CABUL - Mais de dois anos depois que os combatentes do Taleban invadiram a capital do Afeganistão, tomando o poder e prometendo limpar o país da decadência ocidental, muitos deles passaram a aceitar os benefícios da vida urbana.
Alguns passam seus fins de semana nos parques temáticos da cidade. Alguns assistem a jogos de críquete em grandes telas ao ar livre. Outros estão enchendo suas páginas do Facebook com selfies do horizonte ou comprando livros de autoajuda publicados no Ocidente. Na maioria das manhãs, as escolas de inglês de Cabul estão lotadas de soldados do Taleban e funcionários com jaquetas camufladas, e parecem tão ansiosos quanto os outros alunos para estudar no exterior.
À medida que o Taleban continua a mudar Cabul, algumas pessoas daqui começaram a se perguntar se a cidade também pode ter começado a mudar o Taleban. “De muitas maneiras, eles foram transformados”, disse Abdulrahman Rahmani, 50 anos, um ex-combatente que ajudou o Taleban a conquistar Cabul em 1996 e depois novamente em 2021, falando durante uma recente visita ao zoológico de Cabul para ver os leões.
Alguns dos combatentes do Taleban agora se arrependem do sucesso material que sacrificaram para realizar sua campanha armada. Outro dia, lembrou Rahmani, um soldado lhe disse que estava triste porque ele e seu irmão haviam desistido de estudar. “Se tivéssemos estudado, estaríamos sentados em escritórios agora”, disse ele a Rahmani.
Não há sinais de que essas mudanças tenham resultado em um abrandamento das políticas repressivas do Taleban, em especial a campanha contra os direitos das mulheres. E, sem dúvida, para muitos dos combatentes que em 2021 chegaram à capital afegã na caçamba de caminhonetes, essa cidade de cerca de 5 milhões de habitantes é uma decepção. Eles dizem que a vida urbana é solitária, mais estressante e menos religiosa do que imaginavam.
Alguns dos combatentes do cresceram aqui antes de partirem para a zona rural do Afeganistão para se juntarem à insurgência. Outros nunca saíram e apoiaram o Taleban como informantes. Mas para a maioria dos homens que tomaram a capital afegã, as luzes brilhantes da cidade não eram familiares, e Cabul representava um desafio cheio de seduções.
Land Cruisers e aulas de informática
Rahmani sonha que um dia Cabul se tornará o equivalente afegão de Dubai, o centro comercial reluzente dos Emirados Árabes Unidos. “Quando os problemas econômicos forem resolvidos, as coisas mudarão muito”, disse ele.
Alguns membros do Taleban já estão desenvolvendo um gosto sofisticado e caro. Embora os funcionários do novo governo tenham inicialmente comprado motocicletas, agora estão cada vez mais interessados em Land Cruisers reluzentes, segundo os vendedores.
A vida na cidade parece já ter deixado uma marca em Abdul Mobin Mansor, soldado do Taleban de 19 anos, e em seus companheiros. Eles concordam que o acesso à Internet, por exemplo, é cada vez mais importante para eles.
Eles dizem que ficaram viciados em várias séries de televisão que são mais divertidas se consumidas em alta definição. Suas favoritas são o drama policial turco “Valley of the Wolves” e “Jumong”, uma série histórica sul-coreana sobre um príncipe que precisa conquistar terras distantes.
Mansor disse que ainda prefere o campo, para onde talvez volte. “Mas espero muito que haja eletricidade e outras instalações modernas até lá”, disse ele.
Alguns soldados, como Hassam Khan, 35 anos, dizem que mal conseguem imaginar ter que voltar. Khan disse que inicialmente teve dificuldades para se adaptar à cidade. Sentia que os moradores de Cabul o temiam e que seus olhos doíam quando ficava muito tempo olhando para o computador. Mas o acesso à eletricidade, água, aulas de inglês e de informática o fez mudar de ideia. “Gosto desta vida”, disse ele.
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Alguns afegãos que se opuseram à tomada do poder pelo Taleban dizem que também notaram uma diferença. Tariq Ahmad Amarkhail, um vendedor de óculos de 20 anos, disse que tem uma sensação crescente de que o Taleban “está tentando adotar nosso estilo de vida”. “Eles vieram das montanhas, não entendiam nosso idioma e não sabiam nada sobre nossa cultura”, disse Amarkhail.
Quando chegaram, disse ele, condenaram os jeans e outras roupas ocidentais e destruíram instrumentos musicais. Mas quando Amarkhail e seus amigos dirigiram recentemente até os postos de controle de segurança com música tocando dentro dos carros, os soldados do Taleban simplesmente os deixaram passar, disse ele. Embora as roupas civis ocidentais tenham se tornado uma visão rara nas ruas de Cabul, alguns moradores ficaram surpresos ao ver os talebans adotarem uniformes militares que apresentam semelhanças impressionantes com os usados por seus antigos inimigos.
Em entrevistas, ao menos seis funcionários mais jovens e mais velhos do regime citaram o acesso à educação como a principal recompensa por suas lutas. “Quando conquistamos Cabul, prometemos nos tornar uma versão melhor de nós mesmos”, disse Laal Mohammad Zakir, 25 anos, um simpatizante do Taleban que se tornou funcionário do Ministério das Finanças. Ele disse que havia se inscrito em um curso intensivo de inglês para poder estudar no exterior um dia.
Zabihullah Misbah e seu amigo Ahmadzai Fatih, ambos com 25 anos, estavam entre os primeiros combatentes a invadir Cabul em 2021. Misbah ainda associa Cabul principalmente a “coisas ruins”, como adultério. “Você está mais conectado a Deus quando está na aldeia”, disse ele. Com menos distrações lá, “a pessoa fica mais ocupada com a oração”.
Os laços sociais nas aldeias são mais estreitos, disse Misbah, e a vida lá parece menos solitária. “Quando você busca a jihad, ela o deixa à vontade”, disse Fatih. “Mas quando chegamos aqui, não conseguimos encontrar paz.”
Embora muitos afegãos tenham fugido de Cabul durante a tomada do Taleban, a cidade voltou a ser a capital congestionada que era antes. Pode-se levar horas para atravessar a cidade cheia de poluição de um lado para o outro.
Mansor e seus amigos reconheceram que o ar tóxico e a separação de suas famílias na zona rural do Afeganistão estão fazendo com que eles reconsiderem a vida na cidade. “Aqueles que trouxeram suas famílias para cá estão mais felizes do que nós”, disse Mansor, que ainda não encontrou uma esposa. O aluguel na cidade é caro e os apartamentos são muito pequenos, disse ele.
Quando os soldados do Taleban precisam fugir, eles sobem uma colina no centro de Cabul, onde o novo regime instalou uma gigantesca bandeira do Emirado Islâmico, ou vão para o reservatório de Qargha, nos arredores da cidade, onde comem pistaches em suas caminhonetes.
Os residentes de Cabul assistiram com medo à chegada do Taleban em 2021. Hoje, dizem esperar que o número de ex-combatentes adotando a vida na cidade grande supere o número dos que sentem repulsa por ela e que o Taleban se torne mais moderado.
Muitas mulheres dizem não perceber essa evolução. As universidades continuam fechadas para elas, e as meninas acima da sexta série são impedidas de frequentar a escola. A partir da isolada cidade de Kandahar, a liderança máxima do Taleban transformou o Afeganistão no país mais repressivo do mundo para as mulheres, segundo as Nações Unidas.
“O Taleban não vai mudar”, disse Roqya, 25 anos. As vendas em sua barraca de roupas femininas caíram abruptamente no mês passado depois que o Ministério do Vício e da Virtude, administrado pelo Taleban, deteve temporariamente as mulheres por violações do código de vestimenta, disse ela.
“Nenhuma das meninas ousava mais sair sozinha”, disse Roqya, que concluiu o bacharelado em Física pouco antes da tomada do poder. Quando ninguém está olhando, ela ainda lê livros de ciências atrás de seu balcão.
Planos brilhantes para a capital
O Taleban tem grandes planos para a reconstrução pós-guerra, mas as restrições às mulheres podem se tornar o principal obstáculo. Muitos doadores estrangeiros abandonaram o país em protesto nos últimos dois anos e meio. Os investidores privados continuam escassos.
Será que a atração por arranha-céus caros, mesquitas novas e imponentes e estradas sem buracos pode levar o Taleban a fazer concessões, como esperam alguns afegãos?
Nos últimos meses, o grupo avançou com os planos de retomar o trabalho em uma cidade-modelo nos arredores de Cabul, que foi concebida pela primeira vez há mais de uma década durante o governo anterior apoiado pelos EUA, mas nunca foi construída.
“Daremos a ela o nome de Kabul New City”, disse Hamdullah Nomani, ministro do desenvolvimento urbano do governo comandado pelo Taleban.
O executivo da construção Moqadam Amin, 57 anos, disse que as primeiras discussões entre sua empresa e o novo governo sugeriram que o Taleban queria um projeto menos ambicioso com opções de moradia de baixo custo. Mas agora o grupo parece ter dado seu apoio aos chamativos planos originais, que preveem a construção de prédios altos, escolas, universidades, piscinas, parques e shopping centers.
Se a “Nova Cidade” de Cabul for concluída, sua construção poderá levar décadas. Por enquanto, a propriedade designada é acessível apenas por estradas improvisadas, ladeadas por fábricas de tijolos e agentes imobiliários solitários que se sentam em tapetes na areia.
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