BUENOS AIRES — A ideia central de Javier Milei, que fez dele o aparente favorito para ser eleito o próximo presidente da Argentina, é a dolarização: um plano para dissolver o Banco Central argentino, eliminar o peso e adotar o dólar americano como moeda oficial, eliminando assim a inflação descontrolada que aprisiona a economia argentina há anos.
Mas a ideia é viável?
Analistas independentes, economistas e figuras da oposição consultadas pela Americas Quarterly expressaram dúvidas, notando que o Banco Central argentino não possui virtualmente nenhum dólar em seus cofres atualmente. Uma tentativa fracassou 24 anos atrás quando o plano do ex-presidente Carlos Menem para dolarização não avançou, conforme uma crise econômica e uma corrida pelo peso provocaram o colapso de um comitê monetário.
A Argentina já enfrenta dificuldades para pagar o empréstimo de US$ 57 bilhões que contraiu do Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2018 e renegociou em 2022, o que torna um outro pacote de ajuda para financiar a dolarização altamente improvável. E por fim, alertam eles, a dolarização em si não resolverá os desequilíbrios fiscais fundamentais que levaram a Argentina a dar calote em dívidas nove vezes, incluindo três nas duas décadas passadas.
Uma ideia pouco factível
“Eu considero que (dolarização) não é factível no curto prazo”, disse à AQ Alejandro Werner, ex-diretor do Departamento de Hemisfério Ocidental do FMI. “A Argentina não têm dólares para se dolarizar e não tem acesso ao mercado financeiro para obter dólares. A única coisa que isso faria é colocar mais títulos argentinos nas mãos do setor privado internacional, diretamente ou indiretamente, portanto baixando ainda mais o valor dos títulos argentinos.”
Milei e seus conselheiros mais próximos insistem veementemente no contrário. O economista Emilio Ocampo, encarregado do plano de dolarização de Milei, afirma que nem reservas no Banco Central nem um empréstimo internacional multibilionário seria necessário para avançar com o novo sistema. Em entrevista a uma rádio, em meados de agosto, ele afirmou que os argentinos têm mais de US$ 200 bilhões em poupanças e outros depósitos internacionais. “Quando esse dinheiro entra em circulação, por exemplo, para pagar impostos, o Tesouro terá automaticamente moeda disponível para avançar com o processo”, afirmou Ocampo.
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De acordo com os cálculos de Ocampo, trocar todos os pesos em circulação e depositados em bancos para dólares na atual taxa de câmbio requereria US$ 60 bilhões e algum tempo para implementação. Bom conhecedor dos mercados após uma carreira de 20 anos em Wall Street, Ocampo destaca dois estágios: no primeiro, apenas US$ 30 bilhões dos cidadãos seriam trocados. A outra metade, atualmente investida em Leliqs, as obrigações a curto prazo do Banco Central, seria convertida em um segundo estágio, num processo que duraria cerca de quatro anos.
“Nós calculamos que em 16 meses todos os pesos serão trocados por dólares. Será um processo gradual, como ocorreu no Equador, onde levou nove meses”, acrescentou ele. Depósitos bancários e empréstimos também seriam convertidos à moeda estrangeira ao mesmo tempo.
Desconfiança generalizada
Na semana passada, Milei afirmou que a conversão do peso argentino ao dólar americano ocorrerá na taxa de câmbio determinada pelo mercado, atualmente em 730 pesos por US$ 1. A previsão foi recebida com desconfianças generalizadas. Sergio Massa, ministro da Economia e candidato à presidência da coalizão União pela Pátria, afirmou no dia seguinte que a dolarização ocasionará uma desvalorização de 100% do peso.
Falando a um programa de televisão, Massa alertou que o plano de dolarização de Milei significaria que “universidades públicas não seriam mais livres; bilhetes de trem custariam 1,1 mil pesos e passagens de ônibus, 650 pesos”. Essas tarifas são significativamente mais elevadas do que as pagas atualmente pelos argentinos. De acordo com o jornal Buenos Aires Herald, na área metropolitana da capital argentina a tarifa de trem mais barata hoje é de 25 pesos, e a de ônibus, 52.
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Inflexibilidade cambial
Marina Dal Poggetto, diretora da Eco Go Consultores, de Buenos Aires, reconhece que dolarizar ajudaria a estabilizar a economia em razão de sua natureza de âncora rígida. Mas durante uma crise global, dolarizar poderia tornar extremamente desafiador absorver choques. “A âncora rígida não lhe permite adotar moedas flexíveis quando paralisações súbitas ocorrerem e houver mudanças em políticas monetárias nos Estados Unidos, por exemplo. A Argentina sofreu durante a crise no Brasil, em 1999″, disse Dal Poggetto à AQ. Ela se preocupa com a possibilidade dos custos de adoção da dolarização ocasionarão endividamentos massivos na conversão do estoque de obrigações do Banco Central mantido pelos bancos comerciais do país.
O enigma da inflação
Especialistas concordam que a proposta de dolarização de Milei ganhou tração na Argentina em razão da arrebatadora demanda por estabilidade macroeconômica depois de uma década de inflação de dois dígitos e feridas autoimpingidas por políticas. A inflação anual na Argentina baixou para 113,4% em julho, contra 115% em junho — o índice mais alto desde 1991. De acordo com algumas projeções, o valor do peso argentino deverá baixar mais 70% nos próximos meses. A eleição presidencial argentina ocorre em 22 de outubro, e o possível segundo turno está marcado para 19 de novembro.
Mesmo que dolarizar a economia de US$ 632 bilhões possa ajudar a reduzir a inflação rapidamente, o processo é altamente custoso, afirmou Martin Castellano, diretor de pesquisas em América Latina do Instituto Internacional de Finanças, em Washington.
Uma economia dolarizada prescindirá da flexibilidade de se ajustar a choques particularmente em uma economia mundial mais interconectada com variadas taxas de câmbio flutuantes sob regimes com metas de inflação. A assimetria em relação ao ciclo da economia americana também poderia ocasionar políticas pró-cíclicas, afirmou Castellano. Em contraste, os desequilíbrios macroeconômicos e em políticas que o fenômeno cria permanecem, dada a opção por evitar disciplina fiscal e exaurir todas as fontes financeiras possíveis, incluindo vendas de ativos e fundos de pensão.
“O argumento de que esse regime forçaria formuladores de políticas a tornar a economia mais flexível por meio de reformas laborais e em outros campos ao mesmo tempo que se torna fiscalmente mais austera simplesmente não foi corroborado”, argumenta Castellano. Ele acrescentou que a dolarização tem deixado países mais vulneráveis a choques externos e num caminho de baixo crescimento, em meio a uma contínua sobrevalorização da taxa de câmbio real.
Desafiando as expectativas, Milei acha que esse processo não será complicado. “Porque a inflação — em todos os países e sempre — é um fenômeno monetário gerado por um excesso na quantidade de dinheiro (em circulação). Nós queremos dolarizar com o esquema básico, e podemos fazer isso. E é fácil? Superfácil”, disse ele ao jornal El País, em julho.
Inspiração regional
A Argentina poderia encontrar inspiração no Equador, no Panamá e em El Salvador, três países que adotaram a dolarização com resultados contraditórios, mas deixaram para trás um passado de inflação alta e encontraram um sistema monetário mais estável. Esses países têm registrado os índices de inflação mais baixos da região nos 20 anos recentes. Em contraste, de acordo com dados compilados pelo website Trading Economics, a taxa-média de inflação na Argentina foi de 189,99% de 1944 até este ano, atingindo uma alta histórica, de 20.262% em março de 1990.
Werner aponta que a instabilidade da Argentina decorre de desequilíbrios fiscais e que a dolarização não resolve esse tipo de problema. “No caso da Argentina, isso é uma falácia. O Equador é dolarizado e tem problemas fiscais enormes — e por isso não tem acesso a mercados financeiros. É por isso que os títulos do Equador têm valor similar aos da Argentina, como numa economia em apuros. Então, pensar que simplesmente colocando uma camisa de força no país a sociedade entenderá que você tem de fazer o resto eu acho que é falacioso”, argumenta Werner. “Do ponto de vista econômico do tamanho, da diversificação e da sofisticação da Argentina, a dolarização claramente não é um regime ideal de taxa de câmbio”, acrescentou Werner.
Ecoando um ceticismo similar, Mark Sobel, diretor para EUA do Fórum Oficial de Instituições Monetárias e Financeiras (OMFIF), escreveu num artigo publicado em agosto que a política não ortodoxa “não é a resposta” para a Argentina. Dolarizar a economia é “uma estratégia potencialmente arriscada e ‘sem saída’. Isso faria germinar as sementes de uma enorme contração e quebra ao mesmo tempo que desviaria a atenção do trabalho duro de consertar a economia”, afirmou ele em nome do instituto londrino de pesquisa com foco em políticas globais e investimento.
Independentemente de quem for o próximo ocupante da Casa Rosada, há pouca dúvida a respeito do problema mais premente a consertar. “Nós não sabemos se é convertibilidade, se é dolarização, se é adoção de uma nova moeda”, afirmou Gonzalo Tanoira, presidente da exportadora de frutas e vegetais San Miguel, durante uma conversa recente por WhatsApp discutindo as ideias de Milei. “Há muitas alternativas. A questão é ser capaz de debater seriamente qual é a mais viável”, acrescentou ele. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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* Gabin é jornalista, radicado em Buenos Aires, especialista em economia e finanças. Trabalhou no jornal El Cronista e no website Infobae. Também colabora em revistas especializadas.