Analista político e professor de Relações Internacionais da FGV-SP. Escreve quinzenalmente

Opinião|Apesar de tudo, 2022 foi um bom ano para a democracia; leia coluna de Oliver Stuenkel


Hoje, apenas as tendências mais radicais à esquerda e à direita veem em Putin um exemplo a ser emulado

Por Oliver Stuenkel
Atualização:

Mundo afora, a democracia vive sua pior crise em décadas, marcada pela ascensão de lideranças com retórica autoritária, a proliferação de fake news e uma polarização destrutiva. Ao longo dos últimos anos, governos autocráticos, como o da China ou o da Rússia, buscaram aproveitar essa situação para expor o contraste entre sua elite política (por eles considerada mais estável e preparada tecnicamente) e a das democracias liberais (supostamente lenta em seus processos decisórios, menos preparada e imprevisível). A imprensa estatal chinesa também deu amplo destaque às cenas da invasão do Capitólio em Washington, em 6 de janeiro de 2021, aos confrontos cada vez mais acirrados entre esquerda e direita em países democráticos e à resposta inicialmente confusa à pandemia em várias dessas nações. Trata-se de clara tentativa de demonstrar que democracias liberais não estão adequadamente preparadas para lidar com os desafios do século 21.

Até mesmo em países democráticos essa narrativa surtiu algum efeito ao longo dos últimos anos. Teve ampla repercussão, no início da pandemia, a ideia de que governos autoritários como a China estavam possivelmente mais bem preparados para lidar com a covid-19. Quando Vladimir Putin decidiu invadir a Ucrânia, em fevereiro, não eram poucos os analistas e tomadores de decisão no Ocidente que, publicamente ou em off, ficaram maravilhados com o suposto brilhantismo estratégico do presidente russo. Numerosas vozes da extrema esquerda e da extrema direita na Europa – como, por exemplo, Matteo Salvini, o atual vice-primeiro-ministro da Itália – fizeram pouco para esconder sua convicção de que faltava, nas democracias, um “homem forte” como Putin.

O ano de 2022, porém, expôs os imensos riscos que a ausência de freios e contrapesos representa: não havia instância política na Rússia capaz de fazer Putin explicar melhor sua decisão de invadir a Ucrânia; nenhum Legislativo, nenhuma imprensa livre que pudesse questionar os planos do presidente. Nove meses depois da invasão e de uma guerra cada vez mais desastrosa para a Rússia, a maior ameaça à aura de gênio estratégico infalível não é tanto a violência indiscriminada contra civis ucranianos, mas simplesmente a incompetência grotesca ao planejar e gerenciar um conflito bélico. Como Janan Ganesh escreveu recentemente, ditadores podem se dar o luxo de parecer insensíveis ou até desumanos. Eles não podem, porém, se dar ao luxo de parecer ineptos.

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Presidente chinês Xi Jinping (esq.) e presidente russo Vladimir Putin (dir.) desfilam diante da guarda de honra durante cerimônia em Pequim, em 25 de junho de 2016 Foto: Mark Schiefelbein / AP

No caso da China, a concentração de poder político nas mãos de Xi Jinping – inédita desde os tempos de Mao – teve consequências nefastas quando a política de “covid zero”, apresentada como estratégia desenhada pessoalmente pelo líder chinês – tornou-se cada vez mais problemática. Em vez de simplesmente mudar de estratégia, Xi, relutante em reconhecer o erro, insistiu em manter uma abordagem que elevou a frustração da população e contribuiu para os protestos das últimas semanas. A situação ganhou feições absurdas quando, na hora de transmitir os jogos da Copa do Mundo, o governo chinês censurou imagens de torcedores aglomerados sem máscara, temeroso de que elas levassem os cidadãos a questionar os frequentes lockdowns na China enquanto o restante do mundo parecia ter virado a página da pandemia. A ausência de entidades políticas capazes de questionar o presidente chinês explica como o país acabou chegando a um impasse: o fim da política “covid zero” pode levar ao colapso do sistema de saúde – pois muitos chineses, sobretudo idosos, não receberam as três doses –, mas sua continuação pode produzir instabilidade política em grande escala.

É pouco provável que os erros de Putin e Xi cheguem a ameaçá-los ou que afetem o amplo controle que ambos têm do processo político. Mas não há dúvida de que suas decisões ao longo de 2022 reduzem o apelo dos sistemas que representam. Até recentemente, era comum ouvir, nos bastidores da política europeia e americana, elogios à inteligência de Putin. Hoje, apenas as tendências mais radicais à esquerda e à direita veem no presidente russo um exemplo a ser emulado.

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A democracia pode ser frustrante, lenta e nem sempre capaz de corrigir a tempo os erros de seus dirigentes. O ex-presidente George W. Bush, por exemplo, líder notoriamente incompetente, reelegeu-se mesmo depois da decisão desastrosa de invadir o Iraque em 2003. Muitas vezes, porém, o mecanismo funciona: quando perceberam que Donald Trump era incapaz de gerenciar a pandemia, os eleitores americanos puderam substituí-lo.

Nada disso garante uma superação fácil da atual crise da democracia, mas, para quem acreditava que maior concentração de poder nas mãos de um presidente seria uma solução, 2022 traz um alerta importante, expresso na famosa frase atribuída a Winston Churchill: a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras.

Mundo afora, a democracia vive sua pior crise em décadas, marcada pela ascensão de lideranças com retórica autoritária, a proliferação de fake news e uma polarização destrutiva. Ao longo dos últimos anos, governos autocráticos, como o da China ou o da Rússia, buscaram aproveitar essa situação para expor o contraste entre sua elite política (por eles considerada mais estável e preparada tecnicamente) e a das democracias liberais (supostamente lenta em seus processos decisórios, menos preparada e imprevisível). A imprensa estatal chinesa também deu amplo destaque às cenas da invasão do Capitólio em Washington, em 6 de janeiro de 2021, aos confrontos cada vez mais acirrados entre esquerda e direita em países democráticos e à resposta inicialmente confusa à pandemia em várias dessas nações. Trata-se de clara tentativa de demonstrar que democracias liberais não estão adequadamente preparadas para lidar com os desafios do século 21.

Até mesmo em países democráticos essa narrativa surtiu algum efeito ao longo dos últimos anos. Teve ampla repercussão, no início da pandemia, a ideia de que governos autoritários como a China estavam possivelmente mais bem preparados para lidar com a covid-19. Quando Vladimir Putin decidiu invadir a Ucrânia, em fevereiro, não eram poucos os analistas e tomadores de decisão no Ocidente que, publicamente ou em off, ficaram maravilhados com o suposto brilhantismo estratégico do presidente russo. Numerosas vozes da extrema esquerda e da extrema direita na Europa – como, por exemplo, Matteo Salvini, o atual vice-primeiro-ministro da Itália – fizeram pouco para esconder sua convicção de que faltava, nas democracias, um “homem forte” como Putin.

O ano de 2022, porém, expôs os imensos riscos que a ausência de freios e contrapesos representa: não havia instância política na Rússia capaz de fazer Putin explicar melhor sua decisão de invadir a Ucrânia; nenhum Legislativo, nenhuma imprensa livre que pudesse questionar os planos do presidente. Nove meses depois da invasão e de uma guerra cada vez mais desastrosa para a Rússia, a maior ameaça à aura de gênio estratégico infalível não é tanto a violência indiscriminada contra civis ucranianos, mas simplesmente a incompetência grotesca ao planejar e gerenciar um conflito bélico. Como Janan Ganesh escreveu recentemente, ditadores podem se dar o luxo de parecer insensíveis ou até desumanos. Eles não podem, porém, se dar ao luxo de parecer ineptos.

Presidente chinês Xi Jinping (esq.) e presidente russo Vladimir Putin (dir.) desfilam diante da guarda de honra durante cerimônia em Pequim, em 25 de junho de 2016 Foto: Mark Schiefelbein / AP

No caso da China, a concentração de poder político nas mãos de Xi Jinping – inédita desde os tempos de Mao – teve consequências nefastas quando a política de “covid zero”, apresentada como estratégia desenhada pessoalmente pelo líder chinês – tornou-se cada vez mais problemática. Em vez de simplesmente mudar de estratégia, Xi, relutante em reconhecer o erro, insistiu em manter uma abordagem que elevou a frustração da população e contribuiu para os protestos das últimas semanas. A situação ganhou feições absurdas quando, na hora de transmitir os jogos da Copa do Mundo, o governo chinês censurou imagens de torcedores aglomerados sem máscara, temeroso de que elas levassem os cidadãos a questionar os frequentes lockdowns na China enquanto o restante do mundo parecia ter virado a página da pandemia. A ausência de entidades políticas capazes de questionar o presidente chinês explica como o país acabou chegando a um impasse: o fim da política “covid zero” pode levar ao colapso do sistema de saúde – pois muitos chineses, sobretudo idosos, não receberam as três doses –, mas sua continuação pode produzir instabilidade política em grande escala.

É pouco provável que os erros de Putin e Xi cheguem a ameaçá-los ou que afetem o amplo controle que ambos têm do processo político. Mas não há dúvida de que suas decisões ao longo de 2022 reduzem o apelo dos sistemas que representam. Até recentemente, era comum ouvir, nos bastidores da política europeia e americana, elogios à inteligência de Putin. Hoje, apenas as tendências mais radicais à esquerda e à direita veem no presidente russo um exemplo a ser emulado.

A democracia pode ser frustrante, lenta e nem sempre capaz de corrigir a tempo os erros de seus dirigentes. O ex-presidente George W. Bush, por exemplo, líder notoriamente incompetente, reelegeu-se mesmo depois da decisão desastrosa de invadir o Iraque em 2003. Muitas vezes, porém, o mecanismo funciona: quando perceberam que Donald Trump era incapaz de gerenciar a pandemia, os eleitores americanos puderam substituí-lo.

Nada disso garante uma superação fácil da atual crise da democracia, mas, para quem acreditava que maior concentração de poder nas mãos de um presidente seria uma solução, 2022 traz um alerta importante, expresso na famosa frase atribuída a Winston Churchill: a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras.

Mundo afora, a democracia vive sua pior crise em décadas, marcada pela ascensão de lideranças com retórica autoritária, a proliferação de fake news e uma polarização destrutiva. Ao longo dos últimos anos, governos autocráticos, como o da China ou o da Rússia, buscaram aproveitar essa situação para expor o contraste entre sua elite política (por eles considerada mais estável e preparada tecnicamente) e a das democracias liberais (supostamente lenta em seus processos decisórios, menos preparada e imprevisível). A imprensa estatal chinesa também deu amplo destaque às cenas da invasão do Capitólio em Washington, em 6 de janeiro de 2021, aos confrontos cada vez mais acirrados entre esquerda e direita em países democráticos e à resposta inicialmente confusa à pandemia em várias dessas nações. Trata-se de clara tentativa de demonstrar que democracias liberais não estão adequadamente preparadas para lidar com os desafios do século 21.

Até mesmo em países democráticos essa narrativa surtiu algum efeito ao longo dos últimos anos. Teve ampla repercussão, no início da pandemia, a ideia de que governos autoritários como a China estavam possivelmente mais bem preparados para lidar com a covid-19. Quando Vladimir Putin decidiu invadir a Ucrânia, em fevereiro, não eram poucos os analistas e tomadores de decisão no Ocidente que, publicamente ou em off, ficaram maravilhados com o suposto brilhantismo estratégico do presidente russo. Numerosas vozes da extrema esquerda e da extrema direita na Europa – como, por exemplo, Matteo Salvini, o atual vice-primeiro-ministro da Itália – fizeram pouco para esconder sua convicção de que faltava, nas democracias, um “homem forte” como Putin.

O ano de 2022, porém, expôs os imensos riscos que a ausência de freios e contrapesos representa: não havia instância política na Rússia capaz de fazer Putin explicar melhor sua decisão de invadir a Ucrânia; nenhum Legislativo, nenhuma imprensa livre que pudesse questionar os planos do presidente. Nove meses depois da invasão e de uma guerra cada vez mais desastrosa para a Rússia, a maior ameaça à aura de gênio estratégico infalível não é tanto a violência indiscriminada contra civis ucranianos, mas simplesmente a incompetência grotesca ao planejar e gerenciar um conflito bélico. Como Janan Ganesh escreveu recentemente, ditadores podem se dar o luxo de parecer insensíveis ou até desumanos. Eles não podem, porém, se dar ao luxo de parecer ineptos.

Presidente chinês Xi Jinping (esq.) e presidente russo Vladimir Putin (dir.) desfilam diante da guarda de honra durante cerimônia em Pequim, em 25 de junho de 2016 Foto: Mark Schiefelbein / AP

No caso da China, a concentração de poder político nas mãos de Xi Jinping – inédita desde os tempos de Mao – teve consequências nefastas quando a política de “covid zero”, apresentada como estratégia desenhada pessoalmente pelo líder chinês – tornou-se cada vez mais problemática. Em vez de simplesmente mudar de estratégia, Xi, relutante em reconhecer o erro, insistiu em manter uma abordagem que elevou a frustração da população e contribuiu para os protestos das últimas semanas. A situação ganhou feições absurdas quando, na hora de transmitir os jogos da Copa do Mundo, o governo chinês censurou imagens de torcedores aglomerados sem máscara, temeroso de que elas levassem os cidadãos a questionar os frequentes lockdowns na China enquanto o restante do mundo parecia ter virado a página da pandemia. A ausência de entidades políticas capazes de questionar o presidente chinês explica como o país acabou chegando a um impasse: o fim da política “covid zero” pode levar ao colapso do sistema de saúde – pois muitos chineses, sobretudo idosos, não receberam as três doses –, mas sua continuação pode produzir instabilidade política em grande escala.

É pouco provável que os erros de Putin e Xi cheguem a ameaçá-los ou que afetem o amplo controle que ambos têm do processo político. Mas não há dúvida de que suas decisões ao longo de 2022 reduzem o apelo dos sistemas que representam. Até recentemente, era comum ouvir, nos bastidores da política europeia e americana, elogios à inteligência de Putin. Hoje, apenas as tendências mais radicais à esquerda e à direita veem no presidente russo um exemplo a ser emulado.

A democracia pode ser frustrante, lenta e nem sempre capaz de corrigir a tempo os erros de seus dirigentes. O ex-presidente George W. Bush, por exemplo, líder notoriamente incompetente, reelegeu-se mesmo depois da decisão desastrosa de invadir o Iraque em 2003. Muitas vezes, porém, o mecanismo funciona: quando perceberam que Donald Trump era incapaz de gerenciar a pandemia, os eleitores americanos puderam substituí-lo.

Nada disso garante uma superação fácil da atual crise da democracia, mas, para quem acreditava que maior concentração de poder nas mãos de um presidente seria uma solução, 2022 traz um alerta importante, expresso na famosa frase atribuída a Winston Churchill: a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras.

Opinião por Oliver Stuenkel

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