Ao longo das próximas semanas, o presumível indicado do Partido Republicano para concorrer à presidência dos Estados Unidos passará o dia em um tribunal da cidade de Nova York. Segundo qualquer padrão normal de campanha, tirar o candidato da estrada em boa parte de abril e maio de um ano de eleição presidencial seria devastador. Mas “normalidade” e Donald Trump vivem em países diferentes. O julgamento vai produzir para Trump a oportunidade de definir a essência de sua candidatura: “Sou uma vítima”.
Os tão competentes operadores da coordenação da campanha de Trump não desenharam essa estratégia como seu plano ideal, mas agradecerão seu potencial. O tribunal de Manhattan servirá como palco para Trump desempenhar o papel de um arquétipo americano familiar: o homem injustiçado por forças corruptas e poderosas em busca de justiça. O ex-presidente sabe muito bem encarnar esse personagem, e isso não é pouca coisa.
Campanhas presidenciais colocam muita atenção em agendas — onde, quando e quantos eventos um candidato deve aparecer a cada dia. Mas o elemento mais importante da agenda é colocar o candidato em um local que lhe permita seu melhor desempenho. Na campanha presidencial de George W. Bush, em 2000, nosso evento-padrão era colocá-lo dentro de alguma escola, preferivelmente em bairros menos abastados. Educação tinha sido o tema central de seu governo no Texas. Ele conhecia o tema bastante bem, se dedicava apaixonadamente, e a probabilidade era que visitas a escolas fossem eventos bem-sucedidos. Não me surpreendeu que o ex-presidente Bush estivesse em uma escola de ensino fundamental lendo para estudantes quando os aviões se chocaram contra as Torres Gêmeas.
Trump adora grandes comícios. Ele se alimenta da multidão como um vampiro em um banco de sangue. Mas sua performance está ficando meio antiquada. Programas de notícias da TV a cabo não colocam mais ao vivo no ar esses eventos repetitivos, que não parecem motivar mais tantas conversas entre eleitores quanto no passado. Em contraste, o julgamento dá a Trump o benefício do interesse renovado de eleitores e meios de imprensa sem implicar em nenhum esforço à sua equipe para incrementar a campanha ou produzir eventos dignos de cobertura jornalística.
Sinto como se tivesse passado metade da minha vida em comitês de campanha olhando para um mapa e um calendário. O mapa é sempre grande demais, e o calendário curto demais. Tempo é um recurso alocado às campanhas em quantidades exatamente iguais. Mas há um segredo sujo em relação às campanhas presidenciais: onde você faz campanha pode influenciar pouco. Um tribunal poderia ser tão valioso quanto o distrito mais indeciso no mais disputado dos Estados indefinidos.
Quando Joe Biden recebeu mais votos do que qualquer outro candidato presidencial na história fazendo campanha principalmente a partir do porão de sua casa, o mundo trumpista considerou isso prova de que a eleição foi roubada. Mas eu não fiquei surpreso. Atônito com a quantidade de tempo e energia gastos apressando-se para chegar aos eventos eleitorais, eu fiz uma pergunta básica durante a campanha de Mitt Romney, em 2012: Onde ele vai é importante? Nós começamos a fazer pesquisas localizadas poucos dias antes e depois dos evento, e os resultados foram consistentes. Havia uma elevação de 3 a 4 pontos imediatamente após um grande comício, mas que logo evaporava. Uma semana depois do evento, os índices retornavam ao nível anterior.
Foi deprimente, mas a informação não foi particularmente útil. Qualquer diminuição no ritmo da campanha teria sido percebida como fraqueza ou desistência. A covid deu a Biden uma opção de se ausentar sem ser penalizado e colocar foco, em vez disso, onde ele preferiu (a maneira desastrosa com que o governo Trump lidou com a pandemia). De sua própria maneira, o julgamento em Nova York está oferecendo a Trump a opção de não estar presente, assim como uma oportunidade estratégica.
A campanha de Trump não é sobre convencimento. É sobre atiçar o ódio dentro de cada possível apoiador de Trump para que seu voto seja um ato virtuoso de fúria, não um mero dever cívico. Se você acredita que o “estado profundo” roubou a última eleição, a perseguição jurídica a Trump prova ainda mais seu desespero em evitar que ele reassuma o lugar que lhe é de direito no Salão Oval. Tudo isso combinado com a coalizão pouco inspiradora de Biden é uma receita para uma vitória de Trump no Colégio Eleitoral.
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Dedicar-se a fazer uma base já existente de apoiadores comparecer às urnas (em vez de ampliar a base) não é novidade para a campanha de Trump. E eu entendo: em 2004, nós encontramos dificuldades em conquistar novos eleitores na campanha de Bush. Eu me recordo de encontros com grupos focais mostrando-os anúncios sobre mulheres votando no Afeganistão que levavam as pessoas às lágrimas. E em seguida as pessoas diziam, “Mas você sabe que eu não vou votar nesse cara”. Dessa realidade decorreu o plano conhecido como “circunscrições fortificadas”. O foco tornou-se aumentar a porcentagem de comparecimento às urnas de apoiadores de Bush e fazer uma zona eleitoral que registrou 60% de votos em Bush em 2000 aumentar para 64%.
Funcionou, mesmo que por pouco. Se menos da metade dos espectadores de um jogo no estádio do Ohio State tivesse mudado seus votos, Ohio teria eleito John Kerry o 44.º presidente. O diferente na estratégia de Trump é que a polarização é a peça-chave de sua estratégia para o comparecimento às urnas, o que cria energia para Trump enfurecendo eleitores não trumpistas. Tudo na campanha de Trump trata de dividir os americanos. Trump abre seus comícios com uma versão do hino nacional americano executada por um grupo de homens presos por participação na insurreição de 6 de janeiro de 2021, que ele usa como trilha sonora para sua recitação do Juramento à Bandeira dos EUA. “Eu sou sua vingança” é muito diferente de “Eu sou um unificador, não um divisor” e “Esperança e Mudança”.
Nesse paradigma estratégico, os indiciamentos e subsequentes comparecimentos aos tribunais são um presente dos deuses da política. Trump é o candidato do ódio e do ressentimento, que sempre teve uma estranha qualidade para quem já era milionário no ensino médio. Como o homem da privada dourada pode ser uma vítima? O ressentimento branco foi o primeiro degrau de Trump no pódio da vitimização em suas outras campanhas. E ainda é essencial para a candidatura de Trump, mas agora o ex-presidente pode acrescentar o fardo de ser perseguido por promotores de Justiça corruptos (não brancos, em sua maioria) à cruz que carrega até aquele sacro monte chamado Casa Branca.
Seis semanas ou mais é muito tempo para um ator de 77 anos que apresenta um monólogo. O juiz deixou claro, corretamente, que não permitirá a aproximação da eleição interferir nos trabalhos. A energia dos dias iniciais desaparecerá durante os delongados procedimentos judiciais. Para mim, esse julgamento trata na verdade de descobrir se Trump realmente pagou US$ 130 mil para uma atriz pornô sem que tenha havido sexo na jogada. Esse absurdo pode começar a ser entendido pelos poucos eleitores ainda em jogo. Mas nós não devemos normalizar a singularidade de Trump ainda ser um candidato viável à presidência. A campanha de Biden assistirá ao espetáculo ser apresentado perguntando, “Como esse cara ainda está na disputa?”.
É uma boa pergunta. Mas ele está. E pode ganhar. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO