Analista político e professor de Relações Internacionais da FGV-SP. Escreve quinzenalmente

Opinião|Haiti já foi potência econômica com ampla influência geopolítica, mas hoje vive colapso


Crise atual no país caribenho faz esquecer que a Revolução Haitiana foi um dos eventos mais relevantes da história dos Direitos Humanos e da democracia

Por Oliver Stuenkel

O Haiti, país hoje marcado pela anarquia e extrema pobreza, já foi uma potência econômica com ampla influência geopolítica. Conhecido antigamente como Saint-Domingue, era a colônia mais lucrativa do mundo atlântico do século XVIII, e às vésperas de sua independência em 1804 – fruto da primeira e única revolta escrava bem-sucedida nas Américas – era o principal produtor mundial de açúcar e café, o que fazia do país caribenho uma peça central do sistema escravista atlântico.

A guerra da independência viu as forças revolucionárias de Saint-Domingue derrotarem ninguém menos que um exército francês de 80.000 homens enviados por Napoleão. Ao contrário de levantes fracassados em outras colônias, muitos escravos haitianos tinham nascido na África e adquirido experiência de combate significativa nas guerras civis na África Ocidental e Central, o que lhes permitiu derrotar as forças europeias muito mais bem armadas. A vitória haitiana não apenas deu origem à segunda república mais antiga das Américas (depois dos EUA), mas também à primeira república negra pós-colonial, que se converteu em um farol para a abolição e a autodeterminação.

O governo norte-americano ficou tão preocupado com a possibilidade de a independência haitiana inspirar escravizados nos Estados Unidos que Washington tentou impor um bloqueio econômico contra o Haiti e não reconheceu a nação caribenha como Estado soberano por mais de cinquenta anos. O então presidente dos EUA, Thomas Jefferson, sugeriu, numa conversa com o embaixador francês em Washington na época, a cooperação entre os Estados Unidos, a França e a Grã-Bretanha para “confinar esta doença [ao Haiti]”, “não permitindo que os negros adquiram navios”. Mesmo assim, como lembra o historiador Laurent Dubois, as notícias da vitória haitiana se espalharam entre escravos — desde o Brasil e Cuba até a Virgínia, nos EUA.

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Napoleão Bonaparte, por sua vez, ficou indignado com a derrota militar francesa: “Como é possível que a liberdade tenha sido dada aos africanos, aos homens que não tinham civilização, que nem sequer sabiam o que era a colônia, o que era a França?”. A perda do Haiti foi um dos fatores decisivos para Napoleão vender o território de Louisiana, dobrando de tamanho o espaço territorial estadunidense, que hoje corresponde a 23% dos Estados Unidos da América. Não surpreende que, já no exílio em Santa Helena, anos mais tarde, Napoleão visse no fracasso militar no Haiti uma de suas derrotas mais amargas.

De fato, a independência do Haiti foi a expressão mais concreta da ideia de que os direitos proclamados na famosa Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 eram de fato universais. Não é exagero dizer, portanto, que a revolução haitiana – precursora das lutas pela descolonização da África no século 20 – tenha sido quase tão relevante na história dos Direitos Humanos e da democracia quanto a revolução francesa, precisamente porque o Haiti garantiu que esses conceitos fossem verdadeiramente irrestritos e universais – uma ideia rejeitada pela maioria do Ocidente na época e que demoraria séculos para ser mais amplamente aceito.

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Onda de violência generalizada assola o Haiti desde que a “Família G9″, uma aliança entre várias gangues nacionais, se voltou contra o governo e fechou os principais acessos do país. 05/03/2024 - Foto: Odelyn Joseph/AP

Todo esse histórico inspirador torna o atual colapso haitiaino ainda mais trágico. Poucas outras nações no planeta sofreram tanto com uma terrível confluência de intervenções estrangeiras – inclusive uma ocupação dos EUA entre 1915 e 1934 –, instabilidade política e catástrofes naturais, como o terremoto em 2010, que matou cerca de 230 mil pessoas e deixou um milhão de desabrigados. Ao mesmo tempo, diante do histórico descrito acima, o cenário desolador ressalta a responsabilidade que a comunidade internacional tem com o Haiti de forma a ajudá-lo a sair de seu atual estado de anarquia. Porém, poucos países estão dispostos a enviar tropas para garantir um mínimo de estabilidade – inclusive para viabilizar a entrega de alimentos e para, em momento posterior, organizar eleições.

A relutância no exterior se deve aos fracassos de missões de paz anteriores, inclusive a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), liderada pelo Brasil entre 2004 e 2017, e uma missão liderada pelos EUA na década de 1990. Enquanto o então presidente Lula enxergou, em 2004, o envio de tropas brasileiras ao Haiti como uma oportunidade de demonstrar que o Brasil estaria disposto a assumir responsabilidades geopolíticas, a desconfiança entre civis e militares brasileiros hoje inviabiliza uma operação semelhante. Diante da indisposição quase generalizada, sobrou para o Quênia liderar uma nova missão policial no país caribenho – a primeira vez que uma nação africana lidera uma missão de paz fora do continente africano.

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Com mais da metade da população haitiana vivendo abaixo da linha da pobreza e um risco cada vez mais elevado de fome generalizada, só resta torcer para que os policiais quenianos possam ajudar a aliviar, mesmo que temporariamente, o sofrimento do povo haitiano.

O Haiti, país hoje marcado pela anarquia e extrema pobreza, já foi uma potência econômica com ampla influência geopolítica. Conhecido antigamente como Saint-Domingue, era a colônia mais lucrativa do mundo atlântico do século XVIII, e às vésperas de sua independência em 1804 – fruto da primeira e única revolta escrava bem-sucedida nas Américas – era o principal produtor mundial de açúcar e café, o que fazia do país caribenho uma peça central do sistema escravista atlântico.

A guerra da independência viu as forças revolucionárias de Saint-Domingue derrotarem ninguém menos que um exército francês de 80.000 homens enviados por Napoleão. Ao contrário de levantes fracassados em outras colônias, muitos escravos haitianos tinham nascido na África e adquirido experiência de combate significativa nas guerras civis na África Ocidental e Central, o que lhes permitiu derrotar as forças europeias muito mais bem armadas. A vitória haitiana não apenas deu origem à segunda república mais antiga das Américas (depois dos EUA), mas também à primeira república negra pós-colonial, que se converteu em um farol para a abolição e a autodeterminação.

O governo norte-americano ficou tão preocupado com a possibilidade de a independência haitiana inspirar escravizados nos Estados Unidos que Washington tentou impor um bloqueio econômico contra o Haiti e não reconheceu a nação caribenha como Estado soberano por mais de cinquenta anos. O então presidente dos EUA, Thomas Jefferson, sugeriu, numa conversa com o embaixador francês em Washington na época, a cooperação entre os Estados Unidos, a França e a Grã-Bretanha para “confinar esta doença [ao Haiti]”, “não permitindo que os negros adquiram navios”. Mesmo assim, como lembra o historiador Laurent Dubois, as notícias da vitória haitiana se espalharam entre escravos — desde o Brasil e Cuba até a Virgínia, nos EUA.

Napoleão Bonaparte, por sua vez, ficou indignado com a derrota militar francesa: “Como é possível que a liberdade tenha sido dada aos africanos, aos homens que não tinham civilização, que nem sequer sabiam o que era a colônia, o que era a França?”. A perda do Haiti foi um dos fatores decisivos para Napoleão vender o território de Louisiana, dobrando de tamanho o espaço territorial estadunidense, que hoje corresponde a 23% dos Estados Unidos da América. Não surpreende que, já no exílio em Santa Helena, anos mais tarde, Napoleão visse no fracasso militar no Haiti uma de suas derrotas mais amargas.

De fato, a independência do Haiti foi a expressão mais concreta da ideia de que os direitos proclamados na famosa Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 eram de fato universais. Não é exagero dizer, portanto, que a revolução haitiana – precursora das lutas pela descolonização da África no século 20 – tenha sido quase tão relevante na história dos Direitos Humanos e da democracia quanto a revolução francesa, precisamente porque o Haiti garantiu que esses conceitos fossem verdadeiramente irrestritos e universais – uma ideia rejeitada pela maioria do Ocidente na época e que demoraria séculos para ser mais amplamente aceito.

Onda de violência generalizada assola o Haiti desde que a “Família G9″, uma aliança entre várias gangues nacionais, se voltou contra o governo e fechou os principais acessos do país. 05/03/2024 - Foto: Odelyn Joseph/AP

Todo esse histórico inspirador torna o atual colapso haitiaino ainda mais trágico. Poucas outras nações no planeta sofreram tanto com uma terrível confluência de intervenções estrangeiras – inclusive uma ocupação dos EUA entre 1915 e 1934 –, instabilidade política e catástrofes naturais, como o terremoto em 2010, que matou cerca de 230 mil pessoas e deixou um milhão de desabrigados. Ao mesmo tempo, diante do histórico descrito acima, o cenário desolador ressalta a responsabilidade que a comunidade internacional tem com o Haiti de forma a ajudá-lo a sair de seu atual estado de anarquia. Porém, poucos países estão dispostos a enviar tropas para garantir um mínimo de estabilidade – inclusive para viabilizar a entrega de alimentos e para, em momento posterior, organizar eleições.

A relutância no exterior se deve aos fracassos de missões de paz anteriores, inclusive a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), liderada pelo Brasil entre 2004 e 2017, e uma missão liderada pelos EUA na década de 1990. Enquanto o então presidente Lula enxergou, em 2004, o envio de tropas brasileiras ao Haiti como uma oportunidade de demonstrar que o Brasil estaria disposto a assumir responsabilidades geopolíticas, a desconfiança entre civis e militares brasileiros hoje inviabiliza uma operação semelhante. Diante da indisposição quase generalizada, sobrou para o Quênia liderar uma nova missão policial no país caribenho – a primeira vez que uma nação africana lidera uma missão de paz fora do continente africano.

Com mais da metade da população haitiana vivendo abaixo da linha da pobreza e um risco cada vez mais elevado de fome generalizada, só resta torcer para que os policiais quenianos possam ajudar a aliviar, mesmo que temporariamente, o sofrimento do povo haitiano.

O Haiti, país hoje marcado pela anarquia e extrema pobreza, já foi uma potência econômica com ampla influência geopolítica. Conhecido antigamente como Saint-Domingue, era a colônia mais lucrativa do mundo atlântico do século XVIII, e às vésperas de sua independência em 1804 – fruto da primeira e única revolta escrava bem-sucedida nas Américas – era o principal produtor mundial de açúcar e café, o que fazia do país caribenho uma peça central do sistema escravista atlântico.

A guerra da independência viu as forças revolucionárias de Saint-Domingue derrotarem ninguém menos que um exército francês de 80.000 homens enviados por Napoleão. Ao contrário de levantes fracassados em outras colônias, muitos escravos haitianos tinham nascido na África e adquirido experiência de combate significativa nas guerras civis na África Ocidental e Central, o que lhes permitiu derrotar as forças europeias muito mais bem armadas. A vitória haitiana não apenas deu origem à segunda república mais antiga das Américas (depois dos EUA), mas também à primeira república negra pós-colonial, que se converteu em um farol para a abolição e a autodeterminação.

O governo norte-americano ficou tão preocupado com a possibilidade de a independência haitiana inspirar escravizados nos Estados Unidos que Washington tentou impor um bloqueio econômico contra o Haiti e não reconheceu a nação caribenha como Estado soberano por mais de cinquenta anos. O então presidente dos EUA, Thomas Jefferson, sugeriu, numa conversa com o embaixador francês em Washington na época, a cooperação entre os Estados Unidos, a França e a Grã-Bretanha para “confinar esta doença [ao Haiti]”, “não permitindo que os negros adquiram navios”. Mesmo assim, como lembra o historiador Laurent Dubois, as notícias da vitória haitiana se espalharam entre escravos — desde o Brasil e Cuba até a Virgínia, nos EUA.

Napoleão Bonaparte, por sua vez, ficou indignado com a derrota militar francesa: “Como é possível que a liberdade tenha sido dada aos africanos, aos homens que não tinham civilização, que nem sequer sabiam o que era a colônia, o que era a França?”. A perda do Haiti foi um dos fatores decisivos para Napoleão vender o território de Louisiana, dobrando de tamanho o espaço territorial estadunidense, que hoje corresponde a 23% dos Estados Unidos da América. Não surpreende que, já no exílio em Santa Helena, anos mais tarde, Napoleão visse no fracasso militar no Haiti uma de suas derrotas mais amargas.

De fato, a independência do Haiti foi a expressão mais concreta da ideia de que os direitos proclamados na famosa Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 eram de fato universais. Não é exagero dizer, portanto, que a revolução haitiana – precursora das lutas pela descolonização da África no século 20 – tenha sido quase tão relevante na história dos Direitos Humanos e da democracia quanto a revolução francesa, precisamente porque o Haiti garantiu que esses conceitos fossem verdadeiramente irrestritos e universais – uma ideia rejeitada pela maioria do Ocidente na época e que demoraria séculos para ser mais amplamente aceito.

Onda de violência generalizada assola o Haiti desde que a “Família G9″, uma aliança entre várias gangues nacionais, se voltou contra o governo e fechou os principais acessos do país. 05/03/2024 - Foto: Odelyn Joseph/AP

Todo esse histórico inspirador torna o atual colapso haitiaino ainda mais trágico. Poucas outras nações no planeta sofreram tanto com uma terrível confluência de intervenções estrangeiras – inclusive uma ocupação dos EUA entre 1915 e 1934 –, instabilidade política e catástrofes naturais, como o terremoto em 2010, que matou cerca de 230 mil pessoas e deixou um milhão de desabrigados. Ao mesmo tempo, diante do histórico descrito acima, o cenário desolador ressalta a responsabilidade que a comunidade internacional tem com o Haiti de forma a ajudá-lo a sair de seu atual estado de anarquia. Porém, poucos países estão dispostos a enviar tropas para garantir um mínimo de estabilidade – inclusive para viabilizar a entrega de alimentos e para, em momento posterior, organizar eleições.

A relutância no exterior se deve aos fracassos de missões de paz anteriores, inclusive a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), liderada pelo Brasil entre 2004 e 2017, e uma missão liderada pelos EUA na década de 1990. Enquanto o então presidente Lula enxergou, em 2004, o envio de tropas brasileiras ao Haiti como uma oportunidade de demonstrar que o Brasil estaria disposto a assumir responsabilidades geopolíticas, a desconfiança entre civis e militares brasileiros hoje inviabiliza uma operação semelhante. Diante da indisposição quase generalizada, sobrou para o Quênia liderar uma nova missão policial no país caribenho – a primeira vez que uma nação africana lidera uma missão de paz fora do continente africano.

Com mais da metade da população haitiana vivendo abaixo da linha da pobreza e um risco cada vez mais elevado de fome generalizada, só resta torcer para que os policiais quenianos possam ajudar a aliviar, mesmo que temporariamente, o sofrimento do povo haitiano.

O Haiti, país hoje marcado pela anarquia e extrema pobreza, já foi uma potência econômica com ampla influência geopolítica. Conhecido antigamente como Saint-Domingue, era a colônia mais lucrativa do mundo atlântico do século XVIII, e às vésperas de sua independência em 1804 – fruto da primeira e única revolta escrava bem-sucedida nas Américas – era o principal produtor mundial de açúcar e café, o que fazia do país caribenho uma peça central do sistema escravista atlântico.

A guerra da independência viu as forças revolucionárias de Saint-Domingue derrotarem ninguém menos que um exército francês de 80.000 homens enviados por Napoleão. Ao contrário de levantes fracassados em outras colônias, muitos escravos haitianos tinham nascido na África e adquirido experiência de combate significativa nas guerras civis na África Ocidental e Central, o que lhes permitiu derrotar as forças europeias muito mais bem armadas. A vitória haitiana não apenas deu origem à segunda república mais antiga das Américas (depois dos EUA), mas também à primeira república negra pós-colonial, que se converteu em um farol para a abolição e a autodeterminação.

O governo norte-americano ficou tão preocupado com a possibilidade de a independência haitiana inspirar escravizados nos Estados Unidos que Washington tentou impor um bloqueio econômico contra o Haiti e não reconheceu a nação caribenha como Estado soberano por mais de cinquenta anos. O então presidente dos EUA, Thomas Jefferson, sugeriu, numa conversa com o embaixador francês em Washington na época, a cooperação entre os Estados Unidos, a França e a Grã-Bretanha para “confinar esta doença [ao Haiti]”, “não permitindo que os negros adquiram navios”. Mesmo assim, como lembra o historiador Laurent Dubois, as notícias da vitória haitiana se espalharam entre escravos — desde o Brasil e Cuba até a Virgínia, nos EUA.

Napoleão Bonaparte, por sua vez, ficou indignado com a derrota militar francesa: “Como é possível que a liberdade tenha sido dada aos africanos, aos homens que não tinham civilização, que nem sequer sabiam o que era a colônia, o que era a França?”. A perda do Haiti foi um dos fatores decisivos para Napoleão vender o território de Louisiana, dobrando de tamanho o espaço territorial estadunidense, que hoje corresponde a 23% dos Estados Unidos da América. Não surpreende que, já no exílio em Santa Helena, anos mais tarde, Napoleão visse no fracasso militar no Haiti uma de suas derrotas mais amargas.

De fato, a independência do Haiti foi a expressão mais concreta da ideia de que os direitos proclamados na famosa Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 eram de fato universais. Não é exagero dizer, portanto, que a revolução haitiana – precursora das lutas pela descolonização da África no século 20 – tenha sido quase tão relevante na história dos Direitos Humanos e da democracia quanto a revolução francesa, precisamente porque o Haiti garantiu que esses conceitos fossem verdadeiramente irrestritos e universais – uma ideia rejeitada pela maioria do Ocidente na época e que demoraria séculos para ser mais amplamente aceito.

Onda de violência generalizada assola o Haiti desde que a “Família G9″, uma aliança entre várias gangues nacionais, se voltou contra o governo e fechou os principais acessos do país. 05/03/2024 - Foto: Odelyn Joseph/AP

Todo esse histórico inspirador torna o atual colapso haitiaino ainda mais trágico. Poucas outras nações no planeta sofreram tanto com uma terrível confluência de intervenções estrangeiras – inclusive uma ocupação dos EUA entre 1915 e 1934 –, instabilidade política e catástrofes naturais, como o terremoto em 2010, que matou cerca de 230 mil pessoas e deixou um milhão de desabrigados. Ao mesmo tempo, diante do histórico descrito acima, o cenário desolador ressalta a responsabilidade que a comunidade internacional tem com o Haiti de forma a ajudá-lo a sair de seu atual estado de anarquia. Porém, poucos países estão dispostos a enviar tropas para garantir um mínimo de estabilidade – inclusive para viabilizar a entrega de alimentos e para, em momento posterior, organizar eleições.

A relutância no exterior se deve aos fracassos de missões de paz anteriores, inclusive a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), liderada pelo Brasil entre 2004 e 2017, e uma missão liderada pelos EUA na década de 1990. Enquanto o então presidente Lula enxergou, em 2004, o envio de tropas brasileiras ao Haiti como uma oportunidade de demonstrar que o Brasil estaria disposto a assumir responsabilidades geopolíticas, a desconfiança entre civis e militares brasileiros hoje inviabiliza uma operação semelhante. Diante da indisposição quase generalizada, sobrou para o Quênia liderar uma nova missão policial no país caribenho – a primeira vez que uma nação africana lidera uma missão de paz fora do continente africano.

Com mais da metade da população haitiana vivendo abaixo da linha da pobreza e um risco cada vez mais elevado de fome generalizada, só resta torcer para que os policiais quenianos possam ajudar a aliviar, mesmo que temporariamente, o sofrimento do povo haitiano.

O Haiti, país hoje marcado pela anarquia e extrema pobreza, já foi uma potência econômica com ampla influência geopolítica. Conhecido antigamente como Saint-Domingue, era a colônia mais lucrativa do mundo atlântico do século XVIII, e às vésperas de sua independência em 1804 – fruto da primeira e única revolta escrava bem-sucedida nas Américas – era o principal produtor mundial de açúcar e café, o que fazia do país caribenho uma peça central do sistema escravista atlântico.

A guerra da independência viu as forças revolucionárias de Saint-Domingue derrotarem ninguém menos que um exército francês de 80.000 homens enviados por Napoleão. Ao contrário de levantes fracassados em outras colônias, muitos escravos haitianos tinham nascido na África e adquirido experiência de combate significativa nas guerras civis na África Ocidental e Central, o que lhes permitiu derrotar as forças europeias muito mais bem armadas. A vitória haitiana não apenas deu origem à segunda república mais antiga das Américas (depois dos EUA), mas também à primeira república negra pós-colonial, que se converteu em um farol para a abolição e a autodeterminação.

O governo norte-americano ficou tão preocupado com a possibilidade de a independência haitiana inspirar escravizados nos Estados Unidos que Washington tentou impor um bloqueio econômico contra o Haiti e não reconheceu a nação caribenha como Estado soberano por mais de cinquenta anos. O então presidente dos EUA, Thomas Jefferson, sugeriu, numa conversa com o embaixador francês em Washington na época, a cooperação entre os Estados Unidos, a França e a Grã-Bretanha para “confinar esta doença [ao Haiti]”, “não permitindo que os negros adquiram navios”. Mesmo assim, como lembra o historiador Laurent Dubois, as notícias da vitória haitiana se espalharam entre escravos — desde o Brasil e Cuba até a Virgínia, nos EUA.

Napoleão Bonaparte, por sua vez, ficou indignado com a derrota militar francesa: “Como é possível que a liberdade tenha sido dada aos africanos, aos homens que não tinham civilização, que nem sequer sabiam o que era a colônia, o que era a França?”. A perda do Haiti foi um dos fatores decisivos para Napoleão vender o território de Louisiana, dobrando de tamanho o espaço territorial estadunidense, que hoje corresponde a 23% dos Estados Unidos da América. Não surpreende que, já no exílio em Santa Helena, anos mais tarde, Napoleão visse no fracasso militar no Haiti uma de suas derrotas mais amargas.

De fato, a independência do Haiti foi a expressão mais concreta da ideia de que os direitos proclamados na famosa Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 eram de fato universais. Não é exagero dizer, portanto, que a revolução haitiana – precursora das lutas pela descolonização da África no século 20 – tenha sido quase tão relevante na história dos Direitos Humanos e da democracia quanto a revolução francesa, precisamente porque o Haiti garantiu que esses conceitos fossem verdadeiramente irrestritos e universais – uma ideia rejeitada pela maioria do Ocidente na época e que demoraria séculos para ser mais amplamente aceito.

Onda de violência generalizada assola o Haiti desde que a “Família G9″, uma aliança entre várias gangues nacionais, se voltou contra o governo e fechou os principais acessos do país. 05/03/2024 - Foto: Odelyn Joseph/AP

Todo esse histórico inspirador torna o atual colapso haitiaino ainda mais trágico. Poucas outras nações no planeta sofreram tanto com uma terrível confluência de intervenções estrangeiras – inclusive uma ocupação dos EUA entre 1915 e 1934 –, instabilidade política e catástrofes naturais, como o terremoto em 2010, que matou cerca de 230 mil pessoas e deixou um milhão de desabrigados. Ao mesmo tempo, diante do histórico descrito acima, o cenário desolador ressalta a responsabilidade que a comunidade internacional tem com o Haiti de forma a ajudá-lo a sair de seu atual estado de anarquia. Porém, poucos países estão dispostos a enviar tropas para garantir um mínimo de estabilidade – inclusive para viabilizar a entrega de alimentos e para, em momento posterior, organizar eleições.

A relutância no exterior se deve aos fracassos de missões de paz anteriores, inclusive a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), liderada pelo Brasil entre 2004 e 2017, e uma missão liderada pelos EUA na década de 1990. Enquanto o então presidente Lula enxergou, em 2004, o envio de tropas brasileiras ao Haiti como uma oportunidade de demonstrar que o Brasil estaria disposto a assumir responsabilidades geopolíticas, a desconfiança entre civis e militares brasileiros hoje inviabiliza uma operação semelhante. Diante da indisposição quase generalizada, sobrou para o Quênia liderar uma nova missão policial no país caribenho – a primeira vez que uma nação africana lidera uma missão de paz fora do continente africano.

Com mais da metade da população haitiana vivendo abaixo da linha da pobreza e um risco cada vez mais elevado de fome generalizada, só resta torcer para que os policiais quenianos possam ajudar a aliviar, mesmo que temporariamente, o sofrimento do povo haitiano.

Opinião por Oliver Stuenkel

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