Analista político e professor de Relações Internacionais da FGV-SP. Escreve quinzenalmente

Opinião|Guerra na Ucrânia e tensão em Taiwan complicam estratégia de neutralidade do Brasil


O Brasil precisará saber se posicionar para além das típicas ‘saias justas’ na votações da ONU

Por Oliver Stuenkel
Atualização:

Mesmo em um ambiente polarizado e com candidatos à Presidência apresentando visões de mundo profundamente diferentes, preservou-se, ao longo das últimas décadas, um certo consenso em uma área da política externa brasileira. FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro, geralmente buscaram, salvo algumas exceções como o estremecimento da relação entre o Brasil e a Europa durante o governo atual, manter o Brasil longe das principais tensões geopolíticas e buscar uma posição minimamente neutra e equidistante entre as grandes potências. Mesmo atacando a China frequentemente nos primeiros dois anos de seu mandato e buscando se aproximar do então presidente americano Donald Trump, Bolsonaro nunca perdeu uma cúpula do grupo Brics e resistiu à pressão de Washington para banir a empresa chinesa de telecomunicações Huawei como fornecedora da rede 5G.

Cyril Ramaphosa (África do Sul), Xi Jinping (China), Narendra Modi (Índia), Vladimir Putin (Rússia) e Jair Bolsonaro durante encontro do Brics, em Brasília Foto: Pavel Golovkin/Pool/ Reuters

Da mesma forma, a reação de Bolsonaro à invasão russa à Ucrânia – manter, em termos gerais, um perfil neutro e evitar um alinhamento formal – não gerou críticas relevantes de seus rivais. Ao contrário, o ex-chanceler Celso Amorim, do PT, chegou a defender a decisão do presidente Bolsonaro de visitar Moscou poucos dias antes da guerra. De maneira análoga, a presidente Dilma resistiu, depois da invasão russa à Crimeia em 2014, à pressão de governos ocidentais para “desconvidar” Vladimir Putin para a cúpula do Brics em Fortaleza.

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Equidistância do Brasil de temas polêmicos

Há motivos concretos para a busca brasileira pelo “não alinhamento” ou a “equidistância” entre os Estados Unidos, a China, a Rússia e a União Europeia: além de preservar os importantes laços econômicos entre todos, tanto a esquerda quanto a direita brasileira geralmente defendem a tradição autonomista de evitar um alinhamento que amarre o Brasil e limite sua flexibilidade estratégica.

Com exceção dos últimos três anos, que viram uma piora das relações brasileiras com várias potências, essa estratégia foi muito bem-sucedida: o Brasil ainda costuma ser visto como um dos poucos países do mundo que consegue, de forma crível, fazer parte de clubes totalmente diferentes ou até antagônicos — G20, Brics, G77, Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (liderado pela China) — e, ao mesmo tempo, pleitear um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e buscar adesão à OCDE.

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Se Luiz Inácio Lula da Silva vencer as eleições presidenciais em outubro, como as pesquisas atualmente sugerem, a continuação da tradicional estratégia de equidistância entre os principais polos de poder – e a preservação das relações do Brasil com Washington, Pequim, Moscou e a União Europeia – será o maior desafio de sua política externa. Afinal, enquanto a dinâmica dominante entre o início da década de 1990 e o fim do decênio de 2010 foi a ausência de tensões geopolíticas sérias, agora o quadro é bem outro. A recente “geopolitização” do sistema internacional (simbolizado pela piora significativa das relações entre Washington e Pequim), bem como a invasão russa à Ucrânia e as tensões em Taiwan, parecem ser apenas o começo do que pode vir pela frente.

A guerra na Ucrânia encontra-se em uma espiral de intensificação: depois da decisão de Putin de dobrar a aposta e mobilizar 300 mil reservistas, o Ocidente deve ampliar as sanções contra a Rússia e o envio de armas a Kiev.

Cortina de ferro digital é uma realidade

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Possivelmente ainda mais importante é a guerra tecnológica entre o Ocidente e a China, com o surgimento de uma “Cortina de Ferro Digital” – ou seja, um mundo dividido entre duas esferas tecnológicas não compatíveis – bem como uma fragmentação cada vez maior de plataformas globais (como o sistema SWIFT, ao qual muitos bancos russos não têm mais acesso).

Em um contexto como esse, o Brasil precisará saber se posicionar de maneira estrategicamente equidistante, para além das típicas “saias justas” em votações delicadas na Assembleia-Geral da ONU ou quando ocupa uma cadeira de membro não permanente no Conselho de Segurança dessa mesma organização. Para viabilizar essa estratégia em meio a tensões geopolíticas cada vez mais profundas, os próximos presidentes brasileiros devem lidar com dois desafios nada triviais.

O primeiro é a possibilidade de decepcionar os próprios militantes (sejam de direita, sejam de esquerda), os quais costumam defender que o Brasil abandone a neutralidade e aproxime-se dos polos de poder mais alinhados com suas convicções ideológicas.

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O segundo é reconhecer o fato de que quanto mais o Brasil conseguir prover bens públicos globais no futuro – seja como fornecedor de tropas de paz da ONU, seja como líder no combate contra o desmatamento, seja como aliado respeitado por todos no combate contra pandemias –, mais forte estará para resistir às pressões de Washington e de Pequim para escolher um lado. Dessa “sinuca de bico” o próximo presidente brasileiro, seja quem for, não terá como escapar.

Mesmo em um ambiente polarizado e com candidatos à Presidência apresentando visões de mundo profundamente diferentes, preservou-se, ao longo das últimas décadas, um certo consenso em uma área da política externa brasileira. FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro, geralmente buscaram, salvo algumas exceções como o estremecimento da relação entre o Brasil e a Europa durante o governo atual, manter o Brasil longe das principais tensões geopolíticas e buscar uma posição minimamente neutra e equidistante entre as grandes potências. Mesmo atacando a China frequentemente nos primeiros dois anos de seu mandato e buscando se aproximar do então presidente americano Donald Trump, Bolsonaro nunca perdeu uma cúpula do grupo Brics e resistiu à pressão de Washington para banir a empresa chinesa de telecomunicações Huawei como fornecedora da rede 5G.

Cyril Ramaphosa (África do Sul), Xi Jinping (China), Narendra Modi (Índia), Vladimir Putin (Rússia) e Jair Bolsonaro durante encontro do Brics, em Brasília Foto: Pavel Golovkin/Pool/ Reuters

Da mesma forma, a reação de Bolsonaro à invasão russa à Ucrânia – manter, em termos gerais, um perfil neutro e evitar um alinhamento formal – não gerou críticas relevantes de seus rivais. Ao contrário, o ex-chanceler Celso Amorim, do PT, chegou a defender a decisão do presidente Bolsonaro de visitar Moscou poucos dias antes da guerra. De maneira análoga, a presidente Dilma resistiu, depois da invasão russa à Crimeia em 2014, à pressão de governos ocidentais para “desconvidar” Vladimir Putin para a cúpula do Brics em Fortaleza.

Equidistância do Brasil de temas polêmicos

Há motivos concretos para a busca brasileira pelo “não alinhamento” ou a “equidistância” entre os Estados Unidos, a China, a Rússia e a União Europeia: além de preservar os importantes laços econômicos entre todos, tanto a esquerda quanto a direita brasileira geralmente defendem a tradição autonomista de evitar um alinhamento que amarre o Brasil e limite sua flexibilidade estratégica.

Com exceção dos últimos três anos, que viram uma piora das relações brasileiras com várias potências, essa estratégia foi muito bem-sucedida: o Brasil ainda costuma ser visto como um dos poucos países do mundo que consegue, de forma crível, fazer parte de clubes totalmente diferentes ou até antagônicos — G20, Brics, G77, Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (liderado pela China) — e, ao mesmo tempo, pleitear um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e buscar adesão à OCDE.

Se Luiz Inácio Lula da Silva vencer as eleições presidenciais em outubro, como as pesquisas atualmente sugerem, a continuação da tradicional estratégia de equidistância entre os principais polos de poder – e a preservação das relações do Brasil com Washington, Pequim, Moscou e a União Europeia – será o maior desafio de sua política externa. Afinal, enquanto a dinâmica dominante entre o início da década de 1990 e o fim do decênio de 2010 foi a ausência de tensões geopolíticas sérias, agora o quadro é bem outro. A recente “geopolitização” do sistema internacional (simbolizado pela piora significativa das relações entre Washington e Pequim), bem como a invasão russa à Ucrânia e as tensões em Taiwan, parecem ser apenas o começo do que pode vir pela frente.

A guerra na Ucrânia encontra-se em uma espiral de intensificação: depois da decisão de Putin de dobrar a aposta e mobilizar 300 mil reservistas, o Ocidente deve ampliar as sanções contra a Rússia e o envio de armas a Kiev.

Cortina de ferro digital é uma realidade

Possivelmente ainda mais importante é a guerra tecnológica entre o Ocidente e a China, com o surgimento de uma “Cortina de Ferro Digital” – ou seja, um mundo dividido entre duas esferas tecnológicas não compatíveis – bem como uma fragmentação cada vez maior de plataformas globais (como o sistema SWIFT, ao qual muitos bancos russos não têm mais acesso).

Em um contexto como esse, o Brasil precisará saber se posicionar de maneira estrategicamente equidistante, para além das típicas “saias justas” em votações delicadas na Assembleia-Geral da ONU ou quando ocupa uma cadeira de membro não permanente no Conselho de Segurança dessa mesma organização. Para viabilizar essa estratégia em meio a tensões geopolíticas cada vez mais profundas, os próximos presidentes brasileiros devem lidar com dois desafios nada triviais.

O primeiro é a possibilidade de decepcionar os próprios militantes (sejam de direita, sejam de esquerda), os quais costumam defender que o Brasil abandone a neutralidade e aproxime-se dos polos de poder mais alinhados com suas convicções ideológicas.

O segundo é reconhecer o fato de que quanto mais o Brasil conseguir prover bens públicos globais no futuro – seja como fornecedor de tropas de paz da ONU, seja como líder no combate contra o desmatamento, seja como aliado respeitado por todos no combate contra pandemias –, mais forte estará para resistir às pressões de Washington e de Pequim para escolher um lado. Dessa “sinuca de bico” o próximo presidente brasileiro, seja quem for, não terá como escapar.

Mesmo em um ambiente polarizado e com candidatos à Presidência apresentando visões de mundo profundamente diferentes, preservou-se, ao longo das últimas décadas, um certo consenso em uma área da política externa brasileira. FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro, geralmente buscaram, salvo algumas exceções como o estremecimento da relação entre o Brasil e a Europa durante o governo atual, manter o Brasil longe das principais tensões geopolíticas e buscar uma posição minimamente neutra e equidistante entre as grandes potências. Mesmo atacando a China frequentemente nos primeiros dois anos de seu mandato e buscando se aproximar do então presidente americano Donald Trump, Bolsonaro nunca perdeu uma cúpula do grupo Brics e resistiu à pressão de Washington para banir a empresa chinesa de telecomunicações Huawei como fornecedora da rede 5G.

Cyril Ramaphosa (África do Sul), Xi Jinping (China), Narendra Modi (Índia), Vladimir Putin (Rússia) e Jair Bolsonaro durante encontro do Brics, em Brasília Foto: Pavel Golovkin/Pool/ Reuters

Da mesma forma, a reação de Bolsonaro à invasão russa à Ucrânia – manter, em termos gerais, um perfil neutro e evitar um alinhamento formal – não gerou críticas relevantes de seus rivais. Ao contrário, o ex-chanceler Celso Amorim, do PT, chegou a defender a decisão do presidente Bolsonaro de visitar Moscou poucos dias antes da guerra. De maneira análoga, a presidente Dilma resistiu, depois da invasão russa à Crimeia em 2014, à pressão de governos ocidentais para “desconvidar” Vladimir Putin para a cúpula do Brics em Fortaleza.

Equidistância do Brasil de temas polêmicos

Há motivos concretos para a busca brasileira pelo “não alinhamento” ou a “equidistância” entre os Estados Unidos, a China, a Rússia e a União Europeia: além de preservar os importantes laços econômicos entre todos, tanto a esquerda quanto a direita brasileira geralmente defendem a tradição autonomista de evitar um alinhamento que amarre o Brasil e limite sua flexibilidade estratégica.

Com exceção dos últimos três anos, que viram uma piora das relações brasileiras com várias potências, essa estratégia foi muito bem-sucedida: o Brasil ainda costuma ser visto como um dos poucos países do mundo que consegue, de forma crível, fazer parte de clubes totalmente diferentes ou até antagônicos — G20, Brics, G77, Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (liderado pela China) — e, ao mesmo tempo, pleitear um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e buscar adesão à OCDE.

Se Luiz Inácio Lula da Silva vencer as eleições presidenciais em outubro, como as pesquisas atualmente sugerem, a continuação da tradicional estratégia de equidistância entre os principais polos de poder – e a preservação das relações do Brasil com Washington, Pequim, Moscou e a União Europeia – será o maior desafio de sua política externa. Afinal, enquanto a dinâmica dominante entre o início da década de 1990 e o fim do decênio de 2010 foi a ausência de tensões geopolíticas sérias, agora o quadro é bem outro. A recente “geopolitização” do sistema internacional (simbolizado pela piora significativa das relações entre Washington e Pequim), bem como a invasão russa à Ucrânia e as tensões em Taiwan, parecem ser apenas o começo do que pode vir pela frente.

A guerra na Ucrânia encontra-se em uma espiral de intensificação: depois da decisão de Putin de dobrar a aposta e mobilizar 300 mil reservistas, o Ocidente deve ampliar as sanções contra a Rússia e o envio de armas a Kiev.

Cortina de ferro digital é uma realidade

Possivelmente ainda mais importante é a guerra tecnológica entre o Ocidente e a China, com o surgimento de uma “Cortina de Ferro Digital” – ou seja, um mundo dividido entre duas esferas tecnológicas não compatíveis – bem como uma fragmentação cada vez maior de plataformas globais (como o sistema SWIFT, ao qual muitos bancos russos não têm mais acesso).

Em um contexto como esse, o Brasil precisará saber se posicionar de maneira estrategicamente equidistante, para além das típicas “saias justas” em votações delicadas na Assembleia-Geral da ONU ou quando ocupa uma cadeira de membro não permanente no Conselho de Segurança dessa mesma organização. Para viabilizar essa estratégia em meio a tensões geopolíticas cada vez mais profundas, os próximos presidentes brasileiros devem lidar com dois desafios nada triviais.

O primeiro é a possibilidade de decepcionar os próprios militantes (sejam de direita, sejam de esquerda), os quais costumam defender que o Brasil abandone a neutralidade e aproxime-se dos polos de poder mais alinhados com suas convicções ideológicas.

O segundo é reconhecer o fato de que quanto mais o Brasil conseguir prover bens públicos globais no futuro – seja como fornecedor de tropas de paz da ONU, seja como líder no combate contra o desmatamento, seja como aliado respeitado por todos no combate contra pandemias –, mais forte estará para resistir às pressões de Washington e de Pequim para escolher um lado. Dessa “sinuca de bico” o próximo presidente brasileiro, seja quem for, não terá como escapar.

Mesmo em um ambiente polarizado e com candidatos à Presidência apresentando visões de mundo profundamente diferentes, preservou-se, ao longo das últimas décadas, um certo consenso em uma área da política externa brasileira. FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro, geralmente buscaram, salvo algumas exceções como o estremecimento da relação entre o Brasil e a Europa durante o governo atual, manter o Brasil longe das principais tensões geopolíticas e buscar uma posição minimamente neutra e equidistante entre as grandes potências. Mesmo atacando a China frequentemente nos primeiros dois anos de seu mandato e buscando se aproximar do então presidente americano Donald Trump, Bolsonaro nunca perdeu uma cúpula do grupo Brics e resistiu à pressão de Washington para banir a empresa chinesa de telecomunicações Huawei como fornecedora da rede 5G.

Cyril Ramaphosa (África do Sul), Xi Jinping (China), Narendra Modi (Índia), Vladimir Putin (Rússia) e Jair Bolsonaro durante encontro do Brics, em Brasília Foto: Pavel Golovkin/Pool/ Reuters

Da mesma forma, a reação de Bolsonaro à invasão russa à Ucrânia – manter, em termos gerais, um perfil neutro e evitar um alinhamento formal – não gerou críticas relevantes de seus rivais. Ao contrário, o ex-chanceler Celso Amorim, do PT, chegou a defender a decisão do presidente Bolsonaro de visitar Moscou poucos dias antes da guerra. De maneira análoga, a presidente Dilma resistiu, depois da invasão russa à Crimeia em 2014, à pressão de governos ocidentais para “desconvidar” Vladimir Putin para a cúpula do Brics em Fortaleza.

Equidistância do Brasil de temas polêmicos

Há motivos concretos para a busca brasileira pelo “não alinhamento” ou a “equidistância” entre os Estados Unidos, a China, a Rússia e a União Europeia: além de preservar os importantes laços econômicos entre todos, tanto a esquerda quanto a direita brasileira geralmente defendem a tradição autonomista de evitar um alinhamento que amarre o Brasil e limite sua flexibilidade estratégica.

Com exceção dos últimos três anos, que viram uma piora das relações brasileiras com várias potências, essa estratégia foi muito bem-sucedida: o Brasil ainda costuma ser visto como um dos poucos países do mundo que consegue, de forma crível, fazer parte de clubes totalmente diferentes ou até antagônicos — G20, Brics, G77, Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (liderado pela China) — e, ao mesmo tempo, pleitear um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e buscar adesão à OCDE.

Se Luiz Inácio Lula da Silva vencer as eleições presidenciais em outubro, como as pesquisas atualmente sugerem, a continuação da tradicional estratégia de equidistância entre os principais polos de poder – e a preservação das relações do Brasil com Washington, Pequim, Moscou e a União Europeia – será o maior desafio de sua política externa. Afinal, enquanto a dinâmica dominante entre o início da década de 1990 e o fim do decênio de 2010 foi a ausência de tensões geopolíticas sérias, agora o quadro é bem outro. A recente “geopolitização” do sistema internacional (simbolizado pela piora significativa das relações entre Washington e Pequim), bem como a invasão russa à Ucrânia e as tensões em Taiwan, parecem ser apenas o começo do que pode vir pela frente.

A guerra na Ucrânia encontra-se em uma espiral de intensificação: depois da decisão de Putin de dobrar a aposta e mobilizar 300 mil reservistas, o Ocidente deve ampliar as sanções contra a Rússia e o envio de armas a Kiev.

Cortina de ferro digital é uma realidade

Possivelmente ainda mais importante é a guerra tecnológica entre o Ocidente e a China, com o surgimento de uma “Cortina de Ferro Digital” – ou seja, um mundo dividido entre duas esferas tecnológicas não compatíveis – bem como uma fragmentação cada vez maior de plataformas globais (como o sistema SWIFT, ao qual muitos bancos russos não têm mais acesso).

Em um contexto como esse, o Brasil precisará saber se posicionar de maneira estrategicamente equidistante, para além das típicas “saias justas” em votações delicadas na Assembleia-Geral da ONU ou quando ocupa uma cadeira de membro não permanente no Conselho de Segurança dessa mesma organização. Para viabilizar essa estratégia em meio a tensões geopolíticas cada vez mais profundas, os próximos presidentes brasileiros devem lidar com dois desafios nada triviais.

O primeiro é a possibilidade de decepcionar os próprios militantes (sejam de direita, sejam de esquerda), os quais costumam defender que o Brasil abandone a neutralidade e aproxime-se dos polos de poder mais alinhados com suas convicções ideológicas.

O segundo é reconhecer o fato de que quanto mais o Brasil conseguir prover bens públicos globais no futuro – seja como fornecedor de tropas de paz da ONU, seja como líder no combate contra o desmatamento, seja como aliado respeitado por todos no combate contra pandemias –, mais forte estará para resistir às pressões de Washington e de Pequim para escolher um lado. Dessa “sinuca de bico” o próximo presidente brasileiro, seja quem for, não terá como escapar.

Mesmo em um ambiente polarizado e com candidatos à Presidência apresentando visões de mundo profundamente diferentes, preservou-se, ao longo das últimas décadas, um certo consenso em uma área da política externa brasileira. FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro, geralmente buscaram, salvo algumas exceções como o estremecimento da relação entre o Brasil e a Europa durante o governo atual, manter o Brasil longe das principais tensões geopolíticas e buscar uma posição minimamente neutra e equidistante entre as grandes potências. Mesmo atacando a China frequentemente nos primeiros dois anos de seu mandato e buscando se aproximar do então presidente americano Donald Trump, Bolsonaro nunca perdeu uma cúpula do grupo Brics e resistiu à pressão de Washington para banir a empresa chinesa de telecomunicações Huawei como fornecedora da rede 5G.

Cyril Ramaphosa (África do Sul), Xi Jinping (China), Narendra Modi (Índia), Vladimir Putin (Rússia) e Jair Bolsonaro durante encontro do Brics, em Brasília Foto: Pavel Golovkin/Pool/ Reuters

Da mesma forma, a reação de Bolsonaro à invasão russa à Ucrânia – manter, em termos gerais, um perfil neutro e evitar um alinhamento formal – não gerou críticas relevantes de seus rivais. Ao contrário, o ex-chanceler Celso Amorim, do PT, chegou a defender a decisão do presidente Bolsonaro de visitar Moscou poucos dias antes da guerra. De maneira análoga, a presidente Dilma resistiu, depois da invasão russa à Crimeia em 2014, à pressão de governos ocidentais para “desconvidar” Vladimir Putin para a cúpula do Brics em Fortaleza.

Equidistância do Brasil de temas polêmicos

Há motivos concretos para a busca brasileira pelo “não alinhamento” ou a “equidistância” entre os Estados Unidos, a China, a Rússia e a União Europeia: além de preservar os importantes laços econômicos entre todos, tanto a esquerda quanto a direita brasileira geralmente defendem a tradição autonomista de evitar um alinhamento que amarre o Brasil e limite sua flexibilidade estratégica.

Com exceção dos últimos três anos, que viram uma piora das relações brasileiras com várias potências, essa estratégia foi muito bem-sucedida: o Brasil ainda costuma ser visto como um dos poucos países do mundo que consegue, de forma crível, fazer parte de clubes totalmente diferentes ou até antagônicos — G20, Brics, G77, Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (liderado pela China) — e, ao mesmo tempo, pleitear um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e buscar adesão à OCDE.

Se Luiz Inácio Lula da Silva vencer as eleições presidenciais em outubro, como as pesquisas atualmente sugerem, a continuação da tradicional estratégia de equidistância entre os principais polos de poder – e a preservação das relações do Brasil com Washington, Pequim, Moscou e a União Europeia – será o maior desafio de sua política externa. Afinal, enquanto a dinâmica dominante entre o início da década de 1990 e o fim do decênio de 2010 foi a ausência de tensões geopolíticas sérias, agora o quadro é bem outro. A recente “geopolitização” do sistema internacional (simbolizado pela piora significativa das relações entre Washington e Pequim), bem como a invasão russa à Ucrânia e as tensões em Taiwan, parecem ser apenas o começo do que pode vir pela frente.

A guerra na Ucrânia encontra-se em uma espiral de intensificação: depois da decisão de Putin de dobrar a aposta e mobilizar 300 mil reservistas, o Ocidente deve ampliar as sanções contra a Rússia e o envio de armas a Kiev.

Cortina de ferro digital é uma realidade

Possivelmente ainda mais importante é a guerra tecnológica entre o Ocidente e a China, com o surgimento de uma “Cortina de Ferro Digital” – ou seja, um mundo dividido entre duas esferas tecnológicas não compatíveis – bem como uma fragmentação cada vez maior de plataformas globais (como o sistema SWIFT, ao qual muitos bancos russos não têm mais acesso).

Em um contexto como esse, o Brasil precisará saber se posicionar de maneira estrategicamente equidistante, para além das típicas “saias justas” em votações delicadas na Assembleia-Geral da ONU ou quando ocupa uma cadeira de membro não permanente no Conselho de Segurança dessa mesma organização. Para viabilizar essa estratégia em meio a tensões geopolíticas cada vez mais profundas, os próximos presidentes brasileiros devem lidar com dois desafios nada triviais.

O primeiro é a possibilidade de decepcionar os próprios militantes (sejam de direita, sejam de esquerda), os quais costumam defender que o Brasil abandone a neutralidade e aproxime-se dos polos de poder mais alinhados com suas convicções ideológicas.

O segundo é reconhecer o fato de que quanto mais o Brasil conseguir prover bens públicos globais no futuro – seja como fornecedor de tropas de paz da ONU, seja como líder no combate contra o desmatamento, seja como aliado respeitado por todos no combate contra pandemias –, mais forte estará para resistir às pressões de Washington e de Pequim para escolher um lado. Dessa “sinuca de bico” o próximo presidente brasileiro, seja quem for, não terá como escapar.

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