O embaixador Rubens Ricupero vê uma relativa “normalização”, assim entre aspas, da vida politica brasileira, após o fim do governo de Jair Bolsonaro, um presidente que, segundo ele, governou na contramão de todo o espírito da redemocratização que levou à Constituição de 1988. Mas não vê presságios para otimismo e vê uma incapacidade do sistema político brasileiro para levar adiante reformas que o País precisa para retomar o crescimento — essa mesmo inércia, segundo ele, explica a revolta que levou à eleição de Bolsonaro em 2018.
A seguir, trechos da entrevista que ele deu pelo lançamento do seu livro de memórias.
Por que o senhor está apreensivo em relação ao futuro do Brasil?
O sistema político brasileiro é crescentemente disfuncional. Nos anos 90, os cientistas politicos diziam que não havia nada de errado com esse sistema, porque, aos trancos e barrancos, ele produzia decisões. Isso, em parte, é verdade. Só que os cientistas políticos deixavam de dizer que essas decisões se dão a um custo crescente do ponto de vista ético e financeiro. As decisões são tomadas pelo conjunto das instituições — Executivo, Legislativo e Judiciário. Mas há um custo moral muito grande, com uma dose enorme de corrupção, de ineficiência, de nomeações de pessoas inadequadas, e há um custo financeiro que inviabiliza a retomada do crescimento. O Brasil parou de crescer com a crise da dívida externa dos anos 80 e nunca mais reaprendeu o caminho do crescimento.
De vez em quando, há espasmos de crescimento, mas logo o Brasil recai em problemas de inflação e de déficit público muito grande. A raiz disso está nas próprias instituições e na legislação. Só para dar um exemplo. Nós temos um sistema em que todos os governos aumentam a transferência de renda e o orçamento vai ficando com uma margem cada vez menor, em que tudo é despesa carimbada. Não há mais flexibilidade, não se consegue ter um orçamento racional. Com a impositividade e o aumento das emendas parlamentares, a coisa está chegando a um ponto em que não vai haver dinheiro para coisa alguma, a não ser despesas obrigatórias. Diante desse problema, só há uma solução: a autorreforma, a capacidade de mudar as leis. Mas isso nem está posto. De vez em quando, alguém diz timidamente isso, como a ministra Simone Tebet (Planejamento e Orçamento), que apontou a necessidade de desvincular os benefícios da Previdência do salário mínimo, mas o próprio presidente e o PT fulminam.
Então vai chegar um momento em que isso vai se tornar explosivo. Ou o país vai para uma ruptura, que eu não sei como seria, ou ele faz a reforma pelas vias institucionais. O que eu constato é que, até agora, as vias institucionais não estão funcionando — e a classe dirigente é suicida. O Judiciário, que tem uma situação privilegiada no Brasil porque são os princípes do serviço público , os que ganham mais, estão patrocinando ativamente a PEC do Quinquênio. Então, você tem uma situação em que as próprias classes dirigentes, em vez de trabalharem para tornar o sistema mais funcional, contribuem para torná-lo mais disfuncional.
Seu pessimismo tem a ver também com uma razão histórica?
A história brasileira mostra que os regimes de governo no Brasil não duram muito tempo. Eles duram vinte e poucos anos, trinta e poucos anos, depois acabam. Todos eles têm mais ou menos essa duração. O que durou um pouco mais foi o Segundo Reinado. Se nós considerarmos a verdadeira maioridade do Imperador Pedro II, durou 39 anos. A Primeira República durou muito pouco e já estava acabada em 1930. O Estado Novo, um caso excepcional por ter sido uma ditadura, durou 15 anos. O regime da Constituição de 1946 durou menos de uma geração e foi destruído pelo golpe de 1964. De 1988 para cá, nós já estamos quase além do tempo de sobrevivência média de um sistema brasileiro. Não coloco nenhuma superstição nesse número e não acho que exista nenhuma fatalidade.
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Apenas estou constatando que o nosso desempenho histórico não é bom. Pode ser que daqui para diante vá melhorar, mas, com base na experiência histórica, não posso apostar que vai ser melhor. Não estou vendo sinais disso acontecer e estou vendo sinais de que estamos caminhando para um impasse crescente. Depois do governo anterior (Bolsonaro), que foi um pesadelo de todos os pontos de vista, nós recuperamos uma relativa “normalidade”, entre aspas. Não é normalidade por causa da polarização e dos nossos vícios. Houve algumas melhorias, como uma pequena redução no número de partidos, mas não o suficiente. Ainda não há uma política econômica racional.
O ministro Fernando Haddad (Fazenda) tem muito mérito, mas não tem apoio nem do presidente nem do partido. Isso cria uma gigantesca insegurança, porque as pessoas se dão conta dessa diferença de tom e ficam se perguntando se o Fernando Haddad vai conseguir chegar até o fim. Ele vai conseguir fazer aquilo que nunca fizemos desde o Plano Real, a outra metade do trabalho, a responsabilidade fiscal? País nenhum pode ter progresso de uma maneira irresponsável com o orçamento. É preciso ter racionalidade. E, infelizmente...
No seu ponto de vista, quais são as raízes dessa instabilidade política crônica?
A causa principal é o desequilíbrio básico da sociedade brasileira. É uma sociedade muito desigual, das mais desiguais do mundo. Não gosto muito dessa tentativa de explicar tudo pela escravidão, mas a escravidão teve um peso grande, porque, em vez de criar um povo de cidadãos, criou uma monarquia em que havia uma pequena minoria que imitava o parlamentarismo britânico, até com muita elegância, mas não tinha nada a ver com a realidade social e econômica do país. Hoje em dia, talvez as nossas instituições sejam mais autênticas e reflitam mais a realidade, mas uma realidade muito desequilibrada e com defeitos graves, de cultura política, como esse, por exemplo, de achar que o gasto público é o que traz o desenvolvimento e o crescimento econômico. O desequilíbrio social gera uma consciência culpada, a de que nós temos que socorrer os desvalidos, fazer Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Tudo isso é correto, mas não pode ser só isso. É preciso ter uma economia produtiva, que gere emprego. As pessoas não podem ficar a vida inteira dependendo de assistencialismo. Nós temos Estados e municípios que dependem de transferência de renda. Isso pode ser tolerável por algum tempo, mas não para sempre. Eu acho que se deve, de fato, socorrer aqueles que não podem fazer nada, mas que é necessário ter responsabilidade fiscal. E isso nem o Congresso, nem o Executivo, nem o Judiciário têm. Todos alegremente gostam de criar despesas, como se isso fosse uma cornucópia. E acham que o problema de redução de gastos tem de ser dos outros. É por isso que eu não em sinto em condições sinceras de dizer que tenho muita confiança no futuro do Brasil. Mas também não digo o contrário, porque não sou uma pessoa derrotista.
Vê alguma razão para otimismo?
A gente tem que ter o realismo de ver que o sistema não está bom, mas nada está escrito nas estrelas. Eu considero que nós temos um grande ponto de interrogação pela frente. O Delfim Neto, que é um homem extraordinariamente inteligente, disse no passado que o Brasil não tem instituições, nem educação à altura do que devia ter. Mas também não tinha no passado e isso não nos impediu de chegar onde nós chegamos. Ele tem razão, porque nós, de certa maneira, melhoramos muito, se você levar em conta que o Brasil entrou no século 20 com uma população de 18, 19 milhões de habitantes, em que quase 90% das pessoas eram analfabetas. Apesar de não termos nem educação, nem instituições de valor, nós não ficamos parados.
Nós, infelizmente, perdemos a capacidade de crescimento, mas fizemos uma democracia de massas, que conseguiu resolver a herança maldita do governo militar. Ninguém costuma lembrar isso, mas o governo militar deixou três heranças terríveis. Destruiu a base institucional de direitos humanos, legou a hiperinflação e legou a crise da dívida externa. Foi a democracia de massas que, aos trancos e barrancos, com Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma, todos vieram, pouco a pouco, dando sua contribuição. Não incluo o Bolsonaro, porque esse é o inominável. Com o Plano Real, nós resolvemos a hiperinflação. Nós conseguimos aprender que aquilo que se acreditava no tempo de Juscelino Kubitschek, que uma inflação ajuda a crescer, é mentira. Hoje em dia, o povo brasileiro não tem mais paciência com a inflação.
Uma coisa muito importante de hoje é que o Brasil, pela primeira vez na sua história contemporânea, não tem mais o fantasma do estrangulamento externo. O Brasil acabava sempre mal ou por hiperinflação ou por colapso externo. Não tinha divisas para pagar a importação nem a dívida. Desde a negociação da dívida externa com os bancos feita pelo Pedro Malan, no governo Itamar,o Brasil nunca mais teve problema de dívida externa. Hoje, o Brasil é um grande exportador de petróleo e de mais 10 ou 12 commodities. O que falta no Brasil? Crescimento, porque que não tem investimento. Investimento só vem de duas fontes, ou de fora ou de dentro. O pessoal de fora não vai investir num país em que a Petrobras teve nove presidentes em poucos anos e o presidente da República quer se meter na Vale, que já foi privatizada. Internamente, os investidores não investem porque eles veem a diferença de discurso entre o ministro da Fazenda e o presidente da República. Então, o governo tem que ter juízo. Se o governo quer crescimento, ele tem que se comportar de acordo com o que esperam os investidores.