Analista político e professor de Relações Internacionais da FGV-SP. Escreve quinzenalmente

Opinião|Na Nova Guerra Fria, seriam os EUA – e não os chineses – os soviéticos?


A sociedade norte-americana demonstra sinais preocupantes de desunião e mal-estar – mas, ao mesmo tempo, retém seu dinamismo econômico e atrai mais migrantes do que nunca

Por Oliver Stuenkel

“Tal como a União Soviética nos seus últimos anos, os Estados Unidos estão sofrendo as consequências de falhas catastróficas de liderança e de tensões socioeconômicas há muito reprimidas que finalmente transbordaram”, escreveu Harold James, historiador da Universidade Princeton, em 2020, no fim do governo Trump. Na semana passada, o historiador Niall Ferguson, da Universidade Harvard, lembrou as palavras de James e observou, em artigo para The Free Press, que “nesta nova Guerra Fria, nós – e não os chineses – podemos ser os soviéticos.” Ele dedica o restante da análise, com numerosos dados, a substanciar a comparação provocadora.

Ferguson chama a atenção para uma liderança gerontocrática nos EUA, que vai além dos presidenciáveis Joe Biden, de 81 anos, e Donald Trump, de 78. Entre outros políticos poderosos em Washington, destaca-se o senador Mitch McConnell, de 82 anos, líder da minoria republicana no Senado. McConnell é conhecido por, de tempos em tempos, ficar paralisado durante entrevistas, antes de ser gentilmente afastado por seus assessores. Como lembra Ferguson, “a liderança gerontocrática foi uma das marcas da liderança soviética tardia, personificada pela senilidade de Leonid Brezhnev, Yuri Andropov e Konstantin Chernenko.”

O historiador também aponta que a atual epidemia de “mortes por desespero” nos EUA — marcada pela crise aguda de opioides, a taxa crescente de suicídios e o declínio da expectativa de vida entre homens até antes da pandemia — pode ser comparada com a grave crise de alcoolismo que levou à morte milhares de homens russos no fim da União Soviética e nos anos seguintes. Na Rússia da época, a expectativa de vida dos homens também diminuía, fenômeno raríssimo na ausência de guerra ou de pandemia.

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Crescente número de americanos perdeu confiança no judiciário: segundo Ferguson, porcentagem do público que confia na Suprema Corte e outras instituições está entre 25% e 27%.  Foto: Kevin Mohatt/Reuters

O autor compara ainda o profundo cinismo público e a desilusão dos soviéticos no fim da década de 1980 com o sentimento dos norte-americanos da atualidade em relação às instituições públicas. De fato, para qualquer um que tenha visitado os Estados Unidos recentemente, fica nítida a disfuncionalidade politica e polarização destrutiva – contrastando com a continuidade que marcou a política norte-americana no último século, um ingrediente-chave da hegemonia dos EUA pós-Segunda Guerra Mundial. Diante do evidente conflito de interesses do juíz da Suprema Corte Clarence Thomas, que por anos recebeu regalias da iniciativa privada, e da decisão grotesca de Samuel Alito, colega de Thomas na Suprema Corte, de hastear, na sua casa, a bandeira americana de cabeça para baixo (símbolo da teoria conspiratória de fraude nas eleições de 2020), para ficar em dois exemplos apenas, não surpreende que um crescente número de americanos tenha perdido confiança no judiciário. Como escreve Ferguson, “a percentagem do público que confia na Suprema Corte, nos bancos, nas escolas públicas, na presidência e nas grandes empresas tecnológicas (...) está entre 25% e 27%. Para o Congresso, são 8%. A confiança média nas principais instituições é de aproximadamente metade da que era em 1979.”

Os EUA têm uma fixação surpreendente com a hipótese de seu próprio declínio. Vale lembrar o famoso “momento Sputnik” de 1957, quando o lançamento bem sucedido do primeiro satélite espacial da União Soviética estimulou Washington a investir na corrida espacial. Outro momento digno de nota: a ascensão japonesa nos anos de 1980, quando o sucesso do livro “Japão como Número Um: Lições para a América”, de Ezra Vogel, simbolizou a preocupação (hoje, vista em retrospectiva, irracional) dos norte-americanos de serem superados pelo país asiático. Em ambos os casos, os EUA reagiram bem ao desafio externo. Hoje, porém, a ascensão chinesa tem feito pouco para unir a sociedade norte-americana. Pior: o ressurgimento russo produziu um vergonhoso alinhamento de partes do Partido Republicano à causa de Putin.

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A comparação de Ferguson inclui diversas imprecisões e negligencia diferenças significativas entre os dois casos. Apesar de tudo, os EUA mantêm um dinamismo econômico jamais alcançado pela União Soviética e permanecem um ímã irresistível para milhões de migrantes em busca de uma vida melhor. Cabe lembrar igualmente que a China, apesar do seu dinamismo econômico, também tem sérios problemas e não atrai talentos do exterior. Ao contrário: a cada ano, milhares de chineses são detidos na fronteira sul dos Estados Unidos, tentando ingressar no país.

Portanto, apesar de os desafios dos EUA serem reais e preocupantes – sobretudo no que diz respeito à disfunção política –, a tese de Ferguson dificilmente se sustenta. Na nova Guerra Fria, não parece haver “soviéticos”.

“Tal como a União Soviética nos seus últimos anos, os Estados Unidos estão sofrendo as consequências de falhas catastróficas de liderança e de tensões socioeconômicas há muito reprimidas que finalmente transbordaram”, escreveu Harold James, historiador da Universidade Princeton, em 2020, no fim do governo Trump. Na semana passada, o historiador Niall Ferguson, da Universidade Harvard, lembrou as palavras de James e observou, em artigo para The Free Press, que “nesta nova Guerra Fria, nós – e não os chineses – podemos ser os soviéticos.” Ele dedica o restante da análise, com numerosos dados, a substanciar a comparação provocadora.

Ferguson chama a atenção para uma liderança gerontocrática nos EUA, que vai além dos presidenciáveis Joe Biden, de 81 anos, e Donald Trump, de 78. Entre outros políticos poderosos em Washington, destaca-se o senador Mitch McConnell, de 82 anos, líder da minoria republicana no Senado. McConnell é conhecido por, de tempos em tempos, ficar paralisado durante entrevistas, antes de ser gentilmente afastado por seus assessores. Como lembra Ferguson, “a liderança gerontocrática foi uma das marcas da liderança soviética tardia, personificada pela senilidade de Leonid Brezhnev, Yuri Andropov e Konstantin Chernenko.”

O historiador também aponta que a atual epidemia de “mortes por desespero” nos EUA — marcada pela crise aguda de opioides, a taxa crescente de suicídios e o declínio da expectativa de vida entre homens até antes da pandemia — pode ser comparada com a grave crise de alcoolismo que levou à morte milhares de homens russos no fim da União Soviética e nos anos seguintes. Na Rússia da época, a expectativa de vida dos homens também diminuía, fenômeno raríssimo na ausência de guerra ou de pandemia.

Crescente número de americanos perdeu confiança no judiciário: segundo Ferguson, porcentagem do público que confia na Suprema Corte e outras instituições está entre 25% e 27%.  Foto: Kevin Mohatt/Reuters

O autor compara ainda o profundo cinismo público e a desilusão dos soviéticos no fim da década de 1980 com o sentimento dos norte-americanos da atualidade em relação às instituições públicas. De fato, para qualquer um que tenha visitado os Estados Unidos recentemente, fica nítida a disfuncionalidade politica e polarização destrutiva – contrastando com a continuidade que marcou a política norte-americana no último século, um ingrediente-chave da hegemonia dos EUA pós-Segunda Guerra Mundial. Diante do evidente conflito de interesses do juíz da Suprema Corte Clarence Thomas, que por anos recebeu regalias da iniciativa privada, e da decisão grotesca de Samuel Alito, colega de Thomas na Suprema Corte, de hastear, na sua casa, a bandeira americana de cabeça para baixo (símbolo da teoria conspiratória de fraude nas eleições de 2020), para ficar em dois exemplos apenas, não surpreende que um crescente número de americanos tenha perdido confiança no judiciário. Como escreve Ferguson, “a percentagem do público que confia na Suprema Corte, nos bancos, nas escolas públicas, na presidência e nas grandes empresas tecnológicas (...) está entre 25% e 27%. Para o Congresso, são 8%. A confiança média nas principais instituições é de aproximadamente metade da que era em 1979.”

Os EUA têm uma fixação surpreendente com a hipótese de seu próprio declínio. Vale lembrar o famoso “momento Sputnik” de 1957, quando o lançamento bem sucedido do primeiro satélite espacial da União Soviética estimulou Washington a investir na corrida espacial. Outro momento digno de nota: a ascensão japonesa nos anos de 1980, quando o sucesso do livro “Japão como Número Um: Lições para a América”, de Ezra Vogel, simbolizou a preocupação (hoje, vista em retrospectiva, irracional) dos norte-americanos de serem superados pelo país asiático. Em ambos os casos, os EUA reagiram bem ao desafio externo. Hoje, porém, a ascensão chinesa tem feito pouco para unir a sociedade norte-americana. Pior: o ressurgimento russo produziu um vergonhoso alinhamento de partes do Partido Republicano à causa de Putin.

A comparação de Ferguson inclui diversas imprecisões e negligencia diferenças significativas entre os dois casos. Apesar de tudo, os EUA mantêm um dinamismo econômico jamais alcançado pela União Soviética e permanecem um ímã irresistível para milhões de migrantes em busca de uma vida melhor. Cabe lembrar igualmente que a China, apesar do seu dinamismo econômico, também tem sérios problemas e não atrai talentos do exterior. Ao contrário: a cada ano, milhares de chineses são detidos na fronteira sul dos Estados Unidos, tentando ingressar no país.

Portanto, apesar de os desafios dos EUA serem reais e preocupantes – sobretudo no que diz respeito à disfunção política –, a tese de Ferguson dificilmente se sustenta. Na nova Guerra Fria, não parece haver “soviéticos”.

“Tal como a União Soviética nos seus últimos anos, os Estados Unidos estão sofrendo as consequências de falhas catastróficas de liderança e de tensões socioeconômicas há muito reprimidas que finalmente transbordaram”, escreveu Harold James, historiador da Universidade Princeton, em 2020, no fim do governo Trump. Na semana passada, o historiador Niall Ferguson, da Universidade Harvard, lembrou as palavras de James e observou, em artigo para The Free Press, que “nesta nova Guerra Fria, nós – e não os chineses – podemos ser os soviéticos.” Ele dedica o restante da análise, com numerosos dados, a substanciar a comparação provocadora.

Ferguson chama a atenção para uma liderança gerontocrática nos EUA, que vai além dos presidenciáveis Joe Biden, de 81 anos, e Donald Trump, de 78. Entre outros políticos poderosos em Washington, destaca-se o senador Mitch McConnell, de 82 anos, líder da minoria republicana no Senado. McConnell é conhecido por, de tempos em tempos, ficar paralisado durante entrevistas, antes de ser gentilmente afastado por seus assessores. Como lembra Ferguson, “a liderança gerontocrática foi uma das marcas da liderança soviética tardia, personificada pela senilidade de Leonid Brezhnev, Yuri Andropov e Konstantin Chernenko.”

O historiador também aponta que a atual epidemia de “mortes por desespero” nos EUA — marcada pela crise aguda de opioides, a taxa crescente de suicídios e o declínio da expectativa de vida entre homens até antes da pandemia — pode ser comparada com a grave crise de alcoolismo que levou à morte milhares de homens russos no fim da União Soviética e nos anos seguintes. Na Rússia da época, a expectativa de vida dos homens também diminuía, fenômeno raríssimo na ausência de guerra ou de pandemia.

Crescente número de americanos perdeu confiança no judiciário: segundo Ferguson, porcentagem do público que confia na Suprema Corte e outras instituições está entre 25% e 27%.  Foto: Kevin Mohatt/Reuters

O autor compara ainda o profundo cinismo público e a desilusão dos soviéticos no fim da década de 1980 com o sentimento dos norte-americanos da atualidade em relação às instituições públicas. De fato, para qualquer um que tenha visitado os Estados Unidos recentemente, fica nítida a disfuncionalidade politica e polarização destrutiva – contrastando com a continuidade que marcou a política norte-americana no último século, um ingrediente-chave da hegemonia dos EUA pós-Segunda Guerra Mundial. Diante do evidente conflito de interesses do juíz da Suprema Corte Clarence Thomas, que por anos recebeu regalias da iniciativa privada, e da decisão grotesca de Samuel Alito, colega de Thomas na Suprema Corte, de hastear, na sua casa, a bandeira americana de cabeça para baixo (símbolo da teoria conspiratória de fraude nas eleições de 2020), para ficar em dois exemplos apenas, não surpreende que um crescente número de americanos tenha perdido confiança no judiciário. Como escreve Ferguson, “a percentagem do público que confia na Suprema Corte, nos bancos, nas escolas públicas, na presidência e nas grandes empresas tecnológicas (...) está entre 25% e 27%. Para o Congresso, são 8%. A confiança média nas principais instituições é de aproximadamente metade da que era em 1979.”

Os EUA têm uma fixação surpreendente com a hipótese de seu próprio declínio. Vale lembrar o famoso “momento Sputnik” de 1957, quando o lançamento bem sucedido do primeiro satélite espacial da União Soviética estimulou Washington a investir na corrida espacial. Outro momento digno de nota: a ascensão japonesa nos anos de 1980, quando o sucesso do livro “Japão como Número Um: Lições para a América”, de Ezra Vogel, simbolizou a preocupação (hoje, vista em retrospectiva, irracional) dos norte-americanos de serem superados pelo país asiático. Em ambos os casos, os EUA reagiram bem ao desafio externo. Hoje, porém, a ascensão chinesa tem feito pouco para unir a sociedade norte-americana. Pior: o ressurgimento russo produziu um vergonhoso alinhamento de partes do Partido Republicano à causa de Putin.

A comparação de Ferguson inclui diversas imprecisões e negligencia diferenças significativas entre os dois casos. Apesar de tudo, os EUA mantêm um dinamismo econômico jamais alcançado pela União Soviética e permanecem um ímã irresistível para milhões de migrantes em busca de uma vida melhor. Cabe lembrar igualmente que a China, apesar do seu dinamismo econômico, também tem sérios problemas e não atrai talentos do exterior. Ao contrário: a cada ano, milhares de chineses são detidos na fronteira sul dos Estados Unidos, tentando ingressar no país.

Portanto, apesar de os desafios dos EUA serem reais e preocupantes – sobretudo no que diz respeito à disfunção política –, a tese de Ferguson dificilmente se sustenta. Na nova Guerra Fria, não parece haver “soviéticos”.

Opinião por Oliver Stuenkel

Analista político e Professor de Relações Internacionais da FGV-SP

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