Por que a América Latina, região mais violenta do mundo, precisa de uma nova abordagem para o crime


Gangues estão ganhando terreno na América Latina; políticas punho de ferro não derrotarão os grupos

Por The Economist
Atualização:

Em 2019, o Equador era um país turístico e pacífico. O índice de homicídios se situava abaixo de 7 a cada 100 mil habitantes, aproximadamente o mesmo dos Estados Unidos. E em 2023, foi a quase 45 a cada 100 mil habitantes. Durán, no Equador, a cidade mais violenta do planeta, teve uma estarrecedora taxa de homicídios de 148 a cada 100 mil habitantes no ano passado. O país foi varrido por uma onda de crime organizado com foco em tráfico de cocaína da Colômbia à Europa via portos equatorianos. O restante da América Latina também sofre conforme grupos criminosos transnacionais se expandem. Mesmo a sossegada Costa Rica e o Uruguai estão testemunhando altas na violência.

Em resposta, governos da região (incluindo o equatoriano) têm se mostrado afeitos à “mano dura”, ou políticas punho de ferro. As medidas incluem decretações de estados de emergência, encarceramentos massivos e indiscriminados e acionamentos do Exército às ruas para manutenção da ordem. Essas táticas receberam impulso de seu aparente sucesso em El Salvador. Em março de 2022, o presidente salvadorenho, Nayib Bukele, declarou estado de emergência depois que gangues mataram 87 pessoas em um único fim de semana. Desde então, o governo colocou na cadeia quase 80 mil pessoas — mais de 1% da população do país. O índice de homicídios caiu para níveis quase europeus, e Bukele se tornou talvez o líder eleito mais popular do mundo. Em um referendo realizado em 21 de abril, os equatorianos apoiaram esmagadoramente as medidas mais duras contra a criminalidade, permitindo ao Exército patrulhar as ruas e controlar as penitenciárias permanentemente e removendo a possibilidade de relaxamento de prisão para detentos de bom comportamento.

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Mas ainda que pareça ter ajudado El Salvador, a mano dura não funcionará no restante da América Latina. Grupos de crime organizado de outros países são mais ricos, mais bem armados e mais globalizados que as desordenadas quadrilhas salvadorenhas. Uma abordagem mais paciente e centrada, liderada por polícias civis e tribunais, é a melhor maneira de combater violência a longo prazo.

O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, discursa em sua cerimônia de posse em San Salvador, no dia 3 de maio  Foto: Marvin Recinos/AFP

Para entender por quê, considere as maneiras como o crime organizado se proliferou na região. As gangues constituíram portfólios cada vez mais lucrativos e diversificados. A produção de cocaína dobrou na década passada, enquanto a demanda cresce em todo o mundo, particularmente na Europa. Opióides sintéticos, tráfico de pessoas, mineração ilegal e roubo de petróleo também dão dinheiro. O encanto dessas torrentes de lucros combinado a políticas de segurança de Estado equivocadas ocasionou guerras entre gangues rivais e fragmentações de redes criminosas. A disponibilidade de armamentos poderosos, contrabandeados facilmente do maior mercado produtor de armas legalizadas no planeta, os EUA, torna esses combates ainda mais mortíferos. A impunidade é generalizada.

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Essas condições fazem aumentar os índices de violência, o que por sua vez prejudica a democracia e retarda o crescimento econômico. A criminalidade custa à América Latina, em média, o equivalente a 3% de seu PIB, segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento: aproximadamente o mesmo que a região gasta em infraestrutura — o que acelera uma espiral de declínio. Economias assoladas pelo crime oferecem menos chances aos jovens, tornando os grupos criminosos mais atrativos, perpetuando a violência e impondo custos mais pesados.

A mano dura de Bukele tem funcionado — por enquanto — porque as gangues de El Salvador eram “pobres e predatórias”, afirma Christopher Blattman da Universidade de Chicago. Os grupos criminosos salvadorenhos dependiam pesadamente de extorsão, controlando bairros e estabelecendo postos de controle, cobrando pedágio de qualquer um que quisesse passar. Os homicídios foram às alturas conforme as gangues lutaram por território, apesar de o retorno ser escasso. Os integrantes de gangues faziam em média cerca de US$ 15 por semana. Crianças eram recrutadas com frequência, às vezes à força, porque podiam ser mal pagas e eram tratadas com leniência pelos tribunais. (Entre 2010 e 2014, 219 crianças foram mortas a caminho ou retornando da escola por se recusar a aderir a gangues salvadorenhas.) O modelo de negócio da extorsão significou que as gangues tiveram de operar abertamente nas áreas urbanas mais densamente povoadas para maximizar os lucros, então foi fácil sitiá-las. Tatuagens com símbolos das gangues também ajudaram a identificar bandidos.

Cidadãos de El Salvador sentam em uma loja ao lado de um militar do Exército do país em San Antonio Los Ranchos, em El Salvador  Foto: Salvador Melendez/AP
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Parte do declínio inicial na violência pode ter ocorrido porque Bukele subornou as gangues, independentemente de sua mano dura. Documentos judiciais sugerem que seu governo negociou um pacto secreto segundo o qual chefões do crime ganharam dinheiro, prostitutas e proteção contra extradição em troca de apoio ao partido de Bukele em eleições e uma redução no índice de homicídios (o que o governo nega). Quando a trégua se rompeu, as gangues fizeram o massacre daquele fim de semana, e o presidente mudou de tática, ordenando a repressão.

Não ficou claro como os líderes dos grupos criminosos vinham escapando até então. Em uma gravação obtida pela agência de jornalismo investigativo El Faro, o principal negociador do governo conversa com um integrante de gangue pouco após o massacre e afirma que retirou pessoalmente um chefão da prisão e o levou para a vizinha Guatemala. O Departamento do Tesouro dos EUA impôs sanções contra o negociador e o diretor do sistema carcerário de El Salvador.

Muitos presos são gângsters de menor patente — ou simplesmente jovens tatuados. Pelo menos seis líderes da maior gangue salvadorenha, a Mara Salvatrucha, foram presos recentemente fora de El Salvador e aguardam julgamento nos EUA.

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Cansados da violência, os salvadorenhos deram boas-vindas à repressão ao crime. O índice de homicídios caiu de 53 a cada 100 mil habitantes em 2018 para 2,4 no ano passado, de acordo com dados do governo. Em fevereiro, depois de tirar do caminho uma proibição constitucional à sua reeleição, Bukele conquistou o segundo mandato com 85% dos votos válidos. Depois foi saudado pela Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC), a cúpula anual da direita americana. Políticos têm visitado El Salvador para aprender com o “modelo Bukele”. A repressão ao crime no Equador cheira a isso também, apesar de Daniel Noboa ser mais democrático.

Os pilares das políticas mano dura — encarceramento em massa e policiamento militarizado — podem agradar multidões, mas criam problemas mesmo quando parecem resolver as coisas. Consideremos as prisões. As gangues da região transformam as cadeias em “quartéis-generais, centros de recrutamento e unidades econômicas”, afirma Javier Acuña, ex-conselheiro da agência penitenciária do Equador. Emiliano (não é seu nome real), que recentemente saiu da prisão de Latacunga, ao sul de Quito, a capital, relatou que os detentos conseguem comprar bebidas alcoólicas, sexo e até frango frito, entregue por drones, se tiverem dinheiro suficiente ou cocaína, a moeda preferida. Não havia agentes nas torres de vigilância; as gangues transformaram-nas em arsenais.

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Corrupção, não correção

Nesse contexto, colocar mais gente na prisão simplesmente aumenta o número de integrantes das gangues. Muitos detentos juntam-se a alguma facção criminosa para sobreviver. Quando João foi preso na cidade brasileira de São Paulo, 2008, o primeiro detento que ele conheceu lhe entregou uma barra de sabão, uma troca de roupa, uma toalha — e um manual de ética que bania estupros e roubos. O homem pertencia ao Primeiro Comando da Capital (PCC), uma gangue fundada após um massacre praticado pela polícia em uma penitenciária de São Paulo. João entrou no PCC e ascendeu rapidamente na hierarquia. Apesar de ter deixado o PCC, ele afirma que a facção cuidou dele melhor que o Estado. Muitos detentos concordam. Conforme o índice de encarceramento estourou no Brasil, a gangue se espalhou. Hoje, o PCC é a maior facção criminosa da América do Sul, ligada à ‘Ndrangheta, o grupo mafioso mais poderoso da Itália, e aos chefões da droga nos Bálcãs.

Dar ao Exército atribuições de policiamento também pode sair pela culatra. Exércitos são treinados para defender Estados de ameaças estrangeiras, não para investigar crimes e preencher boletins de ocorrência. Após se tornar presidente do México, em 2018, Andrés Manuel López Obrador dissolveu a Polícia Federal e a substituiu por uma Guarda Nacional. E também incrementou em 150% o orçamento das Forças Armadas.

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Os resultados têm sido desastrosos. O mandato de seis anos de López Obrador foi o mais sangrento no México neste século. A violência assolou a campanha para as próximas eleições, com 63 candidatos e indivíduos ligados aos políticos assassinados até aqui. A Guarda Nacional é incompetente. Em 2018, a Polícia Federal apreendeu cerca de 2,5 toneladas de cocaína. Em 2022, a Guarda Nacional conseguiu apreender cerca de metade disso, com um contingente três vezes maior.

O presidente do México, Andres Lopez Obrador, participa de um comício ao lado da candidata a presidência Claudia Sheinbaum, na Cidade do México  Foto: Fernando Llano/AP

Parte da justificativa para usar o Exército é que soldados supostamente são mais difíceis de corromper do que policiais ou juízes. Mas isso pode ocorrer simplesmente porque eles passam menos tempo com criminosos. Uma vez que os militares passam a controlar prisões e patrulhar as ruas, “não há nenhuma garantia estrutural de que eles não serão comprados também”, afirma o ex-candidato à presidência do Equador Jan Topic. Em 2020, o general mexicano Salvador Cienfuegos, ministro da Defesa de 2012 a 2018, foi preso nos EUA acusado de envolvimento com gangues. (E foi solto após López Obrador espernear. Seus advogados afirmam que ele é inocente e não deveria ter sido indiciado.) Em 30 de abril, o presidente colombiano, Gustavo Petro, anunciou que milhares de armamentos, incluindo mísseis, “desapareceram” de duas bases militares.

Além dos problemas do encarceramento em massa e do policiamento militarizado, os maiores grupos criminosos da América Latina são mais ricos e poderosos do que os brutos que aterrorizavam El Salvador. A Pemex, estatal de petróleo do México, perdeu US$ 3 bilhões em roubos de petróleo durante o mandato de López Obrador. A gangue mais poderosa da Colômbia, o Clã do Golfo, ganha anualmente US$ 4,4 bilhões não apenas com exportações de drogas, mas também com tráfico de pessoas, extorsão e mineração ilegal, de acordo com o International Crisis Group, um instituto de análise. Partes da Amazônia cada vez mais têm virado terras sem lei conforme as gangues lutam para controlar o tráfico de animais silvestres, a produção de madeira ilegal e os garimpos de ouro. Enquanto as gangues de El Salvador sugavam dinheiro de suas comunidades, essas empresas criam empregos e geram capital.

Os limites da força

Cooperações internacionais também fortalecem as gangues latino-americanas. Em 2016, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), que controlavam o comércio de cocaína no vizinho Equador, assinaram um acordo de paz com o governo colombiano e se retiraram — o que produziu um vácuo justamente num momento em que o mercado da cocaína explodia. Vislumbrando oportunidade, grupos mafiosos albaneses, guerrilheiros colombianos dissidentes e os cartéis mexicanos rivais de Sinaloa e Jalisco Nova Geração forçaram a entrada. E subcontrataram gangues equatorianas, com frequência pagando por cargas de cocaína com armamentos militares. O índice de homicídios aumentou no Equador. Sozinho, nenhum Estado é capaz de derrotar gangues ativas em seu território porque elas também operam em todos os países vizinhos.

Diante desses desafios, o Equador e outros países latino-americanos assolados por violência de gangues fariam melhor se concentrassem sua atenção nos indivíduos mais brutais em vez de tentar desmantelar todos os grupos de crime organizado de uma só vez. Uma estratégia com alvos específicos, conhecida como dissuasão focada, significa deixar estar os grupos menos sanguinários. “Nenhuma força policial no planeta tem capacidade de atacar tudo de uma vez”, afirma Rodrigo Canales, da Universidade de Boston. “Mas colocando foco sobre a violência extrema é possível tornar as coisas difíceis para o grupo, que passa a se dedicar a diminuir a violência.”

O presidente do Equador, Daniel Noboa, discursa na sede do Conselho Nacional Eleitoral no dia da votação de um referendo sobre segurança no Equador  Foto: Rodrigo Buendia/AFP

Quando se elegeu prefeita da Cidade do México, em 2017, Claudia Sheinbaum, a candidata mais bem colocada na disputa presidencial mexicana, convidou policiais e acadêmicos americanos (incluindo Canales) para testar a dissuasão focada no bairro Plateros, com 260 mil habitantes e um índice de homicídio de 22 a cada 100 mil habitantes. Eles reuniram a inteligência da polícia, o escritório da Procuradoria-Geral e serviços sociais em uma análise minuciosa dos casos de homicídios com arma de fogo.

A equipe identificou 25 homens muito propensos a matar e então ser mortos — e então ofereceu-lhes uma mescla entre favores e ameaças. Os favores incluíam aconselhamentos e, em casos extremos, realocações. A ameaça era que esses homens sabiam que eram vigiados constantemente e seriam encontrados assim que cometessem qualquer crime. A equipe também criou uma base de dados que confronta casos de homicídio e ferimentos com arma de fogo com uma média quinquenal em Plateros e bairros similares nas proximidades. Em 2023, o índice de homicídios em Plateros tinha caído para 9 a cada 100 mil moradores.

No curto prazo, a dissuasão focada é capaz de reduzir a violência. Mas também pode permitir às gangues se consolidar. Paz significa que os cidadãos ficam menos propensos a denunciar, e o Estado mais propenso a não combater as gangues. Os grupos criminosos mais bem-sucedidos preferem a paz à guerra. São Paulo ficou mais segura depois que o PCC conquistou o monopólio da força. Na cidade colombiana de Medellín, o índice de homicídios despencou após as gangues de alto nível firmarem um pacto, em 2009. Dados de municípios mexicanos sugerem que níveis elevados de saturação de uma gangue podem diminuir a incidência de homicídios.

Parentes de presos observam os detentos saírem de um presidio para outro em San Salvador, El Salvador  Foto: Daniele Volpe/NYT

É por isso que soluções a médio prazo são necessárias. Uma vez que os índices de violência se estabilizam, os Estados devem colocar foco em prejudicar os lucros dos criminosos impondo custos maiores para suas atividades — o que significa expurgar instituições de autoridades corruptas e impulsionar a criação de unidades especiais para detectar lavagem de dinheiro e tráfico de armas. Entre 2016 e 2020, houve apenas 12 condenações por lavagem de dinheiro no Equador. Em 2022, o governo criou uma unidade especial para combater corrupção e crime organizado. A procuradora-geral, Diana Salazar, está liderando uma investigação corajosa sobre policiais, políticos e magistrados que pactuam com gangues.

Em última instância, os Estados deveriam se dedicar a reduzir o recrutamento para as gangues e tornar públicas as nefastas realidades de seus integrantes. O índice mundial de homicídios de homens com idades entre 15 e 29 anos é de 16 a cada 100 mil habitantes; na América Latina é 60. Escolas, onde crianças são recrutadas com frequência, devem ser o ponto inicial. Um artigo publicado no ano passado na Science, uma revista científica americana, estima que, se os números de recrutamento das gangues no México baixassem pela metade, as mortes também baixariam pela metade. No longo prazo, as gangues devem temer mais pessoas como Salazar e um Estado-babá do que um homem-forte e suas repressões. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Em 2019, o Equador era um país turístico e pacífico. O índice de homicídios se situava abaixo de 7 a cada 100 mil habitantes, aproximadamente o mesmo dos Estados Unidos. E em 2023, foi a quase 45 a cada 100 mil habitantes. Durán, no Equador, a cidade mais violenta do planeta, teve uma estarrecedora taxa de homicídios de 148 a cada 100 mil habitantes no ano passado. O país foi varrido por uma onda de crime organizado com foco em tráfico de cocaína da Colômbia à Europa via portos equatorianos. O restante da América Latina também sofre conforme grupos criminosos transnacionais se expandem. Mesmo a sossegada Costa Rica e o Uruguai estão testemunhando altas na violência.

Em resposta, governos da região (incluindo o equatoriano) têm se mostrado afeitos à “mano dura”, ou políticas punho de ferro. As medidas incluem decretações de estados de emergência, encarceramentos massivos e indiscriminados e acionamentos do Exército às ruas para manutenção da ordem. Essas táticas receberam impulso de seu aparente sucesso em El Salvador. Em março de 2022, o presidente salvadorenho, Nayib Bukele, declarou estado de emergência depois que gangues mataram 87 pessoas em um único fim de semana. Desde então, o governo colocou na cadeia quase 80 mil pessoas — mais de 1% da população do país. O índice de homicídios caiu para níveis quase europeus, e Bukele se tornou talvez o líder eleito mais popular do mundo. Em um referendo realizado em 21 de abril, os equatorianos apoiaram esmagadoramente as medidas mais duras contra a criminalidade, permitindo ao Exército patrulhar as ruas e controlar as penitenciárias permanentemente e removendo a possibilidade de relaxamento de prisão para detentos de bom comportamento.

Mas ainda que pareça ter ajudado El Salvador, a mano dura não funcionará no restante da América Latina. Grupos de crime organizado de outros países são mais ricos, mais bem armados e mais globalizados que as desordenadas quadrilhas salvadorenhas. Uma abordagem mais paciente e centrada, liderada por polícias civis e tribunais, é a melhor maneira de combater violência a longo prazo.

O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, discursa em sua cerimônia de posse em San Salvador, no dia 3 de maio  Foto: Marvin Recinos/AFP

Para entender por quê, considere as maneiras como o crime organizado se proliferou na região. As gangues constituíram portfólios cada vez mais lucrativos e diversificados. A produção de cocaína dobrou na década passada, enquanto a demanda cresce em todo o mundo, particularmente na Europa. Opióides sintéticos, tráfico de pessoas, mineração ilegal e roubo de petróleo também dão dinheiro. O encanto dessas torrentes de lucros combinado a políticas de segurança de Estado equivocadas ocasionou guerras entre gangues rivais e fragmentações de redes criminosas. A disponibilidade de armamentos poderosos, contrabandeados facilmente do maior mercado produtor de armas legalizadas no planeta, os EUA, torna esses combates ainda mais mortíferos. A impunidade é generalizada.

Essas condições fazem aumentar os índices de violência, o que por sua vez prejudica a democracia e retarda o crescimento econômico. A criminalidade custa à América Latina, em média, o equivalente a 3% de seu PIB, segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento: aproximadamente o mesmo que a região gasta em infraestrutura — o que acelera uma espiral de declínio. Economias assoladas pelo crime oferecem menos chances aos jovens, tornando os grupos criminosos mais atrativos, perpetuando a violência e impondo custos mais pesados.

A mano dura de Bukele tem funcionado — por enquanto — porque as gangues de El Salvador eram “pobres e predatórias”, afirma Christopher Blattman da Universidade de Chicago. Os grupos criminosos salvadorenhos dependiam pesadamente de extorsão, controlando bairros e estabelecendo postos de controle, cobrando pedágio de qualquer um que quisesse passar. Os homicídios foram às alturas conforme as gangues lutaram por território, apesar de o retorno ser escasso. Os integrantes de gangues faziam em média cerca de US$ 15 por semana. Crianças eram recrutadas com frequência, às vezes à força, porque podiam ser mal pagas e eram tratadas com leniência pelos tribunais. (Entre 2010 e 2014, 219 crianças foram mortas a caminho ou retornando da escola por se recusar a aderir a gangues salvadorenhas.) O modelo de negócio da extorsão significou que as gangues tiveram de operar abertamente nas áreas urbanas mais densamente povoadas para maximizar os lucros, então foi fácil sitiá-las. Tatuagens com símbolos das gangues também ajudaram a identificar bandidos.

Cidadãos de El Salvador sentam em uma loja ao lado de um militar do Exército do país em San Antonio Los Ranchos, em El Salvador  Foto: Salvador Melendez/AP

Parte do declínio inicial na violência pode ter ocorrido porque Bukele subornou as gangues, independentemente de sua mano dura. Documentos judiciais sugerem que seu governo negociou um pacto secreto segundo o qual chefões do crime ganharam dinheiro, prostitutas e proteção contra extradição em troca de apoio ao partido de Bukele em eleições e uma redução no índice de homicídios (o que o governo nega). Quando a trégua se rompeu, as gangues fizeram o massacre daquele fim de semana, e o presidente mudou de tática, ordenando a repressão.

Não ficou claro como os líderes dos grupos criminosos vinham escapando até então. Em uma gravação obtida pela agência de jornalismo investigativo El Faro, o principal negociador do governo conversa com um integrante de gangue pouco após o massacre e afirma que retirou pessoalmente um chefão da prisão e o levou para a vizinha Guatemala. O Departamento do Tesouro dos EUA impôs sanções contra o negociador e o diretor do sistema carcerário de El Salvador.

Muitos presos são gângsters de menor patente — ou simplesmente jovens tatuados. Pelo menos seis líderes da maior gangue salvadorenha, a Mara Salvatrucha, foram presos recentemente fora de El Salvador e aguardam julgamento nos EUA.

Cansados da violência, os salvadorenhos deram boas-vindas à repressão ao crime. O índice de homicídios caiu de 53 a cada 100 mil habitantes em 2018 para 2,4 no ano passado, de acordo com dados do governo. Em fevereiro, depois de tirar do caminho uma proibição constitucional à sua reeleição, Bukele conquistou o segundo mandato com 85% dos votos válidos. Depois foi saudado pela Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC), a cúpula anual da direita americana. Políticos têm visitado El Salvador para aprender com o “modelo Bukele”. A repressão ao crime no Equador cheira a isso também, apesar de Daniel Noboa ser mais democrático.

Os pilares das políticas mano dura — encarceramento em massa e policiamento militarizado — podem agradar multidões, mas criam problemas mesmo quando parecem resolver as coisas. Consideremos as prisões. As gangues da região transformam as cadeias em “quartéis-generais, centros de recrutamento e unidades econômicas”, afirma Javier Acuña, ex-conselheiro da agência penitenciária do Equador. Emiliano (não é seu nome real), que recentemente saiu da prisão de Latacunga, ao sul de Quito, a capital, relatou que os detentos conseguem comprar bebidas alcoólicas, sexo e até frango frito, entregue por drones, se tiverem dinheiro suficiente ou cocaína, a moeda preferida. Não havia agentes nas torres de vigilância; as gangues transformaram-nas em arsenais.

Corrupção, não correção

Nesse contexto, colocar mais gente na prisão simplesmente aumenta o número de integrantes das gangues. Muitos detentos juntam-se a alguma facção criminosa para sobreviver. Quando João foi preso na cidade brasileira de São Paulo, 2008, o primeiro detento que ele conheceu lhe entregou uma barra de sabão, uma troca de roupa, uma toalha — e um manual de ética que bania estupros e roubos. O homem pertencia ao Primeiro Comando da Capital (PCC), uma gangue fundada após um massacre praticado pela polícia em uma penitenciária de São Paulo. João entrou no PCC e ascendeu rapidamente na hierarquia. Apesar de ter deixado o PCC, ele afirma que a facção cuidou dele melhor que o Estado. Muitos detentos concordam. Conforme o índice de encarceramento estourou no Brasil, a gangue se espalhou. Hoje, o PCC é a maior facção criminosa da América do Sul, ligada à ‘Ndrangheta, o grupo mafioso mais poderoso da Itália, e aos chefões da droga nos Bálcãs.

Dar ao Exército atribuições de policiamento também pode sair pela culatra. Exércitos são treinados para defender Estados de ameaças estrangeiras, não para investigar crimes e preencher boletins de ocorrência. Após se tornar presidente do México, em 2018, Andrés Manuel López Obrador dissolveu a Polícia Federal e a substituiu por uma Guarda Nacional. E também incrementou em 150% o orçamento das Forças Armadas.

Os resultados têm sido desastrosos. O mandato de seis anos de López Obrador foi o mais sangrento no México neste século. A violência assolou a campanha para as próximas eleições, com 63 candidatos e indivíduos ligados aos políticos assassinados até aqui. A Guarda Nacional é incompetente. Em 2018, a Polícia Federal apreendeu cerca de 2,5 toneladas de cocaína. Em 2022, a Guarda Nacional conseguiu apreender cerca de metade disso, com um contingente três vezes maior.

O presidente do México, Andres Lopez Obrador, participa de um comício ao lado da candidata a presidência Claudia Sheinbaum, na Cidade do México  Foto: Fernando Llano/AP

Parte da justificativa para usar o Exército é que soldados supostamente são mais difíceis de corromper do que policiais ou juízes. Mas isso pode ocorrer simplesmente porque eles passam menos tempo com criminosos. Uma vez que os militares passam a controlar prisões e patrulhar as ruas, “não há nenhuma garantia estrutural de que eles não serão comprados também”, afirma o ex-candidato à presidência do Equador Jan Topic. Em 2020, o general mexicano Salvador Cienfuegos, ministro da Defesa de 2012 a 2018, foi preso nos EUA acusado de envolvimento com gangues. (E foi solto após López Obrador espernear. Seus advogados afirmam que ele é inocente e não deveria ter sido indiciado.) Em 30 de abril, o presidente colombiano, Gustavo Petro, anunciou que milhares de armamentos, incluindo mísseis, “desapareceram” de duas bases militares.

Além dos problemas do encarceramento em massa e do policiamento militarizado, os maiores grupos criminosos da América Latina são mais ricos e poderosos do que os brutos que aterrorizavam El Salvador. A Pemex, estatal de petróleo do México, perdeu US$ 3 bilhões em roubos de petróleo durante o mandato de López Obrador. A gangue mais poderosa da Colômbia, o Clã do Golfo, ganha anualmente US$ 4,4 bilhões não apenas com exportações de drogas, mas também com tráfico de pessoas, extorsão e mineração ilegal, de acordo com o International Crisis Group, um instituto de análise. Partes da Amazônia cada vez mais têm virado terras sem lei conforme as gangues lutam para controlar o tráfico de animais silvestres, a produção de madeira ilegal e os garimpos de ouro. Enquanto as gangues de El Salvador sugavam dinheiro de suas comunidades, essas empresas criam empregos e geram capital.

Os limites da força

Cooperações internacionais também fortalecem as gangues latino-americanas. Em 2016, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), que controlavam o comércio de cocaína no vizinho Equador, assinaram um acordo de paz com o governo colombiano e se retiraram — o que produziu um vácuo justamente num momento em que o mercado da cocaína explodia. Vislumbrando oportunidade, grupos mafiosos albaneses, guerrilheiros colombianos dissidentes e os cartéis mexicanos rivais de Sinaloa e Jalisco Nova Geração forçaram a entrada. E subcontrataram gangues equatorianas, com frequência pagando por cargas de cocaína com armamentos militares. O índice de homicídios aumentou no Equador. Sozinho, nenhum Estado é capaz de derrotar gangues ativas em seu território porque elas também operam em todos os países vizinhos.

Diante desses desafios, o Equador e outros países latino-americanos assolados por violência de gangues fariam melhor se concentrassem sua atenção nos indivíduos mais brutais em vez de tentar desmantelar todos os grupos de crime organizado de uma só vez. Uma estratégia com alvos específicos, conhecida como dissuasão focada, significa deixar estar os grupos menos sanguinários. “Nenhuma força policial no planeta tem capacidade de atacar tudo de uma vez”, afirma Rodrigo Canales, da Universidade de Boston. “Mas colocando foco sobre a violência extrema é possível tornar as coisas difíceis para o grupo, que passa a se dedicar a diminuir a violência.”

O presidente do Equador, Daniel Noboa, discursa na sede do Conselho Nacional Eleitoral no dia da votação de um referendo sobre segurança no Equador  Foto: Rodrigo Buendia/AFP

Quando se elegeu prefeita da Cidade do México, em 2017, Claudia Sheinbaum, a candidata mais bem colocada na disputa presidencial mexicana, convidou policiais e acadêmicos americanos (incluindo Canales) para testar a dissuasão focada no bairro Plateros, com 260 mil habitantes e um índice de homicídio de 22 a cada 100 mil habitantes. Eles reuniram a inteligência da polícia, o escritório da Procuradoria-Geral e serviços sociais em uma análise minuciosa dos casos de homicídios com arma de fogo.

A equipe identificou 25 homens muito propensos a matar e então ser mortos — e então ofereceu-lhes uma mescla entre favores e ameaças. Os favores incluíam aconselhamentos e, em casos extremos, realocações. A ameaça era que esses homens sabiam que eram vigiados constantemente e seriam encontrados assim que cometessem qualquer crime. A equipe também criou uma base de dados que confronta casos de homicídio e ferimentos com arma de fogo com uma média quinquenal em Plateros e bairros similares nas proximidades. Em 2023, o índice de homicídios em Plateros tinha caído para 9 a cada 100 mil moradores.

No curto prazo, a dissuasão focada é capaz de reduzir a violência. Mas também pode permitir às gangues se consolidar. Paz significa que os cidadãos ficam menos propensos a denunciar, e o Estado mais propenso a não combater as gangues. Os grupos criminosos mais bem-sucedidos preferem a paz à guerra. São Paulo ficou mais segura depois que o PCC conquistou o monopólio da força. Na cidade colombiana de Medellín, o índice de homicídios despencou após as gangues de alto nível firmarem um pacto, em 2009. Dados de municípios mexicanos sugerem que níveis elevados de saturação de uma gangue podem diminuir a incidência de homicídios.

Parentes de presos observam os detentos saírem de um presidio para outro em San Salvador, El Salvador  Foto: Daniele Volpe/NYT

É por isso que soluções a médio prazo são necessárias. Uma vez que os índices de violência se estabilizam, os Estados devem colocar foco em prejudicar os lucros dos criminosos impondo custos maiores para suas atividades — o que significa expurgar instituições de autoridades corruptas e impulsionar a criação de unidades especiais para detectar lavagem de dinheiro e tráfico de armas. Entre 2016 e 2020, houve apenas 12 condenações por lavagem de dinheiro no Equador. Em 2022, o governo criou uma unidade especial para combater corrupção e crime organizado. A procuradora-geral, Diana Salazar, está liderando uma investigação corajosa sobre policiais, políticos e magistrados que pactuam com gangues.

Em última instância, os Estados deveriam se dedicar a reduzir o recrutamento para as gangues e tornar públicas as nefastas realidades de seus integrantes. O índice mundial de homicídios de homens com idades entre 15 e 29 anos é de 16 a cada 100 mil habitantes; na América Latina é 60. Escolas, onde crianças são recrutadas com frequência, devem ser o ponto inicial. Um artigo publicado no ano passado na Science, uma revista científica americana, estima que, se os números de recrutamento das gangues no México baixassem pela metade, as mortes também baixariam pela metade. No longo prazo, as gangues devem temer mais pessoas como Salazar e um Estado-babá do que um homem-forte e suas repressões. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Em 2019, o Equador era um país turístico e pacífico. O índice de homicídios se situava abaixo de 7 a cada 100 mil habitantes, aproximadamente o mesmo dos Estados Unidos. E em 2023, foi a quase 45 a cada 100 mil habitantes. Durán, no Equador, a cidade mais violenta do planeta, teve uma estarrecedora taxa de homicídios de 148 a cada 100 mil habitantes no ano passado. O país foi varrido por uma onda de crime organizado com foco em tráfico de cocaína da Colômbia à Europa via portos equatorianos. O restante da América Latina também sofre conforme grupos criminosos transnacionais se expandem. Mesmo a sossegada Costa Rica e o Uruguai estão testemunhando altas na violência.

Em resposta, governos da região (incluindo o equatoriano) têm se mostrado afeitos à “mano dura”, ou políticas punho de ferro. As medidas incluem decretações de estados de emergência, encarceramentos massivos e indiscriminados e acionamentos do Exército às ruas para manutenção da ordem. Essas táticas receberam impulso de seu aparente sucesso em El Salvador. Em março de 2022, o presidente salvadorenho, Nayib Bukele, declarou estado de emergência depois que gangues mataram 87 pessoas em um único fim de semana. Desde então, o governo colocou na cadeia quase 80 mil pessoas — mais de 1% da população do país. O índice de homicídios caiu para níveis quase europeus, e Bukele se tornou talvez o líder eleito mais popular do mundo. Em um referendo realizado em 21 de abril, os equatorianos apoiaram esmagadoramente as medidas mais duras contra a criminalidade, permitindo ao Exército patrulhar as ruas e controlar as penitenciárias permanentemente e removendo a possibilidade de relaxamento de prisão para detentos de bom comportamento.

Mas ainda que pareça ter ajudado El Salvador, a mano dura não funcionará no restante da América Latina. Grupos de crime organizado de outros países são mais ricos, mais bem armados e mais globalizados que as desordenadas quadrilhas salvadorenhas. Uma abordagem mais paciente e centrada, liderada por polícias civis e tribunais, é a melhor maneira de combater violência a longo prazo.

O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, discursa em sua cerimônia de posse em San Salvador, no dia 3 de maio  Foto: Marvin Recinos/AFP

Para entender por quê, considere as maneiras como o crime organizado se proliferou na região. As gangues constituíram portfólios cada vez mais lucrativos e diversificados. A produção de cocaína dobrou na década passada, enquanto a demanda cresce em todo o mundo, particularmente na Europa. Opióides sintéticos, tráfico de pessoas, mineração ilegal e roubo de petróleo também dão dinheiro. O encanto dessas torrentes de lucros combinado a políticas de segurança de Estado equivocadas ocasionou guerras entre gangues rivais e fragmentações de redes criminosas. A disponibilidade de armamentos poderosos, contrabandeados facilmente do maior mercado produtor de armas legalizadas no planeta, os EUA, torna esses combates ainda mais mortíferos. A impunidade é generalizada.

Essas condições fazem aumentar os índices de violência, o que por sua vez prejudica a democracia e retarda o crescimento econômico. A criminalidade custa à América Latina, em média, o equivalente a 3% de seu PIB, segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento: aproximadamente o mesmo que a região gasta em infraestrutura — o que acelera uma espiral de declínio. Economias assoladas pelo crime oferecem menos chances aos jovens, tornando os grupos criminosos mais atrativos, perpetuando a violência e impondo custos mais pesados.

A mano dura de Bukele tem funcionado — por enquanto — porque as gangues de El Salvador eram “pobres e predatórias”, afirma Christopher Blattman da Universidade de Chicago. Os grupos criminosos salvadorenhos dependiam pesadamente de extorsão, controlando bairros e estabelecendo postos de controle, cobrando pedágio de qualquer um que quisesse passar. Os homicídios foram às alturas conforme as gangues lutaram por território, apesar de o retorno ser escasso. Os integrantes de gangues faziam em média cerca de US$ 15 por semana. Crianças eram recrutadas com frequência, às vezes à força, porque podiam ser mal pagas e eram tratadas com leniência pelos tribunais. (Entre 2010 e 2014, 219 crianças foram mortas a caminho ou retornando da escola por se recusar a aderir a gangues salvadorenhas.) O modelo de negócio da extorsão significou que as gangues tiveram de operar abertamente nas áreas urbanas mais densamente povoadas para maximizar os lucros, então foi fácil sitiá-las. Tatuagens com símbolos das gangues também ajudaram a identificar bandidos.

Cidadãos de El Salvador sentam em uma loja ao lado de um militar do Exército do país em San Antonio Los Ranchos, em El Salvador  Foto: Salvador Melendez/AP

Parte do declínio inicial na violência pode ter ocorrido porque Bukele subornou as gangues, independentemente de sua mano dura. Documentos judiciais sugerem que seu governo negociou um pacto secreto segundo o qual chefões do crime ganharam dinheiro, prostitutas e proteção contra extradição em troca de apoio ao partido de Bukele em eleições e uma redução no índice de homicídios (o que o governo nega). Quando a trégua se rompeu, as gangues fizeram o massacre daquele fim de semana, e o presidente mudou de tática, ordenando a repressão.

Não ficou claro como os líderes dos grupos criminosos vinham escapando até então. Em uma gravação obtida pela agência de jornalismo investigativo El Faro, o principal negociador do governo conversa com um integrante de gangue pouco após o massacre e afirma que retirou pessoalmente um chefão da prisão e o levou para a vizinha Guatemala. O Departamento do Tesouro dos EUA impôs sanções contra o negociador e o diretor do sistema carcerário de El Salvador.

Muitos presos são gângsters de menor patente — ou simplesmente jovens tatuados. Pelo menos seis líderes da maior gangue salvadorenha, a Mara Salvatrucha, foram presos recentemente fora de El Salvador e aguardam julgamento nos EUA.

Cansados da violência, os salvadorenhos deram boas-vindas à repressão ao crime. O índice de homicídios caiu de 53 a cada 100 mil habitantes em 2018 para 2,4 no ano passado, de acordo com dados do governo. Em fevereiro, depois de tirar do caminho uma proibição constitucional à sua reeleição, Bukele conquistou o segundo mandato com 85% dos votos válidos. Depois foi saudado pela Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC), a cúpula anual da direita americana. Políticos têm visitado El Salvador para aprender com o “modelo Bukele”. A repressão ao crime no Equador cheira a isso também, apesar de Daniel Noboa ser mais democrático.

Os pilares das políticas mano dura — encarceramento em massa e policiamento militarizado — podem agradar multidões, mas criam problemas mesmo quando parecem resolver as coisas. Consideremos as prisões. As gangues da região transformam as cadeias em “quartéis-generais, centros de recrutamento e unidades econômicas”, afirma Javier Acuña, ex-conselheiro da agência penitenciária do Equador. Emiliano (não é seu nome real), que recentemente saiu da prisão de Latacunga, ao sul de Quito, a capital, relatou que os detentos conseguem comprar bebidas alcoólicas, sexo e até frango frito, entregue por drones, se tiverem dinheiro suficiente ou cocaína, a moeda preferida. Não havia agentes nas torres de vigilância; as gangues transformaram-nas em arsenais.

Corrupção, não correção

Nesse contexto, colocar mais gente na prisão simplesmente aumenta o número de integrantes das gangues. Muitos detentos juntam-se a alguma facção criminosa para sobreviver. Quando João foi preso na cidade brasileira de São Paulo, 2008, o primeiro detento que ele conheceu lhe entregou uma barra de sabão, uma troca de roupa, uma toalha — e um manual de ética que bania estupros e roubos. O homem pertencia ao Primeiro Comando da Capital (PCC), uma gangue fundada após um massacre praticado pela polícia em uma penitenciária de São Paulo. João entrou no PCC e ascendeu rapidamente na hierarquia. Apesar de ter deixado o PCC, ele afirma que a facção cuidou dele melhor que o Estado. Muitos detentos concordam. Conforme o índice de encarceramento estourou no Brasil, a gangue se espalhou. Hoje, o PCC é a maior facção criminosa da América do Sul, ligada à ‘Ndrangheta, o grupo mafioso mais poderoso da Itália, e aos chefões da droga nos Bálcãs.

Dar ao Exército atribuições de policiamento também pode sair pela culatra. Exércitos são treinados para defender Estados de ameaças estrangeiras, não para investigar crimes e preencher boletins de ocorrência. Após se tornar presidente do México, em 2018, Andrés Manuel López Obrador dissolveu a Polícia Federal e a substituiu por uma Guarda Nacional. E também incrementou em 150% o orçamento das Forças Armadas.

Os resultados têm sido desastrosos. O mandato de seis anos de López Obrador foi o mais sangrento no México neste século. A violência assolou a campanha para as próximas eleições, com 63 candidatos e indivíduos ligados aos políticos assassinados até aqui. A Guarda Nacional é incompetente. Em 2018, a Polícia Federal apreendeu cerca de 2,5 toneladas de cocaína. Em 2022, a Guarda Nacional conseguiu apreender cerca de metade disso, com um contingente três vezes maior.

O presidente do México, Andres Lopez Obrador, participa de um comício ao lado da candidata a presidência Claudia Sheinbaum, na Cidade do México  Foto: Fernando Llano/AP

Parte da justificativa para usar o Exército é que soldados supostamente são mais difíceis de corromper do que policiais ou juízes. Mas isso pode ocorrer simplesmente porque eles passam menos tempo com criminosos. Uma vez que os militares passam a controlar prisões e patrulhar as ruas, “não há nenhuma garantia estrutural de que eles não serão comprados também”, afirma o ex-candidato à presidência do Equador Jan Topic. Em 2020, o general mexicano Salvador Cienfuegos, ministro da Defesa de 2012 a 2018, foi preso nos EUA acusado de envolvimento com gangues. (E foi solto após López Obrador espernear. Seus advogados afirmam que ele é inocente e não deveria ter sido indiciado.) Em 30 de abril, o presidente colombiano, Gustavo Petro, anunciou que milhares de armamentos, incluindo mísseis, “desapareceram” de duas bases militares.

Além dos problemas do encarceramento em massa e do policiamento militarizado, os maiores grupos criminosos da América Latina são mais ricos e poderosos do que os brutos que aterrorizavam El Salvador. A Pemex, estatal de petróleo do México, perdeu US$ 3 bilhões em roubos de petróleo durante o mandato de López Obrador. A gangue mais poderosa da Colômbia, o Clã do Golfo, ganha anualmente US$ 4,4 bilhões não apenas com exportações de drogas, mas também com tráfico de pessoas, extorsão e mineração ilegal, de acordo com o International Crisis Group, um instituto de análise. Partes da Amazônia cada vez mais têm virado terras sem lei conforme as gangues lutam para controlar o tráfico de animais silvestres, a produção de madeira ilegal e os garimpos de ouro. Enquanto as gangues de El Salvador sugavam dinheiro de suas comunidades, essas empresas criam empregos e geram capital.

Os limites da força

Cooperações internacionais também fortalecem as gangues latino-americanas. Em 2016, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), que controlavam o comércio de cocaína no vizinho Equador, assinaram um acordo de paz com o governo colombiano e se retiraram — o que produziu um vácuo justamente num momento em que o mercado da cocaína explodia. Vislumbrando oportunidade, grupos mafiosos albaneses, guerrilheiros colombianos dissidentes e os cartéis mexicanos rivais de Sinaloa e Jalisco Nova Geração forçaram a entrada. E subcontrataram gangues equatorianas, com frequência pagando por cargas de cocaína com armamentos militares. O índice de homicídios aumentou no Equador. Sozinho, nenhum Estado é capaz de derrotar gangues ativas em seu território porque elas também operam em todos os países vizinhos.

Diante desses desafios, o Equador e outros países latino-americanos assolados por violência de gangues fariam melhor se concentrassem sua atenção nos indivíduos mais brutais em vez de tentar desmantelar todos os grupos de crime organizado de uma só vez. Uma estratégia com alvos específicos, conhecida como dissuasão focada, significa deixar estar os grupos menos sanguinários. “Nenhuma força policial no planeta tem capacidade de atacar tudo de uma vez”, afirma Rodrigo Canales, da Universidade de Boston. “Mas colocando foco sobre a violência extrema é possível tornar as coisas difíceis para o grupo, que passa a se dedicar a diminuir a violência.”

O presidente do Equador, Daniel Noboa, discursa na sede do Conselho Nacional Eleitoral no dia da votação de um referendo sobre segurança no Equador  Foto: Rodrigo Buendia/AFP

Quando se elegeu prefeita da Cidade do México, em 2017, Claudia Sheinbaum, a candidata mais bem colocada na disputa presidencial mexicana, convidou policiais e acadêmicos americanos (incluindo Canales) para testar a dissuasão focada no bairro Plateros, com 260 mil habitantes e um índice de homicídio de 22 a cada 100 mil habitantes. Eles reuniram a inteligência da polícia, o escritório da Procuradoria-Geral e serviços sociais em uma análise minuciosa dos casos de homicídios com arma de fogo.

A equipe identificou 25 homens muito propensos a matar e então ser mortos — e então ofereceu-lhes uma mescla entre favores e ameaças. Os favores incluíam aconselhamentos e, em casos extremos, realocações. A ameaça era que esses homens sabiam que eram vigiados constantemente e seriam encontrados assim que cometessem qualquer crime. A equipe também criou uma base de dados que confronta casos de homicídio e ferimentos com arma de fogo com uma média quinquenal em Plateros e bairros similares nas proximidades. Em 2023, o índice de homicídios em Plateros tinha caído para 9 a cada 100 mil moradores.

No curto prazo, a dissuasão focada é capaz de reduzir a violência. Mas também pode permitir às gangues se consolidar. Paz significa que os cidadãos ficam menos propensos a denunciar, e o Estado mais propenso a não combater as gangues. Os grupos criminosos mais bem-sucedidos preferem a paz à guerra. São Paulo ficou mais segura depois que o PCC conquistou o monopólio da força. Na cidade colombiana de Medellín, o índice de homicídios despencou após as gangues de alto nível firmarem um pacto, em 2009. Dados de municípios mexicanos sugerem que níveis elevados de saturação de uma gangue podem diminuir a incidência de homicídios.

Parentes de presos observam os detentos saírem de um presidio para outro em San Salvador, El Salvador  Foto: Daniele Volpe/NYT

É por isso que soluções a médio prazo são necessárias. Uma vez que os índices de violência se estabilizam, os Estados devem colocar foco em prejudicar os lucros dos criminosos impondo custos maiores para suas atividades — o que significa expurgar instituições de autoridades corruptas e impulsionar a criação de unidades especiais para detectar lavagem de dinheiro e tráfico de armas. Entre 2016 e 2020, houve apenas 12 condenações por lavagem de dinheiro no Equador. Em 2022, o governo criou uma unidade especial para combater corrupção e crime organizado. A procuradora-geral, Diana Salazar, está liderando uma investigação corajosa sobre policiais, políticos e magistrados que pactuam com gangues.

Em última instância, os Estados deveriam se dedicar a reduzir o recrutamento para as gangues e tornar públicas as nefastas realidades de seus integrantes. O índice mundial de homicídios de homens com idades entre 15 e 29 anos é de 16 a cada 100 mil habitantes; na América Latina é 60. Escolas, onde crianças são recrutadas com frequência, devem ser o ponto inicial. Um artigo publicado no ano passado na Science, uma revista científica americana, estima que, se os números de recrutamento das gangues no México baixassem pela metade, as mortes também baixariam pela metade. No longo prazo, as gangues devem temer mais pessoas como Salazar e um Estado-babá do que um homem-forte e suas repressões. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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