O debate público russo sobre a invasão à Ucrânia – ainda chamada oficialmente de “operação militar especial” pelo governo de Vladimir Putin – mudou de forma significativa ao longo das últimas semanas. Enquanto não havia quase nenhum espaço para questionar a guerra durante os primeiros meses, cresce agora o número daqueles que criticam o desempenho militar russo de forma aberta – algo nada trivial em um país onde “desacreditar as forças armadas” prevê sentença de até 15 anos de prisão.
Porém, pelo menos uma parte dessas críticas parece ser orquestrada pelo próprio Kremlin em uma tentativa de convencer a população de que os recentes fracassos na Ucrânia não são culpa do presidente, mas de seus generais. Não surpreende, portanto, que Vladimir Putin tenha optado recentemente por trocar mais uma vez o comando militar e nomear o general Sergei Surovikin, notório pelas táticas controversas contra alvos civis na guerra da Síria, para liderar as operações militares na Ucrânia.
Surovkin precisará de vitórias rápidas diante do avanço das tropas ucranianas, que recentemente conseguiram reconquistar território nas quatro províncias que Putin recentemente “anexou”. O general siberiano, que já foi condenado por tráfico ilegal de armas e passou um tempo na prisão, terá que depender de dezenas de milhares de reservistas com praticamente nenhuma experiência de batalha, que enfrentarão soldados ucranianos mais motivados e com armas mais sofisticadas.
Risco de confronto nuclear
Apesar da situação militar preocupante e das recentes humilhações sofridas pelo governo russo – como investidas contra sua base militar na Crimeia e, mais recentemente, o ataque contra a ponte Kerch que conecta a Rússia à península –, é pouco provável que Putin esteja desesperado ao ponto de usar armas nucleares contra a Ucrânia. Por enquanto, suas ameaças cada vez mais frequentes, que levaram o presidente americano Biden a dizer, na semana passada, que o mundo enfrenta o maior risco de um apocalipse nuclear desde a Crise dos Mísseis nos anos 1960, ainda precisam ser vistos como parte da negociação do governo russo com o Ocidente.
Vladimir Putin tenta fortalecer o grupo de europeus para quem uma vitória ucraniana contra a Rússia representaria uma provocação irresponsável de Moscou, e aumentaria a probabilidade de um ataque nuclear. Da mesma forma, aposta no descontentamento público cada vez maior no Ocidente com a crise energética causada pela falta de gás russo.
A estratégia do mandatário russo, porém, pode revelar-se como tiro na culatra: nada mais une tanto os europeus contra a Rússia do que as ameaças nucleares do presidente Putin. Até mesmo os líderes ocidentais mais cautelosos enxergam que recuar agora diante da retórica russa seria aceitar uma estratégia de chantagem não vista há décadas; e isso poderia encorajar a Rússia a usá-la com mais frequência no futuro e tentar anexar o resto da Ucrânia nos próximos anos.
China, Índia e a resposta americana
Além disso, o presidente russo sabe que o uso de uma arma nuclear por parte de Moscou mudaria a resposta global à guerra de forma dramática: tanto a China quanto a Índia, dois aliados cruciais para atenuar o impacto das sanções ocidentais, se afastariam de Putin. Mesmo se for um ataque simbólico – por exemplo, usando uma arma nuclear tática de menor porte –, a Rússia sofreria sanções e um isolamento diplomático jamais visto, seriamente impactando a economia russa. Até mesmo dentro da Rússia, cada vez mais comentaristas ressaltam que o uso de armas nucleares seria um erro.
Para aqueles que se preocupam com um confronto nuclear entre a Rússia e os EUA, vale lembrar que a resposta de Washington ao uso de uma bomba atômica russa contra Ucrânia muito provavelmente seria não-escalatória – ou seja, a réplica seria desenhada de forma que a tréplica russa não fosse pior do que o ataque inicial.
Acertar na resposta seria um dos desafios militares mais difíceis da história dos EUA, superior ao que qualquer presidente americano tenha enfrentado desde a Segunda Guerra Mundial. É quase certo, porém, que Washington optaria por uma reação convencional, ou seja, reagir sem lançar mão de seu arsenal nuclear.
Entre as possíveis repostas dos EUA ao uso da bomba atômica russa, fala-se, nas rodas de fofoca na capital americana, de um ataque convencional contra a frota russa no Mar Negro, evitando assim a presença de tropas americanas em solo ucraniano. Outros especulam sobre uma série de ataques cibernéticos americanos contra a Rússia. Seja o que for, é importante lembrar que a chance de um confronto nuclear entre a Rússia e os EUA é muito pouco provável. Diferentemente da Rússia, onde comentaristas de TV hoje sem pudor conversam sobre o uso de armas nucleares contra o Ocidente, nos EUA nem as vozes mais radicais advogam algo do tipo.