Defensores da democracia e aspirantes a Rambo: os combatentes estrangeiros que lutam pela Ucrânia


Estima-se que há entre 1 mil e 3 mil combatentes estrangeiros atualmente em atividade na Ucrânia; para muitos, conflito representa defender a democracia ou fugir dos próprios demônios

Por Jeff Stein

KHARKIV — Um ex-capitão das Forças Armadas do Reino Unido, de 30 anos, deparou-se com uma encruzilhada pessoal vários meses antes da Rússia invadir a Ucrânia, quando considerava trabalhar no escritório de uma firma de segurança e um futuro conversando sobre trivialidades com suas irmãs e mãe, em sua cidade no sudeste da Inglaterra.

O ex-capitão ainda tinha dificuldades para se adaptar às rotinas da vida civil quando a chance de se voluntariar para defender a Ucrânia ofereceu-lhe um caminho alternativo. Agora, depois de quase ser morto por uma barragem de fogo de artilharia em Bakhmut, o ex-capitão, que são será identificado por razões de segurança, afirma estar “mais feliz do que jamais estive”.

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A guerra na Ucrânia lhe deu propósito, e ele está eufórico com o perigo. “Esta guerra tem sido uma coisa terrível, terrível para a Ucrânia”, afirmou ele durante uma entrevista telefônica, no mês passado. “Mas os últimos nove meses foram os melhores e mais prazerosos da minha vida. Não consigo passar os próximos 50 anos sentado em um escritório fazendo apresentações de PowerPoint.”

“Parte de mim faz isso pelos motivos certos, mas outra parte faz por causa da violência”, afirmou o ex-capitão. “Tipo um pouco de cada.”

Imagem mostra soldados próximos a front de batalha em Kreminna, na Ucrânia, no dia 3 deste mês Foto: Clodagh Kilcoyne/Reuters - 03/01/2023
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As complexas motivações que levaram o ex-capitão às trincheiras sangrentas da Ucrânia refletem as experiências de milhares de indivíduos que responderam ao apelo do presidente Volodmir Zelenski por combatentes voluntários após a Rússia invadir seu país, em fevereiro do ano passado. Alguns foram defender a democracia, outros fogem de seus próprios demônios.

Estima-se que há entre 1 mil e 3 mil combatentes estrangeiros atualmente em atividade na Ucrânia, a maioria servindo aos três batalhões da Legião Internacional, de acordo com analistas e acadêmicos que os monitoram, enfatizando que os números são meras aproximações. As Forças Armadas ucranianas não responderam pedidos de detalhes a respeito dos voluntários nem estimaram seu contingente.

Em comparação com as centenas de milhares de soldados regulares da Ucrânia, o impacto dos voluntários é relativamente pequeno. Mas os combatentes estrangeiros atraem uma atenção desproporcional no Ocidente, especialmente quando são mortos ou capturados, e levantam um emaranhado de desconfortáveis questões legais, morais e políticas para a Ucrânia e os governos dos países dos voluntários.

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A disposição de dezenas de milhares de indivíduos de atender o chamado de Zelenski dialoga com a ressonância da causa ucraniana: um país aspirando ser integrante livre e democrático da União Europeia, que luta pela sobrevivência contra um regime totalitário com histórico de violar com truculência a soberania territorial de seus vizinhos.

Mas alguns combatentes voluntários estão quebrando as regras de seus próprios países para lutar na Ucrânia, e especialistas notaram um risco de voluntários dos Estados Unidos poderem estar violando a Lei de Neutralidade, que data de 1794 e tem intenção de proibir cidadãos americanos de possivelmente envolver seu país em guerras estrangeiras.

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Mesmo se for legal, a presença de combatentes ocidentais na Ucrânia contraria o esforço determinado do governo Biden e seus aliados na Otan de evitar envolvimento direto na guerra da Rússia. Também não é claro quem são os responsáveis por esses soldados voluntários durante e após seus perigosos serviços em combate.

O grande número de veteranos problemáticos se voluntariando na Ucrânia também sugere um fracasso de seus próprios governos em resolver traumas do passado e reintegrá-los à vida civil, afirmaram especialistas. Os que não são soldados profissionais causaram problemas para os militares ucranianos, que consideraram alguns voluntários mais onerosos que úteis.

Soldados do batalhão internacional Carpathian Sich realizam manobras perto do front de batalha, enquanto o ataque da Rússia à Ucrânia continua, perto de Kreminna, Ucrânia Foto: Clodagh Kilcoyne / REUTERS - 03/01/2023
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Autoridades ucranianas afirmaram na primavera passada que 20 mil voluntários de mais de 50 países se voluntariaram. Mas a grande maioria pareceu retornar para seus países antes do verão, de acordo com acadêmicos que estudam seu envolvimento e entrevistas com mais de uma dúzia de combatentes estrangeiros.

Muitos pareciam mais interessados em posar para o Instagram do que se comprometer com o trabalho duro da guerra de trincheiras. Outros pareciam ávidos demais para concretizar fantasias do videogame Call of Duty. E alguns foram acusados de coisas mais graves, como roubo e abuso sexual, ou descobriu-se que eles fugiam de indiciamentos criminais em seus países.

Voluntários novatos

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As realidades da guerra inquietaram muitos voluntários novatos. A intensidade dos combates e a alta probabilidade de morte impressionaram até muitos soldados ocidentais experientes, que se viram em uma guerra de artilharia sem o apoio aéreo com que contaram no Iraque ou no Afeganistão.

Mas para muitos combatentes, particularmente veteranos com dificuldades para se reintegrar à vida civil, os horrores do derramamento de sangue na Ucrânia ainda se provaram mais atrativos do que a prostração da paz em seus países.

Centenas desses voluntários mais bem treinados também estão integrados a unidades menores que operam independentemente da Legião Internacional. Elas incluem grupos liderados por antigos oponentes regionais de Moscou, como a Legião Nacional da Geórgia e o Batalhão Checheno, além de outras unidades lideradas por ocidentais, com nomes como Alpha, Phalanx e Brigada Norman.

De codinome “Hrulf” e natural de Quebec, o comandante da Brigada Norman, de voluntários, afirmou que sua unidade já incluiu combatentes suecos, dinamarqueses, alemães, espanhóis, portugueses, italianos, jordanianos, egípcios e noruegueses, além de americanos, canadenses e britânicos.

Antes da guerra, Hrulf, que o Washington Post identificará apenas pelo codinome por questões de segurança, pensava que “russos e ucranianos eram um só povo, como irmãos e irmãs”. Agora ele está casado com uma ucraniana, com quem teve uma filha, e completamente comprometido com a causa de Kiev. “Não há volta atrás”, afirmou ele.

Joseph Hildebrand, de 33 anos, arava a fazenda de sua família nos campos de Saskatchewan, colhia lentilhas e cuidava das vacas, garantindo à sua mulher que tinha feito as pazes consigo mesmo por desistir da carreira nas Forças Armadas do Canadá, que incluiu duas passagens pelo Afeganistão. Mas era mentira.

“Ele literalmente não conseguiu aguentar”, afirmou Carissa, a viúva de Hildebrand. “Ele começou a falar com amigos que tinham feito a transição e simplesmente sentiu que era sua obrigação. (…) Mas isso apenas incomodava sua alma.”

Morte de voluntários

Seja qual for sua motivação, o serviço e o sacrifício de combatentes estrangeiros na Ucrânia é real: cerca de cem morreram, e outros mil foram feridos, de acordo com o pesquisador Kacper Rekawek, do Centro para Pesquisa sobre Extremismo, da Universidade de Oslo.

Hildebrand foi morto em combate em Bakhmut, e sua família levou mais de cinco semanas para recuperar seu corpo. Um ex-paraquedista militar canadense e amigo próximo de Hildebrand afirmou que ele foi enviado em uma “missão suicida”. O paraquedista, que falou sob condição de anonimato por temer retaliação do governo ucraniano, expressou frustração afirmando que as forças ucranianas poderiam estar mais bem preparadas.

“Há problemas enormes porque muitos desses caras não são soldados treinados”, afirmou o paraquedista no mês passado, quando deixava a Ucrânia após quatro meses de combates. “É muito difícil para mim ver isso. Há muito pânico, a falta de treinamento é terrível.”

Outros voluntários afirmaram que as críticas aos ucranianos são injustas. “Minha maior frustração tem sido com combatentes estrangeiros que reclamam afirmando: ‘Eles estão mandando a gente em missões suicidas’. É, mano, o que você acha que a guerra é?”, disse o americano Jason Mann, de 37 anos, que serve em uma unidade chamada Phalanx. Mann combateu no Afeganistão, graduou-se em ciência da computação na Universidade Columbia e trabalhou como engenheiro de software no Google antes de viajar para a Ucrânia.

Um outro voluntário estrangeiro na Ucrânia, britânico, que estava de folga dos combates ao norte de Kramatorsk, na região de Donetsk, no leste ucraniano, e responde pelo codinome “Swampy”, afirmou que passou por “um período de muitos altos e baixos” depois que deixou as Forças Armadas do Reino Unido em razão de um ferimento no joelho, mas que a guerra na Ucrânia lhe deu sentido.

“Você sabe exatamente por que está despertando todas as manhãs”, afirmou Swampy, de 38 anos, que será identificado apenas por seu codinome por razões de segurança.

Um americano de 28 anos que lutou na Ucrânia por aproximadamente seis meses — e não será identificado pelo Post por razões de segurança — afirmou que esse sentimento é comum.

“Para muitos caras existe realmente uma ‘mentalidade de Valhalla’, de querer morrer como um soldado enquanto mata o máximo possível de russos”, afirmou o americano. “Não quero humilhar ninguém, mas existiu uma alienação que eles sentiram em relação ao que acontecia no mundo e não havia um lugar — ou um sistema — para eles fora disso.”

Ele acrescentou: “Entre o tipo de gente que aparece, todos são românticos de alguma maneira, e muitos tiveram os corações partidos. Mas todos são também idealistas que quiseram fazer parte de algo maior que eles mesmos.”

Altamente comprometidos

Com a guerra agora em seu 11.º mês, esses voluntários ainda na Ucrânia tendem a ser altamente comprometidos, dispostos a suportar as condições do inverno, superar barreiras linguísticas e certas tensões culturais que se incendeiam ocasionalmente. Para alguns, a guerra na Ucrânia apresentou uma rara oportunidade de praticar seu treinamento.

Um soldado de 23 anos do Real Corpo de Engenharia do Exército britânico passou cinco anos aprendendo técnicas de desminagem e construção de trincheiras e pontes, mas nunca tinha colocado em prática esse conhecimento de alguma maneira que parecesse útil. Ele passou um período no Leste Europeu treinando soldados estrangeiros, mas achou a atividade tediosa e sem sentido.

“Sendo completamente honesto, o que mais me motivou a vir para cá realmente foi atirar em pessoas e ser alvo de tiros”, afirmou o soldado britânico, que falou sob condição de anonimato porque não foi autorizado a conversar com a imprensa. “Eu não quis receber minha pensão sem jamais ter feito algo útil”, afirmou ele. Agora, porém, ele afirma estar lá em razão de seu comprometimento com a causa ucraniana.

Nem todos os voluntários sofriam com falta de opções. Quando a Rússia invadiu, Zachary Jaynes, de 28 anos, que acabava de se graduar na Faculdade Dartmouth e tinha integrado a brigada Ranger do Exército dos EUA, estava prestes a inaugurar um retiro de meditação nos Himalaias.

Sua mãe tinha morrido, ele havia sofrido durante seu último ano de faculdade com os lockdowns anticovid e, como muitos veteranos ocidentais na Ucrânia, ele se desiludiu com o período que passou no Afeganistão. Jaynes considerou um emprego em consultoria, mas que não lhe pareceu atraente.

“Havia esse grau de vazio e angústia existencial, de tentar deixar para trás meu histórico militar — mas descobri que não conseguia me desvincular dessas experiências”, afirmou Jaynes em entrevista, em Kiev, onde ele desfrutava de uma folga dos combates no sul. Quando a invasão começou, “pareceu um ponto de inflexão”, afirmou ele. “Eu podia ignorar o que estava acontecendo na Ucrânia e esse pedido de socorro ou mergulhar de novo completamente no abismo para tentar encontrar a luz.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

KHARKIV — Um ex-capitão das Forças Armadas do Reino Unido, de 30 anos, deparou-se com uma encruzilhada pessoal vários meses antes da Rússia invadir a Ucrânia, quando considerava trabalhar no escritório de uma firma de segurança e um futuro conversando sobre trivialidades com suas irmãs e mãe, em sua cidade no sudeste da Inglaterra.

O ex-capitão ainda tinha dificuldades para se adaptar às rotinas da vida civil quando a chance de se voluntariar para defender a Ucrânia ofereceu-lhe um caminho alternativo. Agora, depois de quase ser morto por uma barragem de fogo de artilharia em Bakhmut, o ex-capitão, que são será identificado por razões de segurança, afirma estar “mais feliz do que jamais estive”.

A guerra na Ucrânia lhe deu propósito, e ele está eufórico com o perigo. “Esta guerra tem sido uma coisa terrível, terrível para a Ucrânia”, afirmou ele durante uma entrevista telefônica, no mês passado. “Mas os últimos nove meses foram os melhores e mais prazerosos da minha vida. Não consigo passar os próximos 50 anos sentado em um escritório fazendo apresentações de PowerPoint.”

“Parte de mim faz isso pelos motivos certos, mas outra parte faz por causa da violência”, afirmou o ex-capitão. “Tipo um pouco de cada.”

Imagem mostra soldados próximos a front de batalha em Kreminna, na Ucrânia, no dia 3 deste mês Foto: Clodagh Kilcoyne/Reuters - 03/01/2023

As complexas motivações que levaram o ex-capitão às trincheiras sangrentas da Ucrânia refletem as experiências de milhares de indivíduos que responderam ao apelo do presidente Volodmir Zelenski por combatentes voluntários após a Rússia invadir seu país, em fevereiro do ano passado. Alguns foram defender a democracia, outros fogem de seus próprios demônios.

Estima-se que há entre 1 mil e 3 mil combatentes estrangeiros atualmente em atividade na Ucrânia, a maioria servindo aos três batalhões da Legião Internacional, de acordo com analistas e acadêmicos que os monitoram, enfatizando que os números são meras aproximações. As Forças Armadas ucranianas não responderam pedidos de detalhes a respeito dos voluntários nem estimaram seu contingente.

Em comparação com as centenas de milhares de soldados regulares da Ucrânia, o impacto dos voluntários é relativamente pequeno. Mas os combatentes estrangeiros atraem uma atenção desproporcional no Ocidente, especialmente quando são mortos ou capturados, e levantam um emaranhado de desconfortáveis questões legais, morais e políticas para a Ucrânia e os governos dos países dos voluntários.

A disposição de dezenas de milhares de indivíduos de atender o chamado de Zelenski dialoga com a ressonância da causa ucraniana: um país aspirando ser integrante livre e democrático da União Europeia, que luta pela sobrevivência contra um regime totalitário com histórico de violar com truculência a soberania territorial de seus vizinhos.

Mas alguns combatentes voluntários estão quebrando as regras de seus próprios países para lutar na Ucrânia, e especialistas notaram um risco de voluntários dos Estados Unidos poderem estar violando a Lei de Neutralidade, que data de 1794 e tem intenção de proibir cidadãos americanos de possivelmente envolver seu país em guerras estrangeiras.

Mesmo se for legal, a presença de combatentes ocidentais na Ucrânia contraria o esforço determinado do governo Biden e seus aliados na Otan de evitar envolvimento direto na guerra da Rússia. Também não é claro quem são os responsáveis por esses soldados voluntários durante e após seus perigosos serviços em combate.

O grande número de veteranos problemáticos se voluntariando na Ucrânia também sugere um fracasso de seus próprios governos em resolver traumas do passado e reintegrá-los à vida civil, afirmaram especialistas. Os que não são soldados profissionais causaram problemas para os militares ucranianos, que consideraram alguns voluntários mais onerosos que úteis.

Soldados do batalhão internacional Carpathian Sich realizam manobras perto do front de batalha, enquanto o ataque da Rússia à Ucrânia continua, perto de Kreminna, Ucrânia Foto: Clodagh Kilcoyne / REUTERS - 03/01/2023

Autoridades ucranianas afirmaram na primavera passada que 20 mil voluntários de mais de 50 países se voluntariaram. Mas a grande maioria pareceu retornar para seus países antes do verão, de acordo com acadêmicos que estudam seu envolvimento e entrevistas com mais de uma dúzia de combatentes estrangeiros.

Muitos pareciam mais interessados em posar para o Instagram do que se comprometer com o trabalho duro da guerra de trincheiras. Outros pareciam ávidos demais para concretizar fantasias do videogame Call of Duty. E alguns foram acusados de coisas mais graves, como roubo e abuso sexual, ou descobriu-se que eles fugiam de indiciamentos criminais em seus países.

Voluntários novatos

As realidades da guerra inquietaram muitos voluntários novatos. A intensidade dos combates e a alta probabilidade de morte impressionaram até muitos soldados ocidentais experientes, que se viram em uma guerra de artilharia sem o apoio aéreo com que contaram no Iraque ou no Afeganistão.

Mas para muitos combatentes, particularmente veteranos com dificuldades para se reintegrar à vida civil, os horrores do derramamento de sangue na Ucrânia ainda se provaram mais atrativos do que a prostração da paz em seus países.

Centenas desses voluntários mais bem treinados também estão integrados a unidades menores que operam independentemente da Legião Internacional. Elas incluem grupos liderados por antigos oponentes regionais de Moscou, como a Legião Nacional da Geórgia e o Batalhão Checheno, além de outras unidades lideradas por ocidentais, com nomes como Alpha, Phalanx e Brigada Norman.

De codinome “Hrulf” e natural de Quebec, o comandante da Brigada Norman, de voluntários, afirmou que sua unidade já incluiu combatentes suecos, dinamarqueses, alemães, espanhóis, portugueses, italianos, jordanianos, egípcios e noruegueses, além de americanos, canadenses e britânicos.

Antes da guerra, Hrulf, que o Washington Post identificará apenas pelo codinome por questões de segurança, pensava que “russos e ucranianos eram um só povo, como irmãos e irmãs”. Agora ele está casado com uma ucraniana, com quem teve uma filha, e completamente comprometido com a causa de Kiev. “Não há volta atrás”, afirmou ele.

Joseph Hildebrand, de 33 anos, arava a fazenda de sua família nos campos de Saskatchewan, colhia lentilhas e cuidava das vacas, garantindo à sua mulher que tinha feito as pazes consigo mesmo por desistir da carreira nas Forças Armadas do Canadá, que incluiu duas passagens pelo Afeganistão. Mas era mentira.

“Ele literalmente não conseguiu aguentar”, afirmou Carissa, a viúva de Hildebrand. “Ele começou a falar com amigos que tinham feito a transição e simplesmente sentiu que era sua obrigação. (…) Mas isso apenas incomodava sua alma.”

Morte de voluntários

Seja qual for sua motivação, o serviço e o sacrifício de combatentes estrangeiros na Ucrânia é real: cerca de cem morreram, e outros mil foram feridos, de acordo com o pesquisador Kacper Rekawek, do Centro para Pesquisa sobre Extremismo, da Universidade de Oslo.

Hildebrand foi morto em combate em Bakhmut, e sua família levou mais de cinco semanas para recuperar seu corpo. Um ex-paraquedista militar canadense e amigo próximo de Hildebrand afirmou que ele foi enviado em uma “missão suicida”. O paraquedista, que falou sob condição de anonimato por temer retaliação do governo ucraniano, expressou frustração afirmando que as forças ucranianas poderiam estar mais bem preparadas.

“Há problemas enormes porque muitos desses caras não são soldados treinados”, afirmou o paraquedista no mês passado, quando deixava a Ucrânia após quatro meses de combates. “É muito difícil para mim ver isso. Há muito pânico, a falta de treinamento é terrível.”

Outros voluntários afirmaram que as críticas aos ucranianos são injustas. “Minha maior frustração tem sido com combatentes estrangeiros que reclamam afirmando: ‘Eles estão mandando a gente em missões suicidas’. É, mano, o que você acha que a guerra é?”, disse o americano Jason Mann, de 37 anos, que serve em uma unidade chamada Phalanx. Mann combateu no Afeganistão, graduou-se em ciência da computação na Universidade Columbia e trabalhou como engenheiro de software no Google antes de viajar para a Ucrânia.

Um outro voluntário estrangeiro na Ucrânia, britânico, que estava de folga dos combates ao norte de Kramatorsk, na região de Donetsk, no leste ucraniano, e responde pelo codinome “Swampy”, afirmou que passou por “um período de muitos altos e baixos” depois que deixou as Forças Armadas do Reino Unido em razão de um ferimento no joelho, mas que a guerra na Ucrânia lhe deu sentido.

“Você sabe exatamente por que está despertando todas as manhãs”, afirmou Swampy, de 38 anos, que será identificado apenas por seu codinome por razões de segurança.

Um americano de 28 anos que lutou na Ucrânia por aproximadamente seis meses — e não será identificado pelo Post por razões de segurança — afirmou que esse sentimento é comum.

“Para muitos caras existe realmente uma ‘mentalidade de Valhalla’, de querer morrer como um soldado enquanto mata o máximo possível de russos”, afirmou o americano. “Não quero humilhar ninguém, mas existiu uma alienação que eles sentiram em relação ao que acontecia no mundo e não havia um lugar — ou um sistema — para eles fora disso.”

Ele acrescentou: “Entre o tipo de gente que aparece, todos são românticos de alguma maneira, e muitos tiveram os corações partidos. Mas todos são também idealistas que quiseram fazer parte de algo maior que eles mesmos.”

Altamente comprometidos

Com a guerra agora em seu 11.º mês, esses voluntários ainda na Ucrânia tendem a ser altamente comprometidos, dispostos a suportar as condições do inverno, superar barreiras linguísticas e certas tensões culturais que se incendeiam ocasionalmente. Para alguns, a guerra na Ucrânia apresentou uma rara oportunidade de praticar seu treinamento.

Um soldado de 23 anos do Real Corpo de Engenharia do Exército britânico passou cinco anos aprendendo técnicas de desminagem e construção de trincheiras e pontes, mas nunca tinha colocado em prática esse conhecimento de alguma maneira que parecesse útil. Ele passou um período no Leste Europeu treinando soldados estrangeiros, mas achou a atividade tediosa e sem sentido.

“Sendo completamente honesto, o que mais me motivou a vir para cá realmente foi atirar em pessoas e ser alvo de tiros”, afirmou o soldado britânico, que falou sob condição de anonimato porque não foi autorizado a conversar com a imprensa. “Eu não quis receber minha pensão sem jamais ter feito algo útil”, afirmou ele. Agora, porém, ele afirma estar lá em razão de seu comprometimento com a causa ucraniana.

Nem todos os voluntários sofriam com falta de opções. Quando a Rússia invadiu, Zachary Jaynes, de 28 anos, que acabava de se graduar na Faculdade Dartmouth e tinha integrado a brigada Ranger do Exército dos EUA, estava prestes a inaugurar um retiro de meditação nos Himalaias.

Sua mãe tinha morrido, ele havia sofrido durante seu último ano de faculdade com os lockdowns anticovid e, como muitos veteranos ocidentais na Ucrânia, ele se desiludiu com o período que passou no Afeganistão. Jaynes considerou um emprego em consultoria, mas que não lhe pareceu atraente.

“Havia esse grau de vazio e angústia existencial, de tentar deixar para trás meu histórico militar — mas descobri que não conseguia me desvincular dessas experiências”, afirmou Jaynes em entrevista, em Kiev, onde ele desfrutava de uma folga dos combates no sul. Quando a invasão começou, “pareceu um ponto de inflexão”, afirmou ele. “Eu podia ignorar o que estava acontecendo na Ucrânia e esse pedido de socorro ou mergulhar de novo completamente no abismo para tentar encontrar a luz.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

KHARKIV — Um ex-capitão das Forças Armadas do Reino Unido, de 30 anos, deparou-se com uma encruzilhada pessoal vários meses antes da Rússia invadir a Ucrânia, quando considerava trabalhar no escritório de uma firma de segurança e um futuro conversando sobre trivialidades com suas irmãs e mãe, em sua cidade no sudeste da Inglaterra.

O ex-capitão ainda tinha dificuldades para se adaptar às rotinas da vida civil quando a chance de se voluntariar para defender a Ucrânia ofereceu-lhe um caminho alternativo. Agora, depois de quase ser morto por uma barragem de fogo de artilharia em Bakhmut, o ex-capitão, que são será identificado por razões de segurança, afirma estar “mais feliz do que jamais estive”.

A guerra na Ucrânia lhe deu propósito, e ele está eufórico com o perigo. “Esta guerra tem sido uma coisa terrível, terrível para a Ucrânia”, afirmou ele durante uma entrevista telefônica, no mês passado. “Mas os últimos nove meses foram os melhores e mais prazerosos da minha vida. Não consigo passar os próximos 50 anos sentado em um escritório fazendo apresentações de PowerPoint.”

“Parte de mim faz isso pelos motivos certos, mas outra parte faz por causa da violência”, afirmou o ex-capitão. “Tipo um pouco de cada.”

Imagem mostra soldados próximos a front de batalha em Kreminna, na Ucrânia, no dia 3 deste mês Foto: Clodagh Kilcoyne/Reuters - 03/01/2023

As complexas motivações que levaram o ex-capitão às trincheiras sangrentas da Ucrânia refletem as experiências de milhares de indivíduos que responderam ao apelo do presidente Volodmir Zelenski por combatentes voluntários após a Rússia invadir seu país, em fevereiro do ano passado. Alguns foram defender a democracia, outros fogem de seus próprios demônios.

Estima-se que há entre 1 mil e 3 mil combatentes estrangeiros atualmente em atividade na Ucrânia, a maioria servindo aos três batalhões da Legião Internacional, de acordo com analistas e acadêmicos que os monitoram, enfatizando que os números são meras aproximações. As Forças Armadas ucranianas não responderam pedidos de detalhes a respeito dos voluntários nem estimaram seu contingente.

Em comparação com as centenas de milhares de soldados regulares da Ucrânia, o impacto dos voluntários é relativamente pequeno. Mas os combatentes estrangeiros atraem uma atenção desproporcional no Ocidente, especialmente quando são mortos ou capturados, e levantam um emaranhado de desconfortáveis questões legais, morais e políticas para a Ucrânia e os governos dos países dos voluntários.

A disposição de dezenas de milhares de indivíduos de atender o chamado de Zelenski dialoga com a ressonância da causa ucraniana: um país aspirando ser integrante livre e democrático da União Europeia, que luta pela sobrevivência contra um regime totalitário com histórico de violar com truculência a soberania territorial de seus vizinhos.

Mas alguns combatentes voluntários estão quebrando as regras de seus próprios países para lutar na Ucrânia, e especialistas notaram um risco de voluntários dos Estados Unidos poderem estar violando a Lei de Neutralidade, que data de 1794 e tem intenção de proibir cidadãos americanos de possivelmente envolver seu país em guerras estrangeiras.

Mesmo se for legal, a presença de combatentes ocidentais na Ucrânia contraria o esforço determinado do governo Biden e seus aliados na Otan de evitar envolvimento direto na guerra da Rússia. Também não é claro quem são os responsáveis por esses soldados voluntários durante e após seus perigosos serviços em combate.

O grande número de veteranos problemáticos se voluntariando na Ucrânia também sugere um fracasso de seus próprios governos em resolver traumas do passado e reintegrá-los à vida civil, afirmaram especialistas. Os que não são soldados profissionais causaram problemas para os militares ucranianos, que consideraram alguns voluntários mais onerosos que úteis.

Soldados do batalhão internacional Carpathian Sich realizam manobras perto do front de batalha, enquanto o ataque da Rússia à Ucrânia continua, perto de Kreminna, Ucrânia Foto: Clodagh Kilcoyne / REUTERS - 03/01/2023

Autoridades ucranianas afirmaram na primavera passada que 20 mil voluntários de mais de 50 países se voluntariaram. Mas a grande maioria pareceu retornar para seus países antes do verão, de acordo com acadêmicos que estudam seu envolvimento e entrevistas com mais de uma dúzia de combatentes estrangeiros.

Muitos pareciam mais interessados em posar para o Instagram do que se comprometer com o trabalho duro da guerra de trincheiras. Outros pareciam ávidos demais para concretizar fantasias do videogame Call of Duty. E alguns foram acusados de coisas mais graves, como roubo e abuso sexual, ou descobriu-se que eles fugiam de indiciamentos criminais em seus países.

Voluntários novatos

As realidades da guerra inquietaram muitos voluntários novatos. A intensidade dos combates e a alta probabilidade de morte impressionaram até muitos soldados ocidentais experientes, que se viram em uma guerra de artilharia sem o apoio aéreo com que contaram no Iraque ou no Afeganistão.

Mas para muitos combatentes, particularmente veteranos com dificuldades para se reintegrar à vida civil, os horrores do derramamento de sangue na Ucrânia ainda se provaram mais atrativos do que a prostração da paz em seus países.

Centenas desses voluntários mais bem treinados também estão integrados a unidades menores que operam independentemente da Legião Internacional. Elas incluem grupos liderados por antigos oponentes regionais de Moscou, como a Legião Nacional da Geórgia e o Batalhão Checheno, além de outras unidades lideradas por ocidentais, com nomes como Alpha, Phalanx e Brigada Norman.

De codinome “Hrulf” e natural de Quebec, o comandante da Brigada Norman, de voluntários, afirmou que sua unidade já incluiu combatentes suecos, dinamarqueses, alemães, espanhóis, portugueses, italianos, jordanianos, egípcios e noruegueses, além de americanos, canadenses e britânicos.

Antes da guerra, Hrulf, que o Washington Post identificará apenas pelo codinome por questões de segurança, pensava que “russos e ucranianos eram um só povo, como irmãos e irmãs”. Agora ele está casado com uma ucraniana, com quem teve uma filha, e completamente comprometido com a causa de Kiev. “Não há volta atrás”, afirmou ele.

Joseph Hildebrand, de 33 anos, arava a fazenda de sua família nos campos de Saskatchewan, colhia lentilhas e cuidava das vacas, garantindo à sua mulher que tinha feito as pazes consigo mesmo por desistir da carreira nas Forças Armadas do Canadá, que incluiu duas passagens pelo Afeganistão. Mas era mentira.

“Ele literalmente não conseguiu aguentar”, afirmou Carissa, a viúva de Hildebrand. “Ele começou a falar com amigos que tinham feito a transição e simplesmente sentiu que era sua obrigação. (…) Mas isso apenas incomodava sua alma.”

Morte de voluntários

Seja qual for sua motivação, o serviço e o sacrifício de combatentes estrangeiros na Ucrânia é real: cerca de cem morreram, e outros mil foram feridos, de acordo com o pesquisador Kacper Rekawek, do Centro para Pesquisa sobre Extremismo, da Universidade de Oslo.

Hildebrand foi morto em combate em Bakhmut, e sua família levou mais de cinco semanas para recuperar seu corpo. Um ex-paraquedista militar canadense e amigo próximo de Hildebrand afirmou que ele foi enviado em uma “missão suicida”. O paraquedista, que falou sob condição de anonimato por temer retaliação do governo ucraniano, expressou frustração afirmando que as forças ucranianas poderiam estar mais bem preparadas.

“Há problemas enormes porque muitos desses caras não são soldados treinados”, afirmou o paraquedista no mês passado, quando deixava a Ucrânia após quatro meses de combates. “É muito difícil para mim ver isso. Há muito pânico, a falta de treinamento é terrível.”

Outros voluntários afirmaram que as críticas aos ucranianos são injustas. “Minha maior frustração tem sido com combatentes estrangeiros que reclamam afirmando: ‘Eles estão mandando a gente em missões suicidas’. É, mano, o que você acha que a guerra é?”, disse o americano Jason Mann, de 37 anos, que serve em uma unidade chamada Phalanx. Mann combateu no Afeganistão, graduou-se em ciência da computação na Universidade Columbia e trabalhou como engenheiro de software no Google antes de viajar para a Ucrânia.

Um outro voluntário estrangeiro na Ucrânia, britânico, que estava de folga dos combates ao norte de Kramatorsk, na região de Donetsk, no leste ucraniano, e responde pelo codinome “Swampy”, afirmou que passou por “um período de muitos altos e baixos” depois que deixou as Forças Armadas do Reino Unido em razão de um ferimento no joelho, mas que a guerra na Ucrânia lhe deu sentido.

“Você sabe exatamente por que está despertando todas as manhãs”, afirmou Swampy, de 38 anos, que será identificado apenas por seu codinome por razões de segurança.

Um americano de 28 anos que lutou na Ucrânia por aproximadamente seis meses — e não será identificado pelo Post por razões de segurança — afirmou que esse sentimento é comum.

“Para muitos caras existe realmente uma ‘mentalidade de Valhalla’, de querer morrer como um soldado enquanto mata o máximo possível de russos”, afirmou o americano. “Não quero humilhar ninguém, mas existiu uma alienação que eles sentiram em relação ao que acontecia no mundo e não havia um lugar — ou um sistema — para eles fora disso.”

Ele acrescentou: “Entre o tipo de gente que aparece, todos são românticos de alguma maneira, e muitos tiveram os corações partidos. Mas todos são também idealistas que quiseram fazer parte de algo maior que eles mesmos.”

Altamente comprometidos

Com a guerra agora em seu 11.º mês, esses voluntários ainda na Ucrânia tendem a ser altamente comprometidos, dispostos a suportar as condições do inverno, superar barreiras linguísticas e certas tensões culturais que se incendeiam ocasionalmente. Para alguns, a guerra na Ucrânia apresentou uma rara oportunidade de praticar seu treinamento.

Um soldado de 23 anos do Real Corpo de Engenharia do Exército britânico passou cinco anos aprendendo técnicas de desminagem e construção de trincheiras e pontes, mas nunca tinha colocado em prática esse conhecimento de alguma maneira que parecesse útil. Ele passou um período no Leste Europeu treinando soldados estrangeiros, mas achou a atividade tediosa e sem sentido.

“Sendo completamente honesto, o que mais me motivou a vir para cá realmente foi atirar em pessoas e ser alvo de tiros”, afirmou o soldado britânico, que falou sob condição de anonimato porque não foi autorizado a conversar com a imprensa. “Eu não quis receber minha pensão sem jamais ter feito algo útil”, afirmou ele. Agora, porém, ele afirma estar lá em razão de seu comprometimento com a causa ucraniana.

Nem todos os voluntários sofriam com falta de opções. Quando a Rússia invadiu, Zachary Jaynes, de 28 anos, que acabava de se graduar na Faculdade Dartmouth e tinha integrado a brigada Ranger do Exército dos EUA, estava prestes a inaugurar um retiro de meditação nos Himalaias.

Sua mãe tinha morrido, ele havia sofrido durante seu último ano de faculdade com os lockdowns anticovid e, como muitos veteranos ocidentais na Ucrânia, ele se desiludiu com o período que passou no Afeganistão. Jaynes considerou um emprego em consultoria, mas que não lhe pareceu atraente.

“Havia esse grau de vazio e angústia existencial, de tentar deixar para trás meu histórico militar — mas descobri que não conseguia me desvincular dessas experiências”, afirmou Jaynes em entrevista, em Kiev, onde ele desfrutava de uma folga dos combates no sul. Quando a invasão começou, “pareceu um ponto de inflexão”, afirmou ele. “Eu podia ignorar o que estava acontecendo na Ucrânia e esse pedido de socorro ou mergulhar de novo completamente no abismo para tentar encontrar a luz.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

KHARKIV — Um ex-capitão das Forças Armadas do Reino Unido, de 30 anos, deparou-se com uma encruzilhada pessoal vários meses antes da Rússia invadir a Ucrânia, quando considerava trabalhar no escritório de uma firma de segurança e um futuro conversando sobre trivialidades com suas irmãs e mãe, em sua cidade no sudeste da Inglaterra.

O ex-capitão ainda tinha dificuldades para se adaptar às rotinas da vida civil quando a chance de se voluntariar para defender a Ucrânia ofereceu-lhe um caminho alternativo. Agora, depois de quase ser morto por uma barragem de fogo de artilharia em Bakhmut, o ex-capitão, que são será identificado por razões de segurança, afirma estar “mais feliz do que jamais estive”.

A guerra na Ucrânia lhe deu propósito, e ele está eufórico com o perigo. “Esta guerra tem sido uma coisa terrível, terrível para a Ucrânia”, afirmou ele durante uma entrevista telefônica, no mês passado. “Mas os últimos nove meses foram os melhores e mais prazerosos da minha vida. Não consigo passar os próximos 50 anos sentado em um escritório fazendo apresentações de PowerPoint.”

“Parte de mim faz isso pelos motivos certos, mas outra parte faz por causa da violência”, afirmou o ex-capitão. “Tipo um pouco de cada.”

Imagem mostra soldados próximos a front de batalha em Kreminna, na Ucrânia, no dia 3 deste mês Foto: Clodagh Kilcoyne/Reuters - 03/01/2023

As complexas motivações que levaram o ex-capitão às trincheiras sangrentas da Ucrânia refletem as experiências de milhares de indivíduos que responderam ao apelo do presidente Volodmir Zelenski por combatentes voluntários após a Rússia invadir seu país, em fevereiro do ano passado. Alguns foram defender a democracia, outros fogem de seus próprios demônios.

Estima-se que há entre 1 mil e 3 mil combatentes estrangeiros atualmente em atividade na Ucrânia, a maioria servindo aos três batalhões da Legião Internacional, de acordo com analistas e acadêmicos que os monitoram, enfatizando que os números são meras aproximações. As Forças Armadas ucranianas não responderam pedidos de detalhes a respeito dos voluntários nem estimaram seu contingente.

Em comparação com as centenas de milhares de soldados regulares da Ucrânia, o impacto dos voluntários é relativamente pequeno. Mas os combatentes estrangeiros atraem uma atenção desproporcional no Ocidente, especialmente quando são mortos ou capturados, e levantam um emaranhado de desconfortáveis questões legais, morais e políticas para a Ucrânia e os governos dos países dos voluntários.

A disposição de dezenas de milhares de indivíduos de atender o chamado de Zelenski dialoga com a ressonância da causa ucraniana: um país aspirando ser integrante livre e democrático da União Europeia, que luta pela sobrevivência contra um regime totalitário com histórico de violar com truculência a soberania territorial de seus vizinhos.

Mas alguns combatentes voluntários estão quebrando as regras de seus próprios países para lutar na Ucrânia, e especialistas notaram um risco de voluntários dos Estados Unidos poderem estar violando a Lei de Neutralidade, que data de 1794 e tem intenção de proibir cidadãos americanos de possivelmente envolver seu país em guerras estrangeiras.

Mesmo se for legal, a presença de combatentes ocidentais na Ucrânia contraria o esforço determinado do governo Biden e seus aliados na Otan de evitar envolvimento direto na guerra da Rússia. Também não é claro quem são os responsáveis por esses soldados voluntários durante e após seus perigosos serviços em combate.

O grande número de veteranos problemáticos se voluntariando na Ucrânia também sugere um fracasso de seus próprios governos em resolver traumas do passado e reintegrá-los à vida civil, afirmaram especialistas. Os que não são soldados profissionais causaram problemas para os militares ucranianos, que consideraram alguns voluntários mais onerosos que úteis.

Soldados do batalhão internacional Carpathian Sich realizam manobras perto do front de batalha, enquanto o ataque da Rússia à Ucrânia continua, perto de Kreminna, Ucrânia Foto: Clodagh Kilcoyne / REUTERS - 03/01/2023

Autoridades ucranianas afirmaram na primavera passada que 20 mil voluntários de mais de 50 países se voluntariaram. Mas a grande maioria pareceu retornar para seus países antes do verão, de acordo com acadêmicos que estudam seu envolvimento e entrevistas com mais de uma dúzia de combatentes estrangeiros.

Muitos pareciam mais interessados em posar para o Instagram do que se comprometer com o trabalho duro da guerra de trincheiras. Outros pareciam ávidos demais para concretizar fantasias do videogame Call of Duty. E alguns foram acusados de coisas mais graves, como roubo e abuso sexual, ou descobriu-se que eles fugiam de indiciamentos criminais em seus países.

Voluntários novatos

As realidades da guerra inquietaram muitos voluntários novatos. A intensidade dos combates e a alta probabilidade de morte impressionaram até muitos soldados ocidentais experientes, que se viram em uma guerra de artilharia sem o apoio aéreo com que contaram no Iraque ou no Afeganistão.

Mas para muitos combatentes, particularmente veteranos com dificuldades para se reintegrar à vida civil, os horrores do derramamento de sangue na Ucrânia ainda se provaram mais atrativos do que a prostração da paz em seus países.

Centenas desses voluntários mais bem treinados também estão integrados a unidades menores que operam independentemente da Legião Internacional. Elas incluem grupos liderados por antigos oponentes regionais de Moscou, como a Legião Nacional da Geórgia e o Batalhão Checheno, além de outras unidades lideradas por ocidentais, com nomes como Alpha, Phalanx e Brigada Norman.

De codinome “Hrulf” e natural de Quebec, o comandante da Brigada Norman, de voluntários, afirmou que sua unidade já incluiu combatentes suecos, dinamarqueses, alemães, espanhóis, portugueses, italianos, jordanianos, egípcios e noruegueses, além de americanos, canadenses e britânicos.

Antes da guerra, Hrulf, que o Washington Post identificará apenas pelo codinome por questões de segurança, pensava que “russos e ucranianos eram um só povo, como irmãos e irmãs”. Agora ele está casado com uma ucraniana, com quem teve uma filha, e completamente comprometido com a causa de Kiev. “Não há volta atrás”, afirmou ele.

Joseph Hildebrand, de 33 anos, arava a fazenda de sua família nos campos de Saskatchewan, colhia lentilhas e cuidava das vacas, garantindo à sua mulher que tinha feito as pazes consigo mesmo por desistir da carreira nas Forças Armadas do Canadá, que incluiu duas passagens pelo Afeganistão. Mas era mentira.

“Ele literalmente não conseguiu aguentar”, afirmou Carissa, a viúva de Hildebrand. “Ele começou a falar com amigos que tinham feito a transição e simplesmente sentiu que era sua obrigação. (…) Mas isso apenas incomodava sua alma.”

Morte de voluntários

Seja qual for sua motivação, o serviço e o sacrifício de combatentes estrangeiros na Ucrânia é real: cerca de cem morreram, e outros mil foram feridos, de acordo com o pesquisador Kacper Rekawek, do Centro para Pesquisa sobre Extremismo, da Universidade de Oslo.

Hildebrand foi morto em combate em Bakhmut, e sua família levou mais de cinco semanas para recuperar seu corpo. Um ex-paraquedista militar canadense e amigo próximo de Hildebrand afirmou que ele foi enviado em uma “missão suicida”. O paraquedista, que falou sob condição de anonimato por temer retaliação do governo ucraniano, expressou frustração afirmando que as forças ucranianas poderiam estar mais bem preparadas.

“Há problemas enormes porque muitos desses caras não são soldados treinados”, afirmou o paraquedista no mês passado, quando deixava a Ucrânia após quatro meses de combates. “É muito difícil para mim ver isso. Há muito pânico, a falta de treinamento é terrível.”

Outros voluntários afirmaram que as críticas aos ucranianos são injustas. “Minha maior frustração tem sido com combatentes estrangeiros que reclamam afirmando: ‘Eles estão mandando a gente em missões suicidas’. É, mano, o que você acha que a guerra é?”, disse o americano Jason Mann, de 37 anos, que serve em uma unidade chamada Phalanx. Mann combateu no Afeganistão, graduou-se em ciência da computação na Universidade Columbia e trabalhou como engenheiro de software no Google antes de viajar para a Ucrânia.

Um outro voluntário estrangeiro na Ucrânia, britânico, que estava de folga dos combates ao norte de Kramatorsk, na região de Donetsk, no leste ucraniano, e responde pelo codinome “Swampy”, afirmou que passou por “um período de muitos altos e baixos” depois que deixou as Forças Armadas do Reino Unido em razão de um ferimento no joelho, mas que a guerra na Ucrânia lhe deu sentido.

“Você sabe exatamente por que está despertando todas as manhãs”, afirmou Swampy, de 38 anos, que será identificado apenas por seu codinome por razões de segurança.

Um americano de 28 anos que lutou na Ucrânia por aproximadamente seis meses — e não será identificado pelo Post por razões de segurança — afirmou que esse sentimento é comum.

“Para muitos caras existe realmente uma ‘mentalidade de Valhalla’, de querer morrer como um soldado enquanto mata o máximo possível de russos”, afirmou o americano. “Não quero humilhar ninguém, mas existiu uma alienação que eles sentiram em relação ao que acontecia no mundo e não havia um lugar — ou um sistema — para eles fora disso.”

Ele acrescentou: “Entre o tipo de gente que aparece, todos são românticos de alguma maneira, e muitos tiveram os corações partidos. Mas todos são também idealistas que quiseram fazer parte de algo maior que eles mesmos.”

Altamente comprometidos

Com a guerra agora em seu 11.º mês, esses voluntários ainda na Ucrânia tendem a ser altamente comprometidos, dispostos a suportar as condições do inverno, superar barreiras linguísticas e certas tensões culturais que se incendeiam ocasionalmente. Para alguns, a guerra na Ucrânia apresentou uma rara oportunidade de praticar seu treinamento.

Um soldado de 23 anos do Real Corpo de Engenharia do Exército britânico passou cinco anos aprendendo técnicas de desminagem e construção de trincheiras e pontes, mas nunca tinha colocado em prática esse conhecimento de alguma maneira que parecesse útil. Ele passou um período no Leste Europeu treinando soldados estrangeiros, mas achou a atividade tediosa e sem sentido.

“Sendo completamente honesto, o que mais me motivou a vir para cá realmente foi atirar em pessoas e ser alvo de tiros”, afirmou o soldado britânico, que falou sob condição de anonimato porque não foi autorizado a conversar com a imprensa. “Eu não quis receber minha pensão sem jamais ter feito algo útil”, afirmou ele. Agora, porém, ele afirma estar lá em razão de seu comprometimento com a causa ucraniana.

Nem todos os voluntários sofriam com falta de opções. Quando a Rússia invadiu, Zachary Jaynes, de 28 anos, que acabava de se graduar na Faculdade Dartmouth e tinha integrado a brigada Ranger do Exército dos EUA, estava prestes a inaugurar um retiro de meditação nos Himalaias.

Sua mãe tinha morrido, ele havia sofrido durante seu último ano de faculdade com os lockdowns anticovid e, como muitos veteranos ocidentais na Ucrânia, ele se desiludiu com o período que passou no Afeganistão. Jaynes considerou um emprego em consultoria, mas que não lhe pareceu atraente.

“Havia esse grau de vazio e angústia existencial, de tentar deixar para trás meu histórico militar — mas descobri que não conseguia me desvincular dessas experiências”, afirmou Jaynes em entrevista, em Kiev, onde ele desfrutava de uma folga dos combates no sul. Quando a invasão começou, “pareceu um ponto de inflexão”, afirmou ele. “Eu podia ignorar o que estava acontecendo na Ucrânia e esse pedido de socorro ou mergulhar de novo completamente no abismo para tentar encontrar a luz.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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