GASHORA, Ruanda - Em um complexo extenso de casas de tijolos e novos blocos de apartamentos brilhantes na cidade dividida por dois lagos pequenos, centenas de africanos encontraram o que eles não conseguiram em outro lugar: refúgio após lidarem com a escravidão e tortura na Líbia.
O complexo fica em Gashora, cerca de 65km da capital de Ruanda, Kigali, e oferece um quarto organizado e limpo, com camas de casal, e é uma parada para refugiados que esperam o pedido de asilo ou o reassentamento em outro local. A instalação é um símbolo do esforço governamental para colocar Ruanda como a solução da crise migratória global.
No momento em que as nações ocidentais estão adotando medidas cada vez mais severas contra os imigrantes, a pequena Ruanda abriu suas fronteiras para os refugiados, firmando acordos com países europeus como o Reino Unido e a Dinamarca para receber imigrantes deportados.
O presidente da Ruanda, Paul Kagame, disse que o seu governo é motivado pela responsabilidade moral de fornecer uma solução para um “problema muito complicado em todo o mundo.”
Os críticos, porém, dizem que o país está buscando benefícios econômicos e geopolíticos dos acordos, tentando desviar atenção do seu histórico de violações de direitos humanos. Os acordos de imigração com o Ocidente fazem parte da “vontade de Ruanda de limpar sua imagem no exterior”, segundo a professora de Política Internacional na Universidade de Stirling, no Reino Unido, Toni Haastrup.
Ruanda é um dos menores e mais densamente povoados países da África. Kagame comanda o país de 13 milhões de pessoas desde o fim do genocídio, em 1994, em que quase um milhão de pessoas foram mortas. Desde então, ele transformou o país em uma nação ambiciosa, que vai além das expectativas na política, economia e segurança.
Paul Kagame colocou seu país como um grande anfitrião de refugiados africanos - Ruanda recebe milhares de refugiados de países como Burundi, Congo, Eritreia, Somália e Sudão. Mas agora a Ruanda quer estreitar os laços com os países ocidentais que buscam controlar a imigração ilegal, apesar de ter prendido e ameaçado expulsar imigrantes, além de ter negado asilo aos refugiados LGBTI+. Ativistas denunciam que os acordos são apenas uma estratégia para melhorar a reputação de Paul Kagame.
Em abril, o governo de Boris Johnson, então primeiro-ministro britânico, anunciou um acordo para enviar refugiados para o país africano, com a intenção de diminuir o número de pessoas atravessando o Canal da Mancha. A Ruanda receberia, em troca, 120 milhões de libras em programas de desenvolvimento econômico.
Em 2021, Dinamarca também firmou um contrato de três anos com o país, visando aumentar a cooperação na questão imigratória. Em agosto, a nação europeia fez outro acordo, desta vez para estabelecer um centro de recepção para imigrantes em Kigali. Ambos acordos incendiaram a discussão sobre a imigração, e levantaram questionamentos sobre a responsabilidade dos países mais ricos com os refugiados.
Nos Estados Unidos, os Republicanos, incomodados com a maneira que o governo Biden lidou com a imigração ilegal, enviaram milhares de imigrantes para cidades governadas por Democratas. Nova York foi uma das afetadas, sendo declarado estado de emergência pelo grande número de refugiados latino-americanos chegando na cidade.
O acordo britânico gerou desafios legais no país, e muitos destacaram que o trato não foi aprovado pelo Parlamento do Reino Unido. “Nosso governo está mentindo quando dizem que Ruanda é seguro para refugiados”, disse Clare Moseley, fundadora do Care4Calais, uma das organizações britânicas lutando legalmente para impedir as deportações. A Corte Europeia de Direitos Humanos impediu a decolagem do primeiro voo levando refugiados da Inglaterra para Ruanda.
O acordo é criticado por priorizar benefícios econômicos de curto prazo em detrimento de soluções a longo prazo, que verdadeiramente resolvam a crise de migrantes.
Os opositores afirmam que o acordo não vai impedir que outros imigrantes se arrisquem atravessando o Canal da Mancha. Segundo o Reino Unido, mais de 30 mil pessoas cruzaram o Canal em 2022, comparado com 28 mil durante todo o ano de 2021 e pouco mais de 8.400 em 2020. Apesar das muitas críticas, Liz Truss, a nova primeira-ministra conservadora do Reino Unido, prometeu continuar com o plano.
No centro de trânsito em Gashora, os refugiados recebem três refeições por dia e preparam receitas tradicionais de seus países, como injera e doro wat, pratos típicos da Etiópia. Eles recebem apoio psicológico, se juntam para jogar futebol ou vôlei antes do fim do dia, e se reúnem debaixo de uma árvore para rezar.
Mas em entrevistas recentes, os refugiados afirmaram que não querem ficar no país. “Eu tenho uma meta e ela é ir para um país europeu”, disse Abubakar Ishaq, de 35 anos, que escapou do Sudão. “Eu não posso desistir disso”
Segundo Parvati Nair, professora de Estudos Hispânicos, Culturais e Migratórios na Queen Mary University of London, a transferência de imigrantes entre países assemelha-se à prática colonial de mover pessoas contra a suas vontades para atender os objetivos econômicos e políticos de nações mais ricas.
“Eu não acho que nós deveríamos pegar seres humanos e colocá-los no meio de um acordo econômico sem o consentimento desses seres humanos”, disse Nair. “O problema que não foi tratado é racial, imperial e de quem tem mais poder.”
O impacto psicológico nos refugiados também precisa ser considerado, segundo especialistas. Antes do cancelamento do primeiro voo entre o Reino Unido e Ruanda, alguns refugiados tentaram cometer suicídio, segundo Clare Moseley. No avião, muitos gritaram e imploraram para não serem levados para o país africano.
Ruanda continua afirmando que o acordo com o Reino Unido é o ideal para a situação - que o país deveria ser visto como uma solução para a crise migratória. “Nós não consideramos viver em Ruanda uma punição”, disse Yolanda Makolo, porta-voz oficial do governo.
Mas alguns refugiados afirmam ter vivido experiências devastadoras no país. Um homem do Congo disse ter sido acusado de participar de protestos contra o racionamento da comida dos imigrantes em 2018, em que 12 pessoas morreram. O congolês fugiu para a Quênia, mas foi sequestrado em 2019. “Eu corri pela minha vida”, ele disse, “mas eles me encontraram.”
O refugiado, que pediu para não ter a identidade revelada por medo de sofrer retaliações, afirmou ter sido vendado e torturado por homens que o acusaram de colaborar com a oposição em Ruanda. Ele foi resgatado pela polícia queniana após 10 dias. “Eu não estou em Ruanda, mas sei que nunca estou seguro.”
Tesfay Gush, da Eritreia, contou que, ao ser deportado de Israel para Ruanda, em 2015, oficiais de segurança no aeroporto de Kigali roubaram seus documentos e o forçaram para atravessar a fronteira para Uganda.
Ao chegar em Kampala, capital da Uganda, Gush buscou ir à Europa. Ele suportou ameaças, furtos e espancamentos enquanto atravessava o continente africano até chegar na Líbia. Finalmente, atravessou o Mediterrâneo, chegando na Itália e seguindo para a Suíça. “O governo ruandês não se importava conosco como africanos ou com os nossos direitos como seres humanos”, disse Gush.
O governo nega todas as alegações.
Enquanto isso, no centro de trânsito em Gashora, os refugiados estão ansiosos para chegar ao destino final. Nyalada Gatluak, do Sudão do Sul, conseguiu a permissão para morar na Finlândia com o seu filho de 18 meses, Boum. “Eu vim aqui para que pudesse ir aonde queria. Isso é a Europa, não Ruanda”, ela disse, pouco antes da sua viagem para a Europa.