Quando vejo a torrente de ordens executivas e tarifas que o presidente Donald Trump emitiu desde que assumiu o cargo, temo estar assistindo a uma versão real daquele anúncio publicitário do Certified Financial Planner Board, que tenta mostrar por que a experiência realmente importa.
No comercial, um cirurgião entra num quarto de hospital e conversa com sua paciente. Primeiro, o médico a chama de Brenda, e ela responde: “Meu nome é Carol”.
Logo o cirurgião pergunta: “Então, que perna estaremos operando?”
E ela diz: “Que braço, o senhor quer dizer?”.
O cirurgião faz pouco caso, então, da preocupação óbvia da mulher, dizendo: “Tudo está conectado”.
Agora totalmente apavorada, a paciente finalmente pergunta ao médico: “O senhor tem certeza que é ortopedista?”.
E o médico responde: “Na verdade, sou sagitário”.
Perdoem meu ceticismo, mas tenho sérias dúvidas sobre o quanto Trump e sua equipe de cirurgiões orçamentários estudaram realmente não apenas as maneiras de implementar todos esses cortes, tarifas, congelamentos e demissões que se apressaram em realizar, mas também os efeitos de longo prazo que eles terão na totalidade da governo, do comércio e do investimento nos EUA.
Que trabalho estamos assistindo aqui? De um cirurgião ou de um sagitariano? Estamos testemunhando o desenrolar de um plano testado e simulado por meses, com todas as suas implicações totalmente compreendidas?
Ou estamos vendo o desenrolar de anotações tomadas num guardanapo de papel do bar de Mar-a-Lago, com algumas ideias cruas esboçadas e, em seguida, uma disputa caótica entre Trump e seus assessores e lobistas sobre que indústrias serão atingidas ou poupadas?
Fico com a hipótese do guardanapo. É difícil para mim expressar isso melhor do que o editorial — normalmente pró-Trump — do Wall Street Journal intitulado “A guerra comercial mais burra da história”, que afirma: “Trump imporá tarifas de 25% sobre o Canadá e o México sem nenhuma boa razão para isso”.
Mas as tarifas impulsivas de Trump — que ele parece anunciar e suspender segundo seus próprios caprichos — são sintomas de um desafio mais profundo para os empresários americanos, sobre o qual pretendo escrever hoje. Como as empresas americanas acompanham o ritmo da China nas indústrias do futuro: inteligência artificial, chips lógicos avançados, veículos elétricos, tecnologia limpa e carros autônomos, quando essas empresas são constantemente chicoteadas entre presidentes democratas e republicanos em um mundo no qual têm de fazer apostas multibilionárias com cinco anos de antecedência.
E elas têm de fazer essas apostas ao mesmo tempo que competem com a China, cujo governo desperta todos os dias e pergunta aos empresários: como posso ajudá-los? Vamos vislumbrar juntos como venceremos globalmente a longo prazo?
Para entender a coisa melhor, visitei a sede da Ford Motor em Dearborn, Michigan, na semana passada, para ver como a empresa está competindo com os gigantes dos veículos elétricos da China. Quase metade das vendas de carros novos na China são de VEs a bateria ou híbridos, e suas empresas já controlam cerca de 60% do mercado global desses modelos — o que se deve, em grande medida, ao fato de a China fabricar as melhores baterias de carros do mundo; e qualquer montadora dos EUA que queira ser competitiva no negócio de VEs hoje precisa de transferência de tecnologia de baterias da China.
Permitam-me repetir isso lentamente: para serem globalmente competitivas em relação aos carros do futuro, as montadoras americanas precisam de transferência de tecnologia de baterias da China.
Estamos falando de uma reversão total em relação a 25 anos atrás, quando a China precisava de transferência de tecnologia da GM e da Ford para conseguir fabricar carros competitivos internacionalmente.
Vejam o resumo da ópera: a indústria automobilística é totalmente global hoje; uma empresa como a Ford tem de equilibrar o desejo de seus clientes por carros com motores a combustão tradicionais, carros híbridos ou carros totalmente elétricos com capacidades crescentes de direção autônoma; mas tem de fazer isso num mundo em que a China fez uma aposta enorme em veículos elétricos e está perfeitamente satisfeita em ignorar o mercado dos EUA por enquanto e vencer a Ford e outros fabricantes americanos no Brasil, na Indonésia, na Europa e na África.
Então, se ignorar completamente o ramo dos veículos elétricos, a Ford deixará o restante do mundo para a China — e corre o risco de despertar daqui a cinco anos e encontrar a maior parte do mundo funcionando com VEs chineses — e ficará apenas com os EUA. Para evitar tal desastre, a Ford, como outras montadoras americanas, aproveitou os incentivos oferecidos pelo governo Biden para construir grandes fábricas de VEs e baterias nos EUA.
A Ford está neste momento perto de concluir a construção do BlueOval Battery Park, um complexo fabril de 167.225 metros quadrados em Marshall, Michigan, programado para iniciar a produção de baterias de fosfato de ferro-lítio (LFP) em 2026 para os carros elétricos da Ford. A fábrica é totalmente de propriedade da Ford — um investimento de aproximadamente US$ 2 bilhões — mas as baterias que ela produzirá para seus veículos elétricos têm como base a tecnologia LFP licenciada da gigante chinesa de baterias CATL. Espera-se que a fábrica da Ford crie cerca de 1,7 mil empregos. (Teria sido mais, mas houve uma desaceleração nas vendas de carros elétricos nos EUA em razão de estações de carregamento insuficientes.)
A fábrica em Marshall foi projetada originalmente para ser construída no México, mas por causa dos incentivos aos veículos elétricos do presidente Joe Biden a Ford a transferiu para o Michigan — exatamente como o sistema deveria funcionar: dar às nossas montadoras créditos de produção e impostos ao consumidor até que a indústria ganhe escala e seja capaz de sobreviver por conta própria. Exatamente o que a China faz.
Mas a Ford precisou de um parceiro chinês em baterias. Nenhum fabricante americano de baterias é capaz de se igualar às baterias CATL, que são carregadas mais rapidamente e rodam mais.
“Os carros de hoje estão se tornando dispositivos digitais de transporte”, disse-me o presidente-executivo da Ford, Jim Farley. E a China está 10 anos à frente na fabricação de baterias para esses carros e na criação dessa experiência de direção completamente digitalizada, disse ele. “Portanto, o jeito de competir com eles é obtendo acesso às suas propriedades intelectuais da mesma forma que eles precisaram das nossas há 20 anos, para então usar nosso ecossistema inovador, a engenhosidade americana e nossa grande escala e intimidade com o cliente para vencê-los globalmente. Será uma das corridas mais importantes para salvar nossa economia industrial.”
Para cumprir esse objetivo, a Ford também está se preparando para começar a contratar funcionários para a fábrica BlueOval City, que custará US$ 5,6 bilhões, ocupará 1.456 hectares e está sendo concluída na cidade de Stanton, no oeste do Tennessee, incluindo uma nova unidade de fabricação de baterias e veículos elétricos e um parque de fornecedores, e que também oferecerá programas educacionais para “treinamento técnico, educação pós-secundária e programas K-12, incluindo experiências de aprendizagem com base no trabalho, com ênfase em STEM”, para “preparar a próxima geração para construir o futuro dos VEs nos EUA”.
O plano parecia muito bom. Mas então Trump substituiu Biden.
Logo após tomar posse — e sem nenhuma consulta prévia com a Ford, nem aparentemente com nenhuma outra montadora dos EUA — Trump revogou a ordem executiva de Biden de 2021 que buscava garantir que 50% de todos os veículos novos vendidos nos EUA até 2030 fossem elétricos. Trump também ordenou a interrupção da distribuição de recursos governamentais não gastos para estações de recarga de veículos de um fundo de US$ 5 bilhões e disse que estava considerando eliminar os créditos tributários para os veículos elétricos — a base que fundamentou a aposta massiva da Ford nessas duas novas fábricas.
É precisamente esse tipo de pensamento míope e insensato que nos meteu nessa confusão em primeiro lugar. Compatriotas americanos, vocês sabem por que estamos tão atrás da China atualmente em baterias para veículos elétricos? Duas razões: primeiro, a China forma muito mais engenheiros elétricos e automotivos do que nós; mas, em segundo lugar, foram inovadores nos EUA que inventaram a tecnologia revolucionária de baterias LFP da CATL para veículos elétricos — mas eles a deram de graça para a China.
Acham que estou inventando?
Vejam o resumo da Bloomberg: “Em meados da década de 1990, um composto chamado fosfato de ferro-lítio (LFP), o principal elemento químico da bateria usado agora pela CATL e pela maioria das empresas de baterias na China, foi descoberto por cientistas da Universidade do Texas, em Austin, e comercializado alguns anos depois pela startup A123 Systems LLC”, que em 2009 recebeu centenas de milhões de dólares do governo Obama sob a esperança de que isso fizesse explodir uma indústria de carros elétricos nos EUA. Mas a demanda ainda não tinha chegado.
Pequim se deu conta de que nunca seria capaz de vencer a disputa em motores de combustão interna, então saltou para o “veículo definido por software” que continua melhorando com atualizações digitais. Esse veículo é o VE, e sua tecnologia fundamental é a bateria. Os chineses não classificam esses carros como verdes. Eles os chamam de inteligentes.
O modo americano é: inventar, ignorar, avançar com um governo e então recuar com o seguinte. Uma loucura completa. Da mesma forma que as conexões entre o aço, o carvão, os motores a combustão e o trabalho operário criaram um efeito multiplicador no século 20, o ecossistema de VEs, AI, robótica, baterias avançadas, tecnologias limpas, sistemas de direção autônoma e trabalho mental digitalizado fará o mesmo no século 21. Se os americanos se ausentarem de qualquer parte desse ecossistema, os EUA ficarão para trás.
Tarifas não fazem nada mais do que comprar tempo para um país até que as suas empresas sejam capazes de fazer as mudanças necessárias para competir livres de muros. A estratégia de Trump é prejudicar as exportações das nossas montadoras com um muro tarifário e depois atirar nas costas delas atrás desse muro.
Se tivesse um pingo de bom senso, Trump diria: Sou a favor de tudo isso — carros a gasolina, híbridos, elétricos totalmente elétricos e autônomos — só o que me importa é que vocês comprem produtos americanos. E para garantir que nossos grandes fabricantes americanos de veículos elétricos possam adquirir escala, vou usar o dinheiro das tarifas para fazer o que esses democratas progressistas idiotas se recusaram a fazer até agora: aprovar um projeto de lei para construir uma rede nacional de transmissão de eletricidade e uma rede de estações de carregamento rápido, para que qualquer pessoa que comprar um veículo elétrico nunca tenha de se preocupar com viagens de longa distância.
Neste momento, é assim que os EUA se tornam grandes. Menos do que isso, qualquer coisa não passa de um embuste./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO