O especialista da Organização Mundial da Saúde (OMS) que liderou uma controvertida investigação conjunta a respeito das origens da pandemia de coronavírus afirma em um documentário que foi ao ar na noite de quinta-feira, 12, na TV dinamarquesa que cientistas chineses influenciaram a apresentação de suas descobertas.
Em entrevista aos documentaristas dinamarqueses, Peter Ben Embarek afirmou que pesquisadores chineses que integraram a equipe fizeram pressão contra a associação das origens da pandemia a um laboratório de pesquisa de Wuhan no relatório a respeito da investigação.
“No começo, eles não queriam nada a respeito do laboratório [no relatório], afirmando que isso era impossível, então não havia necessidade de perder tempo com isso”, afirmou Ben Embarek durante a entrevista. “Insistimos em incluir isso, porque fazia parte da questão a respeito de onde o vírus se originou”.
No relatório, publicado este ano, a equipe OMS-China afirmou que é “muito improvável” que o vírus, chamado oficialmente de SARS-CoV-2, tenha vazado acidentalmente do Instituto de Virologia de Wuhan (IVW) ou de alguma outra instalação da cidade chinesa em que as infecções foram detectadas originalmente. A equipe de pesquisadores afirmou que não recomendaria mais investigações sobre o tema.
A discussão a respeito de incluir ou não a teoria do vazamento de laboratório no relatório durou até 48 horas antes da conclusão da missão, afirmou Ben Embarek aos repórteres dinamarqueses. Por fim, o colega chinês de Ben Embarek acabou concordando em discutir a teoria de vazamento de laboratório no relatório “sob a condição de que não recomendássemos qualquer análise específica para aprofundar essa hipótese”.
Questionado no documentário a respeito da expressão “extremamente improvável”, com a qual o relatório tratou a teoria do vazamento de laboratório, ter sido uma exigência dos chineses, Ben Embarek afirmou que “foi a terminologia que escolhemos colocar no fim, sim”. Mas acrescentou que isso significa que a hipótese não é impossível, só é improvável.
Ben Embarek afirmou que uma hipótese similar, de que um funcionário do laboratório pôde ter levado o vírus a Wuhan inadvertidamente após coletar amostras em campo, poderia ser considerada tanto uma teoria de vazamento de laboratório quanto uma hipótese de contaminação direta por meio de morcego, que foi descrita como “provável” no relatório.
“Um funcionário do laboratório infectado em campo enquanto coletava amostras em uma caverna habitada por morcegos, esse cenário pertence tanto a uma hipótese de vazamento de laboratório quanto à nossa hipótese inicial de infestação direta do morcego ao homem. Consideramos essa uma hipótese provável”, afirmou Ben Embarek.
Em comentários durante entrevista que não foram incluídos no documentário mas foram publicados em um texto no site da TV2, Ben Embarek sugeriu que pode ter havido um “erro humano”, mas que o sistema político chinês não permite que autoridades admitam isso.
“Isso provavelmente significa que houve um erro humano por trás desse evento, e eles não ficam nada felizes em ter de admitir isso”, afirmou Ben Embarek, segundo a publicação. “Todo o sistema tem bastante foco na infalibilidade, e tudo tem de ser perfeito”, acrescentou ele. “Alguém pode estar querendo esconder algo. Quem poderá saber?”
Procurado pelo Post, Ben Embarek afirmou inicialmente que sua fala foi mal traduzida ao inglês pela imprensa. “É uma tradução errada de um artigo dinamarquês”, escreveu ele, que se recusou a dar outras declarações e orientou a reportagem a procurar a OMS. Ele não respondeu imediatamente questões complementares.
O porta-voz da OMS, Tarik Jasarevic, também afirmou que o comentário de Ben Embarek à TV dinamarquesa foi mal traduzido — e que a entrevista ocorreu “meses atrás”.
“Não há novos elementos nem mudança de posição. Todas as hipóteses estão sobre a mesa, e a OMS trabalha com Estados-membros no próximo passo”, afirmou Jasarevic, citando comentários de graduadas autoridades da OMS na investigação.
Intitulado O mistério do vírus, o documentário tem estreia marcada na emissora dinamarquesa TV2 na noite da quinta-feira.
Ben Embarek colaborou com os realizadores do documentário, chegando ao ponto de filmar sua viagem à China no celular para fornecer-lhes a perspectiva interna de uma viagem restrita.
Ben Embarek liderou um time de cientistas internacionais em uma missão à China em janeiro, para trabalhar com autoridades locais na investigação das origens de uma pandemia que, até agora, infectou mais de 200 milhões de pessoas e deixou pelo menos 4,3 milhões de mortos em todo o mundo.
Desde o início, a viagem foi inundada por controvérsias. Pequim atrasou a aprovação da viagem da OMS, adiando a chegada dos pesquisadores, e alguns especialistas internacionais da equipe foram criticados por ligações anteriores com pesquisas chinesas.
Depois que chegou à China, a equipe da OMS, que foi sujeita a estritos procedimentos de quarentena, teve somente duas semanas para realizar pesquisas de campo.
Após o relatório da equipe ser publicado, no fim de março, suas afirmações foram cada vez mais contestadas. A equipe considerou quatro hipóteses diferentes a respeito da maneira que o vírus começou a se espalhar entre humanos, qualificando a teoria da disseminação zoonótica, de animais a humanos, como a “mais provável”.
Outras hipóteses menos prováveis incluem uma segundo a qual o vírus pode ter chegado à China em alimentos congelados — uma teoria citada repetidamente por autoridades chinesas, mas considerada improvável por muitos especialistas internacionais.
A teoria de "vazamento de laboratório”, objeto de intensa especulação nos Estados Unidos, foi qualificada como a hipótese menos provável, e a equipe da OMS afirmou que não deveria mais ser investigada. Mesmo céticos em relação à teoria, porém, se surpreenderam por ela ter sido descartada.
Na entrevista coletiva que marcou a publicação do relatório, o diretor geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou que essa hipótese ainda precisava de estudo mais detalhado.
“Apesar de a equipe ter concluído que a hipótese de vazamento de laboratório é a menos provável, ela precisa de mais investigação, potencialmente com missões adicionais envolvendo especialistas, que estou disposto a mobilizar”, afirmou Tedros.
Ben Embarek e outros pesquisadores da equipe indicaram que a pressão foi imensa durante a viagem, de todos os lados, com até 60 colegas chineses trabalhando tanto com os cientistas quanto com autoridades públicas de saúde.
“A política nos acompanhou durante todo o tempo, sempre estava na sala”, afirmou ele à Science Magazine em uma entrevista publicada em fevereiro.
Este mês, a Comunidade de Inteligência dos EUA deverá completar uma análise de 90 dias de evidências a respeito das origens do coronavírus.
Tedros também afirmou que a OMS continuará sua própria pesquisa a respeito das origens da pandemia, apesar de autoridades chinesas terem afirmado, no mês passado, que seria “impossível" aceitar a continuidade de uma investigação com foco na China. / Tradução de Augusto Calil