Polarização política contamina significado da coroação de Charles; leia análise


Monarquia do Reino Unido e o passado do país são indissociáveis, e uma coroação é uma oportunidade para a instituição acenar para a história e esperar que a história acene de volta

Por Hannah Rose Woods
Atualização:

Na manhã do sábado, Charles Philip Arthur George Mountbatten-Windsor deixará o Palácio de Buckingham em uma carruagem puxada por seis cavalos, circulará pelo centro de Londres em uma rota sinuosa e chegará à Abadia de Westminster pouco antes das 11h, para uma cerimônia que mudou pouco ao longo de um milênio.

Depois de entrar, Charles se sentará no Trono de Coroação, que tem mais de 700 anos e abrigará temporariamente um bloco de arenito escocês conhecido como Pedra da Coroação. Em um determinado momento, ele vestirá um manto de 200 anos tecido com fios de ouro e bordados de rosas, cardos e trevos, delineado com seda vermelha. E será apresentado para a congregação, que gritará “Deus salve o rei Charles!”.

Charles será ungido com óleo santo entregue por uma colher do século 12 e receberá um orbe, que simboliza a autoridade derivada de Deus, e um cetro, que representa o poder. O arcebispo da Cantuária colocará sobre sua cabeça a Coroa de St. Edward, que tem mais de 350 anos e é feita de ouro puro, crivado de rubis, ametistas, safiras, granadas, topázios e turmalinas.

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Charles III receberá a Coroa de St. Edward, que tem mais de 350 anos e é feita de ouro puro Foto: Jack Hill/Reuters - 4/6/2013

Não por acaso essa combinação entre religião antiga e simbolismo político é impenetrável para o espectador médio: quando se trata de coroações britânicas, o anacronismo é característica, não exceção. A monarquia do Reino Unido e o passado do país são indissociáveis, e uma coroação é uma oportunidade para a instituição acenar para a história e esperar que a história acene de volta.

Uma coroação bem-sucedida transmite para o mundo — e reflete de volta para o máximo de britânicos possível — uma versão de quem os britânicos gostariam de pensar que são. O problema é que esta coroação chega em um momento em que não está exatamente claro o que ela é.

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O Reino Unido de 2023 é um país à margem da Europa, afrontado por seu passado imperial e diante de um futuro incerto. Desde a campanha do Brexit, em 2016, a invocação da “grandeza” da história britânica — mencionando marcos como a Batalha de Azincourt ou Winston Churchill, por exemplo — tornou-se a ladainha dos políticos de direita que pretendem articular uma visão do futuro do Reino Unido fora da Europa.

E, talvez precisamente porque o futuro britânico dependa tanto de seu passado, existe hoje um extremismo cada vez mais linha-dura e mal humorado em relação a narrativas a respeito da história britânica: um patriotismo que não admite nenhuma crítica.

Tentativas de reexaminar a história imperial britânica têm sido classificadas como “tentativa de rebaixar” o Reino Unido promovendo “uma agenda lacradora” ou “constrangimentos servis a respeito da nossa história”.

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Ao mesmo tempo, o crescimento da economia britânica é um dos menores entre o Grupo dos 7. Há uma “crise de custo de vida”: juros, inflação e preços da energia nas alturas. Números recorde de famílias estão usando bancos de alimentos, e um a cada cinco britânicos vive na pobreza.

Trata-se de um momento complexo e polarizado, que a cerimônia de sábado tem obrigação de ter em conta. Camilla, a rainha consorte, não usará em sua coroa o Diamante Koh-i-Noor, que foi levado da Índia durante o domínio britânico e é símbolo do roubo colonial; o óleo santo será vegano (sem civeta, almíscar ou âmbar de baleia); e a cerimônia será mais curta e menor, com uma lista de convidados reduzida — o que tem intenção de sinalizar comedimento e consciência ambiental.

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Mas mesmo essa coroação econômica ainda custará milhões aos contribuintes britânicos; apesar do montante exato ser revelado publicamente apenas depois do evento, noticia-se que o valor esteja em torno de US$ 125 milhões (R$ 624 milhões). Para muitos, o fato da coroação estar acontecendo é sinal de um país em negação e aferrado a um passado grandioso. Para outros, qualquer concessão para o presente é demais para suportar.

“É particularmente perturbador que não tenha sido requisitado ao Conde de Derby que forneça seus falcões, o que cabe à sua família desde o século 16″, escreveu a colunista Petronella Wyatt, do Daily Telegraph, com aparente seriedade. “Essas pequenas coisas furtam das pessoas propósito na vida.”

Evolução a curto prazo

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Trata-se de um delicado número de equilibrismo: descarte a quantidade certa e esteja à altura da ocasião; corte demais e perca qualquer poder que a cerimônia possa possuir. Mas as coroações, assim como as monarquias, tiveram de evoluir por muitíssimo tempo.

No século 18, o Reino Unido era uma monarquia constitucional, na qual o equilíbrio do poder havia oscilado da Coroa para o Parlamento. No rebuliço da primeira Revolução Industrial — e enquanto monarquias europeias, incluindo a opulenta corte francesa em Versailles, eram derrubadas em ondas de revolução política, cerimônias como coroações se tornaram parte inseparável da autoimagem nacional de um país capaz de incorporar mudança sem ruptura, que havia optado por evolução em detrimento de revolução.

A coroação de George IV, em 1821, depois da vitória britânica nas Guerras Napoleônicas, foi uma das mais suntuosas na história do país — uma tentativa, em parte, de ofuscar Napoleão e celebrar a supremacia britânica, mas também sintoma dos gastos escandalosos que o tornaram profundamente impopular.

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Em 1831, seu sucessor, William IV, talvez sentindo os humores, preferiu abrir mão completamente de uma coroação. Por fim, ele cedeu à pressão de conselheiros e concordou com uma cerimônia mais simples, sem banquete e com uma procissão mais curta. Ainda assim alguns a consideraram um exagero.

A coroação de Victoria, sobrinha de William, em 1838, na esteira de uma crise financeira transatlântica, foi comedida ao ponto de ser apelidada depreciativamente de “coroação dos tostões”. Mas a cerimônia cresceu de maneira notável: estimados 400 mil britânicos foram às ruas ver a procissão de Victoria passar; houve também uma grande feira no Hyde Park e queima de fogos de artifício.

Uma cerimônia que sempre foi território da nobreza começou a se tornar mais popular. No século 20, suas listas de convidados abririam espaço para membros da classe média e, posteriormente, da classe trabalhadora. Na coroação de Edward VII, em 1902, os trabalhadores ganharam um dia de folga para celebrar o evento — e ainda ganham: neste ano será o dia 8 de maio.

A coroação de Elizabeth, em 1953, após anos de racionamentos e austeridades do pós-guerra e com o Império Britânico já em declínio, tentou projetar um país que ainda era potência global convidando representantes de colônias e domínios britânicos.

Contudo, no Jubileu de Platina, no ano passado, Elizabeth foi saudada não como chefe de uma potência global, mas como símbolo de uma britaneidade nostálgica do pós-guerra, invocada por uma frota de Mini Coopers ou uma mesa de chá da tarde com quitutes de feltro. Foi de um lampejo de despreocupação que, para alguns, só fez sublinhar o lapso entre a ficção imperial e a realidade da vida no Reino Unido de hoje.

Em imagem de arquivo, a rainha Elizabeth II com seu bisneto, o príncipe Louis, durante um dos eventos do Jubileu de Platina da monarca  Foto: Hannah McKay/Reuters - 2/6/2022

Se a coroação do sábado for bem-sucedida, para os 9% dos britânicos que, de acordo com uma pesquisa YouGov, se importam “bastante” com a cerimônia, ela será outro ponto bem costurado do fio que liga nosso presente ao nosso passado. Para os 64% que, segundo a mesma sondagem, não se importam tanto ou não se importam nada com ela, o 8 de maio será, na melhor das hipóteses, um feriado muito caro.

Para Charles III, este sábado será o primeiro grande teste que aferirá se ele é capaz de capitanear uma monarquia moderna e condensada que seja relevante — ou pelo menos não questionável — para a maioria dos britânicos. A Coroa de St. Edward pesa mais de 2 quilos. É muito peso sobre a cabeça de um homem. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Fãs da família real britânica acampam em Londres na rota da procissão da coroação de Charles  Foto: Martin Divisek/EFE

*É HISTORIADORA CULTURAL E AUTORA DE ‘RULE, NOSTALGIA: A BACKWARDS HISTORY OF BRITAIN’

Na manhã do sábado, Charles Philip Arthur George Mountbatten-Windsor deixará o Palácio de Buckingham em uma carruagem puxada por seis cavalos, circulará pelo centro de Londres em uma rota sinuosa e chegará à Abadia de Westminster pouco antes das 11h, para uma cerimônia que mudou pouco ao longo de um milênio.

Depois de entrar, Charles se sentará no Trono de Coroação, que tem mais de 700 anos e abrigará temporariamente um bloco de arenito escocês conhecido como Pedra da Coroação. Em um determinado momento, ele vestirá um manto de 200 anos tecido com fios de ouro e bordados de rosas, cardos e trevos, delineado com seda vermelha. E será apresentado para a congregação, que gritará “Deus salve o rei Charles!”.

Charles será ungido com óleo santo entregue por uma colher do século 12 e receberá um orbe, que simboliza a autoridade derivada de Deus, e um cetro, que representa o poder. O arcebispo da Cantuária colocará sobre sua cabeça a Coroa de St. Edward, que tem mais de 350 anos e é feita de ouro puro, crivado de rubis, ametistas, safiras, granadas, topázios e turmalinas.

Charles III receberá a Coroa de St. Edward, que tem mais de 350 anos e é feita de ouro puro Foto: Jack Hill/Reuters - 4/6/2013

Não por acaso essa combinação entre religião antiga e simbolismo político é impenetrável para o espectador médio: quando se trata de coroações britânicas, o anacronismo é característica, não exceção. A monarquia do Reino Unido e o passado do país são indissociáveis, e uma coroação é uma oportunidade para a instituição acenar para a história e esperar que a história acene de volta.

Uma coroação bem-sucedida transmite para o mundo — e reflete de volta para o máximo de britânicos possível — uma versão de quem os britânicos gostariam de pensar que são. O problema é que esta coroação chega em um momento em que não está exatamente claro o que ela é.

O Reino Unido de 2023 é um país à margem da Europa, afrontado por seu passado imperial e diante de um futuro incerto. Desde a campanha do Brexit, em 2016, a invocação da “grandeza” da história britânica — mencionando marcos como a Batalha de Azincourt ou Winston Churchill, por exemplo — tornou-se a ladainha dos políticos de direita que pretendem articular uma visão do futuro do Reino Unido fora da Europa.

E, talvez precisamente porque o futuro britânico dependa tanto de seu passado, existe hoje um extremismo cada vez mais linha-dura e mal humorado em relação a narrativas a respeito da história britânica: um patriotismo que não admite nenhuma crítica.

Tentativas de reexaminar a história imperial britânica têm sido classificadas como “tentativa de rebaixar” o Reino Unido promovendo “uma agenda lacradora” ou “constrangimentos servis a respeito da nossa história”.

Ao mesmo tempo, o crescimento da economia britânica é um dos menores entre o Grupo dos 7. Há uma “crise de custo de vida”: juros, inflação e preços da energia nas alturas. Números recorde de famílias estão usando bancos de alimentos, e um a cada cinco britânicos vive na pobreza.

Trata-se de um momento complexo e polarizado, que a cerimônia de sábado tem obrigação de ter em conta. Camilla, a rainha consorte, não usará em sua coroa o Diamante Koh-i-Noor, que foi levado da Índia durante o domínio britânico e é símbolo do roubo colonial; o óleo santo será vegano (sem civeta, almíscar ou âmbar de baleia); e a cerimônia será mais curta e menor, com uma lista de convidados reduzida — o que tem intenção de sinalizar comedimento e consciência ambiental.

Mas mesmo essa coroação econômica ainda custará milhões aos contribuintes britânicos; apesar do montante exato ser revelado publicamente apenas depois do evento, noticia-se que o valor esteja em torno de US$ 125 milhões (R$ 624 milhões). Para muitos, o fato da coroação estar acontecendo é sinal de um país em negação e aferrado a um passado grandioso. Para outros, qualquer concessão para o presente é demais para suportar.

“É particularmente perturbador que não tenha sido requisitado ao Conde de Derby que forneça seus falcões, o que cabe à sua família desde o século 16″, escreveu a colunista Petronella Wyatt, do Daily Telegraph, com aparente seriedade. “Essas pequenas coisas furtam das pessoas propósito na vida.”

Evolução a curto prazo

Trata-se de um delicado número de equilibrismo: descarte a quantidade certa e esteja à altura da ocasião; corte demais e perca qualquer poder que a cerimônia possa possuir. Mas as coroações, assim como as monarquias, tiveram de evoluir por muitíssimo tempo.

No século 18, o Reino Unido era uma monarquia constitucional, na qual o equilíbrio do poder havia oscilado da Coroa para o Parlamento. No rebuliço da primeira Revolução Industrial — e enquanto monarquias europeias, incluindo a opulenta corte francesa em Versailles, eram derrubadas em ondas de revolução política, cerimônias como coroações se tornaram parte inseparável da autoimagem nacional de um país capaz de incorporar mudança sem ruptura, que havia optado por evolução em detrimento de revolução.

A coroação de George IV, em 1821, depois da vitória britânica nas Guerras Napoleônicas, foi uma das mais suntuosas na história do país — uma tentativa, em parte, de ofuscar Napoleão e celebrar a supremacia britânica, mas também sintoma dos gastos escandalosos que o tornaram profundamente impopular.

Em 1831, seu sucessor, William IV, talvez sentindo os humores, preferiu abrir mão completamente de uma coroação. Por fim, ele cedeu à pressão de conselheiros e concordou com uma cerimônia mais simples, sem banquete e com uma procissão mais curta. Ainda assim alguns a consideraram um exagero.

A coroação de Victoria, sobrinha de William, em 1838, na esteira de uma crise financeira transatlântica, foi comedida ao ponto de ser apelidada depreciativamente de “coroação dos tostões”. Mas a cerimônia cresceu de maneira notável: estimados 400 mil britânicos foram às ruas ver a procissão de Victoria passar; houve também uma grande feira no Hyde Park e queima de fogos de artifício.

Uma cerimônia que sempre foi território da nobreza começou a se tornar mais popular. No século 20, suas listas de convidados abririam espaço para membros da classe média e, posteriormente, da classe trabalhadora. Na coroação de Edward VII, em 1902, os trabalhadores ganharam um dia de folga para celebrar o evento — e ainda ganham: neste ano será o dia 8 de maio.

A coroação de Elizabeth, em 1953, após anos de racionamentos e austeridades do pós-guerra e com o Império Britânico já em declínio, tentou projetar um país que ainda era potência global convidando representantes de colônias e domínios britânicos.

Contudo, no Jubileu de Platina, no ano passado, Elizabeth foi saudada não como chefe de uma potência global, mas como símbolo de uma britaneidade nostálgica do pós-guerra, invocada por uma frota de Mini Coopers ou uma mesa de chá da tarde com quitutes de feltro. Foi de um lampejo de despreocupação que, para alguns, só fez sublinhar o lapso entre a ficção imperial e a realidade da vida no Reino Unido de hoje.

Em imagem de arquivo, a rainha Elizabeth II com seu bisneto, o príncipe Louis, durante um dos eventos do Jubileu de Platina da monarca  Foto: Hannah McKay/Reuters - 2/6/2022

Se a coroação do sábado for bem-sucedida, para os 9% dos britânicos que, de acordo com uma pesquisa YouGov, se importam “bastante” com a cerimônia, ela será outro ponto bem costurado do fio que liga nosso presente ao nosso passado. Para os 64% que, segundo a mesma sondagem, não se importam tanto ou não se importam nada com ela, o 8 de maio será, na melhor das hipóteses, um feriado muito caro.

Para Charles III, este sábado será o primeiro grande teste que aferirá se ele é capaz de capitanear uma monarquia moderna e condensada que seja relevante — ou pelo menos não questionável — para a maioria dos britânicos. A Coroa de St. Edward pesa mais de 2 quilos. É muito peso sobre a cabeça de um homem. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Fãs da família real britânica acampam em Londres na rota da procissão da coroação de Charles  Foto: Martin Divisek/EFE

*É HISTORIADORA CULTURAL E AUTORA DE ‘RULE, NOSTALGIA: A BACKWARDS HISTORY OF BRITAIN’

Na manhã do sábado, Charles Philip Arthur George Mountbatten-Windsor deixará o Palácio de Buckingham em uma carruagem puxada por seis cavalos, circulará pelo centro de Londres em uma rota sinuosa e chegará à Abadia de Westminster pouco antes das 11h, para uma cerimônia que mudou pouco ao longo de um milênio.

Depois de entrar, Charles se sentará no Trono de Coroação, que tem mais de 700 anos e abrigará temporariamente um bloco de arenito escocês conhecido como Pedra da Coroação. Em um determinado momento, ele vestirá um manto de 200 anos tecido com fios de ouro e bordados de rosas, cardos e trevos, delineado com seda vermelha. E será apresentado para a congregação, que gritará “Deus salve o rei Charles!”.

Charles será ungido com óleo santo entregue por uma colher do século 12 e receberá um orbe, que simboliza a autoridade derivada de Deus, e um cetro, que representa o poder. O arcebispo da Cantuária colocará sobre sua cabeça a Coroa de St. Edward, que tem mais de 350 anos e é feita de ouro puro, crivado de rubis, ametistas, safiras, granadas, topázios e turmalinas.

Charles III receberá a Coroa de St. Edward, que tem mais de 350 anos e é feita de ouro puro Foto: Jack Hill/Reuters - 4/6/2013

Não por acaso essa combinação entre religião antiga e simbolismo político é impenetrável para o espectador médio: quando se trata de coroações britânicas, o anacronismo é característica, não exceção. A monarquia do Reino Unido e o passado do país são indissociáveis, e uma coroação é uma oportunidade para a instituição acenar para a história e esperar que a história acene de volta.

Uma coroação bem-sucedida transmite para o mundo — e reflete de volta para o máximo de britânicos possível — uma versão de quem os britânicos gostariam de pensar que são. O problema é que esta coroação chega em um momento em que não está exatamente claro o que ela é.

O Reino Unido de 2023 é um país à margem da Europa, afrontado por seu passado imperial e diante de um futuro incerto. Desde a campanha do Brexit, em 2016, a invocação da “grandeza” da história britânica — mencionando marcos como a Batalha de Azincourt ou Winston Churchill, por exemplo — tornou-se a ladainha dos políticos de direita que pretendem articular uma visão do futuro do Reino Unido fora da Europa.

E, talvez precisamente porque o futuro britânico dependa tanto de seu passado, existe hoje um extremismo cada vez mais linha-dura e mal humorado em relação a narrativas a respeito da história britânica: um patriotismo que não admite nenhuma crítica.

Tentativas de reexaminar a história imperial britânica têm sido classificadas como “tentativa de rebaixar” o Reino Unido promovendo “uma agenda lacradora” ou “constrangimentos servis a respeito da nossa história”.

Ao mesmo tempo, o crescimento da economia britânica é um dos menores entre o Grupo dos 7. Há uma “crise de custo de vida”: juros, inflação e preços da energia nas alturas. Números recorde de famílias estão usando bancos de alimentos, e um a cada cinco britânicos vive na pobreza.

Trata-se de um momento complexo e polarizado, que a cerimônia de sábado tem obrigação de ter em conta. Camilla, a rainha consorte, não usará em sua coroa o Diamante Koh-i-Noor, que foi levado da Índia durante o domínio britânico e é símbolo do roubo colonial; o óleo santo será vegano (sem civeta, almíscar ou âmbar de baleia); e a cerimônia será mais curta e menor, com uma lista de convidados reduzida — o que tem intenção de sinalizar comedimento e consciência ambiental.

Mas mesmo essa coroação econômica ainda custará milhões aos contribuintes britânicos; apesar do montante exato ser revelado publicamente apenas depois do evento, noticia-se que o valor esteja em torno de US$ 125 milhões (R$ 624 milhões). Para muitos, o fato da coroação estar acontecendo é sinal de um país em negação e aferrado a um passado grandioso. Para outros, qualquer concessão para o presente é demais para suportar.

“É particularmente perturbador que não tenha sido requisitado ao Conde de Derby que forneça seus falcões, o que cabe à sua família desde o século 16″, escreveu a colunista Petronella Wyatt, do Daily Telegraph, com aparente seriedade. “Essas pequenas coisas furtam das pessoas propósito na vida.”

Evolução a curto prazo

Trata-se de um delicado número de equilibrismo: descarte a quantidade certa e esteja à altura da ocasião; corte demais e perca qualquer poder que a cerimônia possa possuir. Mas as coroações, assim como as monarquias, tiveram de evoluir por muitíssimo tempo.

No século 18, o Reino Unido era uma monarquia constitucional, na qual o equilíbrio do poder havia oscilado da Coroa para o Parlamento. No rebuliço da primeira Revolução Industrial — e enquanto monarquias europeias, incluindo a opulenta corte francesa em Versailles, eram derrubadas em ondas de revolução política, cerimônias como coroações se tornaram parte inseparável da autoimagem nacional de um país capaz de incorporar mudança sem ruptura, que havia optado por evolução em detrimento de revolução.

A coroação de George IV, em 1821, depois da vitória britânica nas Guerras Napoleônicas, foi uma das mais suntuosas na história do país — uma tentativa, em parte, de ofuscar Napoleão e celebrar a supremacia britânica, mas também sintoma dos gastos escandalosos que o tornaram profundamente impopular.

Em 1831, seu sucessor, William IV, talvez sentindo os humores, preferiu abrir mão completamente de uma coroação. Por fim, ele cedeu à pressão de conselheiros e concordou com uma cerimônia mais simples, sem banquete e com uma procissão mais curta. Ainda assim alguns a consideraram um exagero.

A coroação de Victoria, sobrinha de William, em 1838, na esteira de uma crise financeira transatlântica, foi comedida ao ponto de ser apelidada depreciativamente de “coroação dos tostões”. Mas a cerimônia cresceu de maneira notável: estimados 400 mil britânicos foram às ruas ver a procissão de Victoria passar; houve também uma grande feira no Hyde Park e queima de fogos de artifício.

Uma cerimônia que sempre foi território da nobreza começou a se tornar mais popular. No século 20, suas listas de convidados abririam espaço para membros da classe média e, posteriormente, da classe trabalhadora. Na coroação de Edward VII, em 1902, os trabalhadores ganharam um dia de folga para celebrar o evento — e ainda ganham: neste ano será o dia 8 de maio.

A coroação de Elizabeth, em 1953, após anos de racionamentos e austeridades do pós-guerra e com o Império Britânico já em declínio, tentou projetar um país que ainda era potência global convidando representantes de colônias e domínios britânicos.

Contudo, no Jubileu de Platina, no ano passado, Elizabeth foi saudada não como chefe de uma potência global, mas como símbolo de uma britaneidade nostálgica do pós-guerra, invocada por uma frota de Mini Coopers ou uma mesa de chá da tarde com quitutes de feltro. Foi de um lampejo de despreocupação que, para alguns, só fez sublinhar o lapso entre a ficção imperial e a realidade da vida no Reino Unido de hoje.

Em imagem de arquivo, a rainha Elizabeth II com seu bisneto, o príncipe Louis, durante um dos eventos do Jubileu de Platina da monarca  Foto: Hannah McKay/Reuters - 2/6/2022

Se a coroação do sábado for bem-sucedida, para os 9% dos britânicos que, de acordo com uma pesquisa YouGov, se importam “bastante” com a cerimônia, ela será outro ponto bem costurado do fio que liga nosso presente ao nosso passado. Para os 64% que, segundo a mesma sondagem, não se importam tanto ou não se importam nada com ela, o 8 de maio será, na melhor das hipóteses, um feriado muito caro.

Para Charles III, este sábado será o primeiro grande teste que aferirá se ele é capaz de capitanear uma monarquia moderna e condensada que seja relevante — ou pelo menos não questionável — para a maioria dos britânicos. A Coroa de St. Edward pesa mais de 2 quilos. É muito peso sobre a cabeça de um homem. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Fãs da família real britânica acampam em Londres na rota da procissão da coroação de Charles  Foto: Martin Divisek/EFE

*É HISTORIADORA CULTURAL E AUTORA DE ‘RULE, NOSTALGIA: A BACKWARDS HISTORY OF BRITAIN’

Na manhã do sábado, Charles Philip Arthur George Mountbatten-Windsor deixará o Palácio de Buckingham em uma carruagem puxada por seis cavalos, circulará pelo centro de Londres em uma rota sinuosa e chegará à Abadia de Westminster pouco antes das 11h, para uma cerimônia que mudou pouco ao longo de um milênio.

Depois de entrar, Charles se sentará no Trono de Coroação, que tem mais de 700 anos e abrigará temporariamente um bloco de arenito escocês conhecido como Pedra da Coroação. Em um determinado momento, ele vestirá um manto de 200 anos tecido com fios de ouro e bordados de rosas, cardos e trevos, delineado com seda vermelha. E será apresentado para a congregação, que gritará “Deus salve o rei Charles!”.

Charles será ungido com óleo santo entregue por uma colher do século 12 e receberá um orbe, que simboliza a autoridade derivada de Deus, e um cetro, que representa o poder. O arcebispo da Cantuária colocará sobre sua cabeça a Coroa de St. Edward, que tem mais de 350 anos e é feita de ouro puro, crivado de rubis, ametistas, safiras, granadas, topázios e turmalinas.

Charles III receberá a Coroa de St. Edward, que tem mais de 350 anos e é feita de ouro puro Foto: Jack Hill/Reuters - 4/6/2013

Não por acaso essa combinação entre religião antiga e simbolismo político é impenetrável para o espectador médio: quando se trata de coroações britânicas, o anacronismo é característica, não exceção. A monarquia do Reino Unido e o passado do país são indissociáveis, e uma coroação é uma oportunidade para a instituição acenar para a história e esperar que a história acene de volta.

Uma coroação bem-sucedida transmite para o mundo — e reflete de volta para o máximo de britânicos possível — uma versão de quem os britânicos gostariam de pensar que são. O problema é que esta coroação chega em um momento em que não está exatamente claro o que ela é.

O Reino Unido de 2023 é um país à margem da Europa, afrontado por seu passado imperial e diante de um futuro incerto. Desde a campanha do Brexit, em 2016, a invocação da “grandeza” da história britânica — mencionando marcos como a Batalha de Azincourt ou Winston Churchill, por exemplo — tornou-se a ladainha dos políticos de direita que pretendem articular uma visão do futuro do Reino Unido fora da Europa.

E, talvez precisamente porque o futuro britânico dependa tanto de seu passado, existe hoje um extremismo cada vez mais linha-dura e mal humorado em relação a narrativas a respeito da história britânica: um patriotismo que não admite nenhuma crítica.

Tentativas de reexaminar a história imperial britânica têm sido classificadas como “tentativa de rebaixar” o Reino Unido promovendo “uma agenda lacradora” ou “constrangimentos servis a respeito da nossa história”.

Ao mesmo tempo, o crescimento da economia britânica é um dos menores entre o Grupo dos 7. Há uma “crise de custo de vida”: juros, inflação e preços da energia nas alturas. Números recorde de famílias estão usando bancos de alimentos, e um a cada cinco britânicos vive na pobreza.

Trata-se de um momento complexo e polarizado, que a cerimônia de sábado tem obrigação de ter em conta. Camilla, a rainha consorte, não usará em sua coroa o Diamante Koh-i-Noor, que foi levado da Índia durante o domínio britânico e é símbolo do roubo colonial; o óleo santo será vegano (sem civeta, almíscar ou âmbar de baleia); e a cerimônia será mais curta e menor, com uma lista de convidados reduzida — o que tem intenção de sinalizar comedimento e consciência ambiental.

Mas mesmo essa coroação econômica ainda custará milhões aos contribuintes britânicos; apesar do montante exato ser revelado publicamente apenas depois do evento, noticia-se que o valor esteja em torno de US$ 125 milhões (R$ 624 milhões). Para muitos, o fato da coroação estar acontecendo é sinal de um país em negação e aferrado a um passado grandioso. Para outros, qualquer concessão para o presente é demais para suportar.

“É particularmente perturbador que não tenha sido requisitado ao Conde de Derby que forneça seus falcões, o que cabe à sua família desde o século 16″, escreveu a colunista Petronella Wyatt, do Daily Telegraph, com aparente seriedade. “Essas pequenas coisas furtam das pessoas propósito na vida.”

Evolução a curto prazo

Trata-se de um delicado número de equilibrismo: descarte a quantidade certa e esteja à altura da ocasião; corte demais e perca qualquer poder que a cerimônia possa possuir. Mas as coroações, assim como as monarquias, tiveram de evoluir por muitíssimo tempo.

No século 18, o Reino Unido era uma monarquia constitucional, na qual o equilíbrio do poder havia oscilado da Coroa para o Parlamento. No rebuliço da primeira Revolução Industrial — e enquanto monarquias europeias, incluindo a opulenta corte francesa em Versailles, eram derrubadas em ondas de revolução política, cerimônias como coroações se tornaram parte inseparável da autoimagem nacional de um país capaz de incorporar mudança sem ruptura, que havia optado por evolução em detrimento de revolução.

A coroação de George IV, em 1821, depois da vitória britânica nas Guerras Napoleônicas, foi uma das mais suntuosas na história do país — uma tentativa, em parte, de ofuscar Napoleão e celebrar a supremacia britânica, mas também sintoma dos gastos escandalosos que o tornaram profundamente impopular.

Em 1831, seu sucessor, William IV, talvez sentindo os humores, preferiu abrir mão completamente de uma coroação. Por fim, ele cedeu à pressão de conselheiros e concordou com uma cerimônia mais simples, sem banquete e com uma procissão mais curta. Ainda assim alguns a consideraram um exagero.

A coroação de Victoria, sobrinha de William, em 1838, na esteira de uma crise financeira transatlântica, foi comedida ao ponto de ser apelidada depreciativamente de “coroação dos tostões”. Mas a cerimônia cresceu de maneira notável: estimados 400 mil britânicos foram às ruas ver a procissão de Victoria passar; houve também uma grande feira no Hyde Park e queima de fogos de artifício.

Uma cerimônia que sempre foi território da nobreza começou a se tornar mais popular. No século 20, suas listas de convidados abririam espaço para membros da classe média e, posteriormente, da classe trabalhadora. Na coroação de Edward VII, em 1902, os trabalhadores ganharam um dia de folga para celebrar o evento — e ainda ganham: neste ano será o dia 8 de maio.

A coroação de Elizabeth, em 1953, após anos de racionamentos e austeridades do pós-guerra e com o Império Britânico já em declínio, tentou projetar um país que ainda era potência global convidando representantes de colônias e domínios britânicos.

Contudo, no Jubileu de Platina, no ano passado, Elizabeth foi saudada não como chefe de uma potência global, mas como símbolo de uma britaneidade nostálgica do pós-guerra, invocada por uma frota de Mini Coopers ou uma mesa de chá da tarde com quitutes de feltro. Foi de um lampejo de despreocupação que, para alguns, só fez sublinhar o lapso entre a ficção imperial e a realidade da vida no Reino Unido de hoje.

Em imagem de arquivo, a rainha Elizabeth II com seu bisneto, o príncipe Louis, durante um dos eventos do Jubileu de Platina da monarca  Foto: Hannah McKay/Reuters - 2/6/2022

Se a coroação do sábado for bem-sucedida, para os 9% dos britânicos que, de acordo com uma pesquisa YouGov, se importam “bastante” com a cerimônia, ela será outro ponto bem costurado do fio que liga nosso presente ao nosso passado. Para os 64% que, segundo a mesma sondagem, não se importam tanto ou não se importam nada com ela, o 8 de maio será, na melhor das hipóteses, um feriado muito caro.

Para Charles III, este sábado será o primeiro grande teste que aferirá se ele é capaz de capitanear uma monarquia moderna e condensada que seja relevante — ou pelo menos não questionável — para a maioria dos britânicos. A Coroa de St. Edward pesa mais de 2 quilos. É muito peso sobre a cabeça de um homem. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Fãs da família real britânica acampam em Londres na rota da procissão da coroação de Charles  Foto: Martin Divisek/EFE

*É HISTORIADORA CULTURAL E AUTORA DE ‘RULE, NOSTALGIA: A BACKWARDS HISTORY OF BRITAIN’

Na manhã do sábado, Charles Philip Arthur George Mountbatten-Windsor deixará o Palácio de Buckingham em uma carruagem puxada por seis cavalos, circulará pelo centro de Londres em uma rota sinuosa e chegará à Abadia de Westminster pouco antes das 11h, para uma cerimônia que mudou pouco ao longo de um milênio.

Depois de entrar, Charles se sentará no Trono de Coroação, que tem mais de 700 anos e abrigará temporariamente um bloco de arenito escocês conhecido como Pedra da Coroação. Em um determinado momento, ele vestirá um manto de 200 anos tecido com fios de ouro e bordados de rosas, cardos e trevos, delineado com seda vermelha. E será apresentado para a congregação, que gritará “Deus salve o rei Charles!”.

Charles será ungido com óleo santo entregue por uma colher do século 12 e receberá um orbe, que simboliza a autoridade derivada de Deus, e um cetro, que representa o poder. O arcebispo da Cantuária colocará sobre sua cabeça a Coroa de St. Edward, que tem mais de 350 anos e é feita de ouro puro, crivado de rubis, ametistas, safiras, granadas, topázios e turmalinas.

Charles III receberá a Coroa de St. Edward, que tem mais de 350 anos e é feita de ouro puro Foto: Jack Hill/Reuters - 4/6/2013

Não por acaso essa combinação entre religião antiga e simbolismo político é impenetrável para o espectador médio: quando se trata de coroações britânicas, o anacronismo é característica, não exceção. A monarquia do Reino Unido e o passado do país são indissociáveis, e uma coroação é uma oportunidade para a instituição acenar para a história e esperar que a história acene de volta.

Uma coroação bem-sucedida transmite para o mundo — e reflete de volta para o máximo de britânicos possível — uma versão de quem os britânicos gostariam de pensar que são. O problema é que esta coroação chega em um momento em que não está exatamente claro o que ela é.

O Reino Unido de 2023 é um país à margem da Europa, afrontado por seu passado imperial e diante de um futuro incerto. Desde a campanha do Brexit, em 2016, a invocação da “grandeza” da história britânica — mencionando marcos como a Batalha de Azincourt ou Winston Churchill, por exemplo — tornou-se a ladainha dos políticos de direita que pretendem articular uma visão do futuro do Reino Unido fora da Europa.

E, talvez precisamente porque o futuro britânico dependa tanto de seu passado, existe hoje um extremismo cada vez mais linha-dura e mal humorado em relação a narrativas a respeito da história britânica: um patriotismo que não admite nenhuma crítica.

Tentativas de reexaminar a história imperial britânica têm sido classificadas como “tentativa de rebaixar” o Reino Unido promovendo “uma agenda lacradora” ou “constrangimentos servis a respeito da nossa história”.

Ao mesmo tempo, o crescimento da economia britânica é um dos menores entre o Grupo dos 7. Há uma “crise de custo de vida”: juros, inflação e preços da energia nas alturas. Números recorde de famílias estão usando bancos de alimentos, e um a cada cinco britânicos vive na pobreza.

Trata-se de um momento complexo e polarizado, que a cerimônia de sábado tem obrigação de ter em conta. Camilla, a rainha consorte, não usará em sua coroa o Diamante Koh-i-Noor, que foi levado da Índia durante o domínio britânico e é símbolo do roubo colonial; o óleo santo será vegano (sem civeta, almíscar ou âmbar de baleia); e a cerimônia será mais curta e menor, com uma lista de convidados reduzida — o que tem intenção de sinalizar comedimento e consciência ambiental.

Mas mesmo essa coroação econômica ainda custará milhões aos contribuintes britânicos; apesar do montante exato ser revelado publicamente apenas depois do evento, noticia-se que o valor esteja em torno de US$ 125 milhões (R$ 624 milhões). Para muitos, o fato da coroação estar acontecendo é sinal de um país em negação e aferrado a um passado grandioso. Para outros, qualquer concessão para o presente é demais para suportar.

“É particularmente perturbador que não tenha sido requisitado ao Conde de Derby que forneça seus falcões, o que cabe à sua família desde o século 16″, escreveu a colunista Petronella Wyatt, do Daily Telegraph, com aparente seriedade. “Essas pequenas coisas furtam das pessoas propósito na vida.”

Evolução a curto prazo

Trata-se de um delicado número de equilibrismo: descarte a quantidade certa e esteja à altura da ocasião; corte demais e perca qualquer poder que a cerimônia possa possuir. Mas as coroações, assim como as monarquias, tiveram de evoluir por muitíssimo tempo.

No século 18, o Reino Unido era uma monarquia constitucional, na qual o equilíbrio do poder havia oscilado da Coroa para o Parlamento. No rebuliço da primeira Revolução Industrial — e enquanto monarquias europeias, incluindo a opulenta corte francesa em Versailles, eram derrubadas em ondas de revolução política, cerimônias como coroações se tornaram parte inseparável da autoimagem nacional de um país capaz de incorporar mudança sem ruptura, que havia optado por evolução em detrimento de revolução.

A coroação de George IV, em 1821, depois da vitória britânica nas Guerras Napoleônicas, foi uma das mais suntuosas na história do país — uma tentativa, em parte, de ofuscar Napoleão e celebrar a supremacia britânica, mas também sintoma dos gastos escandalosos que o tornaram profundamente impopular.

Em 1831, seu sucessor, William IV, talvez sentindo os humores, preferiu abrir mão completamente de uma coroação. Por fim, ele cedeu à pressão de conselheiros e concordou com uma cerimônia mais simples, sem banquete e com uma procissão mais curta. Ainda assim alguns a consideraram um exagero.

A coroação de Victoria, sobrinha de William, em 1838, na esteira de uma crise financeira transatlântica, foi comedida ao ponto de ser apelidada depreciativamente de “coroação dos tostões”. Mas a cerimônia cresceu de maneira notável: estimados 400 mil britânicos foram às ruas ver a procissão de Victoria passar; houve também uma grande feira no Hyde Park e queima de fogos de artifício.

Uma cerimônia que sempre foi território da nobreza começou a se tornar mais popular. No século 20, suas listas de convidados abririam espaço para membros da classe média e, posteriormente, da classe trabalhadora. Na coroação de Edward VII, em 1902, os trabalhadores ganharam um dia de folga para celebrar o evento — e ainda ganham: neste ano será o dia 8 de maio.

A coroação de Elizabeth, em 1953, após anos de racionamentos e austeridades do pós-guerra e com o Império Britânico já em declínio, tentou projetar um país que ainda era potência global convidando representantes de colônias e domínios britânicos.

Contudo, no Jubileu de Platina, no ano passado, Elizabeth foi saudada não como chefe de uma potência global, mas como símbolo de uma britaneidade nostálgica do pós-guerra, invocada por uma frota de Mini Coopers ou uma mesa de chá da tarde com quitutes de feltro. Foi de um lampejo de despreocupação que, para alguns, só fez sublinhar o lapso entre a ficção imperial e a realidade da vida no Reino Unido de hoje.

Em imagem de arquivo, a rainha Elizabeth II com seu bisneto, o príncipe Louis, durante um dos eventos do Jubileu de Platina da monarca  Foto: Hannah McKay/Reuters - 2/6/2022

Se a coroação do sábado for bem-sucedida, para os 9% dos britânicos que, de acordo com uma pesquisa YouGov, se importam “bastante” com a cerimônia, ela será outro ponto bem costurado do fio que liga nosso presente ao nosso passado. Para os 64% que, segundo a mesma sondagem, não se importam tanto ou não se importam nada com ela, o 8 de maio será, na melhor das hipóteses, um feriado muito caro.

Para Charles III, este sábado será o primeiro grande teste que aferirá se ele é capaz de capitanear uma monarquia moderna e condensada que seja relevante — ou pelo menos não questionável — para a maioria dos britânicos. A Coroa de St. Edward pesa mais de 2 quilos. É muito peso sobre a cabeça de um homem. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Fãs da família real britânica acampam em Londres na rota da procissão da coroação de Charles  Foto: Martin Divisek/EFE

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