Analista político e professor de Relações Internacionais da FGV-SP. Escreve quinzenalmente

Opinião|Volta de Trump pode complicar estratégia brasileira de equidistância entre China e EUA


Pressão norte-americana para que o Brasil “escolha um lado” deve aumentar se o candidato republicano voltar à Casa Branca

Por Oliver Stuenkel
Atualização:

O debate doméstico profundamente polarizado pode fazer esquecer que, no âmbito da política externa, há um amplo consenso em expressiva parcela da esquerda e da direita brasileira: a maioria acredita que o Brasil deve preservar seus laços diplomáticos e comerciais com as principais potências, mesmo diante de um cenário geopolítico marcado por tensões crescentes entre os Estados Unidos e a Europa de um lado e a China e a Rússia de outro.

Não surpreende, portanto, que, excetuando-se momentos em que Bolsonaro e Lula usam a geopolítica para mobilizar seus seguidores – seja demonizando a China, seja criticando os EUA –, tanto a política externa bolsonarista quanto a lulista resistiram à pressão ocidental de se afastar da Rússia. O mesmo vale dizer sobre os pedidos russos para o Brasil adotar uma postura mais anti-ocidental. O país mantém suas relações com as potências do Ocidente. Da mesma forma, Bolsonaro não atendeu às demandas de Trump de reduzir a presença de empresas chinesas no Brasil.

Se Bolsonaro tivesse sido reeleito em 2022, a postura brasileira diante do confronto entre Moscou e Kiev — e das tensões crescentes entre Washington e Pequim – seria, em grande parte, a mesma do governo atual. Assim se explica o fato de o comércio entre Brasil e China ter crescido consideravelmente durante o governo Bolsonaro – supostamente anti-China – e de Lula – que regularmente adota retórica anti-americana – ter visitado Washington no início de seu mandato na presidência para agradecer a Biden pelo apoio americano à preservação da democracia brasileira.

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O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, cumprimenta o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, após uma reunião bilateral em Nova York, Estados Unidos  Foto: JIM WATSON / AFP

A convergência entre esquerda e direita sobre a diplomacia de equidistância em relação a potências globais é, em princípio, uma boa notícia: investidores podem ter certeza de que, independentemente de quem ocupar o Palácio Planalto, o governo brasileiro provavelmente manterá a atual estratégia.

O perigo desse consenso, porém, é a complacência que pode levar a ignorar grandes transformações geopolíticas no horizonte. A neutralidade brasileira e a de muitos outros países no Sul Global tem sido, até o momento, uma escolha óbvia graças a um período altamente atípico na história, marcado pela ausência de tensões significativas entre grandes potências. Pelo contrário: a relação comercial entre os EUA e a China tornou-se espinha dorsal da economia global e estimulou fortemente a busca por ampliar laços comerciais com todas as nações, independentemente de considerações geopolíticas.

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Afinal, na leitura liberal dos anos 1990 e 2000, a liberalização comercial e a interdependência econômica seriam ingredientes-chave para um mundo mais próspero e estável, permitindo que o Brasil e outros países pudessem estabelecer uma relação comercial de proporções inéditas com a China sem temer repercussões negativas em sua relação com os EUA.

O presidente da China, Xi Jinping, conversa com o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, na cúpula dos Brics, em Johanesburgo, África do Sul  Foto: Marco Longari/AFP

O problema é que o consenso liberal em Washington acabou há anos. Boa parte da esquerda e da direita estadunidense acredita que a aposta americana na integração da China em um sistema econômico globalizado fracassou. Biden e Trump defendem políticas industriais e posturas protecionistas para reduzir a dependência da China e evitar que Pequim alcance supremacia global em áreas como inteligência artificial, semicondutores e tecnologia verde.

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A imposição pelo governo Biden de tarifas altíssimas a carros elétricos chineses é apenas o início de um afastamento mais amplo entre as duas maiores economias do planeta, levando, aos poucos, à emergência de duas zonas tecnológicas incompatíveis e mutuamente exclusivas. A diferença entre Biden e Trump é que o republicano provavelmente aceleraria o processo, sem medo de ofender aliados.

Nada disso sugere que o Brasil abandonará o não-alinhamento. Mas seria ilusão acreditar que o país continuará pagando preço tão baixo por ele. Se o governo Bolsonaro conseguiu resistir à pressão de Trump para banir a empresa chinesa Huawei do Brasil, é altamente provável que a volta do ex-presidente americano levasse os EUA a adotarem posturas muito mais agressivas para pressionar governos latino-americanos a se afastarem de Pequim. Não seria surpreendente, por exemplo, se Trump, de volta à Casa Branca, ameaçasse o Brasil, por exemplo, com a imposição de tarifas punitivas sobre a importação de produtos brasileiros caso o governo Lula não deixasse de apoiar iniciativas chinesas de reduzir o uso do dólar.

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O governo chinês certamente responderia à altura, mesmo que de forma mais discreta que a de Trump. Em numerosas outras áreas – financeira, tecnológica e diplomática –, tais fricções deverão aumentar de forma dramática. Articular uma resposta a esse novo contexto requer, acima de tudo, a capacidade de líderes políticos de não cederem aos apelos de suas respectivas militâncias, cuja preferência tende a ser guiada por paixões e não por uma avaliação cuidadosa sobre como preservar o espaço de manobra do Brasil em meio a uma nova Guerra Fria.

O debate doméstico profundamente polarizado pode fazer esquecer que, no âmbito da política externa, há um amplo consenso em expressiva parcela da esquerda e da direita brasileira: a maioria acredita que o Brasil deve preservar seus laços diplomáticos e comerciais com as principais potências, mesmo diante de um cenário geopolítico marcado por tensões crescentes entre os Estados Unidos e a Europa de um lado e a China e a Rússia de outro.

Não surpreende, portanto, que, excetuando-se momentos em que Bolsonaro e Lula usam a geopolítica para mobilizar seus seguidores – seja demonizando a China, seja criticando os EUA –, tanto a política externa bolsonarista quanto a lulista resistiram à pressão ocidental de se afastar da Rússia. O mesmo vale dizer sobre os pedidos russos para o Brasil adotar uma postura mais anti-ocidental. O país mantém suas relações com as potências do Ocidente. Da mesma forma, Bolsonaro não atendeu às demandas de Trump de reduzir a presença de empresas chinesas no Brasil.

Se Bolsonaro tivesse sido reeleito em 2022, a postura brasileira diante do confronto entre Moscou e Kiev — e das tensões crescentes entre Washington e Pequim – seria, em grande parte, a mesma do governo atual. Assim se explica o fato de o comércio entre Brasil e China ter crescido consideravelmente durante o governo Bolsonaro – supostamente anti-China – e de Lula – que regularmente adota retórica anti-americana – ter visitado Washington no início de seu mandato na presidência para agradecer a Biden pelo apoio americano à preservação da democracia brasileira.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, cumprimenta o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, após uma reunião bilateral em Nova York, Estados Unidos  Foto: JIM WATSON / AFP

A convergência entre esquerda e direita sobre a diplomacia de equidistância em relação a potências globais é, em princípio, uma boa notícia: investidores podem ter certeza de que, independentemente de quem ocupar o Palácio Planalto, o governo brasileiro provavelmente manterá a atual estratégia.

O perigo desse consenso, porém, é a complacência que pode levar a ignorar grandes transformações geopolíticas no horizonte. A neutralidade brasileira e a de muitos outros países no Sul Global tem sido, até o momento, uma escolha óbvia graças a um período altamente atípico na história, marcado pela ausência de tensões significativas entre grandes potências. Pelo contrário: a relação comercial entre os EUA e a China tornou-se espinha dorsal da economia global e estimulou fortemente a busca por ampliar laços comerciais com todas as nações, independentemente de considerações geopolíticas.

Afinal, na leitura liberal dos anos 1990 e 2000, a liberalização comercial e a interdependência econômica seriam ingredientes-chave para um mundo mais próspero e estável, permitindo que o Brasil e outros países pudessem estabelecer uma relação comercial de proporções inéditas com a China sem temer repercussões negativas em sua relação com os EUA.

O presidente da China, Xi Jinping, conversa com o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, na cúpula dos Brics, em Johanesburgo, África do Sul  Foto: Marco Longari/AFP

O problema é que o consenso liberal em Washington acabou há anos. Boa parte da esquerda e da direita estadunidense acredita que a aposta americana na integração da China em um sistema econômico globalizado fracassou. Biden e Trump defendem políticas industriais e posturas protecionistas para reduzir a dependência da China e evitar que Pequim alcance supremacia global em áreas como inteligência artificial, semicondutores e tecnologia verde.

A imposição pelo governo Biden de tarifas altíssimas a carros elétricos chineses é apenas o início de um afastamento mais amplo entre as duas maiores economias do planeta, levando, aos poucos, à emergência de duas zonas tecnológicas incompatíveis e mutuamente exclusivas. A diferença entre Biden e Trump é que o republicano provavelmente aceleraria o processo, sem medo de ofender aliados.

Nada disso sugere que o Brasil abandonará o não-alinhamento. Mas seria ilusão acreditar que o país continuará pagando preço tão baixo por ele. Se o governo Bolsonaro conseguiu resistir à pressão de Trump para banir a empresa chinesa Huawei do Brasil, é altamente provável que a volta do ex-presidente americano levasse os EUA a adotarem posturas muito mais agressivas para pressionar governos latino-americanos a se afastarem de Pequim. Não seria surpreendente, por exemplo, se Trump, de volta à Casa Branca, ameaçasse o Brasil, por exemplo, com a imposição de tarifas punitivas sobre a importação de produtos brasileiros caso o governo Lula não deixasse de apoiar iniciativas chinesas de reduzir o uso do dólar.

O governo chinês certamente responderia à altura, mesmo que de forma mais discreta que a de Trump. Em numerosas outras áreas – financeira, tecnológica e diplomática –, tais fricções deverão aumentar de forma dramática. Articular uma resposta a esse novo contexto requer, acima de tudo, a capacidade de líderes políticos de não cederem aos apelos de suas respectivas militâncias, cuja preferência tende a ser guiada por paixões e não por uma avaliação cuidadosa sobre como preservar o espaço de manobra do Brasil em meio a uma nova Guerra Fria.

O debate doméstico profundamente polarizado pode fazer esquecer que, no âmbito da política externa, há um amplo consenso em expressiva parcela da esquerda e da direita brasileira: a maioria acredita que o Brasil deve preservar seus laços diplomáticos e comerciais com as principais potências, mesmo diante de um cenário geopolítico marcado por tensões crescentes entre os Estados Unidos e a Europa de um lado e a China e a Rússia de outro.

Não surpreende, portanto, que, excetuando-se momentos em que Bolsonaro e Lula usam a geopolítica para mobilizar seus seguidores – seja demonizando a China, seja criticando os EUA –, tanto a política externa bolsonarista quanto a lulista resistiram à pressão ocidental de se afastar da Rússia. O mesmo vale dizer sobre os pedidos russos para o Brasil adotar uma postura mais anti-ocidental. O país mantém suas relações com as potências do Ocidente. Da mesma forma, Bolsonaro não atendeu às demandas de Trump de reduzir a presença de empresas chinesas no Brasil.

Se Bolsonaro tivesse sido reeleito em 2022, a postura brasileira diante do confronto entre Moscou e Kiev — e das tensões crescentes entre Washington e Pequim – seria, em grande parte, a mesma do governo atual. Assim se explica o fato de o comércio entre Brasil e China ter crescido consideravelmente durante o governo Bolsonaro – supostamente anti-China – e de Lula – que regularmente adota retórica anti-americana – ter visitado Washington no início de seu mandato na presidência para agradecer a Biden pelo apoio americano à preservação da democracia brasileira.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, cumprimenta o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, após uma reunião bilateral em Nova York, Estados Unidos  Foto: JIM WATSON / AFP

A convergência entre esquerda e direita sobre a diplomacia de equidistância em relação a potências globais é, em princípio, uma boa notícia: investidores podem ter certeza de que, independentemente de quem ocupar o Palácio Planalto, o governo brasileiro provavelmente manterá a atual estratégia.

O perigo desse consenso, porém, é a complacência que pode levar a ignorar grandes transformações geopolíticas no horizonte. A neutralidade brasileira e a de muitos outros países no Sul Global tem sido, até o momento, uma escolha óbvia graças a um período altamente atípico na história, marcado pela ausência de tensões significativas entre grandes potências. Pelo contrário: a relação comercial entre os EUA e a China tornou-se espinha dorsal da economia global e estimulou fortemente a busca por ampliar laços comerciais com todas as nações, independentemente de considerações geopolíticas.

Afinal, na leitura liberal dos anos 1990 e 2000, a liberalização comercial e a interdependência econômica seriam ingredientes-chave para um mundo mais próspero e estável, permitindo que o Brasil e outros países pudessem estabelecer uma relação comercial de proporções inéditas com a China sem temer repercussões negativas em sua relação com os EUA.

O presidente da China, Xi Jinping, conversa com o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, na cúpula dos Brics, em Johanesburgo, África do Sul  Foto: Marco Longari/AFP

O problema é que o consenso liberal em Washington acabou há anos. Boa parte da esquerda e da direita estadunidense acredita que a aposta americana na integração da China em um sistema econômico globalizado fracassou. Biden e Trump defendem políticas industriais e posturas protecionistas para reduzir a dependência da China e evitar que Pequim alcance supremacia global em áreas como inteligência artificial, semicondutores e tecnologia verde.

A imposição pelo governo Biden de tarifas altíssimas a carros elétricos chineses é apenas o início de um afastamento mais amplo entre as duas maiores economias do planeta, levando, aos poucos, à emergência de duas zonas tecnológicas incompatíveis e mutuamente exclusivas. A diferença entre Biden e Trump é que o republicano provavelmente aceleraria o processo, sem medo de ofender aliados.

Nada disso sugere que o Brasil abandonará o não-alinhamento. Mas seria ilusão acreditar que o país continuará pagando preço tão baixo por ele. Se o governo Bolsonaro conseguiu resistir à pressão de Trump para banir a empresa chinesa Huawei do Brasil, é altamente provável que a volta do ex-presidente americano levasse os EUA a adotarem posturas muito mais agressivas para pressionar governos latino-americanos a se afastarem de Pequim. Não seria surpreendente, por exemplo, se Trump, de volta à Casa Branca, ameaçasse o Brasil, por exemplo, com a imposição de tarifas punitivas sobre a importação de produtos brasileiros caso o governo Lula não deixasse de apoiar iniciativas chinesas de reduzir o uso do dólar.

O governo chinês certamente responderia à altura, mesmo que de forma mais discreta que a de Trump. Em numerosas outras áreas – financeira, tecnológica e diplomática –, tais fricções deverão aumentar de forma dramática. Articular uma resposta a esse novo contexto requer, acima de tudo, a capacidade de líderes políticos de não cederem aos apelos de suas respectivas militâncias, cuja preferência tende a ser guiada por paixões e não por uma avaliação cuidadosa sobre como preservar o espaço de manobra do Brasil em meio a uma nova Guerra Fria.

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