Uma notável série de eventos ocorridos na Rússia deixou o mundo sob tensão neste fim de semana. Ievgeni Prigozhin, líder do Grupo Wagner, uma empresa mercenária, tomou uma capital regional russa no sábado e enviou uma coluna de soldados para Moscou, no que pareceu um golpe de Estado em desenvolvimento. Então, tão subitamente quanto o iniciou, Prigozhin encerrou o movimento na noite do sábado, ordenando que suas forças voltassem às suas bases. Aparentemente ele havia alcançado um acordo com o presidente russo, Vladimir Putin — que implicou em ampla anistia para ele e seus homens amotinados e que supostamente determinará a integração de sua força ao Exército russo.
O que tudo isso significa? E o que está adiante da Rússia — e, consequentemente, da Ucrânia? Nós pedimos a opinião dos nossos colunistas.
David Von Drehle: Até golpes fracassados têm consequências
Dizem que um pássaro que anda e grasna como um pato provavelmente é um pato. Os acontecimentos na Rússia que pareceram um golpe militar e que foram inicialmente interpretados como um golpe por Putin provavelmente foram uma tentativa de golpe — até que o golpe ruiu.
O que costuma acometer os golpes. Em um estudo exaustivo a respeito de tentativas de golpe ocorridas entre 1950 e 2000, o acadêmico Naunihal Singh identificou os desafios centrais para quem planeja um golpe. Planejar detalhadamente uma tentativa de deposição de um governo autoritário é perigoso demais. Ditadores — como Putin — organizam seus governos inteiramente em torno do objetivo de desentocar e esmagar planos desse tipo. Uma tentativa de golpe deve começar, portanto, com um movimento ousado de um grupo pequeno, com esperança de que outros se juntem. Não existe um plano, escreveu Singh, há apenas esperanças e convicções. “Cada escolha individual tem como base as convicções das pessoas a respeito das prováveis ações das outras.”
Conforme Ievgeni Prigozhin acelerava na estrada a caminho de Moscou, no sábado, ele certamente pressentiu o naufrágio. A insurreição que ele aparentemente esperava inspirar dentro do Ministério da Defesa russo não parecia inspirada nem inspiradora. Como os planejadores de golpes na Turquia, em 2016, e na Venezuela, em 2020, Prigozhin fez um convite a uma deposição espontânea do governo, mas ninguém compareceu.
O coringa, neste caso, foi a reação do governo. Putin evidentemente não tinha mais confiança do que Prigozhin em relação ao desfecho de um confronto. Em vez de colocar em teste a lealdade e a força das tropas do governo para esmagar a insurreição, o líder russo se agarrou à primeira saída que lhe foi oferecida — um sinal de fraqueza que poderá abrir caminho para outra tentativa de deposição.
Há uma notícia boa e uma ruim neste episódio. A boa notícia é que os líderes irresponsáveis da Rússia não são suicidas, uma qualidade bem-vinda numa potência nuclear. A notícia ruim: uma Rússia enfraquecida tem líderes enfraquecidos e está se descontrolando. Putin levou seu país a um desastre, e não há ninguém no horizonte para salvá-lo.
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Max Boot: Prigozhin evidenciou para todos a fraqueza de Putin
Os dias recentes foram os mais tumultuados na história da Rússia desde a crise constitucional de outubro de 1993, quando Boris Iéltsin ordenou que o Exército atacasse o Parlamento para impedir uma tentativa de deposição de seu governo. Iéltsin manteve-se no poder, mas não conseguiu reivindicar o mesmo grau de legitimidade novamente, e seis anos depois deixou a presidência. Seu sucessor escolhido a dedo, Vladimir Putin, teve agora sua própria legitimidade minada pela revolta de Ievgeni Prigozhin e seus mercenários do Grupo Wagner. Resta determinar se o ferimento é fatal.
Putin não mobilizou — ou talvez tenha sido incapaz de mobilizar — as Forças Armadas russas para esmagar a insurreição Wagner. De fato, exceto por pilotos da Força Aérea russa, os militares regulares não fizeram nada além de observar enquanto Prigozhin e seus mercenários tomaram o Distrito Militar do Sul, em Rostov-on-Don, e rumaram para a capital. Habitantes de Rostov festejaram as forças Wagner, revelando o desgosto que sentem pelo homem que governa seu país com punho de ferro há mais de duas décadas. Putin sofreu a humilhação de ter de apelar para a ajuda diplomática de um coadjuvante, o presidente belarusso, Alexander Lukashenko, para evitar uma batalha nas rua como a que ocorreu em Moscou pela última vez em 1993.
Putin sem dúvida tentará reafirmar seu poder agora. E poderá determinar um expurgo no governo e vingar-se cruelmente de Prigozhin e seus apoiadores. O comandante Wagner estaria bem aconselhado se lhe recomendassem contratar um provador de comida ou ficar longe de janelas abertas.
Putin poderia, em última instância, emergir como líder de uma ditadura ainda mais forte e lançar uma mobilização em estilo stalinista para combater a Ucrânia. Alternativamente, sua demonstração de fraqueza pode encorajar outros pretendentes ao trono em seu próprio alto escalão, porque sua mística de controle foi despedaçada. Neste momento, nós simplesmente não sabemos quais serão as consequências para a política russa.
Portanto, o destino do Grupo Wagner também permanece incerto. Seus combatentes poderão ter de, finalmente, assinar contratos com o Ministério da Defesa russo — uma exigência feita primeiramente em 10 de junho, que pode ter motivado a insurreição de Prigozhin. Mas desmantelar o Grupo Wagner ocasionará uma perda de eficiência militar, porque suas unidades estão entre os poucos destacamentos russos que combateram com algum grau de sucesso na Ucrânia (apesar do custo estarrecedor). No mínimo, a briga interna no Kremlin é uma distração para generais russos que precisam se concentrar em impedir a contraofensiva ucraniana.
Aconteça o que acontecer com Prigozhin a seguir, ele claramente encontrou ressonância com suas pungentes denúncias a respeito da corrupção e da incompetência que caracterizam o regime de Putin. Criminoso comum transformado em criminoso de guerra, Prigozhin é um demagogo experiente, que foi capaz de explorar a insatisfação popular com o Kremlin com mais eficácia do que qualquer crítico progressista. Mesmo que Prigozhin desapareça, o descontentamento que ele revelou seguirá sendo um calcanhar de Aquiles de Putin.
David Ignatius: Depois de desviar do tiro, Putin precisará mostrar que está no controle
O mistério desta história é o que Ievgeni Prigozhin esperava que aconteceria após sua marcha sobre Moscou. O líder da milícia Wagner vinha falando tanto a respeito de seus planos que operadores de inteligência dos Estados Unidos souberam da trama na semana passada. Prigozhin acreditou que tivesse apoio. É isso o que deve assombrar Vladimir Putin neste momento. Até onde chegaria esta conspiração?
Prigozhin deu algumas pistas a respeito de como seu apoio cresceu — e então colapsou — em seu comunicado gravado em vídeo na segunda-feira. Gabando-se de sua corrida em direção a Moscou, no sábado, ele afirmou que, conforme se aproximou da capital, “todas as instalações militares ao longo da rota foram bloqueadas e neutralizadas. (…) Todos os soldados que nos viram durante a marcha nos apoiaram”.
E então o que aconteceu? Quando estava a menos de 200 quilômetros de Moscou, Prigozhin conduziu “um reconhecimento da área, e ficou evidente que muito sangue seria derramado se nós continuássemos”.
Isso revela que Priogzhin percebeu que o apoio militar e de segurança que ele vinha esperando em sua “marcha da justiça” tinha desaparecido. Avançar teria significado em um massacre de suas forças. Então ele mudou o curso — e fez um pacto de anistia para si mesmo e seus soldados por meio de seu amigo Alexander Lukashenko.
Rolf Mowatt-Larssen, ex-chefe da seção da CIA em Moscou, argumenta que Prigozhin “se rendeu quando percebeu que a cavalaria não chegaria”. Os soldados de Prigozhin foram festejados quando tomaram o quartel do comando militar russo em Rostov-on-Don, na manhã do sábado — o que não surpreende, pois eles têm sido os combatentes russos mais corajosos e mais bem-sucedidos na Ucrânia. Mas quando Prigozhin se aproximava de Moscou, Putin já tinha debelado sua rebelião.
Agora tem início a inquisição. Mowatt-Larssen explica: “Putin tem de se informar a respeito de todos os detalhes sobre o alcance e profundidade dessa conspiração nas Forças Armadas e nos serviços especiais. A coisa estava em planejamento havia pelo menos um par de semanas. Com quem Prigozhin vinha conversando? Quem lhe prometeu apoio? Quem mudou de lado no calor do momento?”.
Prigozhin é arrogante, mas não é bobo. Ele tentou tranquilizar Putin dizendo-lhe que não tinha nenhuma intenção de “depor o governo”. E descreveu o ataque armado do fim de semana recente como uma “luta contra a burocracia e outros males que existem hoje em nosso país”. Mas ele tem de entender que sobreviverá apenas enquanto Putin tolerá-lo. Ele atirou no rei e errou a mira.
As vulnerabilidades de Putin estiveram vividamente à mostra no fim de semana passado, assim como suas excepcionais habilidades de sobrevivência. Ele se inseriu na trama conspiratória e a impediu. O líder russo é uma figura misteriosa numa magnitude muito maior do que as caricaturas desenhadas por seus inimigos. Ele é o Macbeth, de Shakespeare, um vilão com o sangue de suas vítimas nas mãos. Mas também é Hamlet, o imodesto, um príncipe ensimesmado que postergou a ação contra seus inimigos até ser quase tarde demais.
Putin precisará mostrar que está no comando após sua experiência de quase-morte. O que é má notícia para russos e ucranianos.
Eugene Robinson: Putin deverá sobreviver a esta crise
Eu não diria que Vladimir Putin está fora do jogo. A rebelião armada deste fim de semana pode ter sido o desafio mais duro que ele já enfrentou em suas mais de duas décadas como czar dos tempos modernos, mas ao que tudo indica, ele sobreviverá, pelo menos por agora. E ainda lhe toca a capacidade de controlar seu próprio destino.
A revolta liderada pelo açougueiro mercenário Ievgeni Prigozhin revelou que o regime de Putin é mais quebradiço do que dá a parecer ao longe. Mas no fim, foi Prigozhin que piscou. Se os soldados e cidadãos russos tivessem se unido à sua causa e se juntado ao seu comboio rumo a Moscou talvez ele não tivesse recuado. Mas seu mercenários calejados — Prigozhin afirma que o contingente de seu Grupo Wagner é de 25 mil homens; mas a comunidade de inteligência britânica relata que esse número é próximo a 8 mil — teriam sido afrontados por uma força maior, incluindo soldados chechenos com a missão de matar primeiro e fazer perguntas depois.
Prigozhin revelou não apenas para o mundo, mas também — e criticamente — para o povo russo a inconveniente verdade a respeito da guerra assassina de Putin na Ucrânia: Kiev nunca representou nenhuma ameaça para a Rússia, o que torna este conflito uma guerra de escolha, não de necessidade. O senhor da guerra proprietário do Grupo Wagner, que ascendeu à proeminência como “o chef de Putin”, possui os ingredientes de um herói folclórico, mas não a sutileza e a sagacidade de um líder russo. Imagine um cenário em que, de alguma maneira, ele depusesse Putin. Prigozhin, um homem muito mau, conclamou um Estado mais totalitário na Rússia, em estilo Coreia do Norte — um desdobramento que certamente ocasionaria descontentamento tanto na comunidade internacional quanto entre o povo russo.
Prigozhin, que deu as caras em um vídeo na segunda-feira, afirma que suas forças Wagner operarão a partir de Belarus. Veja alguns fatos que não podem ser esquecidos: o establishment militar russo que Prigozhin tentou derrubar continua intacto, pelo menos por agora; o futuro de seu Grupo Wagner, fonte de seu dinheiro e poder, segue incerto; e onde quer que esteja, Prigozhin sempre terá de se preocupar com a má sorte que misteriosamente parece acometer tantos inimigos de Putin — que tendem a despencar de janelas de edifícios altos ou a adoecer subitamente em razão de venenos exóticos.
Putin, enquanto isso, pode retratar sua decisão de anistiar os rebeldes como um ato de generosidade em vez de um sinal de fraqueza.
Em breves declarações, na segunda-feira, Putin afirmou que “a rebelião armada teria sido suprimida”. Talvez Putin decida atacar algum alvo civil na Ucrânia para mostrar que ainda é poderoso e está no comando — talvez não. Talvez ele continue a travar a mesma excruciante guerra de desgaste que vem travando nos meses recentes, sem tentar realmente tomar mais território ucraniano, mas defendendo ferozmente o que já tomou. Os corajosos soldados ucranianos estão se deparando com instalações defensivas — trincheiras e campos minados — que não são mais fáceis de transpor hoje do que eram no passado.
Se houver motins dentro do Exército regular russo ou se a opinião pública russa se voltar decisivamente contra a guerra, Putin terá de fazer ajustes. Mas ele ainda está atrás do volante. Prigozhin tentou desalojá-lo, mas fracassou.
Charles Lane: Prigozhin é o único russo que fala a verdade publicamente
Muito ainda é desconhecido a respeito do motim contra o regime de Vladimir Putin praticado pelo líder do Grupo Wagner, Ievgeni Prigozhin. Mas nós sabemos que Prigozhin fez algo que poderá ameaçar o regime russo por muito tempo após a insurreição: ele disse a verdade.
Numa entrevista de 30 minutos, na sexta-feira, Prigozhin desmascarou todos os argumentos que Vladimir Putin usou para justificar sua agressão contra a Ucrânia. “As Forças Armadas da Ucrânia não iriam atacar a Rússia com a ajuda do bloco da Otan”, afirmou ele (note que isso refuta, apesar de implicitamente, narrativas nos Estados Unidos e na Europa que acusam o Ocidente de provocar Putin).
Além disso, afirmou ele, a invasão “não era necessária para o repatriamento de nossos cidadãos russos nem para desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia”. Em vez disso, esta guerra — e Prigozhin usou a palavra proibida, não o eufemismo oficial, “operação militar especial” — é um empreendimento corrupto lançado por “oligarcas”. “Eles estavam roubando pesadamente no Donbas. E quiseram mais.”
Prigozhin não apenas denunciou mentiras e erros da liderança russa, mas também elogiou a conduta do outro lado. Em um vídeo de 5 de junho, ele comparou desfavoravelmente o trabalho do ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, isolado em seu gabinete, à disposição do presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, em visitar unidades na linha de frente. Prigozhin até reconheceu que a maioria dos civis vivendo sob a ocupação russa no sudeste da Ucrânia darão apoio ao Exército ucraniano se suas forças romperem as linhas russas.
Essas palavras não podem ser retiradas, nem é possível esquecê-las.
Certamente, o homem que as pronunciou está longe de ser uma testemunha irrepreensível, considerando seu envolvimento na violência e na farsa do regime de Putin. Na segunda-feira, Prigozhin negou qualquer intenção de derrubar Putin. E ninguém deve imaginar que a crítica explícita de Prigozhin significa que ele pretende pôr fim à guerra.
Mas, ainda assim, seus desabafos têm credibilidade, porque representam uma visão privilegiada, de um indivíduo próximo ao regime, que corresponde à realidade que os russos comuns veem com os próprios olhos.
Para os russos, deve ter sido revigorante ouvir alguém — seja quem for, mesmo que esse sujeito seja um criminoso notório, como Prigozhin — falando em voz alta o que tantos deles estão pensando. Talvez isso ajude a explicar por que os russos buscaram online mais o seu nome do que “Vladimir Putin” nas semanas que antecederam seu motim, de acordo com o Verstka Media, um meio de comunicação russo independente, ou por que o povo de Rostov-on-Don, a cidade na linha de frente, a 96 quilômetros da Ucrânia, foram às ruas festejar sua passagem escoltado por seus soldados Wagner.
Em 1978, num momento em que a ideologia comunista parecia dominante na Tchecoslováquia, o dramaturgo dissidente Václav Havel insistiu que a verdade ainda exercia um poder misterioso, ainda que latente.
A verdade é capaz de, inesperadamente, “irromper (…) em algo visível: um ato ou acontecimento político verdadeiro, um movimento social, uma súbita explosão de descontentamento civil, um conflito grave dentro de uma estrutura de poder aparentemente monolítica ou simplesmente uma transformação irrepreensível no ambiente social e intelectual”, escreveu Havel. “E já que todos os problemas genuínos e temas de importância crucial escondem-se sob uma espessa crosta de mentiras, nunca é absolutamente claro quando a proverbial última gota cairá, nem a forma que ela assumirá.”
Espião, oligarca e senhor da guerra — Prigozhin era um candidato improvável para a confirmação da profecia de Havel. Mas de certa maneira, a confirmou.
Jason Willick: Aumentaram as chances de escalada na Ucrânia
Conforme ilustram os acontecimentos deste fim de semana na Rússia, ninguém é capaz de prever o rumo das lutas de poder dentro do país. Mas eu acho que é depreender uma conclusão a respeito da guerra na Ucrânia: o motim de Ievgeni Prigozhin aumenta os incentivos a escaladas por todos os lados.
Primeiro, no Ocidente. O motim ocorreu poucas semanas após o início da altamente antecipada contraofensiva da Ucrânia. Nos dias que antecederam o motim, nós começávamos a perceber sinais de decepção no avanço inicial da contraofensiva. As linhas russas pareciam estar aguentando; os ataques ucranianos praticamente não haviam rompido nenhuma posição. Se essa estagnação persistisse, o Ocidente pressionaria Kiev a buscar pelo menos uma paz temporária com Moscou. O motim concederá mais margem para a Ucrânia. Para o Ocidente, a revolta abandonada de Prigozhin evidencia a fragilidade do regime de Putin e comprova que a continuidade da guerra coloca pressão sobre o Kremlin de maneiras visíveis e invisíveis mesmo que as linhas de controle territorial dentro da Ucrânia permaneçam aproximadamente as mesmas. Os Estados Unidos e outros líderes da Otan que advogam por um maior investimento militar na Ucrânia agora vencerão discussões que de outro modo teriam perdido.
Eu esperaria também que a Rússia dobre a aposta em seu compromisso com a guerra. Revoltas fracassadas tendem a elevar a repressão, e isso poderia apontar a Rússia mais ainda no caminho do totalitarismo. Alguns observadores podem estar superestimando a vulnerabilidade de Putin — mesmo que ele tenha suprimido rapidamente o motim — mas o espetáculo claramente abalou sua imagem de controle. A viabilidade de seu regime está agora atrelada mais intensamente à sua guerra na Ucrânia — e seu apetite pelo risco poderia aumentar.
Esta guerra será longa. E pode piorar antes de melhorar.
Josh Rogin: O movimento fracassado de Prigozhin é uma oportunidade para o Ocidente
O destino definitivo do Grupo Wagner e de seu fundador, Ievgeni Prigozhin, ainda é incerto. É evidente, contudo, que a milícia mercenária está desarticulada. O Ministério da Defesa da Rússia está, segundo relatou-se, preparado para absorver os combatentes Wagner em suas estruturas de comando. Prigozhin rumou (supostamente) para o exílio em Belarus.
Isso não responde à dúvida a respeito do que acontecerá com os milhares de soldados Wagner e as inúmeras operações militares e industriais do grupo em países como Síria, República Centro-Africana, Mali, Líbia, Sudão e Venezuela, citando apenas alguns. Por anos, os mercenários de Prigozhin têm agido como agentes semiclandestinos do Kremlin em todo o mundo, cometendo atrocidades enquanto fomentam instabilidade e corrupção em seu caminho.
O caos atual cria a melhor oportunidade para Estados Unidos e Europa organizarem suas forças e fazerem o que deveriam ter feito anos atrás: aniquilar a rede internacional do Grupo Wagner de intervenção armada e crime. Com Prigozhin aparentemente escanteado e seus comandantes ao redor do mundo dispersos e confusos, sua empresa está mais vulnerável do que nunca.
O Grupo Wagner tem usado há anos sua rede de empresas de fachada, seu exército de advogados internacionais e financiadores e sua suposta autonomia em relação ao Estado russo para evitar ser responsabilizado por seus crimes, afirmou Candace Rondeaux, diretora sênior do programa Future Frontlines, do instituto Nova América, e professora do Centro sobre o Futuro da Guerra, da Universidade Estadual do Arizona.
“Três presidentes americanos foram incapazes de compreender plenamente esta ameaça e produzir um plano para solucioná-la amplamente”, disse-me ela. “Mas agora a festa acabou quando se trata de contornar sanções para contratar o Wagner. Todos estão sentindo gosto de sangue na água.”
Apesar de o Grupo Wagner ter sido sancionado em 2017 por suas ações na Ucrânia, o Departamento do Tesouro dos EUA só reconheceu este ano seu alcance global designando-o como “organização criminosa transacional”. Em maio, o governo americano impôs sanções sobre o mais graduado comandante Wagner no Mali, que se tornou polo dos esforços do grupo mercenário em enviar armas para a guerra russa na Ucrânia, assim como apoiador internacional dos milicianos. Vários outros países seguiram o exemplo.
Prigozhin era conhecido por exigir dividendos sobre os rendimentos das minas controladas pelo Grupo Wagner na África e outras transações obscuras de ouro, diamantes e commodities como petróleo e gás natural. A razão: medo de sanções. Mas ainda há muito que pode e deveria ser feito. O projeto de legislação bipartidário que tramita no Congresso batizado de Lei HARM (sigla em inglês para “responsabilização de mercenários russos”) buscaria compelir o governo Biden a designar o Grupo Wagner como “organização terrorista estrangeira”. É apenas uma ideia.
Agora que o Kremlin não pode mais fingir que o Grupo Wagner é uma entidade distinta, o governo russo e suas autoridades de defesa também devem ser responsabilizados pelos crimes da empresa mercenária ao redor do mundo, que incluem alegações críveis de assassinatos em massa, torturas, estupros e outras atrocidades. O Wagner está mal, mas não morreu. É hora de pôr fim às operações dessa organização criminosa de uma vez por todas.
Megan McArdle: Turbulência na Rússia demonstra a fragilidade do iliberalismo
Eu não sei o que os acontecimentos do fim de semana passado significaram para a Rússia. Mas tenho pensado bastante a respeito da mensagem que eles deveriam mandar para o restante de nós sobre os perigos do iliberalismo.
Mesmo nos Estados Unidos, farol dos valores democrático-liberais há mais de dois séculos, o compromisso com a democracia liberal oscila. Recentemente, tem diminuído em ambos os extremos do espectro político. Em seu zelo pela proteção das minorias, a esquerda abandonou a livre expressão e a liberdade religiosa em favor de expressões codificadas, denúncias de “desinformação” e cultura do cancelamento. Enquanto isso, conforme indivíduos de direita ficam cada vez mais alarmados com a Teoria Crítica da Raça e ideologia de gênero, alguns aceitaram a ideia de que apenas um homem-forte, como Donald Trump — ou o húngaro Viktor Orbán ou, sim, até mesmo Vladimir Putin — é capaz de conter a Turma do Arco-Íris.
Os leitores terão opiniões fortes a respeito das diferenças morais entre essas duas posições. Logicamente, porém, ambos os lados sustentam o mesmo argumento: nossos oponentes estão perigosamente equivocados, talvez equivocados existencialmente, e têm de ser impedidos; nesta crítica encruzilhada da história, nós não podemos permitir dissensões ou delicadezas procedimentais; eles devem ser escorraçados do espaço público, suas visões devem ser proscritas e qualquer instituição que eles controlem, desacreditada ou destruída.
O que ocorreu na Rússia neste fim de semana ilustra exatamente por que essa maneira de pensar é equivocada. Regimes iliberais não apenas são desagradáveis e opressivos, eles vivem sob risco constante de uma ruptura catastrófica.
Supressão enérgica da dissidência cria uma harmonia aparente, mas é uma farsa dispendiosa. Farsa porque, conforme diz o ditado, “um homem contra sua vontade convencido sua opinião terá mantido”. E dispendiosa porque fica impossível saber o que as pessoas acreditam; se lhes perguntam, elas simplesmente repetem as respostas aprovadas pela oficialidade.
Inicialmente, isso pode funcionar, porque ninguém sabe quais papagaios realmente acreditam na linha do partido, e isso dificulta a organização de qualquer oposição. Mas se a oposição cresce até se tornar uma maioria silenciosa, o país fica vulnerável a uma súbita enxurrada de mudança: os cidadãos percebem que seus vizinhos concordam com eles, e a narrativa oficial colapsa.
Nominalmente, Putin controla um Exército massivo, uma força policial substancial e um eleitorado que lhe devolveu a presidência em 2018 com retumbantes 77% dos votos. Mas no momento crítico de decisão, esses mesmos cidadãos mostraram-se indiferentes entre ele e um senhor da guerra assassino — ou pelo menos não se importaram ao ponto de arriscar tomar um tiro. Putin sobreviveu, mas o risco ao seu regime cresceu agora que ficou claro o quão diminuto é seu verdadeiro apoio.
Ditadores compreendem esse problema, e por isso seus regimes tendem a piorar com o tempo: quanto mais planamente você suprime o dissenso, maior o risco de que até mesmo uma minúscula expressão de desafio desencadeie uma enxurrada de mudança.
A fragilidade inerente ao autoritarismo não significa que a democracia liberal está predestinada a sempre vencer — uma ilusão perigosa, que, nos anos que se seguiram à queda do Muro de Berlim, ajudou a abrir caminho para Putin e sua corja. Instituições democráticas — e a confiança social que lhes confere força — são difíceis de construir do zero, portanto quando um regime autoritário é derrubado ele é facilmente substituído por outro. E precisamente por este motivo é uma insensatez democracias liberais flertarem com o iliberalismo: até mesmo um apelo temporário à repressão tem capacidade de ser permanentemente catastrófico para todos. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL