ENVIADO ESPECIAL A ROMA E AO VATICANO - O papa Francisco deve pautar na reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva temas sensíveis da política global para a Igreja Católica e que podem desagradar o petista. O primeiro deles é o recrudescimento da ditadura de Daniel Ortega, na Nicarágua, com perseguição a religiosos católicos. O segundo, a necessidade de promoção de direitos humanos e eleições na ditadura de Nicolás Maduro, na Venezuela.
Além de tratar com Lula de saídas para a guerra na Ucrânia, o papa deve introduzir os dois assuntos e pedir que o presidente brasileiro atue como intermediador junto aos ditadores de esquerda, na avaliação de observadores diplomáticos.
Os dois problemas regionais na América Latina, onde o catolicismo é a religião dominante, constam na lista de prioridades do pontífice, segundo embaixadores que cuidam da relação entre Brasil e a Santa Sé.
A situação na Nicarágua é descrita como muito preocupante por parte das autoridades católicas. Em perseguição a opositores, o regime de Ortega, que Lula evita criticar, fez uma caçada contra autoridades católicas.
O bispo de Matapalga Rolando Álvarez está em prisão domiciliar. Ele foi condenado a 26 anos de prisão, depois de se recusar a deixar o país com outros sacerdotes e opositores do regime.
Ordens de freiras foram expulsas, como a fundada por Madre Teresa de Calcutá. O papa não tem mais interlocução direta com Ortega. O ditador expulsou o núncio apostólico do país. Agora, o representante do papa mais próximo do país fica na Costa Rica. Ortega lacrou meios de comunicação católicos, acusados de conspirar contra a revolução sandinista, e tomou escolas de orientação católica.
Embora o governo brasileiro diga repudiar a repressão e a violência contra opositores, a posição é vista como pouco eloquente e hesitante por aliados como os Estados Unidos. O próprio Lula se esquiva de criticar Ortega, de quem foi muito próximo e a quem já defendeu publicamente. Na campanha eleitoral, ele minimizou atos de repressão do regime e a manutenção de Ortega no poder, sem alternância.
Arena internacional
O governo já se pronunciou sobre o caso em fóruns multilaterais, mas sob pressão. Primeiro, o Brasil deixou de aderir a uma declaração conjunta de 50 países que denunciavam os crimes contra a humanidade do regime de Ortega. Depois, em separado, afirmou no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas que a situação era de sérias violações e ofereceu acolhida aos dissidentes que perderam a nacionalidade por ordem de Ortega.
O papa tem a questão da Venezuela na sua agenda e já mediou negociações entre regimes autoritários de esquerda na América Latina e potências ocidentais, como fez entre Cuba e os Estados Unidos, em 2014. O pontífice também deve mencionar a situação na ilha comunista. Lula, por sua vez, recentemente classificou as denúncias de violações em Caracas de “narrativa”, e foi criticado até por governantes de esquerda da América Latina.
Saiba mais
Antes de embarcar rumo a Roma, Lula recebeu o núncio apostólico, dom Giambattista Diquattro, o embaixador da Santa Sé no País, para uma conversa no Palácio da Alvorada. O presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), dom Jaime Spengler.
O encontro durou cerca de uma hora, conforme a Presidência, e eles trataram das relações com o Vaticano e ação social da Igreja no País, que devem voltar à pauta com o papa.
“Quero conversar com o papa sobre a guerra e sobre a desigualdade no mundo”, disse Lula, durante sua nova live semanal.. “Eu já tinha feito uma visita a ele antes da pandemia e falamos sobre o combate à fome. É preciso uma consciência mundial ara nos indignarmos contra a fome no mundo”, afirmou o presidente.
A visita a que o presidente se referiu foi uma das primeiras depois de deixar a prisão. Enquanto esteve encarcerado em Curitiba (PR), Lula trocou cartas com Francisco, de próprio punho, e obteve sinalizações sutis de apoio. Depois, o papa chegou a dizer que as condenações de Lula por corrupção na Lava Jato haviam sido influenciadas por notícias falsas.
Assim como Lula, o papa já se envolveu diretamente e até se propôs a visitar Kiev e Moscou para buscar interlocução a respeito da guerra, que classifica como um “massacre”. Ambos propõem discussões sobre a paz. Em maio, o papa recebeu no Vaticano o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski.
Recentemente, ele destacou um enviado especial, a exemplo do que fez Lula com Celso Amorim, para visitar os dois países. O cardeal Matteo Maria Zuppi, arcebispo de Bolonha e presidente da Conferência Episcopal Italiana, passou dois dias na Ucrânia no início de junho. Agora, a Rússia elogia a posição “equilibrada” do papa e afirma que tem interesse no diálogo.
A porta-voz da chancelaria russa, Maria Zakharova, reagiu dizendo que o cardeal Zuppi seria bem recebido se fosse também a Moscou, uma manifestação positiva.
Além da mediação da paz e da ajuda humanitária na Ucrânia, Nicarágua e Venezuela, outro tema comum que deve surgir são as propostas de Lula para preservação ambiental e combate ao crime na Amazônia. O tema é caro ao papa, que promoveu em 2019 um sínodo de bispos, um encontro mundial em Roma, a respeito da temática, e lançou uma encíclica sobre o assunto, a Laudato Si.
Leia também
O episcopado é, em geral, bastante crítico à exploração de recursos naturais na Amazônia e entrou em rota de colisão com o ex-presidente Jair Bolsonaro. O encontro em Roma reuniu integrantes do PT e partidos de esquerda, indígenas, cientistas, ambientalistas, centenas de autoridades eclesiásticas.
Ao fim, o papa publicou a exortação apostólica “Querida Amazônia” e nomeou o cardeal Leonardo Stiener, arcebispo de Manaus, para dar continuidade aos trabalhos do sínodo.
‘Auletta’
A audiência tende a durar cerca de uma hora e meia, a partir das 14h15 de 21 de junho, quarta-feira. Será um momento de contato pessoal e de reconhecimento ao papel desempenhado por Francisco, em apoio ao presidente, segundo um embaixador.
O encontro fugirá à dinâmica usual. O protocolo da Santa Sé rege que chefes de Estado sejam recebidos formalmente na Biblioteca do Vaticano, no Palácio Apostólico. Contudo, o encontro terá um caráter mais restrito que de costume. E até o local mudou.
O encontro será numa “salinha” ao lado da Sala Paulo VI, o salão de audiências pontifícias. O espaço é conhecido como “Auletta” da Sala Paulo VI e fica mais próximo aos aposentos do papa do que a biblioteca.
Pessoas próximas ao pontífice interpretaram a mudança como uma forma de poupar Francisco de esforços maiores, já que ele se recupera de uma recente cirurgia na região abdominal. Foi também na Auletta que o papa recebeu em maio a visita de Zelenski.
Desde a pandemia da covid-19, a imprensa não é mais autorizada a entrar na sala de audiências do papa. Mesmo com o fim da pandemia em âmbito global, as regras permaneceram. Apenas a chegada de Lula poderá ser registrada.
O presidente e o papa Francisco vão conversar a sós. Além deles, permanecerá no recinto somente um intérprete. Ao fim do encontro, a vice-diretora da Sala de Imprensa da Santa Sé, a jornalista brasileira Cristiane Murray, entrará no espaço para colher informações para divulgação de um comunicado oficial.
Nem a imprensa oficial da Presidência da República deve presenciar a conversa. As imagens serão registradas somente pela Santa Sé.
Em seguida, Lula e o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, conversarão com o arcebispo Edgar Parra Peña. Venezuelano de Maracaibo, ele é um experiente diplomata e atua desde 2018 como substituto para Assuntos Gerais do cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado da Santa Sé, cargo equivalente ao de chanceler. Também deve participar o arcebispo Paul Richard Gallagher, secretário para as Relações com os Estados.
Além das conversas, Lula deve reforçar o convite para que Francisco visite mais uma vez o Brasil. Neste ano, completam-se dez anos de sua visita em 2013, para a Jornada Mundial da Juventude.
A Santa Sé já sabe do interesse de Lula em receber uma visita do papa no País outra vez, ainda mais diante da agenda ambiental que ele levanta, com organização de cúpulas climáticas em agosto deste ano e em novembro de 2025, em Belém (PA).
Uma data possível, conforme um integrante da chancelaria brasileira, seria já no ano que vem, quando Francisco prepara uma viagem à Argentina, seu país, onde nunca pisou depois de criado papa. Ele também deve passar pelo Uruguai, e a sugestão é esticar no Brasil.
Diplomatas citam ainda uma pauta convergente entre a Igreja e o governo Lula, no combate à pobreza, redução de desigualdades e da fome, desarmamento, mudanças climáticas, proteção a direitos humanos e indígenas.
O Brasil é o maior país católico do mundo, tem oito cardeais e 490 bispos nomeados pela Santa Sé. O presidente da CNBB, dom Jaime, é também presidente da CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano).