Há numerosos sinais de que a democracia enfrenta graves desafios mundo afora. Seja pelo avanço de partidos radicais na Europa, seja pelo número elevado de líderes com tendências autoritárias que buscam se manter no poder de forma indevida, a percepção geral é de que a democracia está recuando.
O pessimismo generalizado, porém, não deve levar ninguém a ignorar duas grandes vitórias da democracia ao longo das últimas semanas: nas eleições tanto na Índia (entre 19 de abril e 1º de junho) quanto na África do Sul (29 de maio), os partidos governistas perderam suas maiorias e agora terão que formar coalizões.
Na Índia, havia uma crescente preocupação com a concentração excessiva de poder do primeiro-ministro, Narendra Modi, que dizia ter sido escolhido por Deus para reerguer o país. Milhares de eleitores indianos discordaram: apesar de ser reeleito, a humilhação nas urnas deve instilar certa humildade em Modi, que esperava obter mais de 400 assentos no parlamento de um total de 543, mas no fim das contas conquistou apenas 240.
O primeiro-ministro, que buscou transformar o país - uma nação multiétnica e multirreligiosa - em uma nação essencialmente hindu e que frequentemente ataca a minoria muçulmana, enfrentará uma oposição revigorada, ingrediente essencial para qualquer democracia. Com a aura de invencibilidade de Modi arranhada, uma vitória da oposição no próximo ciclo eleitoral parece, de repente, inteiramente factível. A maior democracia do mundo não é perfeita, mas o eleitorado indiano de mais de 968 milhões – numericamente superior ao da União Europeia, dos Estados Unidos e do Brasil juntos – emitiu um sinal claro de que prefere preservar um sistema democrático vibrante e ruidoso, marca registrada da Índia desde sua independência em 1947.
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Esta talvez seja a maior vantagem competitiva da nação mais populosa do planeta, a caminho de se tornar uma grande potência – sobretudo em comparação com a China, país vizinho onde Xi Jinping lidera um processo de repressão e concentração política cada vez mais intenso. O chinês, aliás, projeta-se como líder indispensável para comandar a nação chinesa e enfraqueceu qualquer mecanismo institucionalizado capaz de moderar suas ações. Na Índia, o eleitor não quis entregar ao primeiro-ministro Modi os superpoderes que ele desejava.
Na África do Sul, o resultado do pleito nacional tem sido igualmente encorajador. O partido governista Congresso Nacional Africano (ANC, nas siglas em inglês), perdeu sua maioria pela primeira vez na história democrática do país e precisou formar um governo de coalizão, que tornará os debates no gabinete mais complexos. O presidente Ramaphosa, de centro-esquerda, enfrenta a árdua tarefa de governar com a Aliança Democrática (DA), partido de centro-direita, sem perder o apoio de sua base. Mesmo assim, é uma notícia alentadora porque o ANC ficou acomodado no poder e não soube resolver os graves problemas que o país enfrenta: o novo governo de coalizão precisa priorizar o combate à corrupção, modernizar a infraestrutura – sobretudo no âmbito energético e de transportes – e reduzir o desemprego, sobretudo entre os mais jovens, além de atrair mais investimento internacional. Ao selecionar o DA para formar a coalizão, Ramaphosa deu mais poder às forças políticas centristas e, por enquanto, soube isolar a esquerda radical, cujas ideias têm o potencial de levar o país ao destino de Zimbabwe, Estado vizinho que entrou em colapso depois da gestão econômica catastrófica do ex-presidente Mugabe.
Os resultados das urnas na Índia e na África do Sul – duas das mais importantes democracias no Sul Global – também demonstram a necessidade de se adaptar a forma de olhar o mundo. A visão excessivamente ocidental da realidade torna-se anacrônica, uma vez que o Ocidente já não tem a mesma relevância política e econômica em termos globais que tinha no fim do século XX. Embora continue necessário acompanhar de perto os pleitos na Europa e na América do Norte nos próximos meses – entre eles, na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos –, é igualmente importante abrir os olhos para a política na Ásia e na África.
O debate público brasileiro ainda padece de um viés que leva, muitas vezes, a se negligenciar eventos relevantes fora do Ocidente, os quais podem trazer lições importantes e ajudar a compreender as principais tendências globais. Só assim é possível explicar, por exemplo, por que a recente decisão do presidente francês Emmanuel Macron de dissolver a Assembleia Nacional repercutiu tanto no Brasil enquanto o resultado das eleições indianas teve repercussão morna, apesar de a Índia ser um ator mais importante nos palcos internacionais, tanto no âmbito econômico quanto no geopolítico.