Paul Krugman: O mundo está ficando menos globalizado


Podemos estar vendo os primeiros indícios de um recuo parcial da globalização, e isso não é necessariamente uma coisa boa

Por Paul Krugman

Lembram-se das guerras comerciais de Donald Trump? Na verdade, muitas das tarifas impostas por Trump ainda estão em vigor apenas, eu suspeito, porque Joe Biden não quer dar aos republicanos uma desculpa para que o acusem de ser brando com a China. Mas, de qualquer forma, as questões comerciais estão sendo ofuscadas por tudo, desde a inflação até a guerra na Ucrânia.

Sob o radar, no entanto, parte do que Trump queria, mas não conseguiu – um retorno da fabricação aos Estados Unidos – pode realmente estar acontecendo sob seu sucessor. Uma recente análise da Bloomberg encontra uma enorme onda de palavras-chave do economês como onshoring, reshoring e nearshoring, todos indicadores de planos para produzir nos Estados Unidos (ou possivelmente em países próximos) e não na Ásia.

Também houve uma enxurrada de notícias, apoiadas por alguns dados inconsistentes, sugerindo que as empresas realmente estão construindo novas fábricas nos Estados Unidos e em outros países de alta renda.

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Um navio de carga carregado de contêineres é visto em um porto de Qingdao, na província de Shandong, leste da China, em 7 de setembro de 2022 Foto: AFP

Portanto, podemos estar vendo os primeiros indícios de um recuo parcial da globalização. Isso não é necessariamente uma coisa boa, o que é assunto para outro dia. Por enquanto, vamos falar sobre por que isso pode estar acontecendo.

A primeira coisa a saber é que, se virmos algum declínio no comércio mundial nos próximos anos, não será a primeira vez que isso acontecerá. É comum supor que o mundo está cada vez menor, mais “plano”, que a crescente interdependência internacional é uma tendência contra a qual não se poder lutar. Mas a história diz o contrário.

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Na verdade, a economia mundial foi surpreendentemente integrada às vésperas da 1ª Guerra. Em “As Consequências Econômicas da Paz”, John Maynard Keynes escreveu sobre o “episódio extraordinário” que ele afirmou ter terminado em agosto de 1914 – uma era em que “o habitante de Londres poderia encomendar por telefone, tomando seu chá matinal na cama, os vários produtos de toda a terra, na quantidade que lhe aprouvesse, e razoavelmente esperar a entrega antecipada à sua porta”.

E essa primeira era da globalização, de fato, retrocedeu após a Grande Guerra. As estimativas do comércio mundial total - exportações mais importações - como porcentagem do produto interno bruto para anos selecionados desde 1913 mostram isso. Houve um grande declínio no comércio entre o início da 1ª Guerra e as consequências da 2ª Guerra. A recuperação levou muito tempo: até 1980, o comércio dificilmente era maior, em relação à economia mundial, do que havia sido no final da era eduardiana.

O que se seguiu, no entanto, foi de fato um salto sem precedentes no comércio, às vezes chamado de “hiperglobalização”. Esta foi a era descrita no famoso livro do meu colega Tom Friedman, “The World Is Flat” (O mundo é plano), publicado pela primeira vez em 2005; muitas pessoas esperavam que o comércio crescente continuasse indefinidamente.

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Na verdade, porém, a hiperglobalização parou por volta de 2008; o comércio internacional como parte da economia mundial tem estado mais ou menos estável por 14 anos. E há três razões para acreditar que a globalização realmente recuará nos próximos anos, embora provavelmente não na medida em que ocorreu nos anos entre guerras.

A primeira razão, a mais benigna, é a ascensão dos robôs – com isso me refiro à tecnologia que economiza mão-de-obra em geral. As pessoas geralmente assumem que melhorias na tecnologia de transporte significam necessariamente mais comércio. Mas isso só é verdade se o progresso no transporte for mais rápido que o progresso na tecnologia de produção. Eu escrevi um pequeno modelo sobre isso alguns anos atrás, mas aqui está um reductio ad absurdum: imagine que todos nós tivéssemos acesso aos replicadores em Jornada nas Estrelas – máquinas que sintetizariam qualquer coisa que você quisesse na hora. Se tudo o que você tivesse que fazer fosse dizer “Chá, Earl Grey, quente” e uma xícara fumegante se materializasse, você não precisaria importar as coisas do Sri Lanka.

De fato, as empresas que falam em reordenar a produção muitas vezes afirmam que técnicas modernas, em alguns casos, permitem que produzam com relativamente poucos trabalhadores, caso em que as economias de custos da terceirização para países de baixos salários são mínimas – e são superadas pelas vantagens logísticas de produzir perto de casa.

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Uma segunda razão, menos benigna, para o declínio da globalização é a crescente percepção de que o mundo é um lugar perigoso. É especialmente perigoso permitir-se depender economicamente de países com regimes autoritários, que podem subitamente interromper as relações como parte de um jogo de poder ou simplesmente porque os ditadores tendem a se comportar de forma errática. A Europa está percebendo agora que tornar-se dependente do gás natural russo foi um erro terrível. A China não se envolveu em chantagem econômica – ainda não, pelo menos – mas tanto o exemplo russo quanto a arbitrariedade dos lockdowns por causa da covid de Xi Jinping deixaram as empresas temerosas sobre depender de fornecedores chineses.

Aliás, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio – o documento fundamental para o moderno sistema de comércio mundial – dá explicitamente a cada nação o direito de tomar “qualquer ação que considere necessária para a proteção de seus interesses essenciais de segurança”. Esse direito às vezes foi abusado – Trump, de forma absurda, invocou a segurança nacional para impor tarifas ao alumínio canadense – mas, dados os eventos recentes, é difícil negar o sucesso de políticas como o Science Act que subsidiam a produção de semicondutores nos EUA.

Finalmente, vamos admitir: agora que os Estados Unidos estão finalmente fazendo algo sobre as mudanças climáticas, algumas das políticas que estão introduzindo serão, na prática, pelo menos levemente protecionistas. O novo crédito fiscal para compras de veículos elétricos se aplicará apenas a veículos montados na América do Norte.

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Por que fazer isso? Política – política por uma boa causa, eu diria, mas política mesmo assim. Conseguir uma ação climática foi um grande impulso político; alguns de nós ainda estão se beliscando para saber se realmente aconteceu. Mas, para vendê-lo, os democratas precisavam ser capazes de mostrá-lo como um programa que criaria empregos, o que significava incluir cláusulas de compra de produtos americanos.

Essas cláusulas violam os acordos comerciais existentes? Possivelmente. Mas vamos encarar os fatos: honrar a carta de acordos comerciais é menos importante do que salvar o planeta. Se é isso que é necessário para combater as emissões de carbono, que assim seja. Mas voltando ao meu tema original: por essas e outras, parece provável que estejamos prestes a ver algum recuo da globalização.

Paul Krugman é Prêmio Nobel de Ciências Econômicas de 2008, e colunista do The New York Times

Lembram-se das guerras comerciais de Donald Trump? Na verdade, muitas das tarifas impostas por Trump ainda estão em vigor apenas, eu suspeito, porque Joe Biden não quer dar aos republicanos uma desculpa para que o acusem de ser brando com a China. Mas, de qualquer forma, as questões comerciais estão sendo ofuscadas por tudo, desde a inflação até a guerra na Ucrânia.

Sob o radar, no entanto, parte do que Trump queria, mas não conseguiu – um retorno da fabricação aos Estados Unidos – pode realmente estar acontecendo sob seu sucessor. Uma recente análise da Bloomberg encontra uma enorme onda de palavras-chave do economês como onshoring, reshoring e nearshoring, todos indicadores de planos para produzir nos Estados Unidos (ou possivelmente em países próximos) e não na Ásia.

Também houve uma enxurrada de notícias, apoiadas por alguns dados inconsistentes, sugerindo que as empresas realmente estão construindo novas fábricas nos Estados Unidos e em outros países de alta renda.

Um navio de carga carregado de contêineres é visto em um porto de Qingdao, na província de Shandong, leste da China, em 7 de setembro de 2022 Foto: AFP

Portanto, podemos estar vendo os primeiros indícios de um recuo parcial da globalização. Isso não é necessariamente uma coisa boa, o que é assunto para outro dia. Por enquanto, vamos falar sobre por que isso pode estar acontecendo.

A primeira coisa a saber é que, se virmos algum declínio no comércio mundial nos próximos anos, não será a primeira vez que isso acontecerá. É comum supor que o mundo está cada vez menor, mais “plano”, que a crescente interdependência internacional é uma tendência contra a qual não se poder lutar. Mas a história diz o contrário.

Na verdade, a economia mundial foi surpreendentemente integrada às vésperas da 1ª Guerra. Em “As Consequências Econômicas da Paz”, John Maynard Keynes escreveu sobre o “episódio extraordinário” que ele afirmou ter terminado em agosto de 1914 – uma era em que “o habitante de Londres poderia encomendar por telefone, tomando seu chá matinal na cama, os vários produtos de toda a terra, na quantidade que lhe aprouvesse, e razoavelmente esperar a entrega antecipada à sua porta”.

E essa primeira era da globalização, de fato, retrocedeu após a Grande Guerra. As estimativas do comércio mundial total - exportações mais importações - como porcentagem do produto interno bruto para anos selecionados desde 1913 mostram isso. Houve um grande declínio no comércio entre o início da 1ª Guerra e as consequências da 2ª Guerra. A recuperação levou muito tempo: até 1980, o comércio dificilmente era maior, em relação à economia mundial, do que havia sido no final da era eduardiana.

O que se seguiu, no entanto, foi de fato um salto sem precedentes no comércio, às vezes chamado de “hiperglobalização”. Esta foi a era descrita no famoso livro do meu colega Tom Friedman, “The World Is Flat” (O mundo é plano), publicado pela primeira vez em 2005; muitas pessoas esperavam que o comércio crescente continuasse indefinidamente.

Na verdade, porém, a hiperglobalização parou por volta de 2008; o comércio internacional como parte da economia mundial tem estado mais ou menos estável por 14 anos. E há três razões para acreditar que a globalização realmente recuará nos próximos anos, embora provavelmente não na medida em que ocorreu nos anos entre guerras.

A primeira razão, a mais benigna, é a ascensão dos robôs – com isso me refiro à tecnologia que economiza mão-de-obra em geral. As pessoas geralmente assumem que melhorias na tecnologia de transporte significam necessariamente mais comércio. Mas isso só é verdade se o progresso no transporte for mais rápido que o progresso na tecnologia de produção. Eu escrevi um pequeno modelo sobre isso alguns anos atrás, mas aqui está um reductio ad absurdum: imagine que todos nós tivéssemos acesso aos replicadores em Jornada nas Estrelas – máquinas que sintetizariam qualquer coisa que você quisesse na hora. Se tudo o que você tivesse que fazer fosse dizer “Chá, Earl Grey, quente” e uma xícara fumegante se materializasse, você não precisaria importar as coisas do Sri Lanka.

De fato, as empresas que falam em reordenar a produção muitas vezes afirmam que técnicas modernas, em alguns casos, permitem que produzam com relativamente poucos trabalhadores, caso em que as economias de custos da terceirização para países de baixos salários são mínimas – e são superadas pelas vantagens logísticas de produzir perto de casa.

Uma segunda razão, menos benigna, para o declínio da globalização é a crescente percepção de que o mundo é um lugar perigoso. É especialmente perigoso permitir-se depender economicamente de países com regimes autoritários, que podem subitamente interromper as relações como parte de um jogo de poder ou simplesmente porque os ditadores tendem a se comportar de forma errática. A Europa está percebendo agora que tornar-se dependente do gás natural russo foi um erro terrível. A China não se envolveu em chantagem econômica – ainda não, pelo menos – mas tanto o exemplo russo quanto a arbitrariedade dos lockdowns por causa da covid de Xi Jinping deixaram as empresas temerosas sobre depender de fornecedores chineses.

Aliás, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio – o documento fundamental para o moderno sistema de comércio mundial – dá explicitamente a cada nação o direito de tomar “qualquer ação que considere necessária para a proteção de seus interesses essenciais de segurança”. Esse direito às vezes foi abusado – Trump, de forma absurda, invocou a segurança nacional para impor tarifas ao alumínio canadense – mas, dados os eventos recentes, é difícil negar o sucesso de políticas como o Science Act que subsidiam a produção de semicondutores nos EUA.

Finalmente, vamos admitir: agora que os Estados Unidos estão finalmente fazendo algo sobre as mudanças climáticas, algumas das políticas que estão introduzindo serão, na prática, pelo menos levemente protecionistas. O novo crédito fiscal para compras de veículos elétricos se aplicará apenas a veículos montados na América do Norte.

Por que fazer isso? Política – política por uma boa causa, eu diria, mas política mesmo assim. Conseguir uma ação climática foi um grande impulso político; alguns de nós ainda estão se beliscando para saber se realmente aconteceu. Mas, para vendê-lo, os democratas precisavam ser capazes de mostrá-lo como um programa que criaria empregos, o que significava incluir cláusulas de compra de produtos americanos.

Essas cláusulas violam os acordos comerciais existentes? Possivelmente. Mas vamos encarar os fatos: honrar a carta de acordos comerciais é menos importante do que salvar o planeta. Se é isso que é necessário para combater as emissões de carbono, que assim seja. Mas voltando ao meu tema original: por essas e outras, parece provável que estejamos prestes a ver algum recuo da globalização.

Paul Krugman é Prêmio Nobel de Ciências Econômicas de 2008, e colunista do The New York Times

Lembram-se das guerras comerciais de Donald Trump? Na verdade, muitas das tarifas impostas por Trump ainda estão em vigor apenas, eu suspeito, porque Joe Biden não quer dar aos republicanos uma desculpa para que o acusem de ser brando com a China. Mas, de qualquer forma, as questões comerciais estão sendo ofuscadas por tudo, desde a inflação até a guerra na Ucrânia.

Sob o radar, no entanto, parte do que Trump queria, mas não conseguiu – um retorno da fabricação aos Estados Unidos – pode realmente estar acontecendo sob seu sucessor. Uma recente análise da Bloomberg encontra uma enorme onda de palavras-chave do economês como onshoring, reshoring e nearshoring, todos indicadores de planos para produzir nos Estados Unidos (ou possivelmente em países próximos) e não na Ásia.

Também houve uma enxurrada de notícias, apoiadas por alguns dados inconsistentes, sugerindo que as empresas realmente estão construindo novas fábricas nos Estados Unidos e em outros países de alta renda.

Um navio de carga carregado de contêineres é visto em um porto de Qingdao, na província de Shandong, leste da China, em 7 de setembro de 2022 Foto: AFP

Portanto, podemos estar vendo os primeiros indícios de um recuo parcial da globalização. Isso não é necessariamente uma coisa boa, o que é assunto para outro dia. Por enquanto, vamos falar sobre por que isso pode estar acontecendo.

A primeira coisa a saber é que, se virmos algum declínio no comércio mundial nos próximos anos, não será a primeira vez que isso acontecerá. É comum supor que o mundo está cada vez menor, mais “plano”, que a crescente interdependência internacional é uma tendência contra a qual não se poder lutar. Mas a história diz o contrário.

Na verdade, a economia mundial foi surpreendentemente integrada às vésperas da 1ª Guerra. Em “As Consequências Econômicas da Paz”, John Maynard Keynes escreveu sobre o “episódio extraordinário” que ele afirmou ter terminado em agosto de 1914 – uma era em que “o habitante de Londres poderia encomendar por telefone, tomando seu chá matinal na cama, os vários produtos de toda a terra, na quantidade que lhe aprouvesse, e razoavelmente esperar a entrega antecipada à sua porta”.

E essa primeira era da globalização, de fato, retrocedeu após a Grande Guerra. As estimativas do comércio mundial total - exportações mais importações - como porcentagem do produto interno bruto para anos selecionados desde 1913 mostram isso. Houve um grande declínio no comércio entre o início da 1ª Guerra e as consequências da 2ª Guerra. A recuperação levou muito tempo: até 1980, o comércio dificilmente era maior, em relação à economia mundial, do que havia sido no final da era eduardiana.

O que se seguiu, no entanto, foi de fato um salto sem precedentes no comércio, às vezes chamado de “hiperglobalização”. Esta foi a era descrita no famoso livro do meu colega Tom Friedman, “The World Is Flat” (O mundo é plano), publicado pela primeira vez em 2005; muitas pessoas esperavam que o comércio crescente continuasse indefinidamente.

Na verdade, porém, a hiperglobalização parou por volta de 2008; o comércio internacional como parte da economia mundial tem estado mais ou menos estável por 14 anos. E há três razões para acreditar que a globalização realmente recuará nos próximos anos, embora provavelmente não na medida em que ocorreu nos anos entre guerras.

A primeira razão, a mais benigna, é a ascensão dos robôs – com isso me refiro à tecnologia que economiza mão-de-obra em geral. As pessoas geralmente assumem que melhorias na tecnologia de transporte significam necessariamente mais comércio. Mas isso só é verdade se o progresso no transporte for mais rápido que o progresso na tecnologia de produção. Eu escrevi um pequeno modelo sobre isso alguns anos atrás, mas aqui está um reductio ad absurdum: imagine que todos nós tivéssemos acesso aos replicadores em Jornada nas Estrelas – máquinas que sintetizariam qualquer coisa que você quisesse na hora. Se tudo o que você tivesse que fazer fosse dizer “Chá, Earl Grey, quente” e uma xícara fumegante se materializasse, você não precisaria importar as coisas do Sri Lanka.

De fato, as empresas que falam em reordenar a produção muitas vezes afirmam que técnicas modernas, em alguns casos, permitem que produzam com relativamente poucos trabalhadores, caso em que as economias de custos da terceirização para países de baixos salários são mínimas – e são superadas pelas vantagens logísticas de produzir perto de casa.

Uma segunda razão, menos benigna, para o declínio da globalização é a crescente percepção de que o mundo é um lugar perigoso. É especialmente perigoso permitir-se depender economicamente de países com regimes autoritários, que podem subitamente interromper as relações como parte de um jogo de poder ou simplesmente porque os ditadores tendem a se comportar de forma errática. A Europa está percebendo agora que tornar-se dependente do gás natural russo foi um erro terrível. A China não se envolveu em chantagem econômica – ainda não, pelo menos – mas tanto o exemplo russo quanto a arbitrariedade dos lockdowns por causa da covid de Xi Jinping deixaram as empresas temerosas sobre depender de fornecedores chineses.

Aliás, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio – o documento fundamental para o moderno sistema de comércio mundial – dá explicitamente a cada nação o direito de tomar “qualquer ação que considere necessária para a proteção de seus interesses essenciais de segurança”. Esse direito às vezes foi abusado – Trump, de forma absurda, invocou a segurança nacional para impor tarifas ao alumínio canadense – mas, dados os eventos recentes, é difícil negar o sucesso de políticas como o Science Act que subsidiam a produção de semicondutores nos EUA.

Finalmente, vamos admitir: agora que os Estados Unidos estão finalmente fazendo algo sobre as mudanças climáticas, algumas das políticas que estão introduzindo serão, na prática, pelo menos levemente protecionistas. O novo crédito fiscal para compras de veículos elétricos se aplicará apenas a veículos montados na América do Norte.

Por que fazer isso? Política – política por uma boa causa, eu diria, mas política mesmo assim. Conseguir uma ação climática foi um grande impulso político; alguns de nós ainda estão se beliscando para saber se realmente aconteceu. Mas, para vendê-lo, os democratas precisavam ser capazes de mostrá-lo como um programa que criaria empregos, o que significava incluir cláusulas de compra de produtos americanos.

Essas cláusulas violam os acordos comerciais existentes? Possivelmente. Mas vamos encarar os fatos: honrar a carta de acordos comerciais é menos importante do que salvar o planeta. Se é isso que é necessário para combater as emissões de carbono, que assim seja. Mas voltando ao meu tema original: por essas e outras, parece provável que estejamos prestes a ver algum recuo da globalização.

Paul Krugman é Prêmio Nobel de Ciências Econômicas de 2008, e colunista do The New York Times

Lembram-se das guerras comerciais de Donald Trump? Na verdade, muitas das tarifas impostas por Trump ainda estão em vigor apenas, eu suspeito, porque Joe Biden não quer dar aos republicanos uma desculpa para que o acusem de ser brando com a China. Mas, de qualquer forma, as questões comerciais estão sendo ofuscadas por tudo, desde a inflação até a guerra na Ucrânia.

Sob o radar, no entanto, parte do que Trump queria, mas não conseguiu – um retorno da fabricação aos Estados Unidos – pode realmente estar acontecendo sob seu sucessor. Uma recente análise da Bloomberg encontra uma enorme onda de palavras-chave do economês como onshoring, reshoring e nearshoring, todos indicadores de planos para produzir nos Estados Unidos (ou possivelmente em países próximos) e não na Ásia.

Também houve uma enxurrada de notícias, apoiadas por alguns dados inconsistentes, sugerindo que as empresas realmente estão construindo novas fábricas nos Estados Unidos e em outros países de alta renda.

Um navio de carga carregado de contêineres é visto em um porto de Qingdao, na província de Shandong, leste da China, em 7 de setembro de 2022 Foto: AFP

Portanto, podemos estar vendo os primeiros indícios de um recuo parcial da globalização. Isso não é necessariamente uma coisa boa, o que é assunto para outro dia. Por enquanto, vamos falar sobre por que isso pode estar acontecendo.

A primeira coisa a saber é que, se virmos algum declínio no comércio mundial nos próximos anos, não será a primeira vez que isso acontecerá. É comum supor que o mundo está cada vez menor, mais “plano”, que a crescente interdependência internacional é uma tendência contra a qual não se poder lutar. Mas a história diz o contrário.

Na verdade, a economia mundial foi surpreendentemente integrada às vésperas da 1ª Guerra. Em “As Consequências Econômicas da Paz”, John Maynard Keynes escreveu sobre o “episódio extraordinário” que ele afirmou ter terminado em agosto de 1914 – uma era em que “o habitante de Londres poderia encomendar por telefone, tomando seu chá matinal na cama, os vários produtos de toda a terra, na quantidade que lhe aprouvesse, e razoavelmente esperar a entrega antecipada à sua porta”.

E essa primeira era da globalização, de fato, retrocedeu após a Grande Guerra. As estimativas do comércio mundial total - exportações mais importações - como porcentagem do produto interno bruto para anos selecionados desde 1913 mostram isso. Houve um grande declínio no comércio entre o início da 1ª Guerra e as consequências da 2ª Guerra. A recuperação levou muito tempo: até 1980, o comércio dificilmente era maior, em relação à economia mundial, do que havia sido no final da era eduardiana.

O que se seguiu, no entanto, foi de fato um salto sem precedentes no comércio, às vezes chamado de “hiperglobalização”. Esta foi a era descrita no famoso livro do meu colega Tom Friedman, “The World Is Flat” (O mundo é plano), publicado pela primeira vez em 2005; muitas pessoas esperavam que o comércio crescente continuasse indefinidamente.

Na verdade, porém, a hiperglobalização parou por volta de 2008; o comércio internacional como parte da economia mundial tem estado mais ou menos estável por 14 anos. E há três razões para acreditar que a globalização realmente recuará nos próximos anos, embora provavelmente não na medida em que ocorreu nos anos entre guerras.

A primeira razão, a mais benigna, é a ascensão dos robôs – com isso me refiro à tecnologia que economiza mão-de-obra em geral. As pessoas geralmente assumem que melhorias na tecnologia de transporte significam necessariamente mais comércio. Mas isso só é verdade se o progresso no transporte for mais rápido que o progresso na tecnologia de produção. Eu escrevi um pequeno modelo sobre isso alguns anos atrás, mas aqui está um reductio ad absurdum: imagine que todos nós tivéssemos acesso aos replicadores em Jornada nas Estrelas – máquinas que sintetizariam qualquer coisa que você quisesse na hora. Se tudo o que você tivesse que fazer fosse dizer “Chá, Earl Grey, quente” e uma xícara fumegante se materializasse, você não precisaria importar as coisas do Sri Lanka.

De fato, as empresas que falam em reordenar a produção muitas vezes afirmam que técnicas modernas, em alguns casos, permitem que produzam com relativamente poucos trabalhadores, caso em que as economias de custos da terceirização para países de baixos salários são mínimas – e são superadas pelas vantagens logísticas de produzir perto de casa.

Uma segunda razão, menos benigna, para o declínio da globalização é a crescente percepção de que o mundo é um lugar perigoso. É especialmente perigoso permitir-se depender economicamente de países com regimes autoritários, que podem subitamente interromper as relações como parte de um jogo de poder ou simplesmente porque os ditadores tendem a se comportar de forma errática. A Europa está percebendo agora que tornar-se dependente do gás natural russo foi um erro terrível. A China não se envolveu em chantagem econômica – ainda não, pelo menos – mas tanto o exemplo russo quanto a arbitrariedade dos lockdowns por causa da covid de Xi Jinping deixaram as empresas temerosas sobre depender de fornecedores chineses.

Aliás, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio – o documento fundamental para o moderno sistema de comércio mundial – dá explicitamente a cada nação o direito de tomar “qualquer ação que considere necessária para a proteção de seus interesses essenciais de segurança”. Esse direito às vezes foi abusado – Trump, de forma absurda, invocou a segurança nacional para impor tarifas ao alumínio canadense – mas, dados os eventos recentes, é difícil negar o sucesso de políticas como o Science Act que subsidiam a produção de semicondutores nos EUA.

Finalmente, vamos admitir: agora que os Estados Unidos estão finalmente fazendo algo sobre as mudanças climáticas, algumas das políticas que estão introduzindo serão, na prática, pelo menos levemente protecionistas. O novo crédito fiscal para compras de veículos elétricos se aplicará apenas a veículos montados na América do Norte.

Por que fazer isso? Política – política por uma boa causa, eu diria, mas política mesmo assim. Conseguir uma ação climática foi um grande impulso político; alguns de nós ainda estão se beliscando para saber se realmente aconteceu. Mas, para vendê-lo, os democratas precisavam ser capazes de mostrá-lo como um programa que criaria empregos, o que significava incluir cláusulas de compra de produtos americanos.

Essas cláusulas violam os acordos comerciais existentes? Possivelmente. Mas vamos encarar os fatos: honrar a carta de acordos comerciais é menos importante do que salvar o planeta. Se é isso que é necessário para combater as emissões de carbono, que assim seja. Mas voltando ao meu tema original: por essas e outras, parece provável que estejamos prestes a ver algum recuo da globalização.

Paul Krugman é Prêmio Nobel de Ciências Econômicas de 2008, e colunista do The New York Times

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