosos avós, em particular pela sua avó determinada e de língua afiada, Mamaw, cujo retrato é a realização literária mais memorável do livro.

Mamaw, o Corpo de Fuzileiros Navais e a Universidade Estadual de Ohio tiraram o jovem J.D. de Middletown e ajudaram a dar a ele confiança e habilidades para escrever Era Uma Vez um Sonho.

O senador J.D. Vance, de Ohio, foi anunciado nesta segunda-feira, 15, como candidato à vice-presidência dos EUA na chapa republicana ao lado de Donald Trump. Foto: Anna Moneymaker/Getty Images via AFP

Parte da mensagem desse tipo de autobiografia é humilde e inspiradora: Se eu consigo, diz o autor, qualquer um consegue. Mas essa mensagem é também acompanhada pelo reconhecimento sombrio de que muitas pessoas iguais a Vance não conseguem.

O protagonista corajoso e sortudo é ao mesmo tempo um símbolo e uma exceção. Ele é um paradoxo que dá à reflexão pessoal o peso da crítica social. O que está impedindo todos os outros de seguir os passos do autor? Por que tantos colegas de Vance parecem destinados ao desemprego ao subemprego, ao abuso de drogas, ao caos doméstico, à pobreza e ao desespero?

Frequentemente, no gênero autobiográfico ao qual o livro de Vance pertence — um gênero cujas prateleiras estão cheias de livros de escritores negros, indígenas e imigrantes — a culpa desse fracasso é colocada em questões estruturais, como a injustiça e o preconceito.

A proposta política implícita para responder ao problema é geralmente mais reformista do que radical: nós precisamos consertar as coisas para que mais crianças como essa possam ter sucesso, removendo barreiras e expandindo oportunidades.

O argumento de Vance, de uma maneira bastante enfática, não é esse. Se os americanos que ele chama de caipiras — uma categoria um tanto elástica que pode ser regional, étnica ou sociológica estão caindo ou estagnados, é em grande parte culpa deles.

Os traços culturais que fazem de Mamaw e da família de Vance personagens tão ricos são também os responsáveis por aprisionar os ‘caipiras do meio-oeste’ na pobreza e na disfunção social. Por isso, diz Vance, “classe trabalhadora” pode ser um termo impróprio.

“As pessoas falam sobre trabalho duro o tempo todo em lugares como Middletown”, ele escreve. “Você pode andar por uma cidade onde 30% dos homens jovens trabalham menos de 20 horas por semana e não encontrar uma única pessoa ciente de sua própria preguiça.”

A dureza desse julgamento atraiu algumas críticas, incluindo de escritores com origens parecidas com a de Vance. Ao mesmo tempo, a ideia de que membros de um grupo marginal ou desfavorecido causaram seu próprio infortúnio é música para os ouvidos daqueles que estão no poder. Se essas pessoas são assim mesmo — preguiçosas, não cooperativas, sexualmente promíscuas — então qualquer política elaborada para ajudá-las é inútil.

Esse tipo de argumento tem sido usado há muito tempo por conservadores contra programas sociais voltados para afro-americanos, latinos e pobres urbanos. Vance não foi o primeiro escritor da direita a usá-lo contra brancos rurais e proletários. Charles Murray, com o livro Coming Apart: The State of White America, 1960-2010, publicado em 2012, antecipa alguns dos temas do livro de Vence.

Durante a campanha presidencial de 2016, Kevin Williamson publicou uma série de ensaios cáusticos na National Review associando a ascensão de Trump ao declínio da classe trabalhadora branca, concluindo que os cidadãos desolados de lugares como Middletown tinham “falhado consigo mesmos”. " Nada aconteceu com eles“, escreveu Williamson. “Não houve um desastre terrível. Não houve guerra, fome, praga ou ocupação estrangeira.”

Candidato republicano J.D. Vance discursa ao lado de Donald Trump, em um comício de campanha em Youngstown, Ohio, setembro de 2022.  Foto: AP / Tom E. Puskar, Arquivo

Essa perspectiva não encontrou muita aceitação na direita intelectual, que agora está mais interessada em escrever o manual do Trumpismo do que em explicá-lo. Vance fez parte de ambos os projetos, o que envolveu uma mudança de tom e orientação, e não apenas com relação ao próprio Trump.

Há uma dissonância em Era Uma Vez um Sonho. Está claro agora que Vance duvida da tese de que a classe trabalhadora americana é a culpada por seus próprios problemas, ou pelo menos duvida da utilidade política de dizer isso. Ele está mais apto a culpar a China, o Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio, o México e certas corporações, e também o establishment político e cultural ao qual ele estava determinado a se juntar. Em outras palavras: ele se voltou contra os leitores mais devotos de seu livro.

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