Por dentro da luta ‘infernal’ de uma unidade ucraniana para retomar um vilarejo a caminho de Bakhmut


O presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, está tentando convencer Washington e o mundo esta semana a dar ao seu país mais dinheiro e mais armas e tem de demonstrar aos seus financiadores que sua contraofensiva está funcionando

Por Mstyslav Chernov e Lori Hinnant

ANDRIIVKA, Ucrânia (AP) — O projétil russo atingiu o sargento acima da orelha esquerda. O líder do pelotão ucraniano ficou fora de combate. O comando transmitiu por rádio a promoção do soldado que o chamara de “irmão” — um homem conhecido como Mensageiro.

Mensageiro sabia que as ordens do pelotão eram avançar através da floresta, na estrada para Bakhmut. Ele hesitou 30 segundos, talvez 1 minuto, ao lado de seu comandante quase morto. E então decidiu: não haveria recuo. “Avante!”, berrou.

Mensageiro disparou contra uma trincheira adiante até ter certeza de que os russos escondidos lá nunca mais voltariam a atirar. Então seus homens atravessaram com dificuldades um campo de árvores carbonizadas na direção de Andriivka — o objetivo da 3.ª Brigada de Assalto desde o início da contraofensiva da Ucrânia deste verão (Hemisfério Norte), cerca de 10 quilômetros ao sul da cidade de Bakhmut.

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Militares ucranianos caminham por uma floresta carbonizada na linha de frente, a poucos quilômetros de Andriivka, região de Donetsk, Ucrânia  Foto: Mstyslav Chernov/

O sargento Gagarin e outros soldados feridos seriam retirados somente depois de escurecer, porque os russos também caçam ucranianos feridos. Dias depois, enquanto se preparava para o funeral de Gagarin, Mensageiro previu seu próprio futuro, com o olhar perdido.

“Essa floresta está levando nossos amigos embora, e isso é a pior coisa”, afirmou ele. “E quando eu penso a respeito de quanto ainda temos de avançar… Muito provavelmente, algum dia serei eu a cair morto nessa floresta, e meus amigos irão simplesmente avançar.”

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Este trecho de floresta morta — com largura equivalente à de duas dúzias de árvores e 2 quilômetros de extensão — que chega ao igualmente morto vilarejo de Andriivka é um dos incontáveis bosques ao longo da estrada para Bakhmut, que é controlada pelos russos e assumiu um significado simbólico enorme na contraofensiva ucraniana. A Associated Press passou duas semanas com a brigada para observar proximamente a velocidade, a direção e o custo da contraofensiva, por meio de cenas registradas na floresta em momentos de descanso da tropa por câmeras nos capacetes dos soldados e drones.

Paramédicos ucranianos da 3ª Brigada carregam um combatente ferido durante os confrontos entre russos e ucranianos em Andriivka, perto de Bakhmut, região de Donetsk, Ucrânia Foto: Mstyslav Chernov/AP

Progresso

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Muita coisa depende desse progresso. O presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, está tentando convencer Washington e o mundo esta semana a dar ao seu país mais dinheiro e mais armas e tem de demonstrar aos seus financiadores que sua contraofensiva está funcionando. O Congresso dos EUA está atualmente considerando o pedido do presidente Joe Biden de fornecer mais US$ 24 bilhões em ajuda militar e humanitária à Ucrânia.

Em entrevista ao “60 Minutes”, Zelenski reconheceu a lentidão da contraofensiva, mas acrescentou, “É importante o fato de estarmos avançando todos os dias e libertando território”. Um estudo publicado anteriormente este mês pelo Royal United Service Institute, um centro de análise de Londres, constatou que as forças ucranianas avançam em média de 700 a 1,2 mil metros a cada cinco dias. Isso dá aos russos tempo de cavar novas trincheiras e minar especialmente o território enquanto recuam.

Composta inteiramente de voluntários e considerada uma das melhores e mais experientes unidades militares da Ucrânia, a 3.ª Brigada de Assalto tem combatido quase incessantemente no leste do país desde janeiro, enquanto pelotões com menos experiência receberam novos treinamentos e armas modernas para combater no sul. A AP está identificando os soldados apenas por seus apelidos e nomes de guerra, que é tanto a maneira com que eles identificam um ao outro quanto uma condição para noticiar profundamente informações a respeito da unidade.

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Um militar ucraniano dispara metralhadora contra posições russas perto de Andriivka, região de Donetsk, Ucrânia Foto: Mstyslav Chernov/AP

Bakhmut foi tomada pela Rússia em maio, principalmente em razão de ondas de ataques do grupo mercenário Wagner, incluindo conscritos recrutados em prisões que, acredita-se, morriam às centenas. A Ucrânia tem tentado recuperar a cidade desde então, esperando impingir um grande baque psicológico na Rússia.

Mas os soldados acionados para cumprir a missão dependem principalmente de blindados da era soviética e armas mais antigas. No mês passado, a 3.ª Brigada de Assalto conseguiu avançar apenas 2 quilômetros, atravessando campos minados e trincheiras com armadilhas explosivas e desviando de fogo de artilharia, granadas lançadas por drones e soldados russos a distâncias em que era possível ouvir suas vozes.

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As dúvidas que os soldados ucranianos encaram agora são as mesmas de seu país: haverá sucesso, a que custo?

Andriivka era seu objetivo — tão importante quanto qualquer faixa de território na Ucrânia. E em 6 de setembro, o dia em que Mensageiro deixou para trás o corpo de seu comandante, ele e seus homens tomaram uma trincheira repleta de lixo no meio de um bosque e mantiveram a posição por quatro dias inteiros. De ambos os lados havia campos minados onde no passado o trigo crescia — e que hoje germinam apenas crateras.

Nos momentos de descanso, Mensageiro folheava um diário escrito a mão por um soldado russo: “Eu estou na guerra há quatro semanas e já sinto saudades da minha mãe”, leu o militar ucraniano.

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Mensageiro perguntou a um dos prisioneiros russos que se renderam se ele sabia algo a respeito do diário. “Não sei nada”, respondeu o russo, “eu cheguei aqui hoje”.

Paramédicos ucranianos da 3ª Brigada carregam um soldado ucraniano ferido durante confrontos em Andriivka, perto de Bakhmut, região de Donetsk, Ucrânia Foto: Mstyslav Chernov/

Talvez o autor fosse o russo cujo corpo Mensageiro usou para se proteger do fogo inimigo. Ou talvez fosse o russo que atirou em Gagarin e acabou morto em resposta alguns minutos depois. Mensageiro não sabia.

Mas naquele instante Gagarin já tinha morrido. E a floresta continuava a consumir vidas.

Pastor, que fora ferido na perna naquela manhã e teve de esperar horas para ser retirado, era o retrato da dor. Chapa também. Um estilhaço de granada atingiu o capacete do Espanhol, e o ferimento o tiraria de combate. Gary não tinha ferimentos óbvios, mas estava tão abalado que mal conseguia falar.

Mensageiro iria ao oeste da Ucrânia representar o pelotão no funeral de Gagarin. Gagarin, apelidado ironicamente com o nome do cosmonauta russo que foi o primeiro homem a chegar ao espaço sideral, foi enterrado em sua cidade-natal, Polonne, a 900 quilômetros do campo de batalha.

Paramédicos ucranianos retiram soldados feridos perto de Bakhmut, região de Donetsk, Ucrânia Foto: Mstyslav Chernov/AP

Conforme militares carregavam o caixão ladeira acima até o cemitério, moradores no caminho do cortejo se ajoelhavam para honrar o morto ao longo das ruas cobertas de flores. Um dos homens que levava o esquife lamentou diante da necrópole do vilarejo, “É a 56.ª vez que eu faço isso”. As redes sociais da 3.ª Brigada de Assalto subiram dezenas de posts com anúncios de funerais desde que a contraofensiva começou.

A mãe de Gagarin quis conversar com Mensageiro, que foi uma das últimas pessoas a ver seu filho vivo. Mas é difícil para ele conversar com civis nestes dias. “Eu sinto que tem um abismo entre nós e os civis agora”, afirmou ele. “Quando a guerra acabar, eu provavelmente vou embora lutar em algum outro lugar.”

Para Mensageiro, a guerra é complicada. Ele diz que gosta da onda de dopamina que bate depois que ele deixa o “moedor de carne horrível”, volta para o quartel e sai do blindado.

“Eu olho para o céu, olho em volta e sinto que estou vivo e que nada é capaz de me matar”, afirmou ele. “É tipo uma epifania — uma sensação que a gente não consegue ter de nenhum outro jeito da vida.”

Mas Mensageiro não queria voltar para aquele bosque próximo a Andriivka. Seus comandantes o ordenaram a tirar dez dias de folga, uma pausa para um combatente cuja angústia eles sentiram apesar de sua calma aparente. Mensageiro usaria o tempo para ir pescar e limpar a mente. “Infelizmente eu só consigo relaxar depois de passar pelo inferno”, afirmou ele amargamente.

No dia do funeral, 13 de setembro, todos os homens em condições de combate estavam na floresta, incluindo um outro sargento do pelotão, Fedya. Em 5 de setembro, Fedya tinha sido ferido por munição de fragmentação, e esse ferimento pode ter lhe salvado a vida. Gagarin assumiu seu lugar na ofensiva e morreu no mesmo dia.

A ofensiva mais recente começou em 14 de setembro. Homens de outras unidades exauridas da 3.ª Brigada de Assalto juntaram-se para o turno normal de três a quatro dias no campo de batalha. Depois de dois meses avançando lentamente através do bosque de freixos, talvez eles finalmente conseguissem atravessar para Andriivka. “Quantas vidas mais teremos de perder?”, perguntou Fedya. “Quantas florestas mais haverá no caminho?” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

ANDRIIVKA, Ucrânia (AP) — O projétil russo atingiu o sargento acima da orelha esquerda. O líder do pelotão ucraniano ficou fora de combate. O comando transmitiu por rádio a promoção do soldado que o chamara de “irmão” — um homem conhecido como Mensageiro.

Mensageiro sabia que as ordens do pelotão eram avançar através da floresta, na estrada para Bakhmut. Ele hesitou 30 segundos, talvez 1 minuto, ao lado de seu comandante quase morto. E então decidiu: não haveria recuo. “Avante!”, berrou.

Mensageiro disparou contra uma trincheira adiante até ter certeza de que os russos escondidos lá nunca mais voltariam a atirar. Então seus homens atravessaram com dificuldades um campo de árvores carbonizadas na direção de Andriivka — o objetivo da 3.ª Brigada de Assalto desde o início da contraofensiva da Ucrânia deste verão (Hemisfério Norte), cerca de 10 quilômetros ao sul da cidade de Bakhmut.

Militares ucranianos caminham por uma floresta carbonizada na linha de frente, a poucos quilômetros de Andriivka, região de Donetsk, Ucrânia  Foto: Mstyslav Chernov/

O sargento Gagarin e outros soldados feridos seriam retirados somente depois de escurecer, porque os russos também caçam ucranianos feridos. Dias depois, enquanto se preparava para o funeral de Gagarin, Mensageiro previu seu próprio futuro, com o olhar perdido.

“Essa floresta está levando nossos amigos embora, e isso é a pior coisa”, afirmou ele. “E quando eu penso a respeito de quanto ainda temos de avançar… Muito provavelmente, algum dia serei eu a cair morto nessa floresta, e meus amigos irão simplesmente avançar.”

Este trecho de floresta morta — com largura equivalente à de duas dúzias de árvores e 2 quilômetros de extensão — que chega ao igualmente morto vilarejo de Andriivka é um dos incontáveis bosques ao longo da estrada para Bakhmut, que é controlada pelos russos e assumiu um significado simbólico enorme na contraofensiva ucraniana. A Associated Press passou duas semanas com a brigada para observar proximamente a velocidade, a direção e o custo da contraofensiva, por meio de cenas registradas na floresta em momentos de descanso da tropa por câmeras nos capacetes dos soldados e drones.

Paramédicos ucranianos da 3ª Brigada carregam um combatente ferido durante os confrontos entre russos e ucranianos em Andriivka, perto de Bakhmut, região de Donetsk, Ucrânia Foto: Mstyslav Chernov/AP

Progresso

Muita coisa depende desse progresso. O presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, está tentando convencer Washington e o mundo esta semana a dar ao seu país mais dinheiro e mais armas e tem de demonstrar aos seus financiadores que sua contraofensiva está funcionando. O Congresso dos EUA está atualmente considerando o pedido do presidente Joe Biden de fornecer mais US$ 24 bilhões em ajuda militar e humanitária à Ucrânia.

Em entrevista ao “60 Minutes”, Zelenski reconheceu a lentidão da contraofensiva, mas acrescentou, “É importante o fato de estarmos avançando todos os dias e libertando território”. Um estudo publicado anteriormente este mês pelo Royal United Service Institute, um centro de análise de Londres, constatou que as forças ucranianas avançam em média de 700 a 1,2 mil metros a cada cinco dias. Isso dá aos russos tempo de cavar novas trincheiras e minar especialmente o território enquanto recuam.

Composta inteiramente de voluntários e considerada uma das melhores e mais experientes unidades militares da Ucrânia, a 3.ª Brigada de Assalto tem combatido quase incessantemente no leste do país desde janeiro, enquanto pelotões com menos experiência receberam novos treinamentos e armas modernas para combater no sul. A AP está identificando os soldados apenas por seus apelidos e nomes de guerra, que é tanto a maneira com que eles identificam um ao outro quanto uma condição para noticiar profundamente informações a respeito da unidade.

Um militar ucraniano dispara metralhadora contra posições russas perto de Andriivka, região de Donetsk, Ucrânia Foto: Mstyslav Chernov/AP

Bakhmut foi tomada pela Rússia em maio, principalmente em razão de ondas de ataques do grupo mercenário Wagner, incluindo conscritos recrutados em prisões que, acredita-se, morriam às centenas. A Ucrânia tem tentado recuperar a cidade desde então, esperando impingir um grande baque psicológico na Rússia.

Mas os soldados acionados para cumprir a missão dependem principalmente de blindados da era soviética e armas mais antigas. No mês passado, a 3.ª Brigada de Assalto conseguiu avançar apenas 2 quilômetros, atravessando campos minados e trincheiras com armadilhas explosivas e desviando de fogo de artilharia, granadas lançadas por drones e soldados russos a distâncias em que era possível ouvir suas vozes.

As dúvidas que os soldados ucranianos encaram agora são as mesmas de seu país: haverá sucesso, a que custo?

Andriivka era seu objetivo — tão importante quanto qualquer faixa de território na Ucrânia. E em 6 de setembro, o dia em que Mensageiro deixou para trás o corpo de seu comandante, ele e seus homens tomaram uma trincheira repleta de lixo no meio de um bosque e mantiveram a posição por quatro dias inteiros. De ambos os lados havia campos minados onde no passado o trigo crescia — e que hoje germinam apenas crateras.

Nos momentos de descanso, Mensageiro folheava um diário escrito a mão por um soldado russo: “Eu estou na guerra há quatro semanas e já sinto saudades da minha mãe”, leu o militar ucraniano.

Mensageiro perguntou a um dos prisioneiros russos que se renderam se ele sabia algo a respeito do diário. “Não sei nada”, respondeu o russo, “eu cheguei aqui hoje”.

Paramédicos ucranianos da 3ª Brigada carregam um soldado ucraniano ferido durante confrontos em Andriivka, perto de Bakhmut, região de Donetsk, Ucrânia Foto: Mstyslav Chernov/

Talvez o autor fosse o russo cujo corpo Mensageiro usou para se proteger do fogo inimigo. Ou talvez fosse o russo que atirou em Gagarin e acabou morto em resposta alguns minutos depois. Mensageiro não sabia.

Mas naquele instante Gagarin já tinha morrido. E a floresta continuava a consumir vidas.

Pastor, que fora ferido na perna naquela manhã e teve de esperar horas para ser retirado, era o retrato da dor. Chapa também. Um estilhaço de granada atingiu o capacete do Espanhol, e o ferimento o tiraria de combate. Gary não tinha ferimentos óbvios, mas estava tão abalado que mal conseguia falar.

Mensageiro iria ao oeste da Ucrânia representar o pelotão no funeral de Gagarin. Gagarin, apelidado ironicamente com o nome do cosmonauta russo que foi o primeiro homem a chegar ao espaço sideral, foi enterrado em sua cidade-natal, Polonne, a 900 quilômetros do campo de batalha.

Paramédicos ucranianos retiram soldados feridos perto de Bakhmut, região de Donetsk, Ucrânia Foto: Mstyslav Chernov/AP

Conforme militares carregavam o caixão ladeira acima até o cemitério, moradores no caminho do cortejo se ajoelhavam para honrar o morto ao longo das ruas cobertas de flores. Um dos homens que levava o esquife lamentou diante da necrópole do vilarejo, “É a 56.ª vez que eu faço isso”. As redes sociais da 3.ª Brigada de Assalto subiram dezenas de posts com anúncios de funerais desde que a contraofensiva começou.

A mãe de Gagarin quis conversar com Mensageiro, que foi uma das últimas pessoas a ver seu filho vivo. Mas é difícil para ele conversar com civis nestes dias. “Eu sinto que tem um abismo entre nós e os civis agora”, afirmou ele. “Quando a guerra acabar, eu provavelmente vou embora lutar em algum outro lugar.”

Para Mensageiro, a guerra é complicada. Ele diz que gosta da onda de dopamina que bate depois que ele deixa o “moedor de carne horrível”, volta para o quartel e sai do blindado.

“Eu olho para o céu, olho em volta e sinto que estou vivo e que nada é capaz de me matar”, afirmou ele. “É tipo uma epifania — uma sensação que a gente não consegue ter de nenhum outro jeito da vida.”

Mas Mensageiro não queria voltar para aquele bosque próximo a Andriivka. Seus comandantes o ordenaram a tirar dez dias de folga, uma pausa para um combatente cuja angústia eles sentiram apesar de sua calma aparente. Mensageiro usaria o tempo para ir pescar e limpar a mente. “Infelizmente eu só consigo relaxar depois de passar pelo inferno”, afirmou ele amargamente.

No dia do funeral, 13 de setembro, todos os homens em condições de combate estavam na floresta, incluindo um outro sargento do pelotão, Fedya. Em 5 de setembro, Fedya tinha sido ferido por munição de fragmentação, e esse ferimento pode ter lhe salvado a vida. Gagarin assumiu seu lugar na ofensiva e morreu no mesmo dia.

A ofensiva mais recente começou em 14 de setembro. Homens de outras unidades exauridas da 3.ª Brigada de Assalto juntaram-se para o turno normal de três a quatro dias no campo de batalha. Depois de dois meses avançando lentamente através do bosque de freixos, talvez eles finalmente conseguissem atravessar para Andriivka. “Quantas vidas mais teremos de perder?”, perguntou Fedya. “Quantas florestas mais haverá no caminho?” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

ANDRIIVKA, Ucrânia (AP) — O projétil russo atingiu o sargento acima da orelha esquerda. O líder do pelotão ucraniano ficou fora de combate. O comando transmitiu por rádio a promoção do soldado que o chamara de “irmão” — um homem conhecido como Mensageiro.

Mensageiro sabia que as ordens do pelotão eram avançar através da floresta, na estrada para Bakhmut. Ele hesitou 30 segundos, talvez 1 minuto, ao lado de seu comandante quase morto. E então decidiu: não haveria recuo. “Avante!”, berrou.

Mensageiro disparou contra uma trincheira adiante até ter certeza de que os russos escondidos lá nunca mais voltariam a atirar. Então seus homens atravessaram com dificuldades um campo de árvores carbonizadas na direção de Andriivka — o objetivo da 3.ª Brigada de Assalto desde o início da contraofensiva da Ucrânia deste verão (Hemisfério Norte), cerca de 10 quilômetros ao sul da cidade de Bakhmut.

Militares ucranianos caminham por uma floresta carbonizada na linha de frente, a poucos quilômetros de Andriivka, região de Donetsk, Ucrânia  Foto: Mstyslav Chernov/

O sargento Gagarin e outros soldados feridos seriam retirados somente depois de escurecer, porque os russos também caçam ucranianos feridos. Dias depois, enquanto se preparava para o funeral de Gagarin, Mensageiro previu seu próprio futuro, com o olhar perdido.

“Essa floresta está levando nossos amigos embora, e isso é a pior coisa”, afirmou ele. “E quando eu penso a respeito de quanto ainda temos de avançar… Muito provavelmente, algum dia serei eu a cair morto nessa floresta, e meus amigos irão simplesmente avançar.”

Este trecho de floresta morta — com largura equivalente à de duas dúzias de árvores e 2 quilômetros de extensão — que chega ao igualmente morto vilarejo de Andriivka é um dos incontáveis bosques ao longo da estrada para Bakhmut, que é controlada pelos russos e assumiu um significado simbólico enorme na contraofensiva ucraniana. A Associated Press passou duas semanas com a brigada para observar proximamente a velocidade, a direção e o custo da contraofensiva, por meio de cenas registradas na floresta em momentos de descanso da tropa por câmeras nos capacetes dos soldados e drones.

Paramédicos ucranianos da 3ª Brigada carregam um combatente ferido durante os confrontos entre russos e ucranianos em Andriivka, perto de Bakhmut, região de Donetsk, Ucrânia Foto: Mstyslav Chernov/AP

Progresso

Muita coisa depende desse progresso. O presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, está tentando convencer Washington e o mundo esta semana a dar ao seu país mais dinheiro e mais armas e tem de demonstrar aos seus financiadores que sua contraofensiva está funcionando. O Congresso dos EUA está atualmente considerando o pedido do presidente Joe Biden de fornecer mais US$ 24 bilhões em ajuda militar e humanitária à Ucrânia.

Em entrevista ao “60 Minutes”, Zelenski reconheceu a lentidão da contraofensiva, mas acrescentou, “É importante o fato de estarmos avançando todos os dias e libertando território”. Um estudo publicado anteriormente este mês pelo Royal United Service Institute, um centro de análise de Londres, constatou que as forças ucranianas avançam em média de 700 a 1,2 mil metros a cada cinco dias. Isso dá aos russos tempo de cavar novas trincheiras e minar especialmente o território enquanto recuam.

Composta inteiramente de voluntários e considerada uma das melhores e mais experientes unidades militares da Ucrânia, a 3.ª Brigada de Assalto tem combatido quase incessantemente no leste do país desde janeiro, enquanto pelotões com menos experiência receberam novos treinamentos e armas modernas para combater no sul. A AP está identificando os soldados apenas por seus apelidos e nomes de guerra, que é tanto a maneira com que eles identificam um ao outro quanto uma condição para noticiar profundamente informações a respeito da unidade.

Um militar ucraniano dispara metralhadora contra posições russas perto de Andriivka, região de Donetsk, Ucrânia Foto: Mstyslav Chernov/AP

Bakhmut foi tomada pela Rússia em maio, principalmente em razão de ondas de ataques do grupo mercenário Wagner, incluindo conscritos recrutados em prisões que, acredita-se, morriam às centenas. A Ucrânia tem tentado recuperar a cidade desde então, esperando impingir um grande baque psicológico na Rússia.

Mas os soldados acionados para cumprir a missão dependem principalmente de blindados da era soviética e armas mais antigas. No mês passado, a 3.ª Brigada de Assalto conseguiu avançar apenas 2 quilômetros, atravessando campos minados e trincheiras com armadilhas explosivas e desviando de fogo de artilharia, granadas lançadas por drones e soldados russos a distâncias em que era possível ouvir suas vozes.

As dúvidas que os soldados ucranianos encaram agora são as mesmas de seu país: haverá sucesso, a que custo?

Andriivka era seu objetivo — tão importante quanto qualquer faixa de território na Ucrânia. E em 6 de setembro, o dia em que Mensageiro deixou para trás o corpo de seu comandante, ele e seus homens tomaram uma trincheira repleta de lixo no meio de um bosque e mantiveram a posição por quatro dias inteiros. De ambos os lados havia campos minados onde no passado o trigo crescia — e que hoje germinam apenas crateras.

Nos momentos de descanso, Mensageiro folheava um diário escrito a mão por um soldado russo: “Eu estou na guerra há quatro semanas e já sinto saudades da minha mãe”, leu o militar ucraniano.

Mensageiro perguntou a um dos prisioneiros russos que se renderam se ele sabia algo a respeito do diário. “Não sei nada”, respondeu o russo, “eu cheguei aqui hoje”.

Paramédicos ucranianos da 3ª Brigada carregam um soldado ucraniano ferido durante confrontos em Andriivka, perto de Bakhmut, região de Donetsk, Ucrânia Foto: Mstyslav Chernov/

Talvez o autor fosse o russo cujo corpo Mensageiro usou para se proteger do fogo inimigo. Ou talvez fosse o russo que atirou em Gagarin e acabou morto em resposta alguns minutos depois. Mensageiro não sabia.

Mas naquele instante Gagarin já tinha morrido. E a floresta continuava a consumir vidas.

Pastor, que fora ferido na perna naquela manhã e teve de esperar horas para ser retirado, era o retrato da dor. Chapa também. Um estilhaço de granada atingiu o capacete do Espanhol, e o ferimento o tiraria de combate. Gary não tinha ferimentos óbvios, mas estava tão abalado que mal conseguia falar.

Mensageiro iria ao oeste da Ucrânia representar o pelotão no funeral de Gagarin. Gagarin, apelidado ironicamente com o nome do cosmonauta russo que foi o primeiro homem a chegar ao espaço sideral, foi enterrado em sua cidade-natal, Polonne, a 900 quilômetros do campo de batalha.

Paramédicos ucranianos retiram soldados feridos perto de Bakhmut, região de Donetsk, Ucrânia Foto: Mstyslav Chernov/AP

Conforme militares carregavam o caixão ladeira acima até o cemitério, moradores no caminho do cortejo se ajoelhavam para honrar o morto ao longo das ruas cobertas de flores. Um dos homens que levava o esquife lamentou diante da necrópole do vilarejo, “É a 56.ª vez que eu faço isso”. As redes sociais da 3.ª Brigada de Assalto subiram dezenas de posts com anúncios de funerais desde que a contraofensiva começou.

A mãe de Gagarin quis conversar com Mensageiro, que foi uma das últimas pessoas a ver seu filho vivo. Mas é difícil para ele conversar com civis nestes dias. “Eu sinto que tem um abismo entre nós e os civis agora”, afirmou ele. “Quando a guerra acabar, eu provavelmente vou embora lutar em algum outro lugar.”

Para Mensageiro, a guerra é complicada. Ele diz que gosta da onda de dopamina que bate depois que ele deixa o “moedor de carne horrível”, volta para o quartel e sai do blindado.

“Eu olho para o céu, olho em volta e sinto que estou vivo e que nada é capaz de me matar”, afirmou ele. “É tipo uma epifania — uma sensação que a gente não consegue ter de nenhum outro jeito da vida.”

Mas Mensageiro não queria voltar para aquele bosque próximo a Andriivka. Seus comandantes o ordenaram a tirar dez dias de folga, uma pausa para um combatente cuja angústia eles sentiram apesar de sua calma aparente. Mensageiro usaria o tempo para ir pescar e limpar a mente. “Infelizmente eu só consigo relaxar depois de passar pelo inferno”, afirmou ele amargamente.

No dia do funeral, 13 de setembro, todos os homens em condições de combate estavam na floresta, incluindo um outro sargento do pelotão, Fedya. Em 5 de setembro, Fedya tinha sido ferido por munição de fragmentação, e esse ferimento pode ter lhe salvado a vida. Gagarin assumiu seu lugar na ofensiva e morreu no mesmo dia.

A ofensiva mais recente começou em 14 de setembro. Homens de outras unidades exauridas da 3.ª Brigada de Assalto juntaram-se para o turno normal de três a quatro dias no campo de batalha. Depois de dois meses avançando lentamente através do bosque de freixos, talvez eles finalmente conseguissem atravessar para Andriivka. “Quantas vidas mais teremos de perder?”, perguntou Fedya. “Quantas florestas mais haverá no caminho?” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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