Países africanos vivem revolução digital agrícola


Continente de 1,2 bilhão de habitantes tem nova geração de empreendedores; estudo identificou 390 soluções de agricultura digital na África, 60% lançadas nos últimos três anos

Por Paulo Beraldo

O jovem Emeka Nwachinemere cresceu na zona rural da Nigéria vendo a avó lutar para sobreviver produzindo alimentos com pouca tecnologiae ganhando pouco depois da colheita. Sem estrutura para armazenar, era obrigada a vender pelo quanto queriam pagar. Assim como ela, milhões de pequenos agricultores no continente de 1,2 bilhão de habitantes enfrentam dificuldades até hoje para produzir melhor e aumentar sua renda.

“Eu via minha avó trabalhar tão duro e conseguir tão pouco, sempre tínhamos de sobreviver de pequenas rendas e éramos explorados pelos intermediários na tentativa de vender as colheitas”, disse Emeka, que prometeu tentar mudar aquela realidade. O tempo passou, ele cursou engenharia mecânica e criou uma plataforma que faz análises das condições específicas de cada produtor e depois fornece um pacote de insumos adequados – sementes, fertilizantes e agroquímicos. Por fim, facilita a conexão com compradores, sem custo extra.

“Ao fornecer aos agricultores insumos específicos para o solo e as culturas, permitimos que eles cultivem com mais precisão, o que aumenta o rendimento e garante maior produção, aumentando a renda”, explica o criador da Kitovu, startup de agricultura que hoje atende 7.450 agricultores na Nigéria. Em 2021, ele e seu time de sete pessoas pretendem triplicar o número de clientes. Para os produtores que não podem comprar o pacote de insumos, a Kitovu aceita o pagamento em produtos.

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A empresa nigeriana é parte de um movimento maior para elevar a digitalização da agricultura no continente de 54 países que, somados, têm seis vezes a população do Brasil. Nações como Nigéria, Costa do Marfim, Ruanda, África do Sul, Quênia e Gana são palco de uma revolução digital que vê o nascimento de empresas em áreas tão distintas como o acesso a recursos para pequenos agricultores, monitoramento de pragas com drones e conexão de produtores e compradores.

Capacitação para maior adoção de tecnologias e uso de soluções digitais tem dado resultados no Quênia, onde meio milhão de produtores recebem informações daONG Agricultura de Precisão para o Desenvolvimento (PAD) Foto:

Produção abaixo do potencial

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A avaliação desses empreendedores e de especialistas locais é que milhões de pequenos agricultores produzem muito abaixo de seu potencial em razão da falta de conhecimento sobre insumos, acesso a tecnologias, recursos e práticas de gerenciamento adequadas. A estimativa é que haja 800 milhões de africanos vivendo na zona rural.

“Antes, a imagem que a agricultura evocava era a da pobreza, do desânimo e do fracasso. Não era uma opção de carreira para ninguém”, explica Emeka. “Mas isso está mudando à medida que os jovens mais instruídos entram na agricultura.” A nova geração adota boas práticas, melhor manejo pós-colheita, reduz perdas e usa tecnologias com facilidade.

Quando essa transformação acontecer, a agricultura da África vai ser transformada e o continente poderá se tornar o centro alimentar do mundo

Emeka Nwachinemere, criador da startup Kitovu

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Segundo um estudo de 2019, havia 390 soluções de agricultura digital em todo o continente - 60% delas lançadas nos últimos três anos. Elas abarcam cinco áreas principais: serviços de orientação e recomendação, conexão com mercados, acesso a recursos financeiros, gerenciamento da cadeia de produção e agricultura de precisão de uma forma mais ampla. A África tem a maior parte das terras agricultáveis não usadas e é considerada a última fronteira agrícola do planeta.

Emeka decidiu lançar uma startup após sentir na pele as dificuldades que a família enfrentava para comercializar alimentos que produzia a preços justos Foto: Arquivo Pessoal

Quênia

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Não são apenas os jovens africanos que têm se interessado em atuar no setor. O economista Michael Kremer, prêmio Nobel de Economia em 2019, fundou a ONG Agricultura de Precisão para o Desenvolvimento (PAD), que aumenta o acesso à informação para 3,6 milhões de agricultores em 8 países. Ela tem forte atuação no Quênia, onde meio milhão de produtores recebem informações técnicas personalizadas, com linguagem simples nos seus celulares. O país tem 51 milhões de habitantes e é um dos que mais crescem na África.

O custo por produtor foi de US$ 1,46 por ano. A ONG atua em parceira com o governo local e com o One Acre Fund, organização internacional que viabiliza o acesso a finanças e assistência técnica. O sistema faz perguntas como o tamanho da propriedade, o orçamento disponível e características específicas, e a PAD responde com recomendações sobre os insumos e as melhores práticas - como, por exemplo, que fertilizante aplicar, quais pesticidas são adequados e que variedade de semente plantar.

“A proliferação de telefones celulares entre as comunidades mais pobres e remotas dos pequenos agricultores é uma oportunidade notável de fornecer informações adequadas às necessidades deles”, disse Emmanuel Bakirdjian, diretor regional da África para a PAD. “A necessidade de implantar serviços de consultoria digital para pequenos agricultores em escala é mais urgente do que nunca.”.

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Um dos maiores desafios dos produtores é conseguir levar os alimentos os consumidores nas cidades. Na foto, uma região comercial de Nairóbi, capital do Quênia. Foto: Khadija Farah/The New York Times

Segundo Bakirdjian, a extensão rural digital faz uso da tecnologia móvel para capacitar os agricultores com um custo muito mais baixo. “No mundo, 2 bilhões de pessoas, em sua maioria pobres, dependem da agricultura familiar. Evidências demonstram que, se alguém pode fornecer aos pequenos agricultores informações que resultem em mudança de comportamento, isso faz a diferença em termos de melhoria da produtividade e dos meios de subsistência.”

Também no Quênia, a startup Twiga Foods permite que compradores e produtores de alimentos realizem negociações diretas e organizem entregas pelo telefone celular. A empresa tem uma frota de veículos que busca a colheita e distribui por pontos de venda em cidades como a metrópole Nairóbi. O modelo de negócio permite estabilizar os preços – tanto os recebidos pelos produtores quanto os pagos pelos consumidores – e garante a padronização, agilidade e maior segurança dos alimentos. Os fundadores dizem que o propósito da empresa é agregar o varejo informal usando tecnologia e fornecer produtos com preços melhores nas cidades. A Twiga Foods atende 17 mil produtores rurais e 8 mil vendedores no país.

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Acesso à internet e novas tecnologias serão decisivos para o desenvolvimento

Na Nigéria, o país mais populoso da África, com 210 milhões de habitantes, sete em cada dez habitantes são agricultores. É uma média que se repete em nações da África Subsaariana, onde grande parte da pobreza deriva da baixa produtividade comparada com outras regiões do planeta. Possibilitar mais acesso à internet e novas tecnologias será decisivo para garantir a renda e o desenvolvimento econômico local.

“É preciso que o setor público e privado façam parcerias para desenvolver tecnologias que ajudem agricultores a melhorar suas práticas e ter mais acesso aos mercados”, afirmou Agnes Kalibata, presidente da Aliança para uma Revolução Verdade na África, organização com atuação em quase 20 países. Em toda a África, os pequenos agricultores produzem cerca de 80% dos alimentos e Kalibata defende que eles podem produzir muito mais do que conseguem hoje com mais acesso a tecnologias. 

Como desafios para o crescimento das empresas agrícolas no continente são citados o baixopoder de compra dos agricultores e uma infraestrutura em geral incapaz de processar e armazenar mercadorias. Na avaliação de especialistas, a solução requer parceria e colaboração entre diferentes partes interessadas do ecossistema no setor agrícola.

Gilbert Houngbo é presidente do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Rural (FIDA/ONU) Foto: Paulo Beraldo/Estadão

“A agricultura digital precisa ser ampliada para garantir aos produtores rurais se comunicar com seus clientes e comercializar (melhor) seus produtos”, afirmou Gilbert Houngbo, presidente do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Rural (Fida), a principal agência da ONU focada na redução da pobreza rural. A instituição trabalha com empresas privadas para acelerar a digitalização do campo no continente.

“O setor de telecomunicações deve ser incentivado a lançar uma infraestrutura de conectividade por meio de incentivos fiscais como compensação por locais que podem não ser rentáveis por um tempo. Seria uma grande vitória porque com maior conectividade a produtividade aumentaria e as pessoas teriam maior poder de compra. É um efeito multiplicador”, avalia Emeka.

Intercâmbio com o Brasil pode impulsionar avanços

Nos anos 1970, o Brasil importava produtos como arroz, carne e milho. Hoje, é um dos principais exportadores de alimentos e produz sete vezes o necessário para abastecer sua população. A projeção é que o agronegócio brasileiro fature R$ 728 bilhões neste ano. A experiência brasileira, baseada no uso da ciência, na capacitação de pessoas e na intensificação da produção, que aumentou muito mais do que a área utilizada no período, serve de inspiração para a África.

"Temos água, terra, energia e mão-de-obra. Precisamos aplicar a ciência na nossa agricultura e construir as capacidades necessárias para vivenciarmos essa revolução que o Brasil viveu", afirma Yemi Akinbamijo, diretor do Fórum de Pesquisa Agropecuária na África (Fara), órgão de inovação agrícola da União Africana de Nações, que tem parcerias com a Universidade Federal de Viçosa (UFV) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

"A ideia é fazer com que a realidade brasileira possa ser transportada para alguns espaços africanos. Tivemos muito desenvolvimento de tecnologia, melhoramento dos equipamentos utilizados e qualificação de pessoas", afirmou o presidente do Instituto Brasil-África, João Bosco Monte. Segundo Monte, esses três elementos podem servir de exemplos para inovações e melhorias em práticas agrícolas do outro lado do Atlântico.

O jovem Emeka Nwachinemere cresceu na zona rural da Nigéria vendo a avó lutar para sobreviver produzindo alimentos com pouca tecnologiae ganhando pouco depois da colheita. Sem estrutura para armazenar, era obrigada a vender pelo quanto queriam pagar. Assim como ela, milhões de pequenos agricultores no continente de 1,2 bilhão de habitantes enfrentam dificuldades até hoje para produzir melhor e aumentar sua renda.

“Eu via minha avó trabalhar tão duro e conseguir tão pouco, sempre tínhamos de sobreviver de pequenas rendas e éramos explorados pelos intermediários na tentativa de vender as colheitas”, disse Emeka, que prometeu tentar mudar aquela realidade. O tempo passou, ele cursou engenharia mecânica e criou uma plataforma que faz análises das condições específicas de cada produtor e depois fornece um pacote de insumos adequados – sementes, fertilizantes e agroquímicos. Por fim, facilita a conexão com compradores, sem custo extra.

“Ao fornecer aos agricultores insumos específicos para o solo e as culturas, permitimos que eles cultivem com mais precisão, o que aumenta o rendimento e garante maior produção, aumentando a renda”, explica o criador da Kitovu, startup de agricultura que hoje atende 7.450 agricultores na Nigéria. Em 2021, ele e seu time de sete pessoas pretendem triplicar o número de clientes. Para os produtores que não podem comprar o pacote de insumos, a Kitovu aceita o pagamento em produtos.

A empresa nigeriana é parte de um movimento maior para elevar a digitalização da agricultura no continente de 54 países que, somados, têm seis vezes a população do Brasil. Nações como Nigéria, Costa do Marfim, Ruanda, África do Sul, Quênia e Gana são palco de uma revolução digital que vê o nascimento de empresas em áreas tão distintas como o acesso a recursos para pequenos agricultores, monitoramento de pragas com drones e conexão de produtores e compradores.

Capacitação para maior adoção de tecnologias e uso de soluções digitais tem dado resultados no Quênia, onde meio milhão de produtores recebem informações daONG Agricultura de Precisão para o Desenvolvimento (PAD) Foto:

Produção abaixo do potencial

A avaliação desses empreendedores e de especialistas locais é que milhões de pequenos agricultores produzem muito abaixo de seu potencial em razão da falta de conhecimento sobre insumos, acesso a tecnologias, recursos e práticas de gerenciamento adequadas. A estimativa é que haja 800 milhões de africanos vivendo na zona rural.

“Antes, a imagem que a agricultura evocava era a da pobreza, do desânimo e do fracasso. Não era uma opção de carreira para ninguém”, explica Emeka. “Mas isso está mudando à medida que os jovens mais instruídos entram na agricultura.” A nova geração adota boas práticas, melhor manejo pós-colheita, reduz perdas e usa tecnologias com facilidade.

Quando essa transformação acontecer, a agricultura da África vai ser transformada e o continente poderá se tornar o centro alimentar do mundo

Emeka Nwachinemere, criador da startup Kitovu

Segundo um estudo de 2019, havia 390 soluções de agricultura digital em todo o continente - 60% delas lançadas nos últimos três anos. Elas abarcam cinco áreas principais: serviços de orientação e recomendação, conexão com mercados, acesso a recursos financeiros, gerenciamento da cadeia de produção e agricultura de precisão de uma forma mais ampla. A África tem a maior parte das terras agricultáveis não usadas e é considerada a última fronteira agrícola do planeta.

Emeka decidiu lançar uma startup após sentir na pele as dificuldades que a família enfrentava para comercializar alimentos que produzia a preços justos Foto: Arquivo Pessoal

Quênia

Não são apenas os jovens africanos que têm se interessado em atuar no setor. O economista Michael Kremer, prêmio Nobel de Economia em 2019, fundou a ONG Agricultura de Precisão para o Desenvolvimento (PAD), que aumenta o acesso à informação para 3,6 milhões de agricultores em 8 países. Ela tem forte atuação no Quênia, onde meio milhão de produtores recebem informações técnicas personalizadas, com linguagem simples nos seus celulares. O país tem 51 milhões de habitantes e é um dos que mais crescem na África.

O custo por produtor foi de US$ 1,46 por ano. A ONG atua em parceira com o governo local e com o One Acre Fund, organização internacional que viabiliza o acesso a finanças e assistência técnica. O sistema faz perguntas como o tamanho da propriedade, o orçamento disponível e características específicas, e a PAD responde com recomendações sobre os insumos e as melhores práticas - como, por exemplo, que fertilizante aplicar, quais pesticidas são adequados e que variedade de semente plantar.

“A proliferação de telefones celulares entre as comunidades mais pobres e remotas dos pequenos agricultores é uma oportunidade notável de fornecer informações adequadas às necessidades deles”, disse Emmanuel Bakirdjian, diretor regional da África para a PAD. “A necessidade de implantar serviços de consultoria digital para pequenos agricultores em escala é mais urgente do que nunca.”.

Um dos maiores desafios dos produtores é conseguir levar os alimentos os consumidores nas cidades. Na foto, uma região comercial de Nairóbi, capital do Quênia. Foto: Khadija Farah/The New York Times

Segundo Bakirdjian, a extensão rural digital faz uso da tecnologia móvel para capacitar os agricultores com um custo muito mais baixo. “No mundo, 2 bilhões de pessoas, em sua maioria pobres, dependem da agricultura familiar. Evidências demonstram que, se alguém pode fornecer aos pequenos agricultores informações que resultem em mudança de comportamento, isso faz a diferença em termos de melhoria da produtividade e dos meios de subsistência.”

Também no Quênia, a startup Twiga Foods permite que compradores e produtores de alimentos realizem negociações diretas e organizem entregas pelo telefone celular. A empresa tem uma frota de veículos que busca a colheita e distribui por pontos de venda em cidades como a metrópole Nairóbi. O modelo de negócio permite estabilizar os preços – tanto os recebidos pelos produtores quanto os pagos pelos consumidores – e garante a padronização, agilidade e maior segurança dos alimentos. Os fundadores dizem que o propósito da empresa é agregar o varejo informal usando tecnologia e fornecer produtos com preços melhores nas cidades. A Twiga Foods atende 17 mil produtores rurais e 8 mil vendedores no país.

Acesso à internet e novas tecnologias serão decisivos para o desenvolvimento

Na Nigéria, o país mais populoso da África, com 210 milhões de habitantes, sete em cada dez habitantes são agricultores. É uma média que se repete em nações da África Subsaariana, onde grande parte da pobreza deriva da baixa produtividade comparada com outras regiões do planeta. Possibilitar mais acesso à internet e novas tecnologias será decisivo para garantir a renda e o desenvolvimento econômico local.

“É preciso que o setor público e privado façam parcerias para desenvolver tecnologias que ajudem agricultores a melhorar suas práticas e ter mais acesso aos mercados”, afirmou Agnes Kalibata, presidente da Aliança para uma Revolução Verdade na África, organização com atuação em quase 20 países. Em toda a África, os pequenos agricultores produzem cerca de 80% dos alimentos e Kalibata defende que eles podem produzir muito mais do que conseguem hoje com mais acesso a tecnologias. 

Como desafios para o crescimento das empresas agrícolas no continente são citados o baixopoder de compra dos agricultores e uma infraestrutura em geral incapaz de processar e armazenar mercadorias. Na avaliação de especialistas, a solução requer parceria e colaboração entre diferentes partes interessadas do ecossistema no setor agrícola.

Gilbert Houngbo é presidente do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Rural (FIDA/ONU) Foto: Paulo Beraldo/Estadão

“A agricultura digital precisa ser ampliada para garantir aos produtores rurais se comunicar com seus clientes e comercializar (melhor) seus produtos”, afirmou Gilbert Houngbo, presidente do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Rural (Fida), a principal agência da ONU focada na redução da pobreza rural. A instituição trabalha com empresas privadas para acelerar a digitalização do campo no continente.

“O setor de telecomunicações deve ser incentivado a lançar uma infraestrutura de conectividade por meio de incentivos fiscais como compensação por locais que podem não ser rentáveis por um tempo. Seria uma grande vitória porque com maior conectividade a produtividade aumentaria e as pessoas teriam maior poder de compra. É um efeito multiplicador”, avalia Emeka.

Intercâmbio com o Brasil pode impulsionar avanços

Nos anos 1970, o Brasil importava produtos como arroz, carne e milho. Hoje, é um dos principais exportadores de alimentos e produz sete vezes o necessário para abastecer sua população. A projeção é que o agronegócio brasileiro fature R$ 728 bilhões neste ano. A experiência brasileira, baseada no uso da ciência, na capacitação de pessoas e na intensificação da produção, que aumentou muito mais do que a área utilizada no período, serve de inspiração para a África.

"Temos água, terra, energia e mão-de-obra. Precisamos aplicar a ciência na nossa agricultura e construir as capacidades necessárias para vivenciarmos essa revolução que o Brasil viveu", afirma Yemi Akinbamijo, diretor do Fórum de Pesquisa Agropecuária na África (Fara), órgão de inovação agrícola da União Africana de Nações, que tem parcerias com a Universidade Federal de Viçosa (UFV) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

"A ideia é fazer com que a realidade brasileira possa ser transportada para alguns espaços africanos. Tivemos muito desenvolvimento de tecnologia, melhoramento dos equipamentos utilizados e qualificação de pessoas", afirmou o presidente do Instituto Brasil-África, João Bosco Monte. Segundo Monte, esses três elementos podem servir de exemplos para inovações e melhorias em práticas agrícolas do outro lado do Atlântico.

O jovem Emeka Nwachinemere cresceu na zona rural da Nigéria vendo a avó lutar para sobreviver produzindo alimentos com pouca tecnologiae ganhando pouco depois da colheita. Sem estrutura para armazenar, era obrigada a vender pelo quanto queriam pagar. Assim como ela, milhões de pequenos agricultores no continente de 1,2 bilhão de habitantes enfrentam dificuldades até hoje para produzir melhor e aumentar sua renda.

“Eu via minha avó trabalhar tão duro e conseguir tão pouco, sempre tínhamos de sobreviver de pequenas rendas e éramos explorados pelos intermediários na tentativa de vender as colheitas”, disse Emeka, que prometeu tentar mudar aquela realidade. O tempo passou, ele cursou engenharia mecânica e criou uma plataforma que faz análises das condições específicas de cada produtor e depois fornece um pacote de insumos adequados – sementes, fertilizantes e agroquímicos. Por fim, facilita a conexão com compradores, sem custo extra.

“Ao fornecer aos agricultores insumos específicos para o solo e as culturas, permitimos que eles cultivem com mais precisão, o que aumenta o rendimento e garante maior produção, aumentando a renda”, explica o criador da Kitovu, startup de agricultura que hoje atende 7.450 agricultores na Nigéria. Em 2021, ele e seu time de sete pessoas pretendem triplicar o número de clientes. Para os produtores que não podem comprar o pacote de insumos, a Kitovu aceita o pagamento em produtos.

A empresa nigeriana é parte de um movimento maior para elevar a digitalização da agricultura no continente de 54 países que, somados, têm seis vezes a população do Brasil. Nações como Nigéria, Costa do Marfim, Ruanda, África do Sul, Quênia e Gana são palco de uma revolução digital que vê o nascimento de empresas em áreas tão distintas como o acesso a recursos para pequenos agricultores, monitoramento de pragas com drones e conexão de produtores e compradores.

Capacitação para maior adoção de tecnologias e uso de soluções digitais tem dado resultados no Quênia, onde meio milhão de produtores recebem informações daONG Agricultura de Precisão para o Desenvolvimento (PAD) Foto:

Produção abaixo do potencial

A avaliação desses empreendedores e de especialistas locais é que milhões de pequenos agricultores produzem muito abaixo de seu potencial em razão da falta de conhecimento sobre insumos, acesso a tecnologias, recursos e práticas de gerenciamento adequadas. A estimativa é que haja 800 milhões de africanos vivendo na zona rural.

“Antes, a imagem que a agricultura evocava era a da pobreza, do desânimo e do fracasso. Não era uma opção de carreira para ninguém”, explica Emeka. “Mas isso está mudando à medida que os jovens mais instruídos entram na agricultura.” A nova geração adota boas práticas, melhor manejo pós-colheita, reduz perdas e usa tecnologias com facilidade.

Quando essa transformação acontecer, a agricultura da África vai ser transformada e o continente poderá se tornar o centro alimentar do mundo

Emeka Nwachinemere, criador da startup Kitovu

Segundo um estudo de 2019, havia 390 soluções de agricultura digital em todo o continente - 60% delas lançadas nos últimos três anos. Elas abarcam cinco áreas principais: serviços de orientação e recomendação, conexão com mercados, acesso a recursos financeiros, gerenciamento da cadeia de produção e agricultura de precisão de uma forma mais ampla. A África tem a maior parte das terras agricultáveis não usadas e é considerada a última fronteira agrícola do planeta.

Emeka decidiu lançar uma startup após sentir na pele as dificuldades que a família enfrentava para comercializar alimentos que produzia a preços justos Foto: Arquivo Pessoal

Quênia

Não são apenas os jovens africanos que têm se interessado em atuar no setor. O economista Michael Kremer, prêmio Nobel de Economia em 2019, fundou a ONG Agricultura de Precisão para o Desenvolvimento (PAD), que aumenta o acesso à informação para 3,6 milhões de agricultores em 8 países. Ela tem forte atuação no Quênia, onde meio milhão de produtores recebem informações técnicas personalizadas, com linguagem simples nos seus celulares. O país tem 51 milhões de habitantes e é um dos que mais crescem na África.

O custo por produtor foi de US$ 1,46 por ano. A ONG atua em parceira com o governo local e com o One Acre Fund, organização internacional que viabiliza o acesso a finanças e assistência técnica. O sistema faz perguntas como o tamanho da propriedade, o orçamento disponível e características específicas, e a PAD responde com recomendações sobre os insumos e as melhores práticas - como, por exemplo, que fertilizante aplicar, quais pesticidas são adequados e que variedade de semente plantar.

“A proliferação de telefones celulares entre as comunidades mais pobres e remotas dos pequenos agricultores é uma oportunidade notável de fornecer informações adequadas às necessidades deles”, disse Emmanuel Bakirdjian, diretor regional da África para a PAD. “A necessidade de implantar serviços de consultoria digital para pequenos agricultores em escala é mais urgente do que nunca.”.

Um dos maiores desafios dos produtores é conseguir levar os alimentos os consumidores nas cidades. Na foto, uma região comercial de Nairóbi, capital do Quênia. Foto: Khadija Farah/The New York Times

Segundo Bakirdjian, a extensão rural digital faz uso da tecnologia móvel para capacitar os agricultores com um custo muito mais baixo. “No mundo, 2 bilhões de pessoas, em sua maioria pobres, dependem da agricultura familiar. Evidências demonstram que, se alguém pode fornecer aos pequenos agricultores informações que resultem em mudança de comportamento, isso faz a diferença em termos de melhoria da produtividade e dos meios de subsistência.”

Também no Quênia, a startup Twiga Foods permite que compradores e produtores de alimentos realizem negociações diretas e organizem entregas pelo telefone celular. A empresa tem uma frota de veículos que busca a colheita e distribui por pontos de venda em cidades como a metrópole Nairóbi. O modelo de negócio permite estabilizar os preços – tanto os recebidos pelos produtores quanto os pagos pelos consumidores – e garante a padronização, agilidade e maior segurança dos alimentos. Os fundadores dizem que o propósito da empresa é agregar o varejo informal usando tecnologia e fornecer produtos com preços melhores nas cidades. A Twiga Foods atende 17 mil produtores rurais e 8 mil vendedores no país.

Acesso à internet e novas tecnologias serão decisivos para o desenvolvimento

Na Nigéria, o país mais populoso da África, com 210 milhões de habitantes, sete em cada dez habitantes são agricultores. É uma média que se repete em nações da África Subsaariana, onde grande parte da pobreza deriva da baixa produtividade comparada com outras regiões do planeta. Possibilitar mais acesso à internet e novas tecnologias será decisivo para garantir a renda e o desenvolvimento econômico local.

“É preciso que o setor público e privado façam parcerias para desenvolver tecnologias que ajudem agricultores a melhorar suas práticas e ter mais acesso aos mercados”, afirmou Agnes Kalibata, presidente da Aliança para uma Revolução Verdade na África, organização com atuação em quase 20 países. Em toda a África, os pequenos agricultores produzem cerca de 80% dos alimentos e Kalibata defende que eles podem produzir muito mais do que conseguem hoje com mais acesso a tecnologias. 

Como desafios para o crescimento das empresas agrícolas no continente são citados o baixopoder de compra dos agricultores e uma infraestrutura em geral incapaz de processar e armazenar mercadorias. Na avaliação de especialistas, a solução requer parceria e colaboração entre diferentes partes interessadas do ecossistema no setor agrícola.

Gilbert Houngbo é presidente do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Rural (FIDA/ONU) Foto: Paulo Beraldo/Estadão

“A agricultura digital precisa ser ampliada para garantir aos produtores rurais se comunicar com seus clientes e comercializar (melhor) seus produtos”, afirmou Gilbert Houngbo, presidente do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Rural (Fida), a principal agência da ONU focada na redução da pobreza rural. A instituição trabalha com empresas privadas para acelerar a digitalização do campo no continente.

“O setor de telecomunicações deve ser incentivado a lançar uma infraestrutura de conectividade por meio de incentivos fiscais como compensação por locais que podem não ser rentáveis por um tempo. Seria uma grande vitória porque com maior conectividade a produtividade aumentaria e as pessoas teriam maior poder de compra. É um efeito multiplicador”, avalia Emeka.

Intercâmbio com o Brasil pode impulsionar avanços

Nos anos 1970, o Brasil importava produtos como arroz, carne e milho. Hoje, é um dos principais exportadores de alimentos e produz sete vezes o necessário para abastecer sua população. A projeção é que o agronegócio brasileiro fature R$ 728 bilhões neste ano. A experiência brasileira, baseada no uso da ciência, na capacitação de pessoas e na intensificação da produção, que aumentou muito mais do que a área utilizada no período, serve de inspiração para a África.

"Temos água, terra, energia e mão-de-obra. Precisamos aplicar a ciência na nossa agricultura e construir as capacidades necessárias para vivenciarmos essa revolução que o Brasil viveu", afirma Yemi Akinbamijo, diretor do Fórum de Pesquisa Agropecuária na África (Fara), órgão de inovação agrícola da União Africana de Nações, que tem parcerias com a Universidade Federal de Viçosa (UFV) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

"A ideia é fazer com que a realidade brasileira possa ser transportada para alguns espaços africanos. Tivemos muito desenvolvimento de tecnologia, melhoramento dos equipamentos utilizados e qualificação de pessoas", afirmou o presidente do Instituto Brasil-África, João Bosco Monte. Segundo Monte, esses três elementos podem servir de exemplos para inovações e melhorias em práticas agrícolas do outro lado do Atlântico.

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