‘Os próximos dias serão os mais perigosos para a paz na Venezuela’, diz ex-presidente do CNE


Para opositor e ex-presidente do Conselho Nacional Eleitoral na época da Constituinte de 1999, Andrés Caleca país entra em cenário sombrio após os resultados de domingo

Por Carolina Marins
Foto: Reprodução/Instagram/Andrés Caleca
Entrevista comAndrés CalecaEconomista e político venezuelano, ex-presidente do Conselho Nacional Eleitoral em 1999

O político e economista Andrés Caleca presidia o Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela quando Hugo Chávez convocou em 1999 o referendo para substituir a Constituição do país. Embora reconheça que foi a partir deste momento que a democracia venezuelana acelerou sua derrocada, ele se orgulha de ter conduzido com êxito o primeiro processo constitucional inteiramente votado pela população.

Hoje, ele está do lado que faz oposição ao ditador Nicolás Maduro, que busca se firmar no poder nas eleições a serem celebradas neste domingo, 28. Caleca chegou a disputar a vaga pela candidatura da Plataforma Unitária, chapa de oposição, contra a líder María Corina Machado em 2023, que na época venceu com mais de 90% dos votos. Agora ele endossa a candidatura de Edmundo González Urrutia.

“A única coisa que a oposição venezuelana tem no momento são votos frente a uma ditadura que tem todos os poderes do Estado, inclusive as armas da República, mas não tem voz e não tem intenção aparente de entregar o governo”, afirmou com preocupação durante uma entrevista de uma hora por vídeo chamada ao Estadão.

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Membros da Guarda de Honra Presidencial exibem uma bandeira nacional venezuelana em um terraço do Palácio Presidencial de Miraflores, decorado com imagens do presidente Nicolas Maduro (à esq.) e do falecido presidente Hugo Chávez, durante um comício em Caracas em 17 de maio de 2024 Foto: Juan Barreto/AFP

Segundo ele, os próximos dias serão os mais perigosos dos últimos 25 anos para a paz no país. Esta afirmação, inclusive, foi feita antes de Maduro afirmar que haverá um “banho de sangue” caso a oposição ganhe as eleições.

“Posso dizer com toda a seriedade que os dias entre agora e as eleições são os mais perigosos para a paz pública na Venezuela nos últimos 25 anos, porque estamos na presença de um regime autoritário que se recusa a entregar o poder”, disse.

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Quando questionado se valia a pena, neste cenário adverso, confiar na via eleitoral, Caleca responde: “Nós, democratas, sempre votamos, em todas as circunstâncias, mesmo nas piores, porque isso faz parte da luta pela democracia.”

“Os democratas venezuelanos estão atualmente determinados a forçar o governo a permanecer na via eleitoral e constitucional pacífica, porque em qualquer outra via o governo nos liquidará, porque tem todas as armas da República e não hesita em usá-las, como já as usou em 2014″, completa em referência aos protestos daquele ano contra Maduro.

Em sua época como presidente do CNE, Caleca bateu de frente com Hugo Chávez, chegando a aplicar uma multa por interferência no processo constituinte. Na época, Chávez ameaçou com um “terão que me meter preso”, o que Caleca respondeu com outra ameaça, a de suspender as eleições para a nova Constituição.

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“Chávez foi o único presidente em toda a história da Venezuela a ser multado por ter sido acusado e comprovadamente cometido um delito eleitoral”, disse em tom de orgulho. “Ele não apenas pagou a multa, que era algo em torno de US$ 9.000 na época, mas a partir daí se absteve de fazer propaganda eleitoral. Mas foi aí que vimos qual era a natureza autoritária do chavismo”.

Confira trechos da entrevista com Andrés Caleca, que foi condensada para melhor compreensão:

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O que esperar para hoje e os próximos dias?

Os cenários são todos difíceis, a Venezuela entra em um período de incerteza muito estranho. Nunca vivemos isso, mas podem acontecer duas coisas. De forma simples, pode ganhar a oposição ou pode ganhar Maduro. Se Maduro ganhar, é importante sabermos que aqui se abrem dois cenários distintos: uma coisa é se Maduro ganhar porque de fato venceu, e outra coisa é se Maduro ganhar por uma fraude eleitoral. Se Maduro se impuser no dia 28 por uma fraude eleitoral, a situação da Venezuela é absolutamente imprevisível. Eu não posso dizer neste momento nem mesmo o que vai acontecer, como vai reagir a liderança política da oposição a isso, eu não tenho essa informação nem participei de reuniões sobre isso, mas também não tenho a menor ideia de como vai reagir a população venezuelana a um caso de uma fraude evidente e descarada. Diante disso, pode acontecer qualquer coisa. Veja Fujimori, em uma ditadura semelhante a esta, tentou fazer uma fraude e acabou perdendo o poder. Isso, para mim, abre um cenário de absoluta incerteza e imagino que para o governo também, e se eles estão pensando em fazer uma fraude maciça, devem estar tomando medidas ou precauções para todas essas coisas. Outra opção, claro, é que Maduro ganhe de forma legítima. Virá, certamente, uma grande decepção, uma desmobilização, uma depressão coletiva, mas a luta democrática continua, e nós nos recuperaremos e continuaremos.

E, no cenário mais favorável, digamos, é que o senhor Edmundo González ganhe as eleições, como dizem todas as pesquisas, e que este governo, por um raio de luz, pelo Espírito Santo, reconheça essa vitória. Esse seria o cenário menos traumático para a oposição venezuelana. Mas aí a Venezuela entra em um processo inédito de transição lenta.

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Apoiadores do candidato presidencial da oposição Edmundo Gonzalez Urrutia são vistos durante a distribuição de panfletos de campanha em Caracas, Venezuela Foto: Ariana Cubillos/AP

Vamos jogar um pouco com esse cenário: como seria uma transição de seis meses?

Em um processo de democratização do país, inicialmente com dois presidentes por seis meses compartilhando espaço, mas depois, supondo que em 10 de janeiro Edmundo González assuma o comando do Executivo, terá todos os poderes públicos contra ele, pelo menos no primeiro ano de governo, ou seja, terá que governar com um Tribunal Supremo de Justiça contra ele, com uma Assembleia Nacional contra ele, com 18 dos 24 governadores contra ele, com quase todas as prefeituras contra ele, com o Conselho Eleitoral presidido por esse senhor inapresentável que é o [Elvis] Amoroso, etc. A Venezuela entra em um processo de transição para a democracia extremamente complexo e difícil com uma força que não é democrática pela frente.

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Agora é preciso notar que, por sorte, realmente, o candidato acabou sendo e que seria, nessa eventualidade, quem teria que lidar com essa situação, um homem como Edmundo González, um homem que é um diplomata de carreira, um homem cuja formação é precisamente a negociação, porque o ponto central vai estar na capacidade negociadora das partes.

E no cenário que Maduro não reconheça a vitória da oposição?

Eu posso te dizer com toda seriedade que os próximos dias que se estendem de hoje até as eleições são os mais perigosos para a paz pública na Venezuela nos últimos 25 anos. Porque temos diante de nós um regime autoritário que se recusa a entregar o poder. Essa mesma ditadura nega um fato evidente de que 80% do país já rejeita a sua gestão e que mais de 50% dos venezuelanos apoiam a candidatura de oposição de Edmundo González, com uma diferença de mais de 22 pontos em todas as pesquisas em relação a Nicolás Maduro. Isso torna este governo extremamente perigoso. Acredito que na Venezuela pode acontecer qualquer coisa nestes dias.

É claro que isso não depende de nós. A oposição venezuelana no momento aposta na rota eleitoral pacífica e constitucional porque não temos força para mais nada. Aqui ninguém está pensando em convocar uma insurreição popular ou em pegar em armas, até porque ninguém tem armas nem organização para isso. O único recurso que a oposição venezuelana tem no momento são votos, e do outro lado há uma ditadura que detém todos os poderes do Estado, incluindo as armas da República, mas que não têm voz nem aparentam ter qualquer intenção de entregar o governo. Eles agem e continuam agindo atropelando a todos, atropelando os líderes políticos, o nosso candidato unitário, o processo eleitoral, cometendo fraude eleitoral continuada. Pode acontecer qualquer coisa na Venezuela, incluindo um golpe por parte dessas pessoas, não é? Precisamos estar preparados para isso.

Farei ao senhor uma pergunta que leitores fizeram a mim. Com este cenário eleitoral tão adverso, ainda vale a pena acreditar no processo eleitoral?

Sim. Nós, democratas, sempre votamos, sempre, em qualquer circunstância, até mesmo nas piores circunstâncias, porque essa é parte da luta pela democracia. Muitas pessoas erroneamente acreditam que a primeira revolução popular do mundo moderno foi a Revolução Bolchevique de 1917, que levou o partido comunista ao poder na Rússia. Porém, a primeira verdadeira revolução popular do mundo moderno foi a Revolução Mexicana, aqui neste continente, em 1910, sete anos antes da revolução bolchevique. E você sabe qual era o lema dessa revolução? “Sufrágio efetivo, não reeleição”. Parece que, 150 anos depois, temos o mesmo lema, porque essa é a luta dos democratas. A luta dos democratas gira em torno das eleições, pois as escolhas devem ser feitas e os poderes decididos consultando toda a nação. É nisso que consiste a democracia.

Os democratas venezuelanos, neste momento, estamos empenhados em forçar o governo a manter-se na rota pacífica eleitoral e constitucional porque, em qualquer outra rota, o governo nos vai liquidar, porque tem todas as armas da República e não hesita em utilizá-las, como já fez em 2014 quando uma espécie de insurreição popular espontânea se produziu e o governo massacrou a população. Em 2017, aconteceu o mesmo e houve outro massacre, especialmente contra nossos jovens indefesos. Portanto, há um governo capaz de qualquer coisa, similar ao que ocorre, por exemplo, agora, em Cuba, onde qualquer manifestação é punida com 20 anos de prisão para as pessoas, é algo absurdo. Na Venezuela, não apenas isso, mas matam as pessoas, e de fato, a Venezuela está sendo investigada pela Corte Penal Internacional neste momento, sobre crimes contra a humanidade. Um governo duro que assassina, que persegue. Bem, frente a esse governo, a oposição venezuelana propôs encurralá-los na luta eleitoral.

E é importante também falar que este é um processo muito importante para o restante da América Latina e, particularmente para nossos vizinhos, porque uma das consequências dessa terrível situação na Venezuela tem sido a maior emigração, o maior êxodo que a América Latina conheceu na sua história. Nem mesmo as ditaduras do Cone Sul causaram uma diáspora deste tamanho. Na Venezuela, segundo as últimas estimativas de organizações internacionais, já se foram aproximadamente 8 milhões e meio de venezuelanos. Para onde? Fundamentalmente, para os nossos vizinhos. Estão na Colômbia, no Brasil, no Peru, no Chile, na Argentina, e todos esses países, que têm seus próprios problemas, não são países de primeiro mundo, e a crise venezuelana agrava ainda mais seus próprios problemas. Então, não é apenas um problema da Venezuela o que estamos vivendo e o que vai ser decidido nestes próximos dias, mas um problema que interessa muito ao resto do nosso continente e especialmente aos nossos vizinhos, como demonstrado pelo presidente Lula ou pelo presidente Petro, que são nossos dois grandes vizinhos preocupados com a situação da Venezuela e pelo que possa acontecer, chamando a que, esperançosamente, as eleições venezuelanas possam resolver a crise política do país.

Estudantes colocam uma faixa em apoio ao candidato presidencial venezuelano Edmundo Gonzalez Urrutia em Caracas, em 24 de julho de 2024 Foto: Federico Parra/AFP

Falando em Lula e Petro, acredita que, como aliados de Nicolás Maduro, eles poderiam ter feito mais por essas eleições? Lembrando que ambos os países não vão enviar observações independentes.

Realmente é um tema complicado o que vivem esses dois presidentes e as forças políticas que os apoiam, porque há um ponto que você destacou, tanto o PT do Brasil quanto a União Patriótica da Colômbia são aliados, ideológicos e políticos, do chavismo, do Partido Socialista Unido da Venezuela. No entanto, este regime teve uma deriva autoritária, mas além disso, não apenas uma postura autoritária, uma deriva de corrupção como nunca antes vista na Venezuela, uma violação dos direitos humanos como nunca se viu na Venezuela. E se tornou, de um aliado incômodo, inapresentável. Tanto Lula quanto Petro, têm duas grandes limitações: primeiro, qualquer coisa que façam em relação à Venezuela está totalmente definida pelo fato de que estão falando com um vizinho com o qual compartilham fronteiras, e fronteiras que, aliás, são muito conflituosas e complicadas. Há um problema humanitário ali, de delimitações, é um tema extremamente complexo e difícil. Portanto, julgar um estadista como Lula ou um presidente como Petro desde a perspectiva venezuelana da nossa luta política, esperar que o presidente Lula denuncie Maduro, apoie a posição venezuelana, etc., isso é não conhecer a realidade das políticas da América Latina no continente.

Nós, claro, preferiríamos que fossem aliados incondicionais da oposição, mas seria imprudente, sem dúvida alguma, pois aconteça o que acontecer nas eleições, o Brasil não vai se mudar nem a Venezuela. Vamos continuar sendo vizinhos. E a fronteira vai estar lá com todos os seus problemas. Então eu sou muito benevolente na análise do papel desses dois presidentes, não quero ser crítico deles. Parece-me que a decisão de não enviar observadores às eleições tem duas leituras: uma leitura é: não quero me envolver nesse problema porque não quero apoiar a oposição venezuelana, ou não me envolver e cuidar desse problema porque não quero apoiar uma fraude de Maduro. Em todo caso, não foram apenas eles que decidiram não vir às eleições como observadores, muitos outros observadores que foram convidados também não vieram e alguns que foram convidados depois foram desconvidados, como a União Europeia.

Como ex-presidente do CNE, o senhor pode explicar como funcionam tecnicamente as eleições na Venezuela e o que significa quando falamos de fraude? Como ela acontece?

Desde o ano 1998 foi implementado na Venezuela o processo eleitoral totalmente automatizado por lei. Desde então, foi estabelecida uma plataforma tecnológica para o dia das eleições e também plataformas tecnológicas paralelas para tudo o que tem a ver com o processo, como o Registro Eleitoral, a postulação de candidatos, todo o processo deveria ser automatizado. Então, tudo o que é o processo de votação, escrutínios e totalização e transmissão dos dados é feito com uma plataforma automatizada. Essa plataforma, claro, é auditada por todos os interessados, os partidos políticos do governo e da oposição, as universidades participam dessas auditorias, empresas privadas e observadores internacionais inclusive e essas são auditorias que são feitas antes, durante e após o processo eleitoral. A história eleitoral venezuelana desde a automatização até aqui indica que nunca se conseguiu demonstrar que houve uma disparidade, por exemplo, entre o que as pessoas votaram e o que contou a máquina na hora de cruzar e o que estava nas caixas de votação onde se armazenam os comprovantes de cada votante, também nunca se conseguiu demonstrar que uma máquina transmitiu dados que não são os que figuram nas atas correspondentes. De modo que o sistema automatizado de votação, escrutínio e transmissão e totalização dos dados é um sistema bastante robusto, tem sua falha, claro, como todo sistema, mas as falhas, no pior dos casos, alcançaram 1%

Agora bem, um processo eleitoral é isso, um processo longo que começa desde o momento em que se convocam as eleições até que se proclama o ganhador da eleição ou os ganhadores desse processo, claro, inclui muitas fases, muitas atividades. O problema que ocorre na Venezuela, que ocorre no nosso país desde que se instala o regime chavista na Venezuela - para colocá-lo em termos gerais e incluir todos os governos de Chávez mais os governos de Maduro - é que ao longo do processo eleitoral, o partido do governo e o governo têm influenciado nos processos eleitorais em conjunto, fazendo os processos eleitorais iníquos, em muitos casos fraudulentos e violadores das leis e normas eleitorais, isso é o que tem acontecido.

Ao longo desses 25 anos, toda a burocracia eleitoral venezuelana - burocracia no bom sentido da palavra, aquela burocracia que havia sido formada desde o ano de 1958 fazendo eleições, melhorando seus processos, seus sistemas, formando quadros de profissionais experientes e de novos talentos - foi totalmente colonizada pelo partido de governo. Essa burocracia foi demitida, seja legal ou ilegalmente, todos foram eliminados e, hoje em dia, toda a burocracia eleitoral venezuelana é e funciona como uma espécie de escritório eleitoral do partido governista ou um ministério de eleições do Executivo da República. Aí começa todo o desequilíbrio do processo eleitoral do país.

Um trabalhador parado nos pedágios do estado de Naguanagua-Valencia, na Venezuela, em 30 de junho de 2024, exibindo caricaturas do ditador da Venezuela, Nicolas Maduro, como 'Super Bigode' Foto: Juan Barreto/JUAN BARRETO

Para fechar com um pouco de história, como foi coordenar os referendos e a eleição constituinte de 1999?

Do ponto de vista técnico eleitoral, foi o processo eleitoral mais difícil que foi realizado na Venezuela, porque foi uma eleição absolutamente uninominal. Não por partidos políticos ou grupos políticos, mas cada pessoa era um candidato e cada pessoa era eleita ou não. Qualquer pessoa que conheça questões eleitorais sabe que esse é um processo complexo. Naquele eleição, se não me falha a memória, havia mais de 500 membros da constituinte, ou seja que eram mais de 500 eleições acontecendo ao mesmo tempo. Pois bem, cumprimos e cumprimos com êxito. Não houve uma única contestação eleitoral dessas quinhentas eleições individuais em tempo recorde, tivemos os resultados eleitorais em todo o país e, como presidente do CNE naquela época, posso dizer que isso é um orgulho profissional.

Do ponto de vista político, a Venezuela passou por uma mudança de regime naquela época. Uma constituição em vigor desde 1961 foi revogada e um processo foi lançado para eleger uma nova assembleia constituinte para redigir uma nova constituição, a 25ª na história da Venezuela. A nova constituição foi infinitamente pior para todos, ou seja, os problemas foram desviados. Mas as vantagens desse processo foram que, pela primeira vez em 25 Constituições anteriores, isso foi feito em paz. Não foi uma mudança constitucional que veio por meio de facão com tiros de guerra civis, etc., golpes de Estado, mas foi feita com um processo eleitoral.

Nesse processo foi quando passamos a ver o comportamento antidemocrático de Chávez como presidente da República e o dialeto do chavismo como força política começou a ser notado. Há um caso curioso: o presidente Chávez foi o único presidente em toda a história da Venezuela a ser multado por ter sido acusado de um delito eleitoral. Na época a lei proibia funcionários públicos de fazer campanha eleitoral, e isso incluia o presidente, e ele estava fazendo campanha por seus candidatos na constituinte. O Conselho Nacional Eleitoral da época, que eu presidia, o condenou como infrator eleitoral e o obrigou a pagar a multa. Depois dessa multa, que ele não apenas pagou, que era algo em torno de 9.000 dólares na época, mas a partir desse momento você ele parou de fazer propaganda eleitoral, ou seja, valeu a pena.

O político e economista Andrés Caleca presidia o Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela quando Hugo Chávez convocou em 1999 o referendo para substituir a Constituição do país. Embora reconheça que foi a partir deste momento que a democracia venezuelana acelerou sua derrocada, ele se orgulha de ter conduzido com êxito o primeiro processo constitucional inteiramente votado pela população.

Hoje, ele está do lado que faz oposição ao ditador Nicolás Maduro, que busca se firmar no poder nas eleições a serem celebradas neste domingo, 28. Caleca chegou a disputar a vaga pela candidatura da Plataforma Unitária, chapa de oposição, contra a líder María Corina Machado em 2023, que na época venceu com mais de 90% dos votos. Agora ele endossa a candidatura de Edmundo González Urrutia.

“A única coisa que a oposição venezuelana tem no momento são votos frente a uma ditadura que tem todos os poderes do Estado, inclusive as armas da República, mas não tem voz e não tem intenção aparente de entregar o governo”, afirmou com preocupação durante uma entrevista de uma hora por vídeo chamada ao Estadão.

Membros da Guarda de Honra Presidencial exibem uma bandeira nacional venezuelana em um terraço do Palácio Presidencial de Miraflores, decorado com imagens do presidente Nicolas Maduro (à esq.) e do falecido presidente Hugo Chávez, durante um comício em Caracas em 17 de maio de 2024 Foto: Juan Barreto/AFP

Segundo ele, os próximos dias serão os mais perigosos dos últimos 25 anos para a paz no país. Esta afirmação, inclusive, foi feita antes de Maduro afirmar que haverá um “banho de sangue” caso a oposição ganhe as eleições.

“Posso dizer com toda a seriedade que os dias entre agora e as eleições são os mais perigosos para a paz pública na Venezuela nos últimos 25 anos, porque estamos na presença de um regime autoritário que se recusa a entregar o poder”, disse.

Quando questionado se valia a pena, neste cenário adverso, confiar na via eleitoral, Caleca responde: “Nós, democratas, sempre votamos, em todas as circunstâncias, mesmo nas piores, porque isso faz parte da luta pela democracia.”

“Os democratas venezuelanos estão atualmente determinados a forçar o governo a permanecer na via eleitoral e constitucional pacífica, porque em qualquer outra via o governo nos liquidará, porque tem todas as armas da República e não hesita em usá-las, como já as usou em 2014″, completa em referência aos protestos daquele ano contra Maduro.

Em sua época como presidente do CNE, Caleca bateu de frente com Hugo Chávez, chegando a aplicar uma multa por interferência no processo constituinte. Na época, Chávez ameaçou com um “terão que me meter preso”, o que Caleca respondeu com outra ameaça, a de suspender as eleições para a nova Constituição.

“Chávez foi o único presidente em toda a história da Venezuela a ser multado por ter sido acusado e comprovadamente cometido um delito eleitoral”, disse em tom de orgulho. “Ele não apenas pagou a multa, que era algo em torno de US$ 9.000 na época, mas a partir daí se absteve de fazer propaganda eleitoral. Mas foi aí que vimos qual era a natureza autoritária do chavismo”.

Confira trechos da entrevista com Andrés Caleca, que foi condensada para melhor compreensão:

O que esperar para hoje e os próximos dias?

Os cenários são todos difíceis, a Venezuela entra em um período de incerteza muito estranho. Nunca vivemos isso, mas podem acontecer duas coisas. De forma simples, pode ganhar a oposição ou pode ganhar Maduro. Se Maduro ganhar, é importante sabermos que aqui se abrem dois cenários distintos: uma coisa é se Maduro ganhar porque de fato venceu, e outra coisa é se Maduro ganhar por uma fraude eleitoral. Se Maduro se impuser no dia 28 por uma fraude eleitoral, a situação da Venezuela é absolutamente imprevisível. Eu não posso dizer neste momento nem mesmo o que vai acontecer, como vai reagir a liderança política da oposição a isso, eu não tenho essa informação nem participei de reuniões sobre isso, mas também não tenho a menor ideia de como vai reagir a população venezuelana a um caso de uma fraude evidente e descarada. Diante disso, pode acontecer qualquer coisa. Veja Fujimori, em uma ditadura semelhante a esta, tentou fazer uma fraude e acabou perdendo o poder. Isso, para mim, abre um cenário de absoluta incerteza e imagino que para o governo também, e se eles estão pensando em fazer uma fraude maciça, devem estar tomando medidas ou precauções para todas essas coisas. Outra opção, claro, é que Maduro ganhe de forma legítima. Virá, certamente, uma grande decepção, uma desmobilização, uma depressão coletiva, mas a luta democrática continua, e nós nos recuperaremos e continuaremos.

E, no cenário mais favorável, digamos, é que o senhor Edmundo González ganhe as eleições, como dizem todas as pesquisas, e que este governo, por um raio de luz, pelo Espírito Santo, reconheça essa vitória. Esse seria o cenário menos traumático para a oposição venezuelana. Mas aí a Venezuela entra em um processo inédito de transição lenta.

Apoiadores do candidato presidencial da oposição Edmundo Gonzalez Urrutia são vistos durante a distribuição de panfletos de campanha em Caracas, Venezuela Foto: Ariana Cubillos/AP

Vamos jogar um pouco com esse cenário: como seria uma transição de seis meses?

Em um processo de democratização do país, inicialmente com dois presidentes por seis meses compartilhando espaço, mas depois, supondo que em 10 de janeiro Edmundo González assuma o comando do Executivo, terá todos os poderes públicos contra ele, pelo menos no primeiro ano de governo, ou seja, terá que governar com um Tribunal Supremo de Justiça contra ele, com uma Assembleia Nacional contra ele, com 18 dos 24 governadores contra ele, com quase todas as prefeituras contra ele, com o Conselho Eleitoral presidido por esse senhor inapresentável que é o [Elvis] Amoroso, etc. A Venezuela entra em um processo de transição para a democracia extremamente complexo e difícil com uma força que não é democrática pela frente.

Agora é preciso notar que, por sorte, realmente, o candidato acabou sendo e que seria, nessa eventualidade, quem teria que lidar com essa situação, um homem como Edmundo González, um homem que é um diplomata de carreira, um homem cuja formação é precisamente a negociação, porque o ponto central vai estar na capacidade negociadora das partes.

E no cenário que Maduro não reconheça a vitória da oposição?

Eu posso te dizer com toda seriedade que os próximos dias que se estendem de hoje até as eleições são os mais perigosos para a paz pública na Venezuela nos últimos 25 anos. Porque temos diante de nós um regime autoritário que se recusa a entregar o poder. Essa mesma ditadura nega um fato evidente de que 80% do país já rejeita a sua gestão e que mais de 50% dos venezuelanos apoiam a candidatura de oposição de Edmundo González, com uma diferença de mais de 22 pontos em todas as pesquisas em relação a Nicolás Maduro. Isso torna este governo extremamente perigoso. Acredito que na Venezuela pode acontecer qualquer coisa nestes dias.

É claro que isso não depende de nós. A oposição venezuelana no momento aposta na rota eleitoral pacífica e constitucional porque não temos força para mais nada. Aqui ninguém está pensando em convocar uma insurreição popular ou em pegar em armas, até porque ninguém tem armas nem organização para isso. O único recurso que a oposição venezuelana tem no momento são votos, e do outro lado há uma ditadura que detém todos os poderes do Estado, incluindo as armas da República, mas que não têm voz nem aparentam ter qualquer intenção de entregar o governo. Eles agem e continuam agindo atropelando a todos, atropelando os líderes políticos, o nosso candidato unitário, o processo eleitoral, cometendo fraude eleitoral continuada. Pode acontecer qualquer coisa na Venezuela, incluindo um golpe por parte dessas pessoas, não é? Precisamos estar preparados para isso.

Farei ao senhor uma pergunta que leitores fizeram a mim. Com este cenário eleitoral tão adverso, ainda vale a pena acreditar no processo eleitoral?

Sim. Nós, democratas, sempre votamos, sempre, em qualquer circunstância, até mesmo nas piores circunstâncias, porque essa é parte da luta pela democracia. Muitas pessoas erroneamente acreditam que a primeira revolução popular do mundo moderno foi a Revolução Bolchevique de 1917, que levou o partido comunista ao poder na Rússia. Porém, a primeira verdadeira revolução popular do mundo moderno foi a Revolução Mexicana, aqui neste continente, em 1910, sete anos antes da revolução bolchevique. E você sabe qual era o lema dessa revolução? “Sufrágio efetivo, não reeleição”. Parece que, 150 anos depois, temos o mesmo lema, porque essa é a luta dos democratas. A luta dos democratas gira em torno das eleições, pois as escolhas devem ser feitas e os poderes decididos consultando toda a nação. É nisso que consiste a democracia.

Os democratas venezuelanos, neste momento, estamos empenhados em forçar o governo a manter-se na rota pacífica eleitoral e constitucional porque, em qualquer outra rota, o governo nos vai liquidar, porque tem todas as armas da República e não hesita em utilizá-las, como já fez em 2014 quando uma espécie de insurreição popular espontânea se produziu e o governo massacrou a população. Em 2017, aconteceu o mesmo e houve outro massacre, especialmente contra nossos jovens indefesos. Portanto, há um governo capaz de qualquer coisa, similar ao que ocorre, por exemplo, agora, em Cuba, onde qualquer manifestação é punida com 20 anos de prisão para as pessoas, é algo absurdo. Na Venezuela, não apenas isso, mas matam as pessoas, e de fato, a Venezuela está sendo investigada pela Corte Penal Internacional neste momento, sobre crimes contra a humanidade. Um governo duro que assassina, que persegue. Bem, frente a esse governo, a oposição venezuelana propôs encurralá-los na luta eleitoral.

E é importante também falar que este é um processo muito importante para o restante da América Latina e, particularmente para nossos vizinhos, porque uma das consequências dessa terrível situação na Venezuela tem sido a maior emigração, o maior êxodo que a América Latina conheceu na sua história. Nem mesmo as ditaduras do Cone Sul causaram uma diáspora deste tamanho. Na Venezuela, segundo as últimas estimativas de organizações internacionais, já se foram aproximadamente 8 milhões e meio de venezuelanos. Para onde? Fundamentalmente, para os nossos vizinhos. Estão na Colômbia, no Brasil, no Peru, no Chile, na Argentina, e todos esses países, que têm seus próprios problemas, não são países de primeiro mundo, e a crise venezuelana agrava ainda mais seus próprios problemas. Então, não é apenas um problema da Venezuela o que estamos vivendo e o que vai ser decidido nestes próximos dias, mas um problema que interessa muito ao resto do nosso continente e especialmente aos nossos vizinhos, como demonstrado pelo presidente Lula ou pelo presidente Petro, que são nossos dois grandes vizinhos preocupados com a situação da Venezuela e pelo que possa acontecer, chamando a que, esperançosamente, as eleições venezuelanas possam resolver a crise política do país.

Estudantes colocam uma faixa em apoio ao candidato presidencial venezuelano Edmundo Gonzalez Urrutia em Caracas, em 24 de julho de 2024 Foto: Federico Parra/AFP

Falando em Lula e Petro, acredita que, como aliados de Nicolás Maduro, eles poderiam ter feito mais por essas eleições? Lembrando que ambos os países não vão enviar observações independentes.

Realmente é um tema complicado o que vivem esses dois presidentes e as forças políticas que os apoiam, porque há um ponto que você destacou, tanto o PT do Brasil quanto a União Patriótica da Colômbia são aliados, ideológicos e políticos, do chavismo, do Partido Socialista Unido da Venezuela. No entanto, este regime teve uma deriva autoritária, mas além disso, não apenas uma postura autoritária, uma deriva de corrupção como nunca antes vista na Venezuela, uma violação dos direitos humanos como nunca se viu na Venezuela. E se tornou, de um aliado incômodo, inapresentável. Tanto Lula quanto Petro, têm duas grandes limitações: primeiro, qualquer coisa que façam em relação à Venezuela está totalmente definida pelo fato de que estão falando com um vizinho com o qual compartilham fronteiras, e fronteiras que, aliás, são muito conflituosas e complicadas. Há um problema humanitário ali, de delimitações, é um tema extremamente complexo e difícil. Portanto, julgar um estadista como Lula ou um presidente como Petro desde a perspectiva venezuelana da nossa luta política, esperar que o presidente Lula denuncie Maduro, apoie a posição venezuelana, etc., isso é não conhecer a realidade das políticas da América Latina no continente.

Nós, claro, preferiríamos que fossem aliados incondicionais da oposição, mas seria imprudente, sem dúvida alguma, pois aconteça o que acontecer nas eleições, o Brasil não vai se mudar nem a Venezuela. Vamos continuar sendo vizinhos. E a fronteira vai estar lá com todos os seus problemas. Então eu sou muito benevolente na análise do papel desses dois presidentes, não quero ser crítico deles. Parece-me que a decisão de não enviar observadores às eleições tem duas leituras: uma leitura é: não quero me envolver nesse problema porque não quero apoiar a oposição venezuelana, ou não me envolver e cuidar desse problema porque não quero apoiar uma fraude de Maduro. Em todo caso, não foram apenas eles que decidiram não vir às eleições como observadores, muitos outros observadores que foram convidados também não vieram e alguns que foram convidados depois foram desconvidados, como a União Europeia.

Como ex-presidente do CNE, o senhor pode explicar como funcionam tecnicamente as eleições na Venezuela e o que significa quando falamos de fraude? Como ela acontece?

Desde o ano 1998 foi implementado na Venezuela o processo eleitoral totalmente automatizado por lei. Desde então, foi estabelecida uma plataforma tecnológica para o dia das eleições e também plataformas tecnológicas paralelas para tudo o que tem a ver com o processo, como o Registro Eleitoral, a postulação de candidatos, todo o processo deveria ser automatizado. Então, tudo o que é o processo de votação, escrutínios e totalização e transmissão dos dados é feito com uma plataforma automatizada. Essa plataforma, claro, é auditada por todos os interessados, os partidos políticos do governo e da oposição, as universidades participam dessas auditorias, empresas privadas e observadores internacionais inclusive e essas são auditorias que são feitas antes, durante e após o processo eleitoral. A história eleitoral venezuelana desde a automatização até aqui indica que nunca se conseguiu demonstrar que houve uma disparidade, por exemplo, entre o que as pessoas votaram e o que contou a máquina na hora de cruzar e o que estava nas caixas de votação onde se armazenam os comprovantes de cada votante, também nunca se conseguiu demonstrar que uma máquina transmitiu dados que não são os que figuram nas atas correspondentes. De modo que o sistema automatizado de votação, escrutínio e transmissão e totalização dos dados é um sistema bastante robusto, tem sua falha, claro, como todo sistema, mas as falhas, no pior dos casos, alcançaram 1%

Agora bem, um processo eleitoral é isso, um processo longo que começa desde o momento em que se convocam as eleições até que se proclama o ganhador da eleição ou os ganhadores desse processo, claro, inclui muitas fases, muitas atividades. O problema que ocorre na Venezuela, que ocorre no nosso país desde que se instala o regime chavista na Venezuela - para colocá-lo em termos gerais e incluir todos os governos de Chávez mais os governos de Maduro - é que ao longo do processo eleitoral, o partido do governo e o governo têm influenciado nos processos eleitorais em conjunto, fazendo os processos eleitorais iníquos, em muitos casos fraudulentos e violadores das leis e normas eleitorais, isso é o que tem acontecido.

Ao longo desses 25 anos, toda a burocracia eleitoral venezuelana - burocracia no bom sentido da palavra, aquela burocracia que havia sido formada desde o ano de 1958 fazendo eleições, melhorando seus processos, seus sistemas, formando quadros de profissionais experientes e de novos talentos - foi totalmente colonizada pelo partido de governo. Essa burocracia foi demitida, seja legal ou ilegalmente, todos foram eliminados e, hoje em dia, toda a burocracia eleitoral venezuelana é e funciona como uma espécie de escritório eleitoral do partido governista ou um ministério de eleições do Executivo da República. Aí começa todo o desequilíbrio do processo eleitoral do país.

Um trabalhador parado nos pedágios do estado de Naguanagua-Valencia, na Venezuela, em 30 de junho de 2024, exibindo caricaturas do ditador da Venezuela, Nicolas Maduro, como 'Super Bigode' Foto: Juan Barreto/JUAN BARRETO

Para fechar com um pouco de história, como foi coordenar os referendos e a eleição constituinte de 1999?

Do ponto de vista técnico eleitoral, foi o processo eleitoral mais difícil que foi realizado na Venezuela, porque foi uma eleição absolutamente uninominal. Não por partidos políticos ou grupos políticos, mas cada pessoa era um candidato e cada pessoa era eleita ou não. Qualquer pessoa que conheça questões eleitorais sabe que esse é um processo complexo. Naquele eleição, se não me falha a memória, havia mais de 500 membros da constituinte, ou seja que eram mais de 500 eleições acontecendo ao mesmo tempo. Pois bem, cumprimos e cumprimos com êxito. Não houve uma única contestação eleitoral dessas quinhentas eleições individuais em tempo recorde, tivemos os resultados eleitorais em todo o país e, como presidente do CNE naquela época, posso dizer que isso é um orgulho profissional.

Do ponto de vista político, a Venezuela passou por uma mudança de regime naquela época. Uma constituição em vigor desde 1961 foi revogada e um processo foi lançado para eleger uma nova assembleia constituinte para redigir uma nova constituição, a 25ª na história da Venezuela. A nova constituição foi infinitamente pior para todos, ou seja, os problemas foram desviados. Mas as vantagens desse processo foram que, pela primeira vez em 25 Constituições anteriores, isso foi feito em paz. Não foi uma mudança constitucional que veio por meio de facão com tiros de guerra civis, etc., golpes de Estado, mas foi feita com um processo eleitoral.

Nesse processo foi quando passamos a ver o comportamento antidemocrático de Chávez como presidente da República e o dialeto do chavismo como força política começou a ser notado. Há um caso curioso: o presidente Chávez foi o único presidente em toda a história da Venezuela a ser multado por ter sido acusado de um delito eleitoral. Na época a lei proibia funcionários públicos de fazer campanha eleitoral, e isso incluia o presidente, e ele estava fazendo campanha por seus candidatos na constituinte. O Conselho Nacional Eleitoral da época, que eu presidia, o condenou como infrator eleitoral e o obrigou a pagar a multa. Depois dessa multa, que ele não apenas pagou, que era algo em torno de 9.000 dólares na época, mas a partir desse momento você ele parou de fazer propaganda eleitoral, ou seja, valeu a pena.

O político e economista Andrés Caleca presidia o Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela quando Hugo Chávez convocou em 1999 o referendo para substituir a Constituição do país. Embora reconheça que foi a partir deste momento que a democracia venezuelana acelerou sua derrocada, ele se orgulha de ter conduzido com êxito o primeiro processo constitucional inteiramente votado pela população.

Hoje, ele está do lado que faz oposição ao ditador Nicolás Maduro, que busca se firmar no poder nas eleições a serem celebradas neste domingo, 28. Caleca chegou a disputar a vaga pela candidatura da Plataforma Unitária, chapa de oposição, contra a líder María Corina Machado em 2023, que na época venceu com mais de 90% dos votos. Agora ele endossa a candidatura de Edmundo González Urrutia.

“A única coisa que a oposição venezuelana tem no momento são votos frente a uma ditadura que tem todos os poderes do Estado, inclusive as armas da República, mas não tem voz e não tem intenção aparente de entregar o governo”, afirmou com preocupação durante uma entrevista de uma hora por vídeo chamada ao Estadão.

Membros da Guarda de Honra Presidencial exibem uma bandeira nacional venezuelana em um terraço do Palácio Presidencial de Miraflores, decorado com imagens do presidente Nicolas Maduro (à esq.) e do falecido presidente Hugo Chávez, durante um comício em Caracas em 17 de maio de 2024 Foto: Juan Barreto/AFP

Segundo ele, os próximos dias serão os mais perigosos dos últimos 25 anos para a paz no país. Esta afirmação, inclusive, foi feita antes de Maduro afirmar que haverá um “banho de sangue” caso a oposição ganhe as eleições.

“Posso dizer com toda a seriedade que os dias entre agora e as eleições são os mais perigosos para a paz pública na Venezuela nos últimos 25 anos, porque estamos na presença de um regime autoritário que se recusa a entregar o poder”, disse.

Quando questionado se valia a pena, neste cenário adverso, confiar na via eleitoral, Caleca responde: “Nós, democratas, sempre votamos, em todas as circunstâncias, mesmo nas piores, porque isso faz parte da luta pela democracia.”

“Os democratas venezuelanos estão atualmente determinados a forçar o governo a permanecer na via eleitoral e constitucional pacífica, porque em qualquer outra via o governo nos liquidará, porque tem todas as armas da República e não hesita em usá-las, como já as usou em 2014″, completa em referência aos protestos daquele ano contra Maduro.

Em sua época como presidente do CNE, Caleca bateu de frente com Hugo Chávez, chegando a aplicar uma multa por interferência no processo constituinte. Na época, Chávez ameaçou com um “terão que me meter preso”, o que Caleca respondeu com outra ameaça, a de suspender as eleições para a nova Constituição.

“Chávez foi o único presidente em toda a história da Venezuela a ser multado por ter sido acusado e comprovadamente cometido um delito eleitoral”, disse em tom de orgulho. “Ele não apenas pagou a multa, que era algo em torno de US$ 9.000 na época, mas a partir daí se absteve de fazer propaganda eleitoral. Mas foi aí que vimos qual era a natureza autoritária do chavismo”.

Confira trechos da entrevista com Andrés Caleca, que foi condensada para melhor compreensão:

O que esperar para hoje e os próximos dias?

Os cenários são todos difíceis, a Venezuela entra em um período de incerteza muito estranho. Nunca vivemos isso, mas podem acontecer duas coisas. De forma simples, pode ganhar a oposição ou pode ganhar Maduro. Se Maduro ganhar, é importante sabermos que aqui se abrem dois cenários distintos: uma coisa é se Maduro ganhar porque de fato venceu, e outra coisa é se Maduro ganhar por uma fraude eleitoral. Se Maduro se impuser no dia 28 por uma fraude eleitoral, a situação da Venezuela é absolutamente imprevisível. Eu não posso dizer neste momento nem mesmo o que vai acontecer, como vai reagir a liderança política da oposição a isso, eu não tenho essa informação nem participei de reuniões sobre isso, mas também não tenho a menor ideia de como vai reagir a população venezuelana a um caso de uma fraude evidente e descarada. Diante disso, pode acontecer qualquer coisa. Veja Fujimori, em uma ditadura semelhante a esta, tentou fazer uma fraude e acabou perdendo o poder. Isso, para mim, abre um cenário de absoluta incerteza e imagino que para o governo também, e se eles estão pensando em fazer uma fraude maciça, devem estar tomando medidas ou precauções para todas essas coisas. Outra opção, claro, é que Maduro ganhe de forma legítima. Virá, certamente, uma grande decepção, uma desmobilização, uma depressão coletiva, mas a luta democrática continua, e nós nos recuperaremos e continuaremos.

E, no cenário mais favorável, digamos, é que o senhor Edmundo González ganhe as eleições, como dizem todas as pesquisas, e que este governo, por um raio de luz, pelo Espírito Santo, reconheça essa vitória. Esse seria o cenário menos traumático para a oposição venezuelana. Mas aí a Venezuela entra em um processo inédito de transição lenta.

Apoiadores do candidato presidencial da oposição Edmundo Gonzalez Urrutia são vistos durante a distribuição de panfletos de campanha em Caracas, Venezuela Foto: Ariana Cubillos/AP

Vamos jogar um pouco com esse cenário: como seria uma transição de seis meses?

Em um processo de democratização do país, inicialmente com dois presidentes por seis meses compartilhando espaço, mas depois, supondo que em 10 de janeiro Edmundo González assuma o comando do Executivo, terá todos os poderes públicos contra ele, pelo menos no primeiro ano de governo, ou seja, terá que governar com um Tribunal Supremo de Justiça contra ele, com uma Assembleia Nacional contra ele, com 18 dos 24 governadores contra ele, com quase todas as prefeituras contra ele, com o Conselho Eleitoral presidido por esse senhor inapresentável que é o [Elvis] Amoroso, etc. A Venezuela entra em um processo de transição para a democracia extremamente complexo e difícil com uma força que não é democrática pela frente.

Agora é preciso notar que, por sorte, realmente, o candidato acabou sendo e que seria, nessa eventualidade, quem teria que lidar com essa situação, um homem como Edmundo González, um homem que é um diplomata de carreira, um homem cuja formação é precisamente a negociação, porque o ponto central vai estar na capacidade negociadora das partes.

E no cenário que Maduro não reconheça a vitória da oposição?

Eu posso te dizer com toda seriedade que os próximos dias que se estendem de hoje até as eleições são os mais perigosos para a paz pública na Venezuela nos últimos 25 anos. Porque temos diante de nós um regime autoritário que se recusa a entregar o poder. Essa mesma ditadura nega um fato evidente de que 80% do país já rejeita a sua gestão e que mais de 50% dos venezuelanos apoiam a candidatura de oposição de Edmundo González, com uma diferença de mais de 22 pontos em todas as pesquisas em relação a Nicolás Maduro. Isso torna este governo extremamente perigoso. Acredito que na Venezuela pode acontecer qualquer coisa nestes dias.

É claro que isso não depende de nós. A oposição venezuelana no momento aposta na rota eleitoral pacífica e constitucional porque não temos força para mais nada. Aqui ninguém está pensando em convocar uma insurreição popular ou em pegar em armas, até porque ninguém tem armas nem organização para isso. O único recurso que a oposição venezuelana tem no momento são votos, e do outro lado há uma ditadura que detém todos os poderes do Estado, incluindo as armas da República, mas que não têm voz nem aparentam ter qualquer intenção de entregar o governo. Eles agem e continuam agindo atropelando a todos, atropelando os líderes políticos, o nosso candidato unitário, o processo eleitoral, cometendo fraude eleitoral continuada. Pode acontecer qualquer coisa na Venezuela, incluindo um golpe por parte dessas pessoas, não é? Precisamos estar preparados para isso.

Farei ao senhor uma pergunta que leitores fizeram a mim. Com este cenário eleitoral tão adverso, ainda vale a pena acreditar no processo eleitoral?

Sim. Nós, democratas, sempre votamos, sempre, em qualquer circunstância, até mesmo nas piores circunstâncias, porque essa é parte da luta pela democracia. Muitas pessoas erroneamente acreditam que a primeira revolução popular do mundo moderno foi a Revolução Bolchevique de 1917, que levou o partido comunista ao poder na Rússia. Porém, a primeira verdadeira revolução popular do mundo moderno foi a Revolução Mexicana, aqui neste continente, em 1910, sete anos antes da revolução bolchevique. E você sabe qual era o lema dessa revolução? “Sufrágio efetivo, não reeleição”. Parece que, 150 anos depois, temos o mesmo lema, porque essa é a luta dos democratas. A luta dos democratas gira em torno das eleições, pois as escolhas devem ser feitas e os poderes decididos consultando toda a nação. É nisso que consiste a democracia.

Os democratas venezuelanos, neste momento, estamos empenhados em forçar o governo a manter-se na rota pacífica eleitoral e constitucional porque, em qualquer outra rota, o governo nos vai liquidar, porque tem todas as armas da República e não hesita em utilizá-las, como já fez em 2014 quando uma espécie de insurreição popular espontânea se produziu e o governo massacrou a população. Em 2017, aconteceu o mesmo e houve outro massacre, especialmente contra nossos jovens indefesos. Portanto, há um governo capaz de qualquer coisa, similar ao que ocorre, por exemplo, agora, em Cuba, onde qualquer manifestação é punida com 20 anos de prisão para as pessoas, é algo absurdo. Na Venezuela, não apenas isso, mas matam as pessoas, e de fato, a Venezuela está sendo investigada pela Corte Penal Internacional neste momento, sobre crimes contra a humanidade. Um governo duro que assassina, que persegue. Bem, frente a esse governo, a oposição venezuelana propôs encurralá-los na luta eleitoral.

E é importante também falar que este é um processo muito importante para o restante da América Latina e, particularmente para nossos vizinhos, porque uma das consequências dessa terrível situação na Venezuela tem sido a maior emigração, o maior êxodo que a América Latina conheceu na sua história. Nem mesmo as ditaduras do Cone Sul causaram uma diáspora deste tamanho. Na Venezuela, segundo as últimas estimativas de organizações internacionais, já se foram aproximadamente 8 milhões e meio de venezuelanos. Para onde? Fundamentalmente, para os nossos vizinhos. Estão na Colômbia, no Brasil, no Peru, no Chile, na Argentina, e todos esses países, que têm seus próprios problemas, não são países de primeiro mundo, e a crise venezuelana agrava ainda mais seus próprios problemas. Então, não é apenas um problema da Venezuela o que estamos vivendo e o que vai ser decidido nestes próximos dias, mas um problema que interessa muito ao resto do nosso continente e especialmente aos nossos vizinhos, como demonstrado pelo presidente Lula ou pelo presidente Petro, que são nossos dois grandes vizinhos preocupados com a situação da Venezuela e pelo que possa acontecer, chamando a que, esperançosamente, as eleições venezuelanas possam resolver a crise política do país.

Estudantes colocam uma faixa em apoio ao candidato presidencial venezuelano Edmundo Gonzalez Urrutia em Caracas, em 24 de julho de 2024 Foto: Federico Parra/AFP

Falando em Lula e Petro, acredita que, como aliados de Nicolás Maduro, eles poderiam ter feito mais por essas eleições? Lembrando que ambos os países não vão enviar observações independentes.

Realmente é um tema complicado o que vivem esses dois presidentes e as forças políticas que os apoiam, porque há um ponto que você destacou, tanto o PT do Brasil quanto a União Patriótica da Colômbia são aliados, ideológicos e políticos, do chavismo, do Partido Socialista Unido da Venezuela. No entanto, este regime teve uma deriva autoritária, mas além disso, não apenas uma postura autoritária, uma deriva de corrupção como nunca antes vista na Venezuela, uma violação dos direitos humanos como nunca se viu na Venezuela. E se tornou, de um aliado incômodo, inapresentável. Tanto Lula quanto Petro, têm duas grandes limitações: primeiro, qualquer coisa que façam em relação à Venezuela está totalmente definida pelo fato de que estão falando com um vizinho com o qual compartilham fronteiras, e fronteiras que, aliás, são muito conflituosas e complicadas. Há um problema humanitário ali, de delimitações, é um tema extremamente complexo e difícil. Portanto, julgar um estadista como Lula ou um presidente como Petro desde a perspectiva venezuelana da nossa luta política, esperar que o presidente Lula denuncie Maduro, apoie a posição venezuelana, etc., isso é não conhecer a realidade das políticas da América Latina no continente.

Nós, claro, preferiríamos que fossem aliados incondicionais da oposição, mas seria imprudente, sem dúvida alguma, pois aconteça o que acontecer nas eleições, o Brasil não vai se mudar nem a Venezuela. Vamos continuar sendo vizinhos. E a fronteira vai estar lá com todos os seus problemas. Então eu sou muito benevolente na análise do papel desses dois presidentes, não quero ser crítico deles. Parece-me que a decisão de não enviar observadores às eleições tem duas leituras: uma leitura é: não quero me envolver nesse problema porque não quero apoiar a oposição venezuelana, ou não me envolver e cuidar desse problema porque não quero apoiar uma fraude de Maduro. Em todo caso, não foram apenas eles que decidiram não vir às eleições como observadores, muitos outros observadores que foram convidados também não vieram e alguns que foram convidados depois foram desconvidados, como a União Europeia.

Como ex-presidente do CNE, o senhor pode explicar como funcionam tecnicamente as eleições na Venezuela e o que significa quando falamos de fraude? Como ela acontece?

Desde o ano 1998 foi implementado na Venezuela o processo eleitoral totalmente automatizado por lei. Desde então, foi estabelecida uma plataforma tecnológica para o dia das eleições e também plataformas tecnológicas paralelas para tudo o que tem a ver com o processo, como o Registro Eleitoral, a postulação de candidatos, todo o processo deveria ser automatizado. Então, tudo o que é o processo de votação, escrutínios e totalização e transmissão dos dados é feito com uma plataforma automatizada. Essa plataforma, claro, é auditada por todos os interessados, os partidos políticos do governo e da oposição, as universidades participam dessas auditorias, empresas privadas e observadores internacionais inclusive e essas são auditorias que são feitas antes, durante e após o processo eleitoral. A história eleitoral venezuelana desde a automatização até aqui indica que nunca se conseguiu demonstrar que houve uma disparidade, por exemplo, entre o que as pessoas votaram e o que contou a máquina na hora de cruzar e o que estava nas caixas de votação onde se armazenam os comprovantes de cada votante, também nunca se conseguiu demonstrar que uma máquina transmitiu dados que não são os que figuram nas atas correspondentes. De modo que o sistema automatizado de votação, escrutínio e transmissão e totalização dos dados é um sistema bastante robusto, tem sua falha, claro, como todo sistema, mas as falhas, no pior dos casos, alcançaram 1%

Agora bem, um processo eleitoral é isso, um processo longo que começa desde o momento em que se convocam as eleições até que se proclama o ganhador da eleição ou os ganhadores desse processo, claro, inclui muitas fases, muitas atividades. O problema que ocorre na Venezuela, que ocorre no nosso país desde que se instala o regime chavista na Venezuela - para colocá-lo em termos gerais e incluir todos os governos de Chávez mais os governos de Maduro - é que ao longo do processo eleitoral, o partido do governo e o governo têm influenciado nos processos eleitorais em conjunto, fazendo os processos eleitorais iníquos, em muitos casos fraudulentos e violadores das leis e normas eleitorais, isso é o que tem acontecido.

Ao longo desses 25 anos, toda a burocracia eleitoral venezuelana - burocracia no bom sentido da palavra, aquela burocracia que havia sido formada desde o ano de 1958 fazendo eleições, melhorando seus processos, seus sistemas, formando quadros de profissionais experientes e de novos talentos - foi totalmente colonizada pelo partido de governo. Essa burocracia foi demitida, seja legal ou ilegalmente, todos foram eliminados e, hoje em dia, toda a burocracia eleitoral venezuelana é e funciona como uma espécie de escritório eleitoral do partido governista ou um ministério de eleições do Executivo da República. Aí começa todo o desequilíbrio do processo eleitoral do país.

Um trabalhador parado nos pedágios do estado de Naguanagua-Valencia, na Venezuela, em 30 de junho de 2024, exibindo caricaturas do ditador da Venezuela, Nicolas Maduro, como 'Super Bigode' Foto: Juan Barreto/JUAN BARRETO

Para fechar com um pouco de história, como foi coordenar os referendos e a eleição constituinte de 1999?

Do ponto de vista técnico eleitoral, foi o processo eleitoral mais difícil que foi realizado na Venezuela, porque foi uma eleição absolutamente uninominal. Não por partidos políticos ou grupos políticos, mas cada pessoa era um candidato e cada pessoa era eleita ou não. Qualquer pessoa que conheça questões eleitorais sabe que esse é um processo complexo. Naquele eleição, se não me falha a memória, havia mais de 500 membros da constituinte, ou seja que eram mais de 500 eleições acontecendo ao mesmo tempo. Pois bem, cumprimos e cumprimos com êxito. Não houve uma única contestação eleitoral dessas quinhentas eleições individuais em tempo recorde, tivemos os resultados eleitorais em todo o país e, como presidente do CNE naquela época, posso dizer que isso é um orgulho profissional.

Do ponto de vista político, a Venezuela passou por uma mudança de regime naquela época. Uma constituição em vigor desde 1961 foi revogada e um processo foi lançado para eleger uma nova assembleia constituinte para redigir uma nova constituição, a 25ª na história da Venezuela. A nova constituição foi infinitamente pior para todos, ou seja, os problemas foram desviados. Mas as vantagens desse processo foram que, pela primeira vez em 25 Constituições anteriores, isso foi feito em paz. Não foi uma mudança constitucional que veio por meio de facão com tiros de guerra civis, etc., golpes de Estado, mas foi feita com um processo eleitoral.

Nesse processo foi quando passamos a ver o comportamento antidemocrático de Chávez como presidente da República e o dialeto do chavismo como força política começou a ser notado. Há um caso curioso: o presidente Chávez foi o único presidente em toda a história da Venezuela a ser multado por ter sido acusado de um delito eleitoral. Na época a lei proibia funcionários públicos de fazer campanha eleitoral, e isso incluia o presidente, e ele estava fazendo campanha por seus candidatos na constituinte. O Conselho Nacional Eleitoral da época, que eu presidia, o condenou como infrator eleitoral e o obrigou a pagar a multa. Depois dessa multa, que ele não apenas pagou, que era algo em torno de 9.000 dólares na época, mas a partir desse momento você ele parou de fazer propaganda eleitoral, ou seja, valeu a pena.

O político e economista Andrés Caleca presidia o Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela quando Hugo Chávez convocou em 1999 o referendo para substituir a Constituição do país. Embora reconheça que foi a partir deste momento que a democracia venezuelana acelerou sua derrocada, ele se orgulha de ter conduzido com êxito o primeiro processo constitucional inteiramente votado pela população.

Hoje, ele está do lado que faz oposição ao ditador Nicolás Maduro, que busca se firmar no poder nas eleições a serem celebradas neste domingo, 28. Caleca chegou a disputar a vaga pela candidatura da Plataforma Unitária, chapa de oposição, contra a líder María Corina Machado em 2023, que na época venceu com mais de 90% dos votos. Agora ele endossa a candidatura de Edmundo González Urrutia.

“A única coisa que a oposição venezuelana tem no momento são votos frente a uma ditadura que tem todos os poderes do Estado, inclusive as armas da República, mas não tem voz e não tem intenção aparente de entregar o governo”, afirmou com preocupação durante uma entrevista de uma hora por vídeo chamada ao Estadão.

Membros da Guarda de Honra Presidencial exibem uma bandeira nacional venezuelana em um terraço do Palácio Presidencial de Miraflores, decorado com imagens do presidente Nicolas Maduro (à esq.) e do falecido presidente Hugo Chávez, durante um comício em Caracas em 17 de maio de 2024 Foto: Juan Barreto/AFP

Segundo ele, os próximos dias serão os mais perigosos dos últimos 25 anos para a paz no país. Esta afirmação, inclusive, foi feita antes de Maduro afirmar que haverá um “banho de sangue” caso a oposição ganhe as eleições.

“Posso dizer com toda a seriedade que os dias entre agora e as eleições são os mais perigosos para a paz pública na Venezuela nos últimos 25 anos, porque estamos na presença de um regime autoritário que se recusa a entregar o poder”, disse.

Quando questionado se valia a pena, neste cenário adverso, confiar na via eleitoral, Caleca responde: “Nós, democratas, sempre votamos, em todas as circunstâncias, mesmo nas piores, porque isso faz parte da luta pela democracia.”

“Os democratas venezuelanos estão atualmente determinados a forçar o governo a permanecer na via eleitoral e constitucional pacífica, porque em qualquer outra via o governo nos liquidará, porque tem todas as armas da República e não hesita em usá-las, como já as usou em 2014″, completa em referência aos protestos daquele ano contra Maduro.

Em sua época como presidente do CNE, Caleca bateu de frente com Hugo Chávez, chegando a aplicar uma multa por interferência no processo constituinte. Na época, Chávez ameaçou com um “terão que me meter preso”, o que Caleca respondeu com outra ameaça, a de suspender as eleições para a nova Constituição.

“Chávez foi o único presidente em toda a história da Venezuela a ser multado por ter sido acusado e comprovadamente cometido um delito eleitoral”, disse em tom de orgulho. “Ele não apenas pagou a multa, que era algo em torno de US$ 9.000 na época, mas a partir daí se absteve de fazer propaganda eleitoral. Mas foi aí que vimos qual era a natureza autoritária do chavismo”.

Confira trechos da entrevista com Andrés Caleca, que foi condensada para melhor compreensão:

O que esperar para hoje e os próximos dias?

Os cenários são todos difíceis, a Venezuela entra em um período de incerteza muito estranho. Nunca vivemos isso, mas podem acontecer duas coisas. De forma simples, pode ganhar a oposição ou pode ganhar Maduro. Se Maduro ganhar, é importante sabermos que aqui se abrem dois cenários distintos: uma coisa é se Maduro ganhar porque de fato venceu, e outra coisa é se Maduro ganhar por uma fraude eleitoral. Se Maduro se impuser no dia 28 por uma fraude eleitoral, a situação da Venezuela é absolutamente imprevisível. Eu não posso dizer neste momento nem mesmo o que vai acontecer, como vai reagir a liderança política da oposição a isso, eu não tenho essa informação nem participei de reuniões sobre isso, mas também não tenho a menor ideia de como vai reagir a população venezuelana a um caso de uma fraude evidente e descarada. Diante disso, pode acontecer qualquer coisa. Veja Fujimori, em uma ditadura semelhante a esta, tentou fazer uma fraude e acabou perdendo o poder. Isso, para mim, abre um cenário de absoluta incerteza e imagino que para o governo também, e se eles estão pensando em fazer uma fraude maciça, devem estar tomando medidas ou precauções para todas essas coisas. Outra opção, claro, é que Maduro ganhe de forma legítima. Virá, certamente, uma grande decepção, uma desmobilização, uma depressão coletiva, mas a luta democrática continua, e nós nos recuperaremos e continuaremos.

E, no cenário mais favorável, digamos, é que o senhor Edmundo González ganhe as eleições, como dizem todas as pesquisas, e que este governo, por um raio de luz, pelo Espírito Santo, reconheça essa vitória. Esse seria o cenário menos traumático para a oposição venezuelana. Mas aí a Venezuela entra em um processo inédito de transição lenta.

Apoiadores do candidato presidencial da oposição Edmundo Gonzalez Urrutia são vistos durante a distribuição de panfletos de campanha em Caracas, Venezuela Foto: Ariana Cubillos/AP

Vamos jogar um pouco com esse cenário: como seria uma transição de seis meses?

Em um processo de democratização do país, inicialmente com dois presidentes por seis meses compartilhando espaço, mas depois, supondo que em 10 de janeiro Edmundo González assuma o comando do Executivo, terá todos os poderes públicos contra ele, pelo menos no primeiro ano de governo, ou seja, terá que governar com um Tribunal Supremo de Justiça contra ele, com uma Assembleia Nacional contra ele, com 18 dos 24 governadores contra ele, com quase todas as prefeituras contra ele, com o Conselho Eleitoral presidido por esse senhor inapresentável que é o [Elvis] Amoroso, etc. A Venezuela entra em um processo de transição para a democracia extremamente complexo e difícil com uma força que não é democrática pela frente.

Agora é preciso notar que, por sorte, realmente, o candidato acabou sendo e que seria, nessa eventualidade, quem teria que lidar com essa situação, um homem como Edmundo González, um homem que é um diplomata de carreira, um homem cuja formação é precisamente a negociação, porque o ponto central vai estar na capacidade negociadora das partes.

E no cenário que Maduro não reconheça a vitória da oposição?

Eu posso te dizer com toda seriedade que os próximos dias que se estendem de hoje até as eleições são os mais perigosos para a paz pública na Venezuela nos últimos 25 anos. Porque temos diante de nós um regime autoritário que se recusa a entregar o poder. Essa mesma ditadura nega um fato evidente de que 80% do país já rejeita a sua gestão e que mais de 50% dos venezuelanos apoiam a candidatura de oposição de Edmundo González, com uma diferença de mais de 22 pontos em todas as pesquisas em relação a Nicolás Maduro. Isso torna este governo extremamente perigoso. Acredito que na Venezuela pode acontecer qualquer coisa nestes dias.

É claro que isso não depende de nós. A oposição venezuelana no momento aposta na rota eleitoral pacífica e constitucional porque não temos força para mais nada. Aqui ninguém está pensando em convocar uma insurreição popular ou em pegar em armas, até porque ninguém tem armas nem organização para isso. O único recurso que a oposição venezuelana tem no momento são votos, e do outro lado há uma ditadura que detém todos os poderes do Estado, incluindo as armas da República, mas que não têm voz nem aparentam ter qualquer intenção de entregar o governo. Eles agem e continuam agindo atropelando a todos, atropelando os líderes políticos, o nosso candidato unitário, o processo eleitoral, cometendo fraude eleitoral continuada. Pode acontecer qualquer coisa na Venezuela, incluindo um golpe por parte dessas pessoas, não é? Precisamos estar preparados para isso.

Farei ao senhor uma pergunta que leitores fizeram a mim. Com este cenário eleitoral tão adverso, ainda vale a pena acreditar no processo eleitoral?

Sim. Nós, democratas, sempre votamos, sempre, em qualquer circunstância, até mesmo nas piores circunstâncias, porque essa é parte da luta pela democracia. Muitas pessoas erroneamente acreditam que a primeira revolução popular do mundo moderno foi a Revolução Bolchevique de 1917, que levou o partido comunista ao poder na Rússia. Porém, a primeira verdadeira revolução popular do mundo moderno foi a Revolução Mexicana, aqui neste continente, em 1910, sete anos antes da revolução bolchevique. E você sabe qual era o lema dessa revolução? “Sufrágio efetivo, não reeleição”. Parece que, 150 anos depois, temos o mesmo lema, porque essa é a luta dos democratas. A luta dos democratas gira em torno das eleições, pois as escolhas devem ser feitas e os poderes decididos consultando toda a nação. É nisso que consiste a democracia.

Os democratas venezuelanos, neste momento, estamos empenhados em forçar o governo a manter-se na rota pacífica eleitoral e constitucional porque, em qualquer outra rota, o governo nos vai liquidar, porque tem todas as armas da República e não hesita em utilizá-las, como já fez em 2014 quando uma espécie de insurreição popular espontânea se produziu e o governo massacrou a população. Em 2017, aconteceu o mesmo e houve outro massacre, especialmente contra nossos jovens indefesos. Portanto, há um governo capaz de qualquer coisa, similar ao que ocorre, por exemplo, agora, em Cuba, onde qualquer manifestação é punida com 20 anos de prisão para as pessoas, é algo absurdo. Na Venezuela, não apenas isso, mas matam as pessoas, e de fato, a Venezuela está sendo investigada pela Corte Penal Internacional neste momento, sobre crimes contra a humanidade. Um governo duro que assassina, que persegue. Bem, frente a esse governo, a oposição venezuelana propôs encurralá-los na luta eleitoral.

E é importante também falar que este é um processo muito importante para o restante da América Latina e, particularmente para nossos vizinhos, porque uma das consequências dessa terrível situação na Venezuela tem sido a maior emigração, o maior êxodo que a América Latina conheceu na sua história. Nem mesmo as ditaduras do Cone Sul causaram uma diáspora deste tamanho. Na Venezuela, segundo as últimas estimativas de organizações internacionais, já se foram aproximadamente 8 milhões e meio de venezuelanos. Para onde? Fundamentalmente, para os nossos vizinhos. Estão na Colômbia, no Brasil, no Peru, no Chile, na Argentina, e todos esses países, que têm seus próprios problemas, não são países de primeiro mundo, e a crise venezuelana agrava ainda mais seus próprios problemas. Então, não é apenas um problema da Venezuela o que estamos vivendo e o que vai ser decidido nestes próximos dias, mas um problema que interessa muito ao resto do nosso continente e especialmente aos nossos vizinhos, como demonstrado pelo presidente Lula ou pelo presidente Petro, que são nossos dois grandes vizinhos preocupados com a situação da Venezuela e pelo que possa acontecer, chamando a que, esperançosamente, as eleições venezuelanas possam resolver a crise política do país.

Estudantes colocam uma faixa em apoio ao candidato presidencial venezuelano Edmundo Gonzalez Urrutia em Caracas, em 24 de julho de 2024 Foto: Federico Parra/AFP

Falando em Lula e Petro, acredita que, como aliados de Nicolás Maduro, eles poderiam ter feito mais por essas eleições? Lembrando que ambos os países não vão enviar observações independentes.

Realmente é um tema complicado o que vivem esses dois presidentes e as forças políticas que os apoiam, porque há um ponto que você destacou, tanto o PT do Brasil quanto a União Patriótica da Colômbia são aliados, ideológicos e políticos, do chavismo, do Partido Socialista Unido da Venezuela. No entanto, este regime teve uma deriva autoritária, mas além disso, não apenas uma postura autoritária, uma deriva de corrupção como nunca antes vista na Venezuela, uma violação dos direitos humanos como nunca se viu na Venezuela. E se tornou, de um aliado incômodo, inapresentável. Tanto Lula quanto Petro, têm duas grandes limitações: primeiro, qualquer coisa que façam em relação à Venezuela está totalmente definida pelo fato de que estão falando com um vizinho com o qual compartilham fronteiras, e fronteiras que, aliás, são muito conflituosas e complicadas. Há um problema humanitário ali, de delimitações, é um tema extremamente complexo e difícil. Portanto, julgar um estadista como Lula ou um presidente como Petro desde a perspectiva venezuelana da nossa luta política, esperar que o presidente Lula denuncie Maduro, apoie a posição venezuelana, etc., isso é não conhecer a realidade das políticas da América Latina no continente.

Nós, claro, preferiríamos que fossem aliados incondicionais da oposição, mas seria imprudente, sem dúvida alguma, pois aconteça o que acontecer nas eleições, o Brasil não vai se mudar nem a Venezuela. Vamos continuar sendo vizinhos. E a fronteira vai estar lá com todos os seus problemas. Então eu sou muito benevolente na análise do papel desses dois presidentes, não quero ser crítico deles. Parece-me que a decisão de não enviar observadores às eleições tem duas leituras: uma leitura é: não quero me envolver nesse problema porque não quero apoiar a oposição venezuelana, ou não me envolver e cuidar desse problema porque não quero apoiar uma fraude de Maduro. Em todo caso, não foram apenas eles que decidiram não vir às eleições como observadores, muitos outros observadores que foram convidados também não vieram e alguns que foram convidados depois foram desconvidados, como a União Europeia.

Como ex-presidente do CNE, o senhor pode explicar como funcionam tecnicamente as eleições na Venezuela e o que significa quando falamos de fraude? Como ela acontece?

Desde o ano 1998 foi implementado na Venezuela o processo eleitoral totalmente automatizado por lei. Desde então, foi estabelecida uma plataforma tecnológica para o dia das eleições e também plataformas tecnológicas paralelas para tudo o que tem a ver com o processo, como o Registro Eleitoral, a postulação de candidatos, todo o processo deveria ser automatizado. Então, tudo o que é o processo de votação, escrutínios e totalização e transmissão dos dados é feito com uma plataforma automatizada. Essa plataforma, claro, é auditada por todos os interessados, os partidos políticos do governo e da oposição, as universidades participam dessas auditorias, empresas privadas e observadores internacionais inclusive e essas são auditorias que são feitas antes, durante e após o processo eleitoral. A história eleitoral venezuelana desde a automatização até aqui indica que nunca se conseguiu demonstrar que houve uma disparidade, por exemplo, entre o que as pessoas votaram e o que contou a máquina na hora de cruzar e o que estava nas caixas de votação onde se armazenam os comprovantes de cada votante, também nunca se conseguiu demonstrar que uma máquina transmitiu dados que não são os que figuram nas atas correspondentes. De modo que o sistema automatizado de votação, escrutínio e transmissão e totalização dos dados é um sistema bastante robusto, tem sua falha, claro, como todo sistema, mas as falhas, no pior dos casos, alcançaram 1%

Agora bem, um processo eleitoral é isso, um processo longo que começa desde o momento em que se convocam as eleições até que se proclama o ganhador da eleição ou os ganhadores desse processo, claro, inclui muitas fases, muitas atividades. O problema que ocorre na Venezuela, que ocorre no nosso país desde que se instala o regime chavista na Venezuela - para colocá-lo em termos gerais e incluir todos os governos de Chávez mais os governos de Maduro - é que ao longo do processo eleitoral, o partido do governo e o governo têm influenciado nos processos eleitorais em conjunto, fazendo os processos eleitorais iníquos, em muitos casos fraudulentos e violadores das leis e normas eleitorais, isso é o que tem acontecido.

Ao longo desses 25 anos, toda a burocracia eleitoral venezuelana - burocracia no bom sentido da palavra, aquela burocracia que havia sido formada desde o ano de 1958 fazendo eleições, melhorando seus processos, seus sistemas, formando quadros de profissionais experientes e de novos talentos - foi totalmente colonizada pelo partido de governo. Essa burocracia foi demitida, seja legal ou ilegalmente, todos foram eliminados e, hoje em dia, toda a burocracia eleitoral venezuelana é e funciona como uma espécie de escritório eleitoral do partido governista ou um ministério de eleições do Executivo da República. Aí começa todo o desequilíbrio do processo eleitoral do país.

Um trabalhador parado nos pedágios do estado de Naguanagua-Valencia, na Venezuela, em 30 de junho de 2024, exibindo caricaturas do ditador da Venezuela, Nicolas Maduro, como 'Super Bigode' Foto: Juan Barreto/JUAN BARRETO

Para fechar com um pouco de história, como foi coordenar os referendos e a eleição constituinte de 1999?

Do ponto de vista técnico eleitoral, foi o processo eleitoral mais difícil que foi realizado na Venezuela, porque foi uma eleição absolutamente uninominal. Não por partidos políticos ou grupos políticos, mas cada pessoa era um candidato e cada pessoa era eleita ou não. Qualquer pessoa que conheça questões eleitorais sabe que esse é um processo complexo. Naquele eleição, se não me falha a memória, havia mais de 500 membros da constituinte, ou seja que eram mais de 500 eleições acontecendo ao mesmo tempo. Pois bem, cumprimos e cumprimos com êxito. Não houve uma única contestação eleitoral dessas quinhentas eleições individuais em tempo recorde, tivemos os resultados eleitorais em todo o país e, como presidente do CNE naquela época, posso dizer que isso é um orgulho profissional.

Do ponto de vista político, a Venezuela passou por uma mudança de regime naquela época. Uma constituição em vigor desde 1961 foi revogada e um processo foi lançado para eleger uma nova assembleia constituinte para redigir uma nova constituição, a 25ª na história da Venezuela. A nova constituição foi infinitamente pior para todos, ou seja, os problemas foram desviados. Mas as vantagens desse processo foram que, pela primeira vez em 25 Constituições anteriores, isso foi feito em paz. Não foi uma mudança constitucional que veio por meio de facão com tiros de guerra civis, etc., golpes de Estado, mas foi feita com um processo eleitoral.

Nesse processo foi quando passamos a ver o comportamento antidemocrático de Chávez como presidente da República e o dialeto do chavismo como força política começou a ser notado. Há um caso curioso: o presidente Chávez foi o único presidente em toda a história da Venezuela a ser multado por ter sido acusado de um delito eleitoral. Na época a lei proibia funcionários públicos de fazer campanha eleitoral, e isso incluia o presidente, e ele estava fazendo campanha por seus candidatos na constituinte. O Conselho Nacional Eleitoral da época, que eu presidia, o condenou como infrator eleitoral e o obrigou a pagar a multa. Depois dessa multa, que ele não apenas pagou, que era algo em torno de 9.000 dólares na época, mas a partir desse momento você ele parou de fazer propaganda eleitoral, ou seja, valeu a pena.

O político e economista Andrés Caleca presidia o Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela quando Hugo Chávez convocou em 1999 o referendo para substituir a Constituição do país. Embora reconheça que foi a partir deste momento que a democracia venezuelana acelerou sua derrocada, ele se orgulha de ter conduzido com êxito o primeiro processo constitucional inteiramente votado pela população.

Hoje, ele está do lado que faz oposição ao ditador Nicolás Maduro, que busca se firmar no poder nas eleições a serem celebradas neste domingo, 28. Caleca chegou a disputar a vaga pela candidatura da Plataforma Unitária, chapa de oposição, contra a líder María Corina Machado em 2023, que na época venceu com mais de 90% dos votos. Agora ele endossa a candidatura de Edmundo González Urrutia.

“A única coisa que a oposição venezuelana tem no momento são votos frente a uma ditadura que tem todos os poderes do Estado, inclusive as armas da República, mas não tem voz e não tem intenção aparente de entregar o governo”, afirmou com preocupação durante uma entrevista de uma hora por vídeo chamada ao Estadão.

Membros da Guarda de Honra Presidencial exibem uma bandeira nacional venezuelana em um terraço do Palácio Presidencial de Miraflores, decorado com imagens do presidente Nicolas Maduro (à esq.) e do falecido presidente Hugo Chávez, durante um comício em Caracas em 17 de maio de 2024 Foto: Juan Barreto/AFP

Segundo ele, os próximos dias serão os mais perigosos dos últimos 25 anos para a paz no país. Esta afirmação, inclusive, foi feita antes de Maduro afirmar que haverá um “banho de sangue” caso a oposição ganhe as eleições.

“Posso dizer com toda a seriedade que os dias entre agora e as eleições são os mais perigosos para a paz pública na Venezuela nos últimos 25 anos, porque estamos na presença de um regime autoritário que se recusa a entregar o poder”, disse.

Quando questionado se valia a pena, neste cenário adverso, confiar na via eleitoral, Caleca responde: “Nós, democratas, sempre votamos, em todas as circunstâncias, mesmo nas piores, porque isso faz parte da luta pela democracia.”

“Os democratas venezuelanos estão atualmente determinados a forçar o governo a permanecer na via eleitoral e constitucional pacífica, porque em qualquer outra via o governo nos liquidará, porque tem todas as armas da República e não hesita em usá-las, como já as usou em 2014″, completa em referência aos protestos daquele ano contra Maduro.

Em sua época como presidente do CNE, Caleca bateu de frente com Hugo Chávez, chegando a aplicar uma multa por interferência no processo constituinte. Na época, Chávez ameaçou com um “terão que me meter preso”, o que Caleca respondeu com outra ameaça, a de suspender as eleições para a nova Constituição.

“Chávez foi o único presidente em toda a história da Venezuela a ser multado por ter sido acusado e comprovadamente cometido um delito eleitoral”, disse em tom de orgulho. “Ele não apenas pagou a multa, que era algo em torno de US$ 9.000 na época, mas a partir daí se absteve de fazer propaganda eleitoral. Mas foi aí que vimos qual era a natureza autoritária do chavismo”.

Confira trechos da entrevista com Andrés Caleca, que foi condensada para melhor compreensão:

O que esperar para hoje e os próximos dias?

Os cenários são todos difíceis, a Venezuela entra em um período de incerteza muito estranho. Nunca vivemos isso, mas podem acontecer duas coisas. De forma simples, pode ganhar a oposição ou pode ganhar Maduro. Se Maduro ganhar, é importante sabermos que aqui se abrem dois cenários distintos: uma coisa é se Maduro ganhar porque de fato venceu, e outra coisa é se Maduro ganhar por uma fraude eleitoral. Se Maduro se impuser no dia 28 por uma fraude eleitoral, a situação da Venezuela é absolutamente imprevisível. Eu não posso dizer neste momento nem mesmo o que vai acontecer, como vai reagir a liderança política da oposição a isso, eu não tenho essa informação nem participei de reuniões sobre isso, mas também não tenho a menor ideia de como vai reagir a população venezuelana a um caso de uma fraude evidente e descarada. Diante disso, pode acontecer qualquer coisa. Veja Fujimori, em uma ditadura semelhante a esta, tentou fazer uma fraude e acabou perdendo o poder. Isso, para mim, abre um cenário de absoluta incerteza e imagino que para o governo também, e se eles estão pensando em fazer uma fraude maciça, devem estar tomando medidas ou precauções para todas essas coisas. Outra opção, claro, é que Maduro ganhe de forma legítima. Virá, certamente, uma grande decepção, uma desmobilização, uma depressão coletiva, mas a luta democrática continua, e nós nos recuperaremos e continuaremos.

E, no cenário mais favorável, digamos, é que o senhor Edmundo González ganhe as eleições, como dizem todas as pesquisas, e que este governo, por um raio de luz, pelo Espírito Santo, reconheça essa vitória. Esse seria o cenário menos traumático para a oposição venezuelana. Mas aí a Venezuela entra em um processo inédito de transição lenta.

Apoiadores do candidato presidencial da oposição Edmundo Gonzalez Urrutia são vistos durante a distribuição de panfletos de campanha em Caracas, Venezuela Foto: Ariana Cubillos/AP

Vamos jogar um pouco com esse cenário: como seria uma transição de seis meses?

Em um processo de democratização do país, inicialmente com dois presidentes por seis meses compartilhando espaço, mas depois, supondo que em 10 de janeiro Edmundo González assuma o comando do Executivo, terá todos os poderes públicos contra ele, pelo menos no primeiro ano de governo, ou seja, terá que governar com um Tribunal Supremo de Justiça contra ele, com uma Assembleia Nacional contra ele, com 18 dos 24 governadores contra ele, com quase todas as prefeituras contra ele, com o Conselho Eleitoral presidido por esse senhor inapresentável que é o [Elvis] Amoroso, etc. A Venezuela entra em um processo de transição para a democracia extremamente complexo e difícil com uma força que não é democrática pela frente.

Agora é preciso notar que, por sorte, realmente, o candidato acabou sendo e que seria, nessa eventualidade, quem teria que lidar com essa situação, um homem como Edmundo González, um homem que é um diplomata de carreira, um homem cuja formação é precisamente a negociação, porque o ponto central vai estar na capacidade negociadora das partes.

E no cenário que Maduro não reconheça a vitória da oposição?

Eu posso te dizer com toda seriedade que os próximos dias que se estendem de hoje até as eleições são os mais perigosos para a paz pública na Venezuela nos últimos 25 anos. Porque temos diante de nós um regime autoritário que se recusa a entregar o poder. Essa mesma ditadura nega um fato evidente de que 80% do país já rejeita a sua gestão e que mais de 50% dos venezuelanos apoiam a candidatura de oposição de Edmundo González, com uma diferença de mais de 22 pontos em todas as pesquisas em relação a Nicolás Maduro. Isso torna este governo extremamente perigoso. Acredito que na Venezuela pode acontecer qualquer coisa nestes dias.

É claro que isso não depende de nós. A oposição venezuelana no momento aposta na rota eleitoral pacífica e constitucional porque não temos força para mais nada. Aqui ninguém está pensando em convocar uma insurreição popular ou em pegar em armas, até porque ninguém tem armas nem organização para isso. O único recurso que a oposição venezuelana tem no momento são votos, e do outro lado há uma ditadura que detém todos os poderes do Estado, incluindo as armas da República, mas que não têm voz nem aparentam ter qualquer intenção de entregar o governo. Eles agem e continuam agindo atropelando a todos, atropelando os líderes políticos, o nosso candidato unitário, o processo eleitoral, cometendo fraude eleitoral continuada. Pode acontecer qualquer coisa na Venezuela, incluindo um golpe por parte dessas pessoas, não é? Precisamos estar preparados para isso.

Farei ao senhor uma pergunta que leitores fizeram a mim. Com este cenário eleitoral tão adverso, ainda vale a pena acreditar no processo eleitoral?

Sim. Nós, democratas, sempre votamos, sempre, em qualquer circunstância, até mesmo nas piores circunstâncias, porque essa é parte da luta pela democracia. Muitas pessoas erroneamente acreditam que a primeira revolução popular do mundo moderno foi a Revolução Bolchevique de 1917, que levou o partido comunista ao poder na Rússia. Porém, a primeira verdadeira revolução popular do mundo moderno foi a Revolução Mexicana, aqui neste continente, em 1910, sete anos antes da revolução bolchevique. E você sabe qual era o lema dessa revolução? “Sufrágio efetivo, não reeleição”. Parece que, 150 anos depois, temos o mesmo lema, porque essa é a luta dos democratas. A luta dos democratas gira em torno das eleições, pois as escolhas devem ser feitas e os poderes decididos consultando toda a nação. É nisso que consiste a democracia.

Os democratas venezuelanos, neste momento, estamos empenhados em forçar o governo a manter-se na rota pacífica eleitoral e constitucional porque, em qualquer outra rota, o governo nos vai liquidar, porque tem todas as armas da República e não hesita em utilizá-las, como já fez em 2014 quando uma espécie de insurreição popular espontânea se produziu e o governo massacrou a população. Em 2017, aconteceu o mesmo e houve outro massacre, especialmente contra nossos jovens indefesos. Portanto, há um governo capaz de qualquer coisa, similar ao que ocorre, por exemplo, agora, em Cuba, onde qualquer manifestação é punida com 20 anos de prisão para as pessoas, é algo absurdo. Na Venezuela, não apenas isso, mas matam as pessoas, e de fato, a Venezuela está sendo investigada pela Corte Penal Internacional neste momento, sobre crimes contra a humanidade. Um governo duro que assassina, que persegue. Bem, frente a esse governo, a oposição venezuelana propôs encurralá-los na luta eleitoral.

E é importante também falar que este é um processo muito importante para o restante da América Latina e, particularmente para nossos vizinhos, porque uma das consequências dessa terrível situação na Venezuela tem sido a maior emigração, o maior êxodo que a América Latina conheceu na sua história. Nem mesmo as ditaduras do Cone Sul causaram uma diáspora deste tamanho. Na Venezuela, segundo as últimas estimativas de organizações internacionais, já se foram aproximadamente 8 milhões e meio de venezuelanos. Para onde? Fundamentalmente, para os nossos vizinhos. Estão na Colômbia, no Brasil, no Peru, no Chile, na Argentina, e todos esses países, que têm seus próprios problemas, não são países de primeiro mundo, e a crise venezuelana agrava ainda mais seus próprios problemas. Então, não é apenas um problema da Venezuela o que estamos vivendo e o que vai ser decidido nestes próximos dias, mas um problema que interessa muito ao resto do nosso continente e especialmente aos nossos vizinhos, como demonstrado pelo presidente Lula ou pelo presidente Petro, que são nossos dois grandes vizinhos preocupados com a situação da Venezuela e pelo que possa acontecer, chamando a que, esperançosamente, as eleições venezuelanas possam resolver a crise política do país.

Estudantes colocam uma faixa em apoio ao candidato presidencial venezuelano Edmundo Gonzalez Urrutia em Caracas, em 24 de julho de 2024 Foto: Federico Parra/AFP

Falando em Lula e Petro, acredita que, como aliados de Nicolás Maduro, eles poderiam ter feito mais por essas eleições? Lembrando que ambos os países não vão enviar observações independentes.

Realmente é um tema complicado o que vivem esses dois presidentes e as forças políticas que os apoiam, porque há um ponto que você destacou, tanto o PT do Brasil quanto a União Patriótica da Colômbia são aliados, ideológicos e políticos, do chavismo, do Partido Socialista Unido da Venezuela. No entanto, este regime teve uma deriva autoritária, mas além disso, não apenas uma postura autoritária, uma deriva de corrupção como nunca antes vista na Venezuela, uma violação dos direitos humanos como nunca se viu na Venezuela. E se tornou, de um aliado incômodo, inapresentável. Tanto Lula quanto Petro, têm duas grandes limitações: primeiro, qualquer coisa que façam em relação à Venezuela está totalmente definida pelo fato de que estão falando com um vizinho com o qual compartilham fronteiras, e fronteiras que, aliás, são muito conflituosas e complicadas. Há um problema humanitário ali, de delimitações, é um tema extremamente complexo e difícil. Portanto, julgar um estadista como Lula ou um presidente como Petro desde a perspectiva venezuelana da nossa luta política, esperar que o presidente Lula denuncie Maduro, apoie a posição venezuelana, etc., isso é não conhecer a realidade das políticas da América Latina no continente.

Nós, claro, preferiríamos que fossem aliados incondicionais da oposição, mas seria imprudente, sem dúvida alguma, pois aconteça o que acontecer nas eleições, o Brasil não vai se mudar nem a Venezuela. Vamos continuar sendo vizinhos. E a fronteira vai estar lá com todos os seus problemas. Então eu sou muito benevolente na análise do papel desses dois presidentes, não quero ser crítico deles. Parece-me que a decisão de não enviar observadores às eleições tem duas leituras: uma leitura é: não quero me envolver nesse problema porque não quero apoiar a oposição venezuelana, ou não me envolver e cuidar desse problema porque não quero apoiar uma fraude de Maduro. Em todo caso, não foram apenas eles que decidiram não vir às eleições como observadores, muitos outros observadores que foram convidados também não vieram e alguns que foram convidados depois foram desconvidados, como a União Europeia.

Como ex-presidente do CNE, o senhor pode explicar como funcionam tecnicamente as eleições na Venezuela e o que significa quando falamos de fraude? Como ela acontece?

Desde o ano 1998 foi implementado na Venezuela o processo eleitoral totalmente automatizado por lei. Desde então, foi estabelecida uma plataforma tecnológica para o dia das eleições e também plataformas tecnológicas paralelas para tudo o que tem a ver com o processo, como o Registro Eleitoral, a postulação de candidatos, todo o processo deveria ser automatizado. Então, tudo o que é o processo de votação, escrutínios e totalização e transmissão dos dados é feito com uma plataforma automatizada. Essa plataforma, claro, é auditada por todos os interessados, os partidos políticos do governo e da oposição, as universidades participam dessas auditorias, empresas privadas e observadores internacionais inclusive e essas são auditorias que são feitas antes, durante e após o processo eleitoral. A história eleitoral venezuelana desde a automatização até aqui indica que nunca se conseguiu demonstrar que houve uma disparidade, por exemplo, entre o que as pessoas votaram e o que contou a máquina na hora de cruzar e o que estava nas caixas de votação onde se armazenam os comprovantes de cada votante, também nunca se conseguiu demonstrar que uma máquina transmitiu dados que não são os que figuram nas atas correspondentes. De modo que o sistema automatizado de votação, escrutínio e transmissão e totalização dos dados é um sistema bastante robusto, tem sua falha, claro, como todo sistema, mas as falhas, no pior dos casos, alcançaram 1%

Agora bem, um processo eleitoral é isso, um processo longo que começa desde o momento em que se convocam as eleições até que se proclama o ganhador da eleição ou os ganhadores desse processo, claro, inclui muitas fases, muitas atividades. O problema que ocorre na Venezuela, que ocorre no nosso país desde que se instala o regime chavista na Venezuela - para colocá-lo em termos gerais e incluir todos os governos de Chávez mais os governos de Maduro - é que ao longo do processo eleitoral, o partido do governo e o governo têm influenciado nos processos eleitorais em conjunto, fazendo os processos eleitorais iníquos, em muitos casos fraudulentos e violadores das leis e normas eleitorais, isso é o que tem acontecido.

Ao longo desses 25 anos, toda a burocracia eleitoral venezuelana - burocracia no bom sentido da palavra, aquela burocracia que havia sido formada desde o ano de 1958 fazendo eleições, melhorando seus processos, seus sistemas, formando quadros de profissionais experientes e de novos talentos - foi totalmente colonizada pelo partido de governo. Essa burocracia foi demitida, seja legal ou ilegalmente, todos foram eliminados e, hoje em dia, toda a burocracia eleitoral venezuelana é e funciona como uma espécie de escritório eleitoral do partido governista ou um ministério de eleições do Executivo da República. Aí começa todo o desequilíbrio do processo eleitoral do país.

Um trabalhador parado nos pedágios do estado de Naguanagua-Valencia, na Venezuela, em 30 de junho de 2024, exibindo caricaturas do ditador da Venezuela, Nicolas Maduro, como 'Super Bigode' Foto: Juan Barreto/JUAN BARRETO

Para fechar com um pouco de história, como foi coordenar os referendos e a eleição constituinte de 1999?

Do ponto de vista técnico eleitoral, foi o processo eleitoral mais difícil que foi realizado na Venezuela, porque foi uma eleição absolutamente uninominal. Não por partidos políticos ou grupos políticos, mas cada pessoa era um candidato e cada pessoa era eleita ou não. Qualquer pessoa que conheça questões eleitorais sabe que esse é um processo complexo. Naquele eleição, se não me falha a memória, havia mais de 500 membros da constituinte, ou seja que eram mais de 500 eleições acontecendo ao mesmo tempo. Pois bem, cumprimos e cumprimos com êxito. Não houve uma única contestação eleitoral dessas quinhentas eleições individuais em tempo recorde, tivemos os resultados eleitorais em todo o país e, como presidente do CNE naquela época, posso dizer que isso é um orgulho profissional.

Do ponto de vista político, a Venezuela passou por uma mudança de regime naquela época. Uma constituição em vigor desde 1961 foi revogada e um processo foi lançado para eleger uma nova assembleia constituinte para redigir uma nova constituição, a 25ª na história da Venezuela. A nova constituição foi infinitamente pior para todos, ou seja, os problemas foram desviados. Mas as vantagens desse processo foram que, pela primeira vez em 25 Constituições anteriores, isso foi feito em paz. Não foi uma mudança constitucional que veio por meio de facão com tiros de guerra civis, etc., golpes de Estado, mas foi feita com um processo eleitoral.

Nesse processo foi quando passamos a ver o comportamento antidemocrático de Chávez como presidente da República e o dialeto do chavismo como força política começou a ser notado. Há um caso curioso: o presidente Chávez foi o único presidente em toda a história da Venezuela a ser multado por ter sido acusado de um delito eleitoral. Na época a lei proibia funcionários públicos de fazer campanha eleitoral, e isso incluia o presidente, e ele estava fazendo campanha por seus candidatos na constituinte. O Conselho Nacional Eleitoral da época, que eu presidia, o condenou como infrator eleitoral e o obrigou a pagar a multa. Depois dessa multa, que ele não apenas pagou, que era algo em torno de 9.000 dólares na época, mas a partir desse momento você ele parou de fazer propaganda eleitoral, ou seja, valeu a pena.

Entrevista por Carolina Marins

Jornalista formada pela ECA-USP. Repórter da editoria de Internacional, com interesse em América Latina. Já fiz coberturas in loco na Argentina, em Israel e na Ucrânia

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