A presidência indiana do G20 tem sido um triunfo político para Narendra Modi. De olho em sua reeleição no ano que vem, o primeiro-ministro da Índia usou os numerosos eventos no contexto do G20, organizados em todas as regiões indianas com ampla participação da população local, para promover o culto a sua personalidade e projetar-se como líder inconteste no comando de uma nação cada vez mais importante no cenário global, com ambições de se unir ao seleto grupo das grandes potências.
A capa da mais recente edição da revista Índia Today resume a ambição do governo indiano, ao exibir Modi junto aos presidentes dos EUA, da China e da Rússia, e o título bombástico: “O jogo das grandes potências”. Como cereja no bolo, a inclusão da União Africana ao G20 fortalece a campanha indiana de se apresentar como líder do Sul Global, posição também reivindicada por Pequim. Não surpreende, portanto, que Modi tenha festejado a divulgação do documento final da cúpula indiana. Foi um exemplo clássico de como usar a política externa para consolidar a imagem de grande estadista com o fim de obter benefícios políticos no âmbito doméstico.
Do ponto de vista global, porém, a declaração final da cúpula, relativamente vaga e sem previsão de muitas ações concretas, foi uma amostra de que a cooperação internacional está passando por sua pior crise em décadas. Isso certamente não é culpa da diplomacia indiana, que empreendeu grande esforço para identificar possíveis pontos de convergência e viabilizar um acordo final apesar das divergências profundas em relação à invasão russa à Ucrânia, ao combate contra as mudanças climáticas e a questões comerciais. A cúpula do G20 na Índia refletiu a atual força centrífuga entre as principais potências, o que dificilmente permitirá construir grandes consensos.
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Ficou evidente em Nova Deli que o enfraquecimento das potências tradicionais e a emergência de outros pólos de poder causa tensões e novas discordâncias: a ausência de Xi Jinping, por exemplo, representou uma tentativa chinesa de atrapalhar o plano de Narendra Modi de brilhar em seu fórum internacional. Mais do que isso, porém, o não-comparecimento do dirigente chinês à cúpula do G20 pode ser interpretado também como uma crescente preferência chinesa por fóruns alternativos sobre os quais Pequim tem mais controle, como o grupo BRICS, que passou recentemente por uma expansão imposta pela China.
O governo chinês fez de tudo para evitar que os Estados Unidos assumissem a presidência do G20 nos Estados Unidos em 2026, e é provável que Xi Jinping repita, na ocasião, seu gesto de ficar distante. Da mesma forma, a ausência de Vladimir Putin deve se tornar rotina, em vista do mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional contra ele. É pouco provável, por exemplo, a presença de Putin na cúpula do G20 no Rio de Janeiro em novembro de 2024, mesmo que Lula diga que Putin não será preso no Brasil se vier ao país.
Para piorar, as rupturas geopolíticas em andamento parecem estar se tornando irreversíveis. A relação entre a China e a Índia deverá piorar à medida que Nova Deli buscar mais protagonismo global, inevitavelmente colidindo com os planos chineses de virar líder inconteste da Ásia. Da mesma forma, independentemente do desfecho da invasão russa à Ucrânia, a relação entre o Ocidente e a Rússia será, na melhor das hipóteses, como uma espécie de guerra fria, marcada por profunda desconfiança mútua. Essa realidade deve não somente complicar a resolução do conflito de fronteira entre Pequim e Nova Deli e a guerra na Ucrânia, mas também contaminar negociações sobre outros assuntos, desde o combate à mudança global do clima e a pobreza até a proliferação nuclear.
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Isso não quer dizer, é claro, que o G20 deve deixar de existir. Pelo contrário, vale para o G20 o mesmo que se diz sobre a ONU: “Se não existisse, deveria ser inventado”. Em um mundo cada vez mais instável e marcado pelo risco de confrontos entre grandes potências, é preciso preservar espaços institucionalizados de diálogo. Mesmo assim, convém adequar as expectativas. É bem provável que, em uma das próximas cúpulas do G20, os participantes não cheguem sequer a concordar sobre uma declaração final. O foco cada vez maior será gerenciar – em vez de superar – as divergências geopolíticas e identificar consensos em áreas específicas. O lançamento, liderado pelos EUA, pelo Brasil e pela Índia, da ‘Aliança Global para Biocombustíveis’ para produção e uso sustentáveis, é um bom exemplo dessa nova dinâmica.
Essa nova realidade terá impacto direto nas ambições brasileiras de organizar uma cúpula bem-sucedida no Rio de Janeiro em novembro de 2024. O Brasil assume, com a presidência do G20, um legado nada fácil.